Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
087687
Nº Convencional: JSTJ00028942
Relator: MIRANDA GUSMÃO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
RENÚNCIA
Nº do Documento: SJ199602130876872
Data do Acordão: 02/13/1996
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8557/94
Data: 12/15/1994
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: A VARELA IN RLJ ANO103 PAG476. VAZ SERRA IN RLJ ANO103 PAG471.
MOTA PINTO IN TEORIA GERAL DO DIR CIV PAG267.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG / DIR REAIS.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 410 ARTIGO 416 N1 N2 ARTIGO 1410.
L 63/77 DE 1977/08/25.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1987/02/03 IN BMJ N364 PAG814.
Sumário : I - O artigo 416, n. 1 do Código Civil impõe que a comunicação dos elementos essenciais do negócio ao preferente seja feita pelo obrigado a dar preferência.
II - A renúncia ao direito de preferência tem por base a comunicação dos elementos essenciais do negócio por parte do obrigado a dar preferência.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. A, intentou acção declarativa de preferência e com processo ordinário, contra B e mulher C, D, E e marido F e G e marido H, pedindo que se lhe reconheça o direito de substituir os 3. e 4. Réus na fracção autónoma designada pela letra "C" que corresponde ao primeiro andar esquerdo do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito em
Lisboa, na Rua ..., com o fundamento de os 1. e 2. Réus terem transmitido para os
3. e 4. Réus a propriedade da identificada fracção pelo preço de 4000000 escudos, por escritura de 5 de
Dezembro de 1988, sem que os 1. e 2. Réus tivessem comunicado à Autora, arrendatária da fracção em causa, da sua intenção de vender o andar.
- Os Réus contestaram por impugnação e por excepção, a caducidade do direito de preferência invocado pela
Autora.
- Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar procedente a excepção de caducidade e a absolver os Réus do pedido.
2. A Autora apelou. A Relação de Lisboa, por acórdão de
15 de Dezembro de 1994, julgou procedente o recurso e, assim, revogou a decisão recorrida, reconhecendo à
Autora, A, o direito a substituir os 3. e 4. Réus, E e seu marido F, G e seu marido H, na compra da fracção designada pela letra "C" que corresponde ao primeiro andar esquerdo do prédio sito em Lisboa, na Rua ..., declarando-se a Autora sua proprietária.
3. Os Réus pedem Revista, formulando as seguintes conclusões:
1) A Autora, legal preferente na celebração da compra e venda, renunciou ao direito de preferência, por duas vias distintas, a saber: a) Renúncia expressa, comunicada ao adquirente da fracção, na presença de duas testemunhas; b) Renúncia por omissão, ao não agir no prazo legal e após o conhecimento que efectivamente teve dos elementos essenciais do negócio, operando-se assim a caducidade.
2) É irrelevante que o conhecimento dos elementos essenciais do negócio tenha sido comunicado ao preferente pelo vendedor ou por terceiro que na circunstância é o próprio comprador, para efeitos da caducidade do direito.
3) A Autora teve conhecimento dos elementos essenciais do negócio - comprador, preço e data da escritura, que lhe foi comunicado pelo Réu H.
4) O douto acórdão violou o disposto nos artigos 416 e
1410 do Código Civil e ainda a alínea c) do n. 1 do artigo 668 do Código de Processo Civil, pelo que deva ser revogado.
4. A Autora apresentou contra-alegações a pugnar pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Elementos a tomar em conta:
1) A Autora é arrendatária habitacional da fracção autónoma designada pela letra "C" que corresponde ao 1. andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em Lisboa, na Rua ....
2) Por escritura pública de 5 de Dezembro de 1988, lavrada a folhas 12 e verso do livro 77-H do 2.
Cartório Notarial de Almada, os 1. e 2. Réus transmitiram para os 3. e 4. Réus a propriedade da identificada fracção pelo preço de 4000000 escudos.
3) os Réus falaram pessoalmente com a autora indicando-lhe que pretendiam transaccionar a fracção.
4) Entre a Autora e os Réus houve contactos pessoais com vista à transacção da casa.
