Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
30060/15.3T8LSB.L3.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: REENVIO PREJUDICIAL
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ERRO JUDICIÁRIO
QUESTÃO PREJUDICIAL
ERRO DE JULGAMENTO
ERRO GROSSEIRO
DECISÕES CONTRADITÓRIAS
FUNÇÃO JURISDICIONAL
CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO TEMPORÁRIO
CONTRATO DE TRABALHO A TERMO INCERTO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
CONSTITUCIONALIDADE
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
Data do Acordão: 11/26/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. Desde o Acórdão Cilfit que o TJUE vem admitindo a dispensa do dever de suscitar a questão prejudicial por insusceptibilidade de recurso em certas situações, designadamente quando já se tenha pronunciado, de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou outro meio processual, atento o efeito erga omnes das suas decisões.

II. Tendo o TJUE, no Acórdão Ferreira da Silva e Brito, respondido já à questão de saber se o artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado viola o Direito da União Europeia, ao exigir, como fundamento do pedido de indemnização contra o Estado por danos causados por violação do Direito da União cometida por um órgão jurisdicional decidindo em última instância, a prévia revogação da decisão danosa, pode o Supremo Tribunal de Justiça considerar-se dispensado de proceder ao reenvio prejudicial desta questão.

III. De acordo com o seu artigo 51.º, n.º 1, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia vincula os Estados-Membros apenas quando estes apliquem o Direito da União Europeia, pelo que, quando a parte que questiona a compatibilidade entre normas de Direito interno e as normas da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia não demonstra que as normas de Direito interno em apreço se destinam a aplicar Direito da União ou, pelo menos, se inserem no âmbito das competências da União em matéria legislativa, não pode haver lugar ao reenvio prejudicial.

IV. Desde o Acórdão Köbler que o TJUE vem afirmando que, para os Estados-Membros serem obrigados a ressarcir os danos resultantes da violação do Direito da União cometida por um órgão jurisdicional decidindo em última instância, é necessário que: 1.º) exista violação do Direito da União Europeia; 2.º) esta violação seja suficientemente caracterizada.

V. Tendo ou não sido demonstrado que a decisão danosa violou o Direito da União Europeia, a interpretação do artigo 13.º, n.º 1, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado segundo a qual a responsabilidade do Estado depende da prática de erro qualificado (grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível…) não é desconforme ao Direito da União Europeia nem à jurisprudência do TJUE.

VI. Não sendo demonstrado que a decisão danosa violou o Direito da União Europeia, a interpretação do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado segundo a qual a responsabilidade do Estado depende da prévia revogação daquela decisão não é desconforme ao Direito da União Europeia nem à jurisprudência do TJUE.

VII. Consubstanciando-se o alegado erro judiciário numa mera divergência de decisões proferidas pelo mesmo tribunal relativamente à mesma questão de direito, a interpretação do artigo 13.º, n.ºs 1 e 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado que conduz à improcedência da acção de responsabilidade civil do Estado não é inconstitucional.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. Em 2.11.2015 AA, titular do n.º de identificação civil …, contribuinte fiscal n.° … intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, formulando os seguintes pedidos:


A


Deve condenar-se o réu Estado a reconhecer que:

1. A decisão constante do acórdão da Relação de .... de 08/05/2013, referido nomeadamente nos artigos 7° e 15°, e o mesmo acórdão proferido no mesmo Processo 2718/09.3..., ..° juízo - ..ª secção, tribunal do trabalho de ..., violam os princípios da legalidade, igualdade e segurança jurídica, bem como o princípio da equivalência e o da efectividade.

2. Que a mesma decisão e acórdão são inconstitucionais e ilegais por violarem os princípios da legalidade, igualdade e segurança jurídica, bem como o princípio da equivalência e o da efectividade.

3. Que a decisão e o acórdão da Relação que não deram razão à autora são manifestamente inconstitucionais e ilegais e baseiam-se em pressupostos de facto grosseiramente errados.

4. Que a decisão e o acórdão da Relação violaram a Carta dos Direitos Fundamentais na União Europeia, nomeadamente os artigos 20, 21, 30, 31, 47, 52, 53 e 54.

5. Que devem ser desaplicadas no caso concreto as normas do artigo 13.°, n.° 1 e 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.°67/2007, de 31 de Dezembro.

6. Que as normas do artigo 13.°, n.° 1 e 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.°67/2007, de 31 de Dezembro são inconstitucionais na medida em que o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente e tem de haver erro grosseiro.


B


7. Deve declarar-se inconstitucionais as normas do artigo 13.°, n.° 1 e 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.°67/2007, de 31 de Dezembro quando interpretadas no sentido de que o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente e tem de haver erro grosseiro.

8. Deve revogar-se a decisão do acórdão da Relação de ...... de 08/05/2013, referido nomeadamente nos artigos 7° e 15°, e o mesmo acórdão proferido no mesmo Processo 2718/09.3..., ..° juízo-..ª secção, tribunal do trabalho de ... .

9. Deve condenar-se o Estado a pagar uma indemnização/compensação à autora não inferior a 40.000,00 € (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais…

10. … E a quantia que se fixar em liquidação de sentença a título de danos patrimoniais.

11. … E as despesas de abertura de dossier, despesas administrativas e de expediente, taxas de justiça pagas pela autora, despesas de certidões, todas as despesas de tradução de documentos e honorários a advogado neste processo conforme alegado.

12. A todas as verbas atrás referidas devem acrescer quaisquer quantias que, eventualmente, sejam devidas a título de imposto que incida sobre as quantias recebidas do Estado.

13. … E juros sobre as verbas anteriores à taxa legal de 4% ao ano desde a citação ou, subsidiariamente, desde a data da sentença.

14. Deve condenar-se ainda o Estado a pagar uma sanção pecuniária compulsória correspondente à taxa de 5% ao ano sobre os valores atrás referidos e juros, desde o trânsito em julgado da sentença, nos termos do art° 829°-A, n° 4, do Código Civil.

15. E em custas e demais de lei”.


2. Por despacho proferido em 10.11.2015 (ref.ª 340858953, de 5.11.2015) foi a petição inicial liminarmente indeferida, pelo que, invocando o disposto no artigo 560.º do CPC, a autora apresentou nova petição inicial, na qual formulou os mesmos pedidos (ref.ª 21144392, de 19.11.2015).

Nesta última alega, em síntese, que:

- Em 10.07.2009 instaurou uma ação no Tribunal do Trabalho de … contra a BB e outra, ação essa que correu termos com o n° 2718/09.3..., na qual pedia que fosse declarado o direito da autora à titularidade de uma relação laboral por tempo indeterminado com a ré BB, bem como o direito a ocupar o respectivo posto de trabalho, tal como vinha fazendo;

- Em 30.07.2012 foi proferida sentença julgando improcedente a acção;

- Em 8.05.2013, por acórdão proferido pelos Exmos. Desembargadores S..., F..... e M..., o Tribunal da Relação de … julgou o recurso improcedente;

- A autora interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, mas o STJ não admitiu;

- No âmbito do processo 201/09.6... que correu no mesmo tribunal, juízo e secção, duas colegas de trabalho da autora instauram uma acção, contra a BB, em tudo idêntica àquela que a autora tinha intentado;

- Julgada esta causa em 1.ª instância, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de …,

- Em 10.09.2014 o Tribunal da Relação de …, deu provimento do recurso instaurado, por acórdão proferido pelos Exmos. Desembargadores M..., I... e J... - declarando-se ilícito o despedimento, condenando a BB a reintegrar as trabalhadoras, e reconhecendo assim a existência de uma relação laboral;

- No mesmo acórdão a Exma. Desembargadora relatora consignou que “corrigia” a orientação que subescreveu no acórdão de 8.05.2013;

- Deste acórdão foi interposto recurso para o STJ, que foi rejeitado com o fundamento de que o valor da causa não o admitia.


3. Por despacho proferido em 30.11.2015 (ref.ª 341...92, de 26.11.2015, fls. 179-181) foi esta petição inicial liminarmente indeferida.

4. Desta decisão recorreu a autora, pelo que, admitido o recurso, foi citado o réu para os termos da causa e do recurso, tendo o mesmo contestado, pugnando pela total improcedência da presente ação (ref.ª 17170 de 25.11.2016, fls. 224-235).

5. Por Acórdão proferido em 26.04.2017 (ref.ª 11577688, fls. 255-259), o Tribunal da Relação de ... julgou procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento da causa.

6. Realizada audiência prévia, em 14.03.2018 foi proferida sentença (ref.ª 373333947, de 7.02.2018), julgando a ação improcedente, e absolvendo o réu de todos os pedidos.

7. Inconformada, a autora recorreu de novo para o Tribunal da Relação de … e, por Acórdão proferido em 31.01.2019 (ref.ª 14034756, fls. 441-456), foi declarada “nula a sentença em e em consequência”, determinando-se que “seja proferida sentença que explicite com suficiência e clareza a matéria de facto, que venha a fundamentar a nova decisão”.

8. Baixando os autos à primeira instância, foi, em 10.05.2019, proferida nova sentença, julgando a ação improcedente e absolvendo o réu de todos os pedidos (ref.ª 385617603, de 1.04.2019).

9. Desta sentença recorreu novamente a autora para o Tribunal da Relação de … .


10. Julgando o recurso, proferiu este Tribunal, em 17.12.2019, um Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se:

Pelo exposto, acordam os juízes nesta ..ª Secção Cível do Tribunal da Relação de .... em julgar a presente apelação totalmente improcedente, confirmando integralmente a sentença recorrida.

Custas pela recorrente”.


11. Ainda irresignada, interpõe agora a autora o presente recurso de revista.

Termina as suas alegações concluindo o seguinte:

1. Noutro processo que correu no mesmo tribunal, secção e juízo, duas colegas de trabalho da autora instauraram acção contra as mesmas entidades em 2009, processo 201/09.6..., ..º juízo-..ª secção, Tribunal de Trabalho de ... .

2. PORTANTO, no mesmo ano, tribunal e secção e ao abrigo da mesma legislação.

3. E COM IDÊNTICO PEDIDO E CAUSA DE PEDIR e Matéria Provada.

4. Sendo os mesmos os mandatários de todas as autoras.

5. Não é demais repetir que face à sentença de primeira instância, as duas autoras interpuseram recurso e a mesma Relação deu a uma razão por acórdão de 10/09/2014, INVERTENDO A SUA JURISPRUDÊNCIA.

6. Na página 25 deste acórdão está escrito: "A ORA RELATORA CORRIGE, ASSIM, PELAS RAZÔES AGORA APONTADAS, A ORIENTAÇÂO QUE, COMO 2ª VOGAL, SUBSCREVEU no AC. DE 08/05/2013, NO PROCESSO nº 2718//09.3TTLSB. 1" (sic).

7. QUEM CORRIGE ACHA QUE COMETEU ERROS.

8. Ou seja, a mesma rigorosa questão teve duas soluções diferentes, prejudicando a autora.

9. Violando o princípio da legalidade e igualdade, que são princípios constitucionais.

10. Pelo que houve uma ILICITUDE.

11. E o erro assumido pela própria Relação tem de ter consequências jurídicas.

12. Assim, estão cumpridos todos os pressupostos para o direito à indemnização.

13. O Estado tem de assumir os seus erros e pagar as suas consequências.

14. Há Inconstitucionalidade do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (adiante referido como “RCEEP”), aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

15. O artigo 22º da Constituição não permite nem contém as interpretações restritivas que o legislador e a jurisprudência portuguesas impõem aos cidadãos na defesa dos seus direitos. Não diz que o erro tem de ser grosseiro, notório, etc.

16. As normas contidas no nº 1 e 2 do artº 13º da Lei nº 67/2007 de 31/12 são inconstitucionais, por violarem os artºs 2º, 3º, 5º, 13º, 16º, 18º nºs 1, 2 e 3, 20º nºs 1 e 5, e 22 da CRP e normas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem atrás referidas.

17. Igualmente por violarem os princípios da lealdade comunitária e do primado; artºs 4º nº 3 e 6º nº 2 do TUE – Lisboa; bem como o parágrafo 1º do nº 4 do artº 5º do TUE e 59º nº 1 al. a) da CRP por estarem em causa a violação dos artºs 15º, 20º e 31º da CDFUE; e o Protocolo nº 2 anexo ao TUE juntamente com os princípios da equivalência e da efetividade (cfr. artº 4º nº 3 e 19º nº 1 parágrafo 2º do TUE e artº 267º do TFUE); bem como a jurisprudência comunitária/europeia mencionada no texto.

18. Tudo na interpretação de que, embora tal norma “...limita consideravelmente o exercício desse direito (o direito à indemnização), o que equivale, em muitos casos, ao “não direito”...” tal restrição não é arbitrária nem desproporcional, não violando a CRP nem o direito comunitário.»

19. Em conclusão, devem ser julgadas inconstitucionais as normas do artigo 13.º, n.º 1 e 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º67/2007, de 31 de Dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente e tem de haver erro grosseiro.