5) Em 23 de Novembro de 1988, o Réu H, acompanhado pelas testemunhas I e J, foi a casa da Autora a quem comunicou a sua intenção de adquirir a dita casa por 4000 contos, indicando que se propunha celebrar a escritura em 5 de Dezembro de 1988.
6) Nessa altura a Autora respondeu-lhes que devido à sua idade (superior a 80 anos) e porque não tinha dinheiro, não estava interessada em adquirir a fracção.
III
Questões a apreciar no presente recurso.
A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa pela análise de duas questões: a primeira, se é irrelevante que o conhecimento dos elementos essenciais do negócio tenha sido comunicado ao preferente pelo vendedor ou por terceiro que na circunstância é o próprio comprador para efeitos da caducidade do direito; a segunda, se a
Autora renunciou ao direito de preferência.
Abordemos tais questões.
IV
Se é irrelevante que o conhecimento dos elementos essenciais do negócio tenha sido comunicado ao preferente pelo vendedor ou por terceiro que na circunstancia é o próprio comprador para efeitos da caducidade do direito.
1. Posição da Relação e dos recorrentes:
1a) A Relação de Lisboa decidiu que:
- a comunicação obrigatória prescrita pelo n. 1 do artigo 416 do Código Civil constitui uma verdadeira declaração negocial: é a proposta contratual correspondente ao projecto da venda que o obrigado à preferência leva ao conhecimento do preferente;
- a comunicação efectuada pelo terceiro interessado na aquisição da coisa não passa de pura informação, a não ser que intervenha como mandatário do vendedor.
- enquanto não houver a notificação por parte do vinculado à preferência (feita directamente ou por meio de mandatário) não se desencadeia o dever de agir que o n. 2 do artigo 416 lança sobre o preferente nem começa a correr o prazo de caducidade.
1b) Por sua vez, os recorrentes sustentam que
- o artigo 1410 do Código Civil não impõe que seja o vendedor do bem imóvel a dar conhecimento da compra e venda ao legal preferente.
- A lei dá ao preferente o prazo legal imperativo de 6 meses, sob pena da caducidade, de não mais poder agir em ordem à modificação do negócio efectuado, contando o prazo da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da transacção.
- O que importa, em sede de caducidade, é determinar se o legal preferente teve ou não conhecimento, e em que prazo, das condições essenciais do negócio, independentemente do modo ou pessoa por via da qual tal conhecimento se operou. Se o preferente não agir no prazo legal cominado, o negócio consolidou-se e deixa de poder ser modificado subjectivamente.
Que dizer?
2. O artigo 416 do Código Civil - aplicável ao direito legal de preferência dos arrendatários habitacionais na compra e venda ou dação em cumprimento dos imóveis respectivos, Lei n. 63/77, de 25 de Agosto - prescreve no seu n. 1 que "querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo".
Tal norma versa sobre o ónus de informação necessário ao exercício do direito de preferência. O sentido e alcance de tal norma traduz-se em saber qual o conteúdo desse ónus.
Tarefa facilitada quando se tenha presente a natureza jurídica do direito legal de preferência: direito que confere ao respectivo titular o poder de adquirir sobre determinada coisa, quando ocorram certos pressupostos, um direito real de gozo (A. Varela, Rev. Leg. e Jurisp., ano 103, página 476; Vaz Serra, Rev. Leg. e Jurisp. ano 103, página 471).
Se o direito de preferência atribui ao seu titular a faculdade de adquirir a coisa, uma vez verificados os seus pressupostos (venda ou projecto de venda do imóvel objecto de tal direito) poderá avançar-se que a norma em análise tem em vista possibilitar ao titular do direito de preferência a tomada de uma decisão: se deve exercer (ou não exercer) o seu direito.
E para a tomada de uma decisão por parte do titular do direito de preferência necessário se torna que lhe sejam facultados os elementos necessários para servir de suporte à mesma. E esses elementos necessários terão de lhe ser fornecidos por quem vai suportar ou beneficiar com essa decisão, que é senão o proprietário onerado com o direito de preferência.