20. Os acórdãos nacionais e a sentença de que se recorre violam as leis europeias e a jurisprudência da União Europeia, como o disse o Tribunal de Justiça da União Europeia, 2ª Secção, Acórdão de 9 Set. 2015, Processo C-160/14, da seguinte forma:

21. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. Em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares, a legislação portuguesa que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por um órgão jurisdicional em última instância, quando essa revogação se encontra na prática excluída, viola o direito da União.

22. A decisão da RELAÇÃO RELATIVA À QUESTÃO LABORAL DA AUTORA E ESTA DE QUE SE RECORRE, violam a Carta dos Direitos Fundamentais na União Europeia, nomeadamente os princípios da igualdade e justiça.

23. O artigo 8º da Constituição obriga a respeitar a legislação e jurisprudência dos tribunais europeus, tendo de ser desaplicadas as leis em contrário, nomeadamente sobre responsabilidade civil do Estado.

24. Houve erro grosseiro e relevante no acórdão da Relação de ... que decidiu a questão laboral.

25. A decisão no douto acórdão de que se recorre é a posição que mais defende os erros dos juízes e que menos contribui para a defesa dos cidadãos perante os erros judiciais de que os cidadãos são vítimas.

26. É uma interpretação que coarcta os direitos dos cidadãos, que os impede de defesa perante o Estado, de que os juízes são servidores.

27. Torna, na prática, impossível qualquer indemnização contra erros judiciais.

28. É uma posição teórica contrária à realidade.

29. E é tida nos meios judiciais como uma posição corporativista.

30. Não sabe a autora como deveria esboçar qualquer tentativa no sentido de demonstrar que normas de Direito da União teriam sido violadas pelo acórdão desta Relação de 08-05-2013 se quando soube da diferença de tratamento já estava perante factos consumados, pois os dois acórdãos diferentes sobre duas trabalhadores em situações iguais têm momentos diferentes, sendo a autora a vítima do acórdão que foi prolatado em primeiro lugar.

31. Por outro lado, invocou a violação da Carta dos Direitos Fundamentais na União Europeia que é legislação da União.

32. Foram violadas todas as disposições legais atrás mencionadas e PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS e Da Carta Dos Direitos Fundamentais da UE, bem como o artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que deveriam ter sido interpretadas/OS no sentido das presentes conclusões.

33. O Supremo deve proceder ao reenvio prejudicial previsto no artigo do Tratado da União Europeia formulando as seguintes questões:

a. Em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares, a legislação portuguesa que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por um órgão jurisdicional em última instância, quando essa revogação se encontra na prática excluída, viola o direito da União?.

b. A existência de duas decisões diferentes sobre a mesma questão de direito em matéria de direito do trabalho viola a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

c. Nomeadamente os artigos 20, 21,30, 47, 52, 53 e 54? d. O Direito da União e, em especial, os arts. 20, 21, 30, 47, 52, 53, e 54 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia obstam à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização contra o Estado fundada em prejuízos causados no âmbito do exercício da função jurisdicional, a prática de um manifesto erro de direito, ou de um erro grosseiro na apreciação da matéria de facto, inviabilizando assim que o Estado seja demandado quando se verifique mera contradição de julgados relativamente a uma mesma questão de Direito do trabalho?

34. Deve revogar-se o douto acórdão e condenar-se o Estado nos precisos termos da PI”.

12. O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela não admissão do recurso e, subsidiariamente, pela sua improcedência.

13. Em 6.07.2020 foi proferido um despacho pelo Exmo. Relator do Tribunal da Relação de … em que se dizia o seguinte:

Por estar em tempo, incidir sobre decisão recorrível, e assistir legitimidade à recorrente, admite-se o presente recurso, que é de revista, a subir nos autos, e com efeito meramente devolutivo (arts. 627º, 629º, nº 1, 631º, 638º, nº 1, 671º, nº 1, 674º, 675º, nº 1, e 676º, nº 1, todos do CPC).

Em nosso entender não se verifica uma situação de “dupla conforme” (art. 671º, nº 3 do CPC) porquanto este Tribunal aditou factos ao elenco dos factos provados, e porque a fundamentação do acórdão recorrido se debruçou sobre a interpretação e aplicação de normas de direito da União Europeia que a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância não analisou, razão pela qual se considera que a fundamentação do acórdão recorrido é, em alguns aspetos, substancialmente diferente daquela que sustentou a sentença proferida em 1ª instância.

Notifique.

Oportunamente, subam os autos, com as cautelas usuais, ao Supremo Tribunal de Justiça”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são, essencialmente, as de saber:

1.ª) se deve proceder-se ao reenvio prejudicial; e

2.ª) se deve ser reconhecida a responsabilidade civil do Estado por erro judiciário.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido[1]:

1. Em 10-07-2009 a autora instaurou contra a BB e outra entidade, uma acção, que correu termos no 5° juízo-1ã secção, tribunal do trabalho de … - Processo 2718/09.3... .

2. Pedia a Autora que:

- Seja declarado o direito da A à titularidade de uma relação laboral sem termo com a 1ª R, com antiguidade reportada a 27 de Julho de 2005.

- Seja declarado o direito da A a ocupar o nível V da tabela interna em vigor na 1ª R

- Seja, subsidiariamente, e se for esse o caso, o despedimento da A pela ia R declarado sem justa causa e, consequentemente, ilícito:

- Seja a 1ª R ou, subsidiariamente, a 2ª R condenada a pagar o total das remunerações que a A deixou de auferir desde a data do despedimento até à data da sentença transitada em julgado sendo o montante já vencido de € 869.20

- Seja a 1ª R, ou subsidiariamente a 2ª R, condenada a reintegrar a A ou a pagar-lhe a indemnização de antiguidade no montante de 45 dias de trabalho por cada ano completo ou fracção de antiguidade no montante total de 7.219.80 €, conforme opção que vier a fazer no momento oportuno;

- Seja a 1ª R, ou subsidiariamente a 2ª R. condenada a pagar à A todos os créditos salariais vencidos e vincendos, acrescidos dos respectivos juros de mora.

- Seja a 1ª R, ou subsidiariamente a 2ª R. condenada a pagar à A. a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de €308,00 acrescida dos restantes custos que a A. tiver de suportar com o presente litígio em execução de sentença.

- Seja a 1ª R., ou subsidiariamente a 2ª R, condenada no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos sobre todas as quantias peticionadas e também as que resultarem, eventualmente, da aplicação do disposto no art. 74°, do Código de Processo do Trabalho, desde a data da citação até integral pagamento;

- Seja a 1ª R. ou subsidiariamente a 2ª R. condenada a pagar à A. a título de indemnização por danos morais, a quantia de € 5.000.00:

- Subsidiariamente a todos os pedidos que se condene a 2ª R. a cumprir com o disposto nas cláusulas "primeira", "Segunda' e 'Terceira” do contrato formalmente celebrado com a A.;

- Seja a 1ª R., ou subsidiariamente a 2ª R., condenadas no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no montante não inferior a €300,00 por cada dia de incumprimento, ainda que meramente parcial do contrato de trabalho da A. e da decisão judicial que vier a ser proferida, desde a data do despedimento até à data da sentença e, posteriormente, até integral cumprimento desta

- Seja a 1ª R., ou subsidiariamente a 2ª R., condenada nas custas de parte e procuradoria condigna e todos os custos da A. com o presente litígio a apurar em sede de liquidação de sentença.

3. Atento o alegado pelas partes e os pedidos formulados importava apreciar e decidir acerca da natureza da relação estabelecida entre a A. e a 1ª R, e caso se concluísse pela existência de um contrato de trabalho, cumpria apreciar e decidir se houve despedimento ilícito, e em caso afirmativo quais as suas consequências.

4. Discutida a causa provaram-se os seguintes factos:

- A 27 de Junho de 2005, para prestar trabalho na 1ª R., a A celebrou contrato de trabalho temporário, a termo certo, com a sociedade designada por “…, S.A.”, para prestar trabalho na BB S.A., a ora 1ª R.

- Tal contrato vigorou até 26 de Junho de 2006, pois era renovado mensalmente

- A 27 de Junho de 2006, para prestar trabalho na 10 R., a A celebrou contrato de trabalho a termo certo com a sociedade denominada “CC, S.A.”, a ora aqui 2ª R.

- Nos termos daquele contrato, o mesmo vigoraria até 31 de Dezembro de 2006, podendo ser renovado.

- A 29 de Dezembro de 2006 a A. e a 2ª R. celebraram adenda àquele contrato de trabalho a termo certo, prorrogando o prazo de vigência do mesmo até 31 de Julho de 2007.

- A 15 de Julho de 2007, a A. e a 2ª R. celebraram nova adenda ao contrato de trabalho, prorrogando a vigência do mesmo até 31 de Janeiro de 2008.

- Durante todo o período compreendido entre o dia 27 de Junho de 2005 e Agosto de 2008, a A. prestou trabalho, sem quaisquer interrupções, para além daquela decorrentes das interrupções típicas da relação laboral, nomeadamente férias e "baixas", nas instalações da sede da 1ª R.

- A 01 de Fevereiro de 2008, a A. celebrou com a 2ª R. contrato de trabalho por tempo indeterminado.

- Tal contrato de trabalho por tempo indeterminado na cláusula “Terceira” menciona expressamente refere que o local de trabalho da A. Era nas instalações da “Direcção de Suporte Operacional” da sociedade denominada por “BB. S.A.” a ora aqui 1ª R e/ou noutras instalações. devidamente adequadas ao exercício das funções.

- Após 01 de Fevereiro de 2008, a 1ª A. continuou a prestar trabalho. conforme o vinha fazendo até àquela data, para a 1ª R.

- Em de Agosto de 2008, a A. entrou de “baixa”, por incapacidade temporária para o trabalho por motivo de doença determinada por gravidez de risco.

- No início do mês de Abril de 2009, a A. terminou o gozo de licença de maternidade, tendo entrado em férias após a referida licença, as quais terminarem em 13 de Abril de 2009.

- No âmbito das suas funções, cabia à A. tratar de todos os pedidos dirigidos à 1ª R. no exercício dos poderes dos Tribunais, Ministério Público e Ministério das Finanças.

- Assim, cabia à A. tratar e responder aos pedidos de informações apresentados à 1ª R pelos Tribunais, nomeadamente, arrestos, penhoras, levantamento de sigilo bancário, pedidos de informações e documentação efectuados pelos Tribunais e Ministério Público no âmbito dos respectivos processos crime que estivessem em curso e que abrangessem clientes ou operações bancárias levadas a cabo pela 1ª R.

- Grande parte de tais pedidos estavam sob segredo de justiça e diziam sempre respeito às contas dos clientes da 1ª R. ou com quem a 1ª R. se relacionava ou seja, a matérias sujeitas a sigilo bancário.

- Igualmente, cabia à A. responder aos pedidos de informação internos da própria 1ª R. e separar correio, efectuar carregamentos informáticos na aplicação correspondente e efectuar o tratamento e processamento de pedidos de extractos.

- A A. trabalhava na 1ª R afecta à Direcção de Suporte Operacional e com acesso ao sistema informático da 1ª R. e às aplicações que davam acesso às solicitadas informações pelos Tribunais, serviços do Ministério Público e Ministério das Finanças, entre outras entidades

- Todos os instrumentos de trabalho eram fornecidos ou disponibilizados pela 1ª R.

- O período normal de trabalho da A. era de 35 horas semanais, repartido de 7 horas diárias de 2ª a 6ª Feira, período de trabalho este também em vigor na 1ª R.

- No âmbito das suas funções, a A. vinha auferindo a título de retribuição mensal base, a quantia de € 869,20 (oitocentos e sessenta e nove euros e vinte cêntimos) para a prestação de actividade durante 35 (trinta e cinco) horas semanais de trabalho.

- No início do mês de Abril de 2009, por solicitação da 2ª R, a A. esteve em reunião na 2ª R, na presença da Sra. Dra. DD e outras duas pessoas.

- Nessa reunião, a A. disse não estar interessada na rescisão do contrato de trabalho por mútuo acordo.

- No dia seguinte à dita reunião, a 03 de Abril de 2009, a A. enviou para a 2ª R. a carta registada com aviso de recepção, que a 2ª R. recebeu e que está junta a fls. 47.

- No mesmo dia, a 03 de Abril de 2009, a A. enviou para a 1ª R. a carta registada com aviso de recepção que a 1ª R. recebeu, e que está junta a fls. 50, onde solicitou que a 1ª R. reconhecesse a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado e pugnava pela existência de um contrato de trabalho sem termo com a 1ª R.

-A tal carta, a 1.ª R. respondeu através da carta junta a fls. 53. •     A 14 de Abril de 2009, a A. apresentou-se ao trabalho na 2ª R.

- A 14 de Abril de 2009 a A. enviou carta registada com aviso de recepção para a 2ª R., que a 2ª R. recebeu e que está junta a fls. 54, manifestando que somente iria aceitar trabalhar para a 2ª R. sob protesto e até que a 1ª R. reconhecesse a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado.

-A 2ª R. colocou a 1ª A. a efectuar trabalho num “call center”.

-Tendo transferido o local de trabalho da A., que se situava na 1ª R., para a Santa Casa da Misericórdia, em ... .

- Neste momento, a A. encontra-se a prestar a sua actividade na 2ª R.

- A 2ª R. não tem a licença prevista no artigo 4°, n. 1 da Lei 19/2007 de 22 de Maio.

- Nem tem, para o mesmo efeito qualquer Director Técnico.

- A 1ª R. celebrou com a Sociedade …, S.A. o contrato de utilização de trabalho temporário junto a fls. 91.

- À data a A. usava o nome EE.

- As Rés celebraram entre si o contrato de prestação de serviços e respectivas adendas que se mostram juntas a fls. 94 e seguintes.

- A A. não foi sujeita a qualquer processo disciplinar por parte da 1- Ré.

- Era a 2ª Ré quem pagava a retribuição mensal da Autora, bem como os subsídios de férias e de Natal.

- Era a 2ª Ré quem procedia às contribuições para a segurança social respeitantes à Autora.

- Era a 2ª Ré quem procedia às retenções na fonte, para efeitos de IRS respeitantes à Autora

- A Autora, no âmbito do contrato de trabalho que celebrou com a 2ª Ré estava obrigada a guardar sigilo profissional e bancário sobre toda a informação a que tivesse acesso relativa à 1ª Ré e aos seus clientes.

- Não existiu na 1ª R qualquer aumento excepcional da actividade que vinha sendo desenvolvida pela A. e pelos colegas ao longo dos anos.

- Também não existia qualquer projecto de cooperação comercial entre a 1ª e a 2ª Ré.

- Existiam dezenas de outros trabalhadores contratados pela 2ª R para à semelhança da A., prestarem a sua actividade na 1ªR, o que vinha a vem sucedendo.

- A 1ª R. tem um departamento que leva a cabo as tarefas que a A. vinha realizando, departamento esse com escassos recursos humanos.

- Na reunião referida em 21 a 2ª R. manifestou a vontade de que a A aceitasse rescindir por mútuo acordo o seu contrato de trabalho.

- Na mesma reunião a A. reiterou que estava disponível para trabalhar na 2ª R, embora sob protesto e até que a 1ª R reconhecesse a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, pois entendia que tinha direito a um contrato de trabalho com a 1ª R.

- A 2ª R. dedica-se ao fornecimento de trabalho temporário a terceiros e à cedência ocasional de trabalhadores a terceiros.

-Aquando da celebração do contrato de trabalho temporário com a A. existiam na 1ª R, o recuperar pedidos de informação não tratados na Secção de Indisponibilização de Saldos e Informações.

- As tarefas desenvolvidas pela 2ª Ré e seus trabalhadores foram externalizadas pela 1ª Ré.

- A A. preenchia diariamente na 1ªR. uma ficha de presenças que eram remetidas à 2ª R. mensalmente.

-Não constava de qualquer mapa de férias da Ré.

-Não foi sujeita a qualquer processo disciplinar por parte da 1ª Ré.

- Nem teve que justificar qualquer ausência junto da 1ª Ré.

- Era a 2ª Ré quem controlava as ausências da Autora.

- Era a 2ª Ré quem fazia constar a Autora no seu quadro de pessoal.

- Era a 2ª Ré quem integrava a Autora no seu mapa de férias.

- A 2ª Ré tinha uma sua trabalhadora – Drª DD- que por diversas vezes em cada semana se deslocava às instalações da 1ª Ré sendo a interlocutora entre a 1ª Ré e os colaboradores que a 2ª Ré afectava à prestação de serviço, cabendo-lhe, entre outras funções, a responsabilidade pelo controlo de presenças, marcação de férias, justificação de faltas, cumprimento dos objectivos, etc.

- A referida Drª DD deslocava-se assim, às instalações da 1ª Ré a fim de se inteirar do cumprimento do estabelecido no contrato de prestação de serviços celebrado entre as Ré.

- A 2ª Ré propôs à A. que a mesma passasse a trabalhar na Santa Casa da Misericórdia de …… e esta aceitou essa situação, sob protesto.

5. A acção foi julgada improcedente por se entender que “os indícios apurados e conjuntamente avaliados, não revelam a existência de qualquer autoridade da Ré BB sobre a A. na execução do seu serviço ou de subordinação desta em relação àquela na sua vertente económica e disciplinar, e não são suficiente para podermos concluir pela existência de subordinação jurídica.

Neste contexto, numa perspectivação global dos facos, em nosso entender não se demonstram com suficiência inícios que levem inequivocamente a concluir que foi estabelecido entre as partes - ou que como tal se executou - um contrato de trabalho, sendo certo que a prova competia à A.

Assim se concluindo tem necessariamente de improceder todos os pedidos formulados pela A. na presente acção em relação à 1ª Ré, uma vez que os mesmos tinham justamente como fundamento o reconhecimento da existência de uma relação laboral entre ambas.”(cfr. fls. 273 a 297)

6. Na sequência do recurso instaurado pela ora Autora, a 08-05-2013 no âmbito do mesmo processo foi proferida pelo Tribunal da Relação de … acórdão que manteve a decisão recorrida, sem qualquer voto de vencido, assinado pelos Desembargadores C...., F... e M... que concordaram com a fundamentação exposta na primeira instância (cfr. fls. 298 a 316).

7. Em 27-05-2013 a autora interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi admitido por despacho de 11/07/2013, no qual se determinou que “Nos termos do art° 721 n° 3 do CPC não é admitida revista do Acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão da 1ª instância, salvo nos casos previsto no art° 721-A, mas no caso não vem invocada qualquer uma das situações previstas neste último preceito. Assim, não se admite o recurso de revista interposto pela A. (...)”. (cfr. 317 a 327)

8. A Autora reclamou em 09/09/2013 e em 20/11/2013 o Supremo rejeitou a reclamação.

9. FF e GG instauraram contra a BB, e outra entidade, o processo 201/09.6... que correu termos também no ..° Juízo ..ª secção do Tribunal de Trabalho de … .

10. Na citada acção era pedido que:

- fosse declarado o direito das Autoras à titularidade de uma relação laboral sem termo com a 1ª R, com antiguidade reportada a Junho de 2005 (1ª A) e Julho de 2001 (2ª A) ou, pelo menos, desde 01 de Fevereiro de 2008 e 01 de Agosto de 2008;

- fosse declarado o direito das Autoras a ocupar o nível V da tabela interna em vigor na 1ªR.;

- fosse, subsidiariamente, sendo esse o caso, o despedimento das Autoras, pela 1ª R declarado sem justa causa e, consequentemente, ilícito;

- fosse 1ª R ou, subsidiariamente a 2ª R condenada a pagar o total das remunerações que as Autoras deixaram de auferir desde a data do despedimento até à data da sentença transitada em julgado, sendo o montante já vencido de € 869,20;

- fosse a 1ª R, ou subsidiariamente a 2ª R, condenada a reintegrar as Autoras ou a pagar-lhes a indemnização de antiguidade no montante de 45 dias de trabalho por cada ano completo ou fracção de antiguidade no montante total de € 5.414,85 (1ª A.) e 10.430,00€ (2ªA), conforme opção que viessem a fazer em momento processual oportuno;

- fosse a 1ª R, ou subsidiariamente a 2ª R., condenada a pagar às Autoras todos os créditos salariais vencidos e vincendos, acrescidos dos respectivos juros de mora;

- fosse a 1ª R, ou subsidiariamente a 2ª R, condenada a pagar às Autoras uma sanção pecuniária compulsória de 300,00€/diários por cada dia de incumprimento do contrato de trabalho e ainda em custas de parte e procuradoria;

11. Discutida a causa provaram-se os seguintes factos:

- A 27 de Julho de 2005 a 1ª A. celebrou contrato de trabalho temporário, a termo certo, com a sociedade designada por “… - Empresa de Trabalho Temporário, SA”, para prestar trabalho na “BB, SA”, a ora 1ªR.

- Tal contrato vigorou até 26 de Junho de 2006, pois era renovado mensalmente,

- A 27 de Junho de 2006, para prestar trabalho na 1ª R, a 1ª A. celebrou contrato de trabalho a termo certo com a sociedade denominada “CC, SA”, a ora aqui 2ª R..

- Nos termos daquele contrato, o mesmo vigoraria até 31 de Dezembro de 2006, podendo ser renovado.

- A 29 de Dezembro de 2006, a 1ª A. e a 2ª R celebraram adenda àquele contrato de trabalho a termo certo, prorrogando o prazo de vigência do mesmo até 31 de Julho de 2007.

- A 15 de Julho de 2007, a 1ª A. e a 2ª R celebraram nova adenda ao contrato de trabalho, prorrogando a vigência do mesmo até 31 de Janeiro de 2008.

- Durante todo o período compreendido entre o dia 27 de Julho de 2005 e Agosto de 2008, a 1ª A. prestou trabalho, sem quaisquer interrupções, nas instalações da sede da 1ª R.

- Após 31 de Janeiro de 2005, a 1ª A. continuou a desempenhar as suas funções na 1ªRé conforme vinha fazendo até aí;

- Em data não concretamente apurada de Fevereiro de 2008, a 2ª Ré entregou à 1ª A uma minuta de um contrato de trabalho sem termo que pretendia que esta assinasse, o que esta recusou;

- Essa minuta estipulava como data do início o dia 01 de Fevereiro de 2008.

- A 1ª A. continuou, nos meses seguintes a desempenhar funções para a 1ª Ré, mas o ordenado era pago pela 2ª Ré;

- Tal facto era do conhecimento de ambas as RR;

- Em 13 de Julho 2001, em 10/Setembro de 2001, em 01/Janeiro de 2002, 30-09-2002, 25-03-2004, 18-10-2004, 01-09-2005, 22-08-2006, 09-11-2006, 02-01-2007, para prestar trabalho na 1ª Ré, a 2ª A celebrou os contractos com a 1ª Ré Interpessoal.

- O contrato celebrado em 02-01-2007 foi prorrogado, através da celebração de duas adendas, até 31 de Julho de 2007;

- Em Agosto de 2008, a 2ª Ré enviou para a A. novo contrato, por tempo indeterminado, com início a 01 de Agosto de 2008 que esta se recusou a assinar.

- Nos meses subsequentes, a 2ª A. continuou a prestar funções nas instalações da 1ª Ré, embora o ordenado fosse pago pela 2ª Ré, Interpessoal;

- As empresas com quem as Autoras celebraram os supra aludidos contractos pertencem todas ao grupo …, ao qual não pertence a 1ª Ré;

- No âmbito das suas funções, cabia às Autoras tratar de todos os pedidos dirigidos à 1ª R. no exercício dos poderes dos Tribunais, Ministério Público e Ministério das Finanças.

- Cabia às Autoras tratar e responder aos pedidos de informações apresentados à 1ª R. pelos Tribunais, nomeadamente, arrestos, penhoras, levantamento de sigilo bancário, pedidos de informações e documentação efectuados pelos Tribunais e Ministério Público no âmbito dos respectivos processos crime que estivessem em curso;

- Grande parte dos pedidos estavam sob segredo de justiça e diziam respeito a clientes da 1ª R ou com quem esta se relacionava;

- As Autoras trabalhavam na 1ª R. afectas à Direcção de Suporte Operacional e com acesso ao sistema informático da 1ª R e às aplicações que davam acesso às solicitadas informações.

- Todos os instrumentos de trabalho eram fornecidos ou disponibilizados pela 1ª R.

- As Autoras sempre exerceram tais funções na 1ª Ré, sendo no caso da 1ª A desde 27/Julho de 2005 e, no caso da 2ª A, desde 13 de Julho de 2001;

- No âmbito das suas funções, cada uma das Autoras vinha auferindo, a título de retribuição mensal base, a quantia de € 869,20 (oitocentos e sessenta e nove euros e vinte cêntimos) para a prestação de actividade durante 35 (trinta e cinco) horas semanais de trabalho (acordo das partes);

- Em n/09/2008, a 1ªA enviou carta registada dirigida ao Presidente do CA da 1ª Ré, cujo conteúdo se dá por reproduzido e constitui o doc. 19 junto com a p.i (acordo das partes);

- Em 12/09/2008, a 2ª A enviou carta registada dirigida ao Presidente do CA da 1ª Ré, cujo conteúdo se dá por reproduzido e constitui o doc.20 junto com a p.i (acordo das partes);

- As Autoras reiteraram tal pedido à 1ª Ré, dirigido ao Presidente do CA, através dos documentos juntos como docs. 21 e 22 cujo teor se dá por reproduzido, nesta sede, para todos os efeitos legais: (acordo das partes):

- A tais cartas respondeu a 1ª Ré, em 21-10-2008, através da carta que constitui o doc. 23 em anexo e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido; (acordo das partes);

- A 2ª Ré enviou às Autoras a carta que constitui o doc. 24 junto com a p.i., cujo conteúdo se dá por reproduzido, nesta sede, para todos os efeitos legais;

- Em Outubro de 2008, por solicitação da 1ª R, as Autoras estiveram em reunião nas instalações da 2ª R, na presença da Sra. Dra. DD e outras duas pessoas, tendo-lhes sido dito que a 1ª R estava a dispensar pessoal e que as Autoras iriam ser incluídas nessa dispensa;

- No mesmo dia, as Autoras enviaram a carta registada com aviso de recepção, para a 1ª R, cujo conteúdo constitui os docs. 25 e 26 anexos à p.i e que se dão por integralmente reproduzidos, para todos os efeitos legais;

- Em Novembro de 2008, a 1ª A apresentou-se ao trabalho nas instalações da 1ª Ré tendo-lhe sido ordenado que as abandonasse e entregue a carta datada de 31-10-2008, que constitui o documento n° 27 junto à p.i. cujo teor se dá por reproduzido;

- Em 03-11-2008, a 1ª A. enviou carta registada com aviso de receção para a 1ª R. junta como documento n° 28, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, nesta sede para todos os efeitos legais;

- As Autoras apresentaram-se novamente ao serviço nas instalações da 1ª R no dia 04-11-2008, tendo sido impedidas de aceder aos seus postos de trabalho conforme resulta dos docs. 29 e 30 anexos à p.i.