Tendo presente quer a razão de ser - a finalidade - da comunicação dos elementos da projectada venda (desencadear o dever de resposta, dentro de certo prazo, por parte do titular do direito de preferência), quer as consequências para o titular do direito de preferência caso nada dizer dentro do prazo a que alude o n. 2 do artigo 416 do Código Civil (caducidade do seu direito), a interpretação a dar à norma do n. 1 do artigo 416 do Código Civil não pode ser outra senão a de que a comunicação dos elementos da projectada venda terá de ser feita pelo obrigado à preferência ao titular da mesma.
A interpretação dada à norma em causa corresponde à linha de pensamento do insigne civilista ANTUNES VARELA ao escrever:
"A comunicaºão obrigatória prescrita pelo n. 1 do artigo 416 ... constitui uma verdadeira declaração negocial. É a proposta contratual correspondente ao projecto de venda que o obrigado à preferência leva ao conhecimento do preferente. Comunicando ao titular da preferência que está disposto a vender a coisa em determinados termos, o autor da comunicação propõe, expressa ou implicitamente, ao notificado a celebração do negócio com a celebração de cláusulas que leva ao seu conhecimento".
E acrescenta:
"Enquanto não houver a notificação por parte desse vinculado (feita directamente ou por meio de mandatário) não se desencadeia o dever de agir que o n. 2 do artigo 416 lança sobre o preferente, nem começa a correr o prazo de caducidade..." (Rev. Leg. e Jurisp., ano 105, páginas 14 e 15).
A interpretação dada à norma em causa corresponde à dada por este Supremo Tribunal (acórdão de 3 de Fevereiro de 1987 - Boletim n. 364, página 814) e, ainda, é confirmada pelo princípio fundamental em cumprimento das obrigações: só o devedor está obrigado a cumprir; só ele deve a prestação e, consequentemente, só dele (em princípio) o credor pode exigi-la.
3. Intimamente ligada no dever de preferência, consubstanciada na obrigação de comunicar o projecto de venda e as cláusulas do contrato projectado, está a acção de preferência regulada no artigo 1410 do Código
Civil, também aplicável ao direito legal de preferência dos arrendatários habitacionais na compra e venda ou dação em cumprimento dos imóveis respectivos - Lei n. 63/77, de 25 de Agosto.
Só quando o alienante tenha o dever de oferecer a preferência a alguém, na altura da venda ou dação em pagamento do imóvel, e haja faltado ao cumprimento desse dever, é que o lesado pode recorrer à acção de preferência.
Tudo a significar que:
- a aplicação do n. 1 do artigo 416 tem lugar antes da alienação da coisa a que se refere o direito de preferência, constituindo uma etapa no cumprimento da obrigação de dar preferência;
- o recurso ao artigo 1410 do Código Civil pressupõe que estejamos face a uma situação de incumprimento de dar preferência.
4. Face ao que se deixa exposto, e presente a matéria factual fixada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, haverá que precisar que no caso "sub júdice" não se verificou a comunicação por parte dos 1. e 2. Réus - os vinculados a dar preferência - à Autora - a titular do direito de preferência - o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.
Se é certo que um dos Réus - o H - comunicou à Autora a sua intenção de adquirir a fracção em causa por 4000000 escudos, com a indicação que se propunha celebrar a escritura em 5 de Dezembro de 1988, não é menos certo que não ficou provado que essa comunicação fosse feita em nome dos 1. e 2. Réus - os donos da fracção em causa, os obrigados a dar preferência à Autora.
Esta comunicação não passa de uma simples informação que a Autora podia utilizar, se quisesse, para inquirir da real intenção dos 1. e 2. Réus, mas que o não compele a actuar, como bem acentua ANTUNES VARELA -
Revista Legislação e Jurisprudência, ano, 105, página 14.
Conclui-se, assim, que, por um lado, o artigo 416 n. 1 do Código Civil impõe que a comunicação dos elementos essenciais do negócio ao preferente seja feita pelo pretenso vendedor e, por outro lado, a mesma disposição legal não dá qualquer relevância à comunicação feita por terceiro, ainda que futuro comprador.
V
Se a autora renunciou ao direito de preferência.
1. Posição da Relação e dos recorrentes
1a) A Relação de Lisboa decidiu que:
- a renúncia ao direito de preferência integra uma verdadeira declaração negocial: tem que referir-se, por forma inequívoca, a quem é obrigado a conceder a preferência e não a qualquer outra pessoa.