- A 2ª A. apresentou-se ao serviço junto da 2ª Ré;

- Datada de 14-11-2008, a 1ª Ré enviou à 1ª A. a carta que foi junta aos autos como doc. 31, que se dá por reproduzida, nesta sede, para todos os efeitos legais;

- A 1ª R recusou a emissão à 1ªA. do modelo 5044;

- A 1ª A. viu ser-lhe indeferido o pedido de subsídio de desemprego, conforme resulta de doc. 32

- Era a 2ª Ré quem pagava a retribuição mensal das Autoras, bem como os subsídios de férias e de Natal.

- Era a 2ª Ré quem procedia às contribuições para a segurança social respeitantes às Autoras.

- Era a 2ª Ré quem procedia às retenções na fonte, para efeitos de IRS, respeitantes às Autoras.

- Era a 2ª R quem controlava as ausências das Autoras.

- Era a 2ª R. quem as fazia constar do seu quadro de pessoal; • Era a 2ª Ré quem as integrava no seu mapa de férias;

- A 2ª Ré tinha uma colaboradora – DD - que se deslocava às instalações da 1ª Ré cabendo-lhe, entre outras funções, a responsabilidade pela marcação de férias, controlo de presenças, justificação de faltas.

- A 2ª R dedicava-se ao fornecimento de trabalho temporário a terceiros e à cedência ocasional de trabalhadores a terceiros.

- A A. preenchia diariamente na 1ª R uma ficha de presenças que eram remetidas à 2ª R. mensalmente

- Os contratos celebrados entre as Autoras e a 2ª Ré, Interpessoal, foram-no no âmbito de um contrato denominado de “prestação de serviços” celebrado entre as RR e que constitui os documentos nos 2 e 3 juntos com a contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, nesta sede, para todos os efeitos legais.

12. A acção foi julgada improcedente por se entender que “os indícios apurados e conjuntamente avaliados, não revelam a existência de qualquer autoridade da Ré BB sobre as Autoras na execução do seu serviço ou de subordinação desta em relação àquela na sua vertente económica e disciplinar, e não são suficientes para podermos concluir pela existência de subordinação jurídica. Neste contexto, numa perspectivação global dos facos, em nosso entender não se demonstram com suficiência inícios que levem inequivocamente a concluir que foi estabelecido entre as partes - ou que como tal se executou - um contrato de trabalho, sendo certo que a prova competia à A.

Assim se concluindo têm necessariamente de improceder todos os pedidos formulados pelas Autoras na presente acção em relação à 1ª Ré, uma vez que os mesmos tinham justamente como fundamento o reconhecimento da existência de uma relação laboral entre ambas.”(Cfr. fls. 330 a 340)

13. Na sequência do recurso instaurado pelas ali Autoras no âmbito desse processo foi proferida pelo Tribunal da Relação de … em 10-09-2014, acórdão assinado pelos Desembargadores M..., J... e I..., no qual se determinou que:

«Não acompanhamos, todavia, a apreciação subsequente, efectuada pela Srª Juíza a fls. 744. que extrai do facto de as Autoras terem, após a cessação dos contratos de trabalho temporário com a ".... ”, assinado contratos de trabalho a termo e respectivas adendas com a "CC” a conclusão de que fizeram precludir a faculdade de ver convertido em sem termo o contrato de trabalho temporário, afirmando designadamente "A postura das Autoras, após o termo do contrato de trabalho temporário deve ter-se por vinculativa, em termos obrigacionais, como decorre do disposto no art do Código Civil, até porque nada nos autos faz supor que as Autoras não sejam pessoas esclarecidas e que não tivessem tido o propósito e a vontade de dar por definitivamente terminado o contrato que celebraram com a “…- Empresa de Trabalho Temporário. SA” para se vincular à 2ª Ré nos exactos termos constantes dos documentos que com ela assinou No tocante á 1- Autora, somos de entendimento que, ao pretender ver reconhecida a existência de um vínculo laboral, sem termo, com a 1- R com reporte ao período de 27 Junho de 2005 a 26 de Junho de 2006, quando a ela própria o não fez senão em Abril de 2009, quando a 2- Ré lhe disse que estava interessada em fazer cessar por mútuo acordo o contrato de trabalho celebrado entre ambas está a assumir, ilegitimamente, um comportamento contrário à postura que adoptou a partir do dia 27.06.2006 em diante a qual se deve ter por vinculativa, como já afirmámos, na medida em que por ela foi livremente aceite, dessa forma prejudicando a sua pretensão."

Salvo o devido respeito, tal apreciação não tem minimamente em conta a enorme fragilização da liberdade negocial do trabalhador causada não só pela própria relação laboral (que é em si mesma uma relação desequilibrada, de poder versus sujeição, sem verdadeira igualdade das partes) mas, sobretudo, por essa relação ter, ainda por cima, natureza precária. Apesar da multiplicidade de contratos (de trabalho temporário e a termo certo) que as Autoras assinaram, com diferentes pessoas colectivas do mesmo grupo empresarial (…), não podemos ignorar que o beneficiário final do trabalho por elas desenvolvido no âmbito de qualquer dos ditos contratos foi sempre a BB. Essa multiplicidade de contratos, ao contrário do que refere a Sra. Juíza, não mostra que as Autoras tivessem querido dar por definitivamente terminados os contratos anteriores, pois o que, a nosso ver, deixa perceber com clareza é que as Autoras não tiveram alternativa que não fosse subscrever os contratos que lhes foram apresentados, se queriam continuar a trabalhar e a auferir uma retribuição. E bem sabemos quanto esse "querer' é imposto pela necessidade de angariar meios de subsistência. A recusa de subscrever tais contratos significaria para elas seguramente a perda do posto de trabalho e da respectiva remuneração. Por isso não podemos, de ânimo leve, concluir que ao assinarem os contratos a termo tacitamente renunciaram a impugnar a validade dos contratos de trabalho temporário (e de utilização de trabalho temporário), quando é certo que, apesar da aparente diversidade, na realidade a prestação de trabalho continuava a ter lugar no mesmo sítio - o edifício da Av. …, da BB - e para o mesmo beneficiário, a R. BB. (...)» (cfr. fls. 347 a 361)

14. Em nota de rodapé consta “A ora relatora corrige assim pelas razões agora expostas, a orientação que, como 2ª vogal, subscreveu no acórdão de 08.05.2013 no processo 2718/09.3....L.1.”(cfr. fls. 359)

15. No âmbito do processo 201/09.6... foi assim julgada procedente a apelação, e consequentemente revogada a sentença recorrida, em cuja substituição se decidiu pelo reconhecimento da existência de uma relação de trabalho a cada uma das Autoras; declarando-se ilícito o seu despedimento, condenando-se a 1ª Ré a reintegrar as Autoras.

16. Da decisão proferida pelo Tribunal da Relação recorreu a BB, mediante recurso de revista, para o Supremo Tribunal de Justiça invocando oposição e contradição de julgados.

17. Por despacho de 09-12-2014 proferido pelo Sr. Conselheiro António Gonçalves Rocha foi indeferida a revista uma vez que “o caso presente não cabe na previsão do n° 2, alínea d), do art° 629 do NCPC, pois ainda que se admita que estejamos perante decisões contraditórias da mesma Relação, do acórdão recorrido só cabe revista por razões que dizem respeito à insuficiência do valor da causa. E assim sendo, e não se estando perante uma situação que esteja subtraída ao conhecimento do Supremo, pois não fora o valor fixado à causa o recurso seria admissível, não está integrado o requisito de que depende a aplicação da dita norma - tratar-se de um acórdão de que não cabe recurso ordinário por motivo estranho à alçada”. (Vd. fls. 362 a 364)

18. Inconformada com este despacho a BB reclamou para a Conferência.

19. Em Conferência e por acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 28 de Janeiro de 2015 (por lapso consta 2014) foi indeferida a reclamação mantendo-se o despacho impugnado. (vd. fls. 341 a 346).

20. Na fundamentação da sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho na ação identificada em 1., consignou-se, nomeadamente, o que segue:

“Analisados ambos os contratos, verifica-se que os mesmos respeitaram a forma escrita, contêm as menções obrigatórias legalmente impostas e observaram o prazo máximo de utilização (arts. 9°, 11° e 19°, da LTT).

Acresce que nada nos autos sugere, e nem a. alegou, que a empresa "T…- Empresa de Trabalho Temporário, S.A., seja uma ETT não autorizada (arts. 4° e 16°, da LTT).

No entanto, ponderada a factualidade assente, constata-se que não ficou demonstrada a verificação real e concreta dos factos que justificaram a celebração dos aludidos contratos. Senão vejamos:

Consta do contrato de trabalho temporário e do contrato de utilização de trabalho temporário juntos aos autos que ambos têm o seu “fundamento na alínea c), do n° 1, do artigo 9o, do DL n.° 358/89, de 17 de Outubro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 39/96 de 31 de Agosto e pela Lei n.° 146//99, de 1 de Setembro, para fazer face a acréscimo temporário e excepcional de actividade da empresa utilizador BB, S.A., decorrente da recuperação de pedidos de informação não tratados no âmbito da Secção de Indisponibilização de saldos e informações, formulados designadamente por autoridades judiciárias, fiscais e pelo Banco de Portugal. A natureza do trabalho a prestar e as circunstâncias que o determinam, são transitórias e não justificam por isso um aumento do quadro de pessoal efectivo da empresa utilizadora, BB, S.A.". Sucede, porém, que se apurou ter inexistido na 1.a R. qualquer aumento excepcional da actividade que foi ser desenvolvida pela A., mais se tendo provado que a 1.a R. tem um departamento que leva a cabo as tarefas que a A. vinha realizando, departamento esse com escassos recursos humanos e que aquando da celebração do contrato de trabalho temporário com a A. já existiam na 1.a R., pedidos de informação não tratados na Secção de Indisponibilização de Saldos e Informações (factos provados n.°s 41, 44 e 48). Daqui se infere, pois, que o motivo indicado para justificar, por um lado, o recurso ao trabalho temporário por parte da 1a R. e, por outro, a celebração do contrato com a A. não tem correspondência com a verdade, na medida em que não ocorreu o invocado acréscimo excepcional de actividade.

Não obstante, entendemos que a consequência deste facto não pode consistir na conversão do contrato de trabalho temporário celebrado pela A. em contrato sem termo, direito que esta pretende agora ver reconhecido em manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, excepção peremptória de conhecimento oficioso, mas que a 1a R. teve oportunidade de invocar (art. 26° da contestação) e à qual a A. não ofereceu resposta.

Explicitando melhor:

O instituto do abuso do direito tutela, como é sabido, situações em que a aplicação de um preceito legal, normalmente ajustada numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.

Tem como pressuposto a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito, excedendo os limites impostos pela boa fé.

A parte que abusa do direito actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.

O nosso sistema legal acolhe uma concepção objectiva do abuso de direito, não exigindo a consciência do abusador no sentido de se encontrar a exceder, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, bastando que, objectivamente, se excedam tais limites. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção. Uma das modalidades do abuso do direito é a proibição de conduta contraditória - venire contra factum proprium - e consiste no facto de alguém, comportando-se de maneira a criar na outra parte a legítima convicção de que certo direito não seria exercido, vem depois exercê-lo.

Está, assim, o abuso do direito, na modalidade indicada, ligado a uma situação objectiva de confiança e á boa fé da contraparte que confiou.

Reportando-nos ao caso dos autos, no termo do contrato que celebrara com a "... - Empresa de Trabalho Temporário, S.A.", em Junho de 2006, a A. não só não reivindicou a sua conversão em contrato de trabalho sem termo com a 1a R., como não pôs sequer em causa a regularidade e a legalidade do referido contrato de trabalho temporário.

Acresce que, findo o referido contrato, a A. aceitou vincular-se a outra empresa, no caso a 2a R., nos termos constantes do “contrato de trabalho a termo certo” que celebrou no dia 27 de Junho de 2006 (fls. 30-32), assim como aceitou que esse contrato fosse sendo prorrogado nos termos constantes das adendas que assinou e que constam de fls. 33-40.

E mais: a A. aceitou celebrar um contrato de trabalho por tempo indeterminado com a 2a R. em Fevereiro de 2008 (fls. 41-43), contrato que, pelo menos até à data da propositura da presente acção, ainda se mantinha vigente.

Ora, ao assinar sucessivamente os mencionados contratos e adendas com a 2a R., a A. fez precludir, em nosso entender, a faculdade de ver convertido em sem termo o contrato de trabalho temporário que havia celebrado anteriormente com uma outra empresa, na medida em que, por um lado, aceitou ser contratada pela 2a R., assumindo-a como sua empregadora e assumindo-se como sua trabalhadora, e, por outro, não pôs em crise a validade do contrato que celebrara com a "… - Empresa de Trabalho Temporário, S.A." , senão passados cerca de três anos quando lhe foi proposta a rescisão do contrato por mútuo acordo pela 2a R.

A postura da A. após o termo do contrato de trabalho temporário deve ter-se por vinculativa, em termos obrigacionais, como decorre do disposto no art. 217.°/1, do Código Civil, até porque nada nos autos faz supor que a A. não seja uma pessoa esclarecida e que não tivesse tido o propósito e a vontade de dar por definitivamente terminado o contrato que celebrara com a "… - Empresa de Trabalho Temporário, S.A." para se vincular à 2a Ré nos exactos termos constantes dos documentos que com ela assinou.

Ao pretender ver reconhecida a existência de um vínculo laborai sem termo com a 1a R. com reporte ao período de 25 Junho de 2005 a 26 de Junho de 2006, quando a ela própria o não fez senão em Abril de 2009, quando a 2a Ré lhe disse que estava interessada em fazer cessar por mútuo acordo o contrato de trabalho celebrado entre ambas (factos provados n.°s 21, 22, 23, 24, 45, 46), está a assumir, ilegitimamente, um comportamento contrário à postura que adoptou a partir do dia 27.06.2006 em diante, a qual se deve ter por vinculativa, como já afirmámos, na medida em que por ela foi livremente aceite, dessa forma prejudicando a sua pretensão.”

21. Na fundamentação da sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho na ação identificada em 9., consignou-se, nomeadamente, o que segue:

“No entanto, ponderada a factualidade assente, constata-se que não ficou demonstrada a verificação real e concreta dos factos que justificaram a celebração dos aludidos contratos. Senão vejamos:

Consta do contrato de trabalho temporário e do contrato de utilização de trabalho temporário juntos aos autos que ambos têm o seu “fundamento na alínea c), do n.º 1, do artigo 9º, do DL n.º 358/89, de 17 de Outubro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 39/96 de 31 de Agosto e pela Lei n.º 146//99, de 1 de Setembro, para fazer face a acréscimo temporário e excepcional de actividade da empresa utilizador BB, S.A., decorrente da recuperação de pedidos de informação não tratados no âmbito da Secção de Indisponibilização de saldos e informações, formulados designadamente por autoridades judiciárias, fiscais e pelo Banco de Portugal. A natureza do trabalho a prestar e as circunstâncias que o determinam, são transitórias e não justificam por isso um aumento do quadro de pessoal efectivo da empresa utilizadora, BB, S.A.”. Todavia, ao assinarem sucessivamente os mencionados contratos e adendas com a 2ª R., as Autoras fizeram precludir, em nosso entender, a faculdade de ver convertido em sem termo o contrato de trabalho temporário que havia celebrado anteriormente com uma outra empresa, na medida em que, por um lado, aceitaram ser contratadas pela 2ª R., assumindo-a como sua empregadora e assumindo-se como suas trabalhadoras, e, por outro, não puseram em crise a validade do contrato que celebraram com a "… - Empresa de Trabalho Temporário, S.A." , senão passados cerca de três anos quando lhes foi proposta a rescisão do contrato, por mútuo acordo, pela 2ª R.

A postura das Autoras, após o termo do contrato de trabalho temporário deve ter-se por vinculativa, em termos obrigacionais, como decorre do disposto no art. 217.º/1, do Código Civil, até porque nada nos autos faz supor que as Autoras não sejam pessoas esclarecidas e que não tivessem tido o propósito e a vontade de dar por definitivamente terminado o contrato que celebraram com a "… - Empresa de Trabalho Temporário, S.A." para se vincular à 2ª Ré nos exactos termos constantes dos documentos que com ela assinou.

No tocante à 1ª Autora, somos de entendimento que, ao pretender ver reconhecida a existência de um vínculo laboral, sem termo, com a 1ª R. com reporte ao período de 27 Junho de 2005 a 26 de Junho de 2006, quando a ela própria o não fez senão em Abril de 2009, quando a 2ª Ré lhe disse que estava interessada em fazer cessar por mútuo acordo o contrato de trabalho celebrado entre ambas está a assumir, ilegitimamente, um comportamento contrário à postura que adoptou a partir do dia 27.06.2006 em diante, a qual se deve ter por vinculativa, como já afirmámos, na medida em que por ela foi livremente aceite, dessa forma prejudicando a sua pretensão”.


O DIREITO


Questão (prévia) da admissibilidade do recurso

Cabendo, antes de tudo, verificar se alguma circunstância obsta à admissibilidade do recurso [cfr. artigo 652.º, n.º 1, al. b), do CPC] e saltando à vista que, de acordo com o dispositivo do Acórdão, o Tribunal recorrido confirmou integralmente a decisão do Tribunal de 1.ª instância, pôs-se com especial premência, à presente Relatora, a questão da admissibilidade do recurso à luz do disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC.

Como é sabido, neste preceito consagra-se um impedimento de recorribilidade específico do recurso de revista – a chamada “dupla conforme” –, tornando inadmissível a revista do Acórdão que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, da decisão proferida na 1.ª instância, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.

A verdade é que, como se reconhece e se antecipa no despacho de 6.07.2020, proferido pelo Exmo. Desembargador Relator do Tribunal de Relação de …, não obstante o carácter categórico do dispositivo do Acórdão recorrido quanto à confirmação da sentença, não é possível dizer-se que a fundamentação daquele não é essencialmente diferente da desta, como seria necessário para que houvesse dupla conforme.

A não verificação do requisito da ausência de fundamentação essencialmente diferente não deriva, porém, do aditamento, pelo Tribunal recorrido, de dois factos ao elenco dos factos provados. Como tem sido afirmado neste Supremo Tribunal, a mera alteração da decisão sobre a matéria de facto não vale para desqualificar automaticamente o caso como de dupla conforme, podendo acontecer que é irrelevante para a fundamentação, caso em que tão-pouco deve relevar para aqueles efeitos[2]. Deriva, sim, da circunstância de o Tribunal recorrido ter usado argumentos que não haviam sido usados pelo Tribunal de 1.ª instância, relacionados com a interpretação e a aplicação de normas de direito da União Europeia.

Com efeito, o Tribunal de 1.ª instância fundou a sua decisão no disposto no n.º 2 do artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31.12 (doravante: RRCEE), segundo o qual o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente. Defendendo que esta interpretação não é inconstitucional, decidiu este Tribunal a improcedência da acção, atendendo a que, no presente caso, a decisão na qual foi cometido o alegado erro judiciário consiste num Acórdão do Tribunal da Relação que não foi revogado e mais se mostra transitado em julgado.

Por sua vez, o Tribunal da Relação começou por afastar a necessidade de suscitar o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante: TJUE) e centrou a sua fundamentação na apreciação da conformidade das normas previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 13.º do RRCEE com o Direito da União Europeia, considerando a jurisprudência do TJUE, algo que não foi desenvolvido pelo Tribunal de 1.ª instância[3].

Por isso, apesar de no Acórdão recorrido se ter entendido, à semelhança da sentença de 1.ª instância, que o n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE não é inconstitucional (e de se ter feito o mesmo juízo quanto ao n.º 1) e de que, no caso dos autos, não estava verificada a hipótese aí prevista, conduzindo à improcedência da acção, o acima exposto quanto à conformidade de tal disposição legal com o direito da União Europeia permite concluir pela existência de uma “fundamentação essencialmente diferente” e, como tal, pela inexistência de dupla conforme, nada obstando ao conhecimento da revista.

Visto isto, e não sendo configuráveis (outros) obstáculos à admissibilidade do presente recurso, cumpre conhecer o seu objecto.


1.ª) Do reenvio prejudicial

A recorrente pretende que este Supremo Tribunal de Justiça proceda ao reenvio prejudicial de determinadas questões que enuncia (cfr. conclusão 33).

Para proferir uma decisão quanto a isto tem de ver-se o que está disposto no Tratado de Funcionamento da União Europeia (doravante: TFUE), mais precisamente no seu artigo 267.º. Dispõe-se aí o seguinte:

O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal[4].

Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível”.

À primeira vista, poderia dizer-se que, por julgar em última instância, este Supremo Tribunal estaria inapelavelmente constituído no dever de submeter a reenvio prejudicial as quatro questões enunciadas pela recorrente[5]. Mas esta conclusão seria algo precipitada, pois este dever não é absoluto[6].

Com efeito, desde o Acórdão Cilfit[7] que o TJUE vem admitindo, de forma consistente, a dispensa do dever de suscitar a questão prejudicial por insusceptibilidade de recurso em determinadas situações, a saber:

1.ª) quando a questão de direito da União Europeia suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do litígio concreto;

2.ª) quando o TJUE já se tenha pronunciado, de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou outro meio processual, atento o efeito erga omnes das suas decisões;

3.ª) quando o tribunal nacional considere que as normas da União Europeia aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas ou são suficientemente claras e determinadas, aptas para serem aplicadas imediatamente, sendo que a clareza das normas aplicáveis deve resultar da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adoptadas[8].

Esta entendimento tem sido reafirmado em sucessivos Acórdãos do TJUE[9].

Acresce que, nos pontos 5 e 6 das Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciai[10], se esclarece que:

(…) 5. Os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros podem submeter uma questão ao Tribunal de Justiça sobre a interpretação ou a validade do direito da União se considerarem que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa (ver artigo 267.º, segundo parágrafo, do TFUE). Um reenvio prejudicial pode revelar-se particularmente útil nomeadamente quando for suscitada perante o órgão jurisdicional nacional uma questão de interpretação nova que tenha um interesse geral para a aplicação uniforme do direito da União ou quando a jurisprudência existente não dê o necessário esclarecimento num quadro jurídico ou factual inédito.

6. Quando for suscitada uma questão no âmbito de um processo pendente perante um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão jurisdicional é no entanto obrigado a submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça (ver artigo 267.º, terceiro parágrafo, do TFUE), exceto quando já existir uma jurisprudência bem assente na matéria ou quando a forma correta de interpretar a regra de direito em causa não dê origem a nenhuma dúvida razoável”.

Por sua vez, a jurisprudência do TJUE sobre a dispensa do dever de suscitar a questão prejudicial tem sido aplicada, de forma reiterada, por este Supremo Tribunal de Justiça[11].

Dito isto, aprecie-se as questões que a recorrente pede que sejam objecto de reenvio prejudicial.


A) A primeira questão, tal como enunciada pela recorrente (na conclusão 33 em a.), é a seguinte:

Em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares, a legislação portuguesa que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por um órgão jurisdicional em última instância, quando essa revogação se encontra na prática excluída, viola o direito da União?”.

É posta em causa a conformidade com o Direito da União Europeia da norma constante no n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE.

Ora, esta questão encontra-se já respondida num caso que estava, precisamente, em causa a conformidade da mesma disposição legal – o Acórdão Ferreira da Silva e Brito[12].

Neste Acórdão estava também em causa a responsabilidade civil do Estado português por um erro judiciário cometido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito de um processo laboral em que se discutia a manutenção dos direitos dos trabalhadores num caso de transferência para outra entidade patronal de parte da empresa onde aqueles trabalhadores exerciam a sua actividade[13].

Suscitou-se aí a questão prejudicial seguinte:

 “O Direito [da União] [...] e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça […] no acórdão Köbler [C‑224/01, EU:C:2003:513] sobre a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação de Direito [da União] [...] cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, obsta à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização contra o Estado a prévia revogação da decisão danosa?”.

Sobre esta questão prejudicial, o TJUE começou por defender que:

(…) atendendo ao papel essencial do poder judicial na proteção dos direitos que as regras do direito da União conferem aos particulares, a plena eficácia destas seria posta em causa e a proteção dos direitos que as mesmas reconhecem ficaria diminuída se os particulares não pudessem, sob certas condições, obter ressarcimento quando os seus direitos são lesados por uma violação do direito da União imputável a uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro decidindo em última instância (v. acórdão Köbler, C‑224/01, EU:C:2003:513, n.º 33)”.

Assim, relativamente à norma contida no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, o TJCE considerou que a mesma “pode tornar excessivamente difícil a obtenção da reparação dos danos causados pela violação do direito da União em causa”. E, quanto aos princípios da autoridade do caso julgado e da segurança jurídica que fundamentam o regime previsto no referido n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE, decidiu que tais princípios não podem justificar a constituição de um obstáculo importante “à aplicação efetiva do direito da União e, designadamente, de um princípio tão fundamental como o da responsabilidade do Estado por violação do direito da União”.

Concluindo, respondeu o TJUE à questão prejudicial do seguinte modo:

O direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída”.