- não pode entender-se como renúncia ao direito de preferência a afirmação feita pela Autora perante o Réu
César de que não estava interessada na aquisição da fracção.
1b) Por sua vez, os recorrentes sustentam que:
- a Autora renunciou ao exercício do Direito de preferência por uma dupla via, a renúncia expressa e verificada na presença de testemunhas oculares do facto e, por outro lado, pelo decurso legal de caducidade, ao não ter proposto a acção judicial dentro dos seis meses após o conhecimento.
- A Autora ao reagir por via da acção judicial muito tempo depois de ter tido conhecimento dos elementos essenciais do negócio, agiu impropriamente e quasi que veio contra si própria, alegando factos que não desconhecia.
Que dizer?
2. Antes de mais, dir-se-à que a solução dada à questão anterior reflecte-se na presente questão, de sorte a produzir-se a afirmação de que a Autora não renunciou ao direito de preferência na compra e venda que os 1. e
2. Réus celebraram com os 3. e 4, Réus e que teve por objecto a fracção locada à Autora para sua habitação.
Na verdade, só depois de lhe ter sido comunicado o projecto de alienação e as cláusulas do respectivo contrato pelo obrigado a dar a preferência, é que tem sentido a declaração do preferente que não quer preferir. Resulta da própria natureza da renúncia: um negócio jurídico unilateral não receptício (MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, página 267), e, ainda, da natureza legal do direito de preferência.
3. No caso "sub júdice" verifica-se que, por um lado, não houve qualquer comunicação pelos 1. e 2. Réus (os obrigados a dar preferência) à Autora (a titular do direito de preferência) do projecto de venda e das cláusulas do respectivo contrato, de sorte que, conforme se sublinhou, nenhuma relevância tem a "comunicação" (leia-se, informação) feita por um pretenso comprador.
Tratou-se de mera informação não vinculativa para a autora e, por assim ser, a resposta que deu ao pretenso comprador (a de não estar interessada em adquirir a fracção, quer pela sua idade quer por não ter dinheiro) não passa de uma declaração de ciência.
A resposta dada pela Autora só consubstanciaria uma declaração de vontade (a de manifestar a perda voluntária do exercício do direito de preferência) caso a comunicação tivesse sido feita pelos 1. e 2. Réus - os obrigados a dar preferência.
Por outro lado, não se pode apontar a existência de renúncia por omissão, uma vez que esta pressupõe o decurso do prazo para o exercício da acção de preferência, o que equivale a dizer que a mesma só surge quando se esteja perante uma situação de incumprimento de dar preferência (ou seja, com a alienação feita) e não se intente essa acção dentro do prazo de seis meses, após o conhecimento da realização do negócio, por parte do titular do direito de preferência (artigo 1410 n. 1 do Código Civil).
Conclui-se, assim, que a Autora não renunciou ao seu direito de preferência no contrato de compra e venda celebrado pelos Réus e que teve por objecto a fracção de que é arrendatária habitacional.
VI
Conclusão:
Do exposto, poderá extrair-se que:
1) O artigo 416 n. 1 do Código Civil impõe que a comunicação dos elementos essenciais do negócio ao preferente seja feita pelo obrigado a dar preferência.
2) A renúncia ao direito de preferência tem por base a comunicação dos elementos essenciais do negócio por parte do obrigado a dar preferência.
Face a tais conclusões, em conjugação com os elementos reunidos nos autos, poderá precisar-se que:
1) A Autora não tinha a obrigação de dar qualquer resposta aos Réus vendedores da comunicação feita pelo
Réu H sobre a futura celebração do contrato de compra e venda da fracção de que aquela era arrendatária habitacional.
2) A Autora ao declarar ao Réu H de que não queria preferir no contrato de compra e venda referido em 1), não renunciou ao seu direito de preferência como arrendatária habitacional da fracção a vender.
3) O acórdão recorrido não merece censura por não ter inobservado o afirmado em 1) e 2).
Termos em que se nega a revista.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 1996.
Miranda Gusmão,
Sá Couto,
Sousa Inês.
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 24 de Novembro de 1993 do 3. Juízo -
1. Secção Lisboa;
II - Acórdão de 15 de Dezembro de 1994 da Relação de
Lisboa.