Acresce que o Acórdão Ferreira da Silva e Brito não surge isolado, antes podendo dizer-se que ele consolida a jurisprudência do TJUE formulada a partir do Acórdão Köbler[14], no qual já se havia decidido que:

(…) o princípio segundo o qual os Estados-Membros são obrigados a ressarcir os danos causados aos particulares pelas violações do direito comunitário que lhes são imputáveis é igualmente aplicável quando a violação em causa resulte de uma decisão de um órgão jurisdicional decidindo em última instância”.

Do mesmo modo, no Acórdão Traghetti[15], o TJUE decidiu que:

(…) o direito comunitário opõe-se a um regime legal nacional que exclua, de uma forma geral, a responsabilidade do Estado-Membro por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito comunitário imputável a um órgão jurisdicional que decide em última instância pelo facto de essa violação resultar de uma interpretação de normas jurídicas ou de uma apreciação dos factos e das provas efectuada por esse órgão jurisdicional”.

Também no que respeita a questões sobre as quais ainda não recaiu uma decisão judicial definitiva, mas em que se suscita a violação de direito comunitário, o TJUE, no Acórdão Fallimento Olimpiclub[16], decidiu que:

(…) o direito comunitário opõe-se à aplicação de uma disposição de direito nacional, como o artigo 2909.o do Código Civil italiano (Codice civile), num litígio relativo ao imposto sobre o valor acrescentado respeitante a um ano fiscal em relação ao qual ainda não foi proferida uma decisão judicial definitiva, caso tal disposição obste a que o órgão jurisdicional nacional que deve decidir desse litígio tenha em conta as normas de direito comunitário em matéria de práticas abusivas relacionadas com o referido imposto”.

Mais recentemente, esta jurisprudência foi reiterada nos Acórdãos de 28.07.2016[17], de 29.07.2019[18] e de 4.03.2020[19].

No Acórdão de 29.07.2019, o TJUE voltou a decidir que:

A responsabilidade de um Estado-Membro por danos causados pela decisão de um órgão jurisdicional nacional que se pronuncia em última instância, que viola uma norma de direito da União, rege-se pelos requisitos enunciados pelo Tribunal de Justiça, nomeadamente, no n.º 51 do Acórdão de 30 de setembro de 2003, Köbler (C-224/01, EU:C:2003:513), sem, no entanto, excluir que a responsabilidade desse Estado-Membro possa ser acionada, em condições menos restritivas, com base no direito nacional. Essa responsabilidade não está excluída pelo facto de a referida decisão ter adquirido autoridade de caso julgado. Ao pôr em prática essa responsabilidade, cabe ao órgão jurisdicional nacional que conhece do pedido de indemnização apreciar, tendo em conta todos os elementos que caracterizam a situação em causa, se o órgão jurisdicional nacional que se pronuncia em última instância cometeu uma violação suficientemente caracterizada do direito da União, ao desconsiderar de forma manifesta o direito da União aplicável, incluindo a jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça. Em contrapartida, o direito da União opõe-se a uma norma de direito nacional que, nesse caso, exclui, em geral, dos danos suscetíveis de reparação as despesas ocasionadas a uma parte pela decisão desfavorável do órgão jurisdicional nacional”.

E no Acórdão 4.03.2020, o TJUE afirmou que:

Atendendo ao papel essencial do poder judicial na proteção dos direitos que as normas da União conferem aos particulares, a plena eficácia destas seria posta em causa e a proteção dos direitos que as mesmas reconhecem ficaria diminuída se os particulares não pudessem, sob certas condições, obter ressarcimento quando os seus direitos são lesados por uma violação do direito da União imputável a uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado-Membro decidindo em última instância (Acórdão de 30 de setembro de 2003, Köbler, C-224/01, EU:C:2003:513, n.º 33). Além disso, em razão, designadamente, da circunstância de que uma violação dos direitos conferidos pelo direito da União por uma decisão que se tornou definitiva e assim adquiriu força de caso julgado já não poder, regra geral, ser sanada, os particulares não podem ser privados da possibilidade de acionarem a responsabilidade do Estado a fim de obterem por este meio a proteção jurídica dos direitos que lhes reconhece o direito da União (Acórdão de 24 de outubro de 2018, XC e o., C-234/17, EU:C:2018:853, n.º 58)”.

É incontestável, portanto, que o TJUE já se pronunciou de forma clara, reiterada e consistente, sobre a questão da admissibilidade da responsabilidade de um Estado-Membro da União Europeia em consequência da violação do Direito da União imputável ao exercício da função jurisdicional, mesmo que tal violação resulte da decisão de um tribunal que decida em última instância, o que torna inaplicável o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP à responsabilidade do Estado Português por acções e omissões dos seus tribunais violadoras de normas do direito da União Europeia.

Atenta esta jurisprudência do TJUE, a formulação de novo reenvio tendo por objecto a mesma questão é dispensável.


B) As questões prejudiciais que se seguem (enunciadas na conclusão 33 em b. e em c.) são as seguintes:

A existência de duas decisões diferentes sobre a mesma questão de direito em matéria de direito do trabalho viola a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

Nomeadamente os artigos 20, 21,30, 47, 52, 53 e 54?”.

Verifica-se que está aqui em causa a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE). Ora, mesmo que se entendesse que no caso concreto dos autos estão em causa direitos fundamentais consagrados na CDFUE, nomeadamente os previstos nas disposições indicadas pela recorrente, a verdade é que os mesmos não teriam aplicação no caso, pois que, como é sabido, nos termos do seu artigo 51.º, n.º 1, os destinatários da CDFUE são as instituições, os órgãos e os organismos da União Europeia, bem como os Estados-Membros mas estes apenas quando apliquem o direito da União.

No artigo 51.º, n.º 1, da CDFUE dispõe-se:

As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados-Membros, apenas quando apliquem direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as competências para a União, pelos Tratados”.

Quer isto dizer que a CDFUE vincula os Estados-Membros apenas indirectamente, ou seja, vincula os Estados-Membros apenas quando estes apliquem o Direito da União Europeia[20].

Esclarecedor a este respeito é a síntese constante de ponto 10. das Recomendações emitidas pelo TJUE à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, acima citadas, relativas à apresentação de processos prejudiciais:

No que diz respeito aos reenvios prejudiciais que têm por objeto a interpretação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, importa recordar que, segundo o seu artigo 51.º, n.º 1, as disposições da Carta têm por destinatários os Estados-Membros apenas quando apliquem o direito da União. Embora as hipóteses em que essa aplicação está em causa possam ser diversas, é, no entanto, necessário que resulte de forma clara e inequívoca do pedido de decisão prejudicial que, no processo principal, é aplicável uma regra de direito da União diferente da Carta. Na medida em que o Tribunal de Justiça não é competente para conhecer de um pedido de decisão prejudicial quando uma situação não for abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, as disposições da Carta eventualmente invocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio não podem, por si só, fundar essa competência [21].

Decorre de tudo isto que a parte que pretenda questionar a compatibilidade entre normas de Direito interno e as normas e princípios consagrados na CDFUE tem de demonstrar que as normas de Direito interno em apreço se destinam a aplicar Direito da União ou, pelo menos, se inserem no âmbito das competências da União Europeia em matéria legislativa, na observância do princípio da subsidiariedade.

Sucede, porém, que a recorrente se limita a formular questões de desconformidade entre decisões judiciais e a CDFUE, sem demonstrar que houve aplicação de normas do Direito da União Europeia ou que foi discutida qualquer questão jurídica que envolvesse o Direito da União.

No processo no qual a recorrente alega ter sido cometido o erro judiciário que constitui a causa de pedir desta acção (Proc. 2718/09.3...), o que estava em discussão era a existência da subordinação jurídica que caracterizaria a relação laboral entre a aqui recorrente e a BB de acordo com a factualidade provada. O Tribunal da Relação de … decidiu de certa forma neste processo e, mais tarde, veio a decidir de forma divergente em processo movido por colegas da recorrente (Proc. 201/2009.6...).

Porém, tendo em conta o teor da fundamentação das decisões da Relação nos processos acima referidos, não se vislumbra que as normas nacionais de Direito do Trabalho em causa nesses processos visem implementar normas ou princípios de Direito da União Europeia nem sequer que se situem em áreas do Direito especificamente abrangidas pelo Direito da União Europeia.

Na verdade, nos casos apreciados pelo TJUE, a responsabilidade civil dos Estados-Membros por actos da função jurisdicional tem por objecto erros judiciários que envolvam a violação de Direito da União Europeia no processo em que tal erro ocorreu e é essa violação que causa os danos invocados na acção de responsabilidade civil. No presente caso, não está demonstrado quais as normas de direito da União Europeia que tenham sido violadas no processo em que o alegado erro judiciário ocorreu, o que torna desadequada a sujeição das questões prejudiciais ao TJUE.

Em suma, não estando demonstrando que houve aplicação de normas do Direito da União Europeia ou que foi discutida qualquer questão jurídica que envolvesse o Direito da União, não se encontram preenchidos os requisitos para a sujeição destas questões a reenvio prejudicial[22].


C) A quarta e última questão (formulada na conclusão 33 em d.) é a seguinte:

O Direito da União e, em especial, os arts. 20, 21, 30, 47, 52, 53, e 54 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia obstam à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização contra o Estado fundada em prejuízos causados no âmbito do exercício da função jurisdicional, a prática de um manifesto erro de direito, ou de um erro grosseiro na apreciação da matéria de facto, inviabilizando assim que o Estado seja demandado quando se verifique mera contradição de julgados relativamente a uma mesma questão de Direito do trabalho? [23].

Está em causa a conformidade com o Direito da União Europeia do Direito nacional ao exigir como fundamento do pedido de indemnização contra o Estado fundado em prejuízos causados no âmbito do exercício da função jurisdicional a prática de um manifesto erro de direito ou de um erro grosseiro na apreciação da matéria de facto.

O primeiro problema com que se depara o reenvio prejudicial desta questão é o mesmo que foi apontado ao reenvio prejudicial do grupo de questões anterior: a recorrente refere-se apenas a uma disparidade do Direito nacional com normas da CDFUE, desconsiderando o disposto no seu artigo 51.º, n.º 1, como acima exposto.

Com efeito, tal como está formulada, a questão apela a um juízo de conformidade do Direito nacional com certas normas do CDFUE e não resulta que as normas de Direito nacional invocadas visem aplicar normas ou princípios de Direito da União Europeia ou sequer se situem em áreas do Direito especificamente abrangidas pelo Direito da União.

Mas, ainda que se equacionasse a hipótese de violação de alguma norma de Direito da União no âmbito do processo onde foi cometido o erro judiciário, existiria sempre uma causa dissuasora do reenvio.

É que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, o erro judiciário relevante para fundamentar a responsabilidade do Estado-Membro nestes casos tem de implicar uma “violação suficientemente caracterizada” do Direito da União Europeia, devendo atender-se “ao grau de clareza e de precisão da regra violada, ao carácter intencional da violação, ao carácter desculpável ou não do erro de direito, à atitude eventualmente adoptada por uma instituição comunitária, bem como ao não cumprimento, pelo órgão jurisdicional em causa, da sua obrigação de reenvio prejudicial por força do artigo 234.º, terceiro parágrafo, CE”.

A decisão de referência nesta matéria é, sem dúvida, a do (já referido) Acórdão Köbler, de cujo dispositivo consta o seguinte:

O princípio segundo o qual os Estados-Membros são obrigados a ressarcir os danos causados aos particulares pelas violações do direito comunitário que lhes são imputáveis é igualmente aplicável quando a violação em causa resulte de uma decisão de um órgão jurisdicional decidindo em última instância, desde que a norma de direito comunitário violada se destine a conferir direitos aos particulares, que a violação seja suficientemente caracterizada e que exista um nexo de causalidade directo entre a violação e o dano sofrido pelas pessoas lesadas. A fim de determinar se tal violação é suficientemente caracterizada quando a violação em causa resulte dessa decisão, o juiz nacional competente deve, tendo em conta a especificidade da função judicial, apurar se essa violação tem caracter manifesto (…)[24].

Perante isto, não há dúvida de que o TJUE exige que a violação do Direito da União Europeia seja “suficientemente caracterizada”, o que inviabiliza a responsabilidade do Estado em situações como a dos autos, em que tudo quanto existe é uma mera divergência de decisões.

Assim, também por esse motivo (desnecessidade), o reenvio prejudicial deveria ser evitado[25].


*


Resta, pois, apreciar a questão que está em causa nestes autos.

*


2.ª) Da responsabilidade civil do Estado por alegado erro judiciário

Como se sabe, a pretensão da recorrente é a de o Acórdão recorrido seja revogado e condenar-se o Estado em responsabilidade por erro judiciário.

Esta é uma matéria que tem sido objecto de atenção em Portugal, pelo que, além da profusa jurisprudência, são muitos os estudos em que é possível colher orientações[26].

Os argumentos fundamentais em que se apoia a recorrente podem organizar-se deste modo:

a) estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário, sendo o Acórdão do Tribunal da Relação de …… de 8.05.2013, proferido no Proc. 2718/09.3..., desconforme à CDFUE, nomeadamente por violação dos princípios da igualdade e justiça (cfr., sobretudo, conclusões 12 e 22).

b) a interpretação do artigo 13.º do RRCEE feita pelo Tribunal recorrido é desconforme ao Direito da União Europeia, violando a jurisprudência do TJUE, designadamente do Acórdão Ferreira da Silva e Brito (cfr., sobretudo, conclusões 20 e 21);

c) a interpretação do artigo 13.º do RRCEE feita pelo Tribunal recorrido é desconforme à Constituição (cfr., sobretudo, conclusões 14, 15, 16 e 19); e

a) Quanto ao erro judiciário e à alegada violação da CDFUE pelo Acórdão do Tribunal da Relação de de 8.05.2013

Alega a recorrente que foi cometido um erro judiciário no Proc. 2718/09.3..., tendo o Acórdão do Tribunal da Relação de … de 8.05.2013 violado a CDFUE, nomeadamente por violação dos princípios da igualdade e justiça. Estariam, assim, segundo ela, reunidos os pressupostos da responsabilidade civil e o Tribunal recorrido teria decidido mal ao não reconhecer esta responsabilidade.

Antes de mais, e, como já se disse atrás, mesmo que se entendesse que, no caso dos autos, estavam em causa princípios ou direitos consagrados na CDFUE, a verdade é que a alegação não relevaria para os efeitos pretendidos, pois que, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, da CDFUE, os destinatários da CDFUE tem como destinatários as instituições, os órgãos e os organismos da União bem como os Estados-Membros apenas quando apliquem o direito da União, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados. Ora, não decorre dos autos que tenha sido aplicado Direito da União no Proc. n.º 2718/09.6..., em que foi, alegadamente, cometido o erro judiciário.

Mas ainda que se equacionasse estar em causa a violação de alguma norma de Direito da União neste processo, tão-pouco ela relevaria para o efeito da responsabilidade do Estado que a recorrente ver reconhecida, dado que, como se viu, desde o Acórdão Köbler e demais Acórdãos acima referidos, o TJUE tem entendido que o erro judiciário relevante para fundamentar tal responsabilidade deve implicar uma “violação suficientemente caracterizada” do Direito da União.

Conforme se diz no Acórdão Köbler:

os Estados-Membros são obrigados a ressarcir os danos causados aos particulares pelas violações do direito comunitário que lhes são imputáveis quando a norma de direito comunitário violada se destine a conferir direitos aos particulares, a violação seja suficientemente caracterizada e exista um nexo de causalidade directo entre a violação e o dano sofrido pelas pessoas lesadas. A fim de determinar se tal violação é suficientemente caracterizada quando a violação em causa resulte de uma decisão de um órgão jurisdicional decidindo em última instância, o juiz nacional competente deve, tendo em conta a especificidade da função judicial, assim como das exigências legítimas de segurança jurídica, apurar se essa violação tem carácter manifesto. Em especial, o órgão jurisdicional nacional deve atender a todos os elementos que caracterizam a situação que lhe é submetida. Entre tais elementos constam designadamente o grau de clareza e de precisão da regra violada, o carácter intencional da violação, o carácter desculpável ou não do erro de direito, a atitude eventualmente adoptada por uma instituição comunitária, bem como o não cumprimento, pelo órgão jurisdicional em causa, da sua obrigação de reenvio prejudicial por força do artigo 234.º, terceiro parágrafo, CE. De qualquer modo, uma violação do direito comunitário é suficientemente caracterizada quando a decisão em causa foi tomada violando manifestamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria”.

No caso concreto o TJUE decidiu que:

uma violação do direito comunitário não tem o carácter manifesto exigido para que haja, por força do direito comunitário, responsabilidade de um Estado-Membro por uma decisão de um dos seus órgãos jurisdicionais decidindo em última instância, quando, por um lado, o direito comunitário não regula expressamente a questão de direito em causa, a questão também não encontra resposta na jurisprudência do Tribunal de Justiça e esta resposta não é evidente, e, por outro, a referida violação não apresenta um carácter deliberado, mas resulta da leitura errada de um acórdão do Tribunal de Justiça”.

Em plena harmonia com esta jurisprudência do TJUE, o Supremo Tribunal de Justiça tem circunscrito a qualificação como erro grosseiro ao erro que seja “grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativa de uma actividade dolosa ou gravemente negligente” ou “indesculpável, aquele em que não incorreria um julgador prudente, agindo com ponderação, conhecimento e competência[27].

Seguindo as alegações da recorrente, no caso dos autos, o erro judiciário assentaria na divergência de decisões relativamente a uma mesma questão de Direito do Trabalho. Mais precisamente, estando em discussão a existência da subordinação jurídica que caracteriza a relação laboral no âmbito de relações com a BB, a questão mereceu respostas díspares por parte do Tribunal da Relação de …, já que, no Proc. 2718/09.6..., movido pela recorrente, decidiu em certo sentido e, em processo movido por colegas da recorrente, veio a decidir em sentido distinta.

Não tendo a concreta questão jurídica de Direito do Trabalho uma resposta evidente ou necessária, nem se vislumbrando que a solução encontrada pelo Tribunal envolvesse qualquer violação da lei com carácter deliberado, não poderia considerar-se verificado um erro daquele tipo.

b) Quanto à alegada violação do Direito da União Europeia

Como se referiu acima, o TJUE tem afirmado de forma consistente, entre outros, no Acórdão Ferreira da Silva e Brito, que é admissível a responsabilidade dos Estados-Membros em consequência da violação do direito da União Europeia imputável ao exercício da função jurisdicional mesmo quando tal violação resulta da decisão de um tribunal que decida em última instância. Tal jurisprudência torna inaplicável o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP à responsabilidade do Estado português por acções e omissões dos seus tribunais que sejam violadoras de normas do direito da União Europeia.

No entanto, como bem se adverte no Acórdão recorrido, tanto no Acórdão Ferreira da Silva e Brito, como nos (anteriores e também emblemáticos) Acórdãos Köbler, Fallimento Olimpiclub, Traghetti e, mais recentemente, nos Acórdãos de 28.07.2016 (C-168/15), de 29.07.2019 (C-620/17) e de 4.03.2020 (C-34/19), a responsabilidade civil prende-se com erros judiciários que envolvem a violação do Direito da União Europeia e sendo tal violação a causa dos danos invocados.

Por outras palavras: não é directamente apreciada, naquela jurisprudência, a conformidade entre as normas aplicáveis à acção de responsabilidade do Estado (o artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE) e as normas de Direito da União Europeia, mas antes a conformidade entre as normas de Direito interno aplicadas no processo em que o erro judiciário ocorreu e as normas de Direito da União Europeia cuja inobservância originou o erro judiciário. Assim, quando se reporta à violação de normas de Direito da União, o TJUER refere-se à violação de normas aplicáveis no âmbito da acção em que foi proferida a decisão danosa.

Ora, como acima se disse, a recorrente não invoca que o Acórdão do Tribunal da Relação de 8.05.2013, que julgou improcedente a acção por ela intentada no Tribunal do Trabalho, tenha dado origem à violação de quaisquer normas do Direito da União Europeia – apenas invoca a violação da CDFUE (sendo certo que, como se explicitou, esta alegação não adquire relevância para os presentes efeitos).

Considerando tudo, a afirmação do Tribunal recorrido de que a interpretação que decorre da doutrina do Acórdão Ferreira da Silva e Brito é inaplicável ao caso dos autos não está incorreta.

c) Quanto à alegada inconstitucionalidade do artigo 13.º do RRCEE na interpretação do Tribunal recorrido

O artigo 13.º do RRCEE tem a epígrafe “Responsabilidade por erro judiciário” e é do seguinte teor:

1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”.

Interpretando e aplicando esta norma, o Tribunal recorrido pronunciou-se pela sua não inconstitucionalidade. Esta será também a conclusão a que se chegará aqui.

No respeita ao n.º 1 do artigo 13.º do RRCEE, correspondendo a interpretação do Tribunal recorrido àquela que este Supremo Tribunal tem feito em sucessivos Acórdãos[28], em que se apreciou e afirmou a sua constitucionalidade, não há razões para pôr em causa da sua conformidade à Constituição.

Deve ter-se presente que, tal como assinalado pelo Tribunal recorrido, “o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no art. 22º da Constituição não é ilimitado, nem irrestrito, podendo o legislador ordinário consagrar limites destinados a salvaguardar outros princípios constitucionais, ou direitos de terceiros”, posto que com isto não se “esvazi[e] o conteúdo útil de tal direito, ou restringi-lo forma arbitrária ou desproporcional”.

O mesmo vale para do n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE.

De qualquer modo, sobre a conformidade constitucional desta norma já se pronunciou o Tribunal Constitucional, não julgando inconstitucional a interpretação segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Primeiro, no Acórdão n.º 90/84, de 30.07., afirmou o Tribunal Constitucional que:

diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» - o «direito do caso» -, e a sua declaração é plenamente válida (…) se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um acto «definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efeitos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um acto judicial «consolidado». Quer dizer: compreende-se que este último - não havendo sido impugnado, ou, como quer que seja, apreciado pela competente instância de recurso - não possa vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos”.

Mais recentemente, no Acórdão n.º 363/2015, de 9.07, o Tribunal Constitucional esclareceu que a solução legal decorrente do n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE não exclui em absoluto o direito à indemnização fundada em erro judiciário e explicou:

limitando-se a estabelecer que o erro judiciário relevante seja previamente reconhecido pela jurisdição competente, o mesmo é dizer, que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação (ou, porventura, de uma revisão oficiosa)”.

Em face disto, não resta senão subscrever a posição defendida em diversos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido da inexistência de desconformidade constitucional desta norma[29], e confirmar o acerto, também neste ponto, da decisão recorrida.


**


III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


*


Custas pela recorrente.

*


Catarina Serra

Bernardo Domingos

Rijo Ferreira

Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.

________

[1] O Tribunal recorrido aditou ao elenco dos facto provados os factos provados 20 e 21 foram precedidos da seguinte introdução: “Porque se se trata de factos relevantes para a decisão da causa, que se acham provados por documento autêntico, nos termos do disposto no art. 662º, nº 1 do CPC aditam-se ao elenco dos factos provados os seguintes”.

[2] Cfr., por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2.04.2019, Proc. 5293/15. 6T8VNG.P1, e de 7.11.2019, Proc. 2449/15.5T8PDL.L1.S1 (disponíveis em dgsi.pt).

[3] Encontra-se, na sentença, apenas uma citação de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça, em que é afirmada a conformidade entre RRCEE e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

[4] Sublinhados nossos.

[5] Sobre o dever de reenvio prejudicial cfr. Alessandra Silveira, “Do âmbito de aplicação da Carta dos Direitos da União Europeia: Recai ou não recai? Eis a questão!”, in: Julgar, 2014, n.º 22, pp. 179-209, Ana Isabel Pinto, “A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a redução salarial dos funcionários públicos: Anotação ao despacho do Tribunal de Justiça de 7 de março de 2013, Sindicato dos Bancários do Norte e outros – processo C-128/12”, in: Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2013-I, pp. 307-325, Ana Maria Guerra Martins, Manual de Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2017 (2.ª edição), pp. 569-597, Ana Quadros, A Função Subjectiva da Competência Prejudicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 45-57, Carlos Lobato Ferreira, Os tribunais portugueses e o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia em matéria de tributação directa: algumas notas, in: Revista do Ministério Público, 2013, n.º 136, pp. 123-138, Fausto Quadros / Ana Maria Guerra Martins, Contencioso da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2009 (2.ª edição), pp 65-66 e pp. 90-98, J. C. Moitinho de Almeida, O Reenvio Prejudicial Perante o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, pp. 31-36, M. Nogueira Serens, A Obrigação De Reenvio Prejudicial Decorrente Do Artigo 234.º, § 3.º (Ex – Art. 177.º § 3.º), Do Tratado CE, in: Estudos em Homenagem Ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, volume IV, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 627-642. Relevante ainda é a consulta do Guia Prático do Reenvio Prejudicial (autoria: Carla Câmara / colaboração científica: Maria José Rangel de Mesquita), Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2012 (disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/GuiaReenvioPrejudicial/guia.pratico.reenvio.prejudicial.pdf).

[6] Cfr., por todos, Ana Maria Guerra Martins, Manual de Direito da União Europeia, cit., pp. 571 e s.

[7] Acórdão do TJUE de 6.10.1982 (C-283/81) (texto integral em inglês disponível em http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=91672&pageIndex=0&doclang=EN&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4349686).

[8] A excepção é conhecida como “doutrina do acto claro”. Esta deve ser utilizada com razoabilidade e prudência, havendo critérios a observar para que o tribunal fique dispensado do dever de reenvio com base neste fundamento. Cfr., neste sentido, Alessandra Silveira / Sophie Perez Fernandes, “Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito (ou do “grito do Ipiranga” dos lesados por violação do direito da União Europeia no exercício da função jurisdicional), in: Julgar Online, Outubro de 2015, p. 3.

[9] Cfr. Acórdãos do TJUE de 18.10.2011 (C‑128/09 a C‑131/09, C‑134/09 e C‑135/09) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=111403&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4817820), de 9.09.2015 (C‑160/14) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=167205&mode=req&pageIndex=7&dir=&occ=first&part=1&text=Cilfit&doclang=PT&cid=4808956#ctx1), de 1.10.2015 (C‑452/14) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=168949&mode=req&pageIndex=6&dir=&occ=first&part=1&text=Cilfit&doclang=PT&cid=4808956#ctx1), de 28.07.2016 (C‑379/15) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=182297&mode=req&pageIndex=5&dir=&occ=first&part=1&text=Cilfit&doclang=PT&cid=4808956#ctx1), de 4.10.2018 (C‑416/17) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=206426&mode=req&pageIndex=4&dir=&occ=first&part=1&text=Cilfit&doclang=PT&cid=4808956#ctx1) e de 30.01.2019 (C‑587/17 P) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=210303&mode=req&pageIndex=4&dir=&occ=first&part=1&text=Cilfit&doclang=PT&cid=4808956#ctx1).

[10] Cfr. Recomendações 2018/C 257/01, in: Jornal Oficial da União Europeia C 257, de 20.07.2018, pp. 1 e s. (texto disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=uriserv:OJ.C_.2018.257.01.0001.01.POR&toc=OJ:C:2018:257:TOC).

[11] Cfr. entre outros, Acórdãos de 18.12.2002 (Proc. 3956/02), de 10.07.2008 (Proc. 2944/07), de 29.04.2010 (Proc. 622/08.1TVPRT.P1.S1), de 30.09.2014 (Proc. 1020/13.0TBCHV-D.P1.S1), de 16.10.2014 (Proc. 1279/06.0TVPRT-C.P1.S1), de 29.09.2015 (Proc. 1740/12.7TBPVZ.P1.S1), de 2.02.2016 (Proc. 326-C/2002.E1.S1), de 4.02.2016 (Proc. 536/14.6TVLSB.L1.S1), de 17.03.2016 (Proc. 588/13.6TVPRT.P1.S1) de 14.03.2017 (Proc. 736/14.9TVLSB.L1.S1) e de 5.12.2017 (Proc. 11256/16.7T8LSB.L1.S2-A) (só alguns com texto integral disponível em dgsi.pt).

[12] Acórdão do TJUE de 9.09.2015 (C-160/14) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=167205&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4347713).

[13] Estava em causa, mais precisamente, um despedimento colectivo realizado no âmbito da dissolução da companhia aérea Air Atlantis, SA (AIA), de que a TAP era accionista principal. Após esse despedimento, a TAP passou a realizar parte dos voos já contratados pela Air Atlantis e outros voos em rotas anteriormente exploradas pela AIA, utilizando parte do equipamento que esta última utilizava nas suas atividades, contratando ainda alguns trabalhadores da extinta AIA. Alguns trabalhadores despedidos pela AIA intentaram no Tribunal do Trabalho de Lisboa uma acção contra o despedimento colectivo de que haviam sido alvo, pedindo a sua reintegração na TAP e o pagamento das respectivas remunerações. O Tribunal de Trabalho de Lisboa julgou parcialmente procedente a acção, considerando ter havido, em parte, transmissão de estabelecimento, ordenando a reintegração dos demandantes no processo principal nas categorias correspondentes, bem como o pagamento de indemnizações. Desta sentença foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 16.01.2008, alterou a decisão proferida na 1.ª instância, na parte em que havia condenado a TAP na reintegração dos demandantes no processo principal e no pagamento de indemnizações, tendo declarado que o direito de recurso contra o despedimento coletivo em causa tinha caducado. Interposto recurso de revista, o Supremo Tribunal declarou, por acórdão de 25.02.2009, que o despedimento colectivo não enfermava de qualquer ilicitude, negando ter havido transmissão de estabelecimento; relativamente à aplicação do direito da União, observou que o TJUE, confrontado com situações em que uma empresa prosseguia a atividade até então levada a cabo por outra, considerou que essa “mera circunstância” não permitia concluir pela transferência de uma entidade económica, uma vez que “uma entidade não pode ser reduzida à atividade de que está encarregada”. Tendo sido requerido nesse processo que se submetesse ao TJUE um pedido de decisão prejudicial, o Supremo Tribunal considerou não existir “dúvida relevante” na interpretação das normas de direito da União aplicáveis, “que implicasse a necessidade do reenvio prejudicial, além do TJUE dispor de uma vasta e sedimentada jurisprudência sobre a problemática da interpretação das normas [do direito da União] que se reportam à transmissão de estabelecimento”. No âmbito da acção de responsabilidade civil do Estado na qual foi formulado o pedido de reenvio prejudicial que deu origem ao acórdão Ferreira da Silva e Brito, os referidos trabalhadores invocaram que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.02.2009 era manifestamente ilegal, por fazer uma interpretação errada do conceito de “transferência de estabelecimento” na acepção da Directiva 2001/23 e ainda que aquele Supremo Tribunal havia violado o seu dever de submeter ao TJUE questões de interpretação do direito da União pertinentes. Nessa acção discutiu-se igualmente o facto de o pedido de indemnização formulado contra o Estado dever ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente nos termos do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, não tendo havido revogação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

[14] Cfr. Acórdão do TJUE de 30.09.2003 (C-224/01) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=48649&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4644419)

[15] Cfr. Acórdão do TJUE de 13.06.2006 (C-173/03) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=55182&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=6173353).

[16] Cfr. Acórdão do TJUE de 3.09.2009 (C-2/08) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=73075&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4884493).

[17]Cfr. Acórdão do TJUE de 28.07.2016 (C‑168/15) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=182293&mode=req&pageIndex=4&dir=&occ=first&part=1&text=Viola%25C3%25A7%25C3%25B5es%2Bimput%25C3%25A1veis%2Ba%2Bum%2B%25C3%25B3rg%25C3%25A3o%2Bjurisdicional%2Bnacional.&doclang=PT&cid=6733071#ctx1).

[18]Cfr. Acórdão do TJUE de 29.07.2019 (C‑620/17) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=Cilfit&docid=216546&pageIndex=0&doclang=pt&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=4808956#ctx1).

[19]Cfr. Acórdão do TJUE de 4.03.2020 (C‑34/19) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=224063&mode=req&pageIndex=1&dir=&occ=first&part=1&text=Viola%25C3%25A7%25C3%25B5es%2Bimput%25C3%25A1veis%2Ba%2Bum%2B%25C3%25B3rg%25C3%25A3o%2Bjurisdicional%2Bnacional.&doclang=PT&cid=6733071#ctx1).

[20] Cfr., sobre isto, Alessandra Silveira, “Do âmbito de aplicação da Carta dos Direitos da União Europeia: Recai ou não recai? Eis a questão!”, cit., em especial, pp. 179-180.

[21] Perante a multiplicação de pedidos de reenvio indevidamente formulados com base na CDFUE, o TJUE tem repetidamente afirmado que, quando uma situação jurídica não está abrangida pelo Direito da União, o TJUE não tem competência para dela conhecer e que as disposições da CDFUE eventualmente invocadas não podem, por si só, servir de base a essa competência. Rejeita, pois, o TJUE, nestes casos o processo por não se indicar uma regulamentação nacional que aplique o Direito da União que possa incorrer em violação da CDFUE. Refira-se, só para citar as decisões proferidas em casos com origem em pedidos formulados por tribunais portugueses os Acórdãos de 21.10.2014 (C-665/13) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=159141&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4886186), de 28.11.2013 (C-258/13) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=145381&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4886313), de 6.10.2017 (C-333/17) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=196283&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4885893), e de 23.11.2017 (C-131/17) (texto integral disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=197341&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4886075).
[22] Deve dizer-se ainda, no que respeita à conformidade do n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE com o Direito da União, que, apesar de alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional terem afirmado a conformidade à Constituição dessa disposição legal e negando o direito à indemnização quando a decisão judicial danosa seja insusceptível de recurso e, por isso, não tenha sido revogada por Tribunal superior, o Supremo Tribunal de Justiça, no recente Acórdão de 4.02.2020 (Proc. 8819/18.0T8PRT.P1.S2), sustentou que “numa interpretação que salvaguarda os direitos do lesado e o respeito pelas normas e princípios constitucionais, entendemos que, diferentemente do acima enunciado como a orientação que vem dominando, a prévia revogação deve acontecer, e é pressuposto da ação de indemnização contra o Estado, apenas e quando a decisão inconstitucional ou ilegal, ou por verificação de erro grosseiro, seja suscetível de reapreciação por um tribunal superior (recorrível)”, concluindo que “a prévia revogação a que alude a norma do nº 2 do art. 13 da Lei 67/2007 de 31/12 não pode constituir condição (de procedência) da ação para efetivação da responsabilidade por erro judiciário quando a decisão a que é assacado erro grosseiro ou manifesta ilegalidade tiver sido proferida em última instância, ou seja, quando, de acordo com os meios processuais de reapreciação de decisões judiciais à disposição do lesado, não for admissível recurso ordinário”. Assim, caso se perfilhe esta interpretação do n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE, uma vez quem no caso dos autos, a alegada decisão danosa é o Acórdão da Relação, que era insusceptível de recurso, não há obstáculo à apreciação da responsabilidade civil do Estado e também por este motivo deixaria de ser necessário o pedido de reenvio prejudicial tendo por objecto a referida norma.
[23] Saliente-se que a enunciação desta questão é da lavra do Tribunal recorrido, num esforço de reformulação das questões enunciadas pela recorrente em b. e c. (consideradas insusceptíveis de reenvio prejudicial pelo Tribunal recorrido).
[24] Para um comentário a este Acórdão cfr. Luís Fábrica, in: Rui Medeiros (coord.), Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas”, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2013, pp. 352-353.
[25] Igualmente no sentido da dispensa do dever de reenvio prejudicial quando não se mostre preenchido o requisito do caráter qualificado do erro judiciário, consagrado no n.º 1 do artigo 13.º do RRCEE cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in: Blog do IPCC (entrada de 17.06.2016) (disponível em https://blogippc.blogspot.com/2016/06/jurisprudencia-376.html).

[26] Cfr., só para alguns exemplos, Ana Celeste Carvalho, Responsabilidade civil por erro judiciário, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 43-69, Ana Celeste Carvalho, Responsabilidade civil por erro judiciário”, in: Responsabilidade civil do Estado, Centro de Estudos Judiciários, 2014 (disponível em  http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Responsabilidade_Civil_Estado.pdf), Ana Quadros, A Função Subjectiva da Competência Prejudicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 166-180, Carlos Cadilha, Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades púbicas anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 2011 (2.ª edição), pp. 249-281, Luís Fábrica, in: Rui Medeiros (coord.), Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2013, pp. 350-361, Maria Luísa Duarte, “O regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e o Direito da União Europeia – breve relato de um (des)encontro anunciado com a jurisprudência do Tribunal de Justiça”, in: Carla Amado Gomes / Ana Fernanda Neves / Tiago Serrão, O regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas: comentários à luz da jurisprudência”, Lisboa, AAFDL, 2017, pp. 67-91, Ricardo Pedro, “Comentário ao artigo 13.º do Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas”, in: in: Carla Amado Gomes / Ana Fernanda Neves / Tiago Serrão, O regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas: comentários à luz da jurisprudência”, Lisboa, AAFDL, 2017, pp. 685-705, e Salvador da Costa, “Responsabilidade Civil / Exercício da Função Jurisdicional” (disponível em http://www.inverbis.pt/2007-2011/images/stories/pdf/salvadorcosta_respcivil_funcaojurisdicional.pdf).

[27] Cfr., respectivamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.2011 (Proc. 346/08.0TCGMR.G1.S1) e de 10.05.2016 (Proc. 136/14.0TBNZR.C1.S1). Cfr., ainda, no mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2012 (Proc. 825/06.3TVLSB.L1.S1), de 29.01.2014 (Proc. 277/11.6TBEAVR.C1.S1), de 23.10.2014 (Proc. 1668/12.0TBSLB.L1.S1), de 24.02.2015 (Proc. 2210/12.9TVLSB.L1.S1) e de 12.07.2018 (Proc. 237/16.0T8STR.E1.S2) (só alguns com texto integral disponível em dgsi.pt). Afirma-se, invertendo o prisma, neste último aresto que “está excluída a responsabilidade do Estado pelo erro banal ou comum, por actos de simples interpretação do direito e/ou de apreciação e valoração dos factos, com uma intenção prática de uma racionalidade prático-normativa, porque inseridos na essência da especificidade da função jurisdicional, que, por isso, deve ser salvaguardada”.
[28] Recorde-se que a interpretação do Supremo vai no sentido de que o erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado quando seja grosseiro, evidente e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativa de uma actividade dolosa ou gravemente negligente, o que não é manifestamente o caso dos autos.
[29] Cfr., por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.10.2014 (Proc. 1668/12.0TBSLB.L1.S1) e de 24.02.2015 (Proc. 2210/12.9TVLSB.L1.S1). Em ambos se considera que o direito à indemnização deve ser recusado quando a decisão judicial danosa seja insusceptível de recurso e, por essa forma, não tenha sido revogada por Tribunal superior.