Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
757/18.2JACBR.C1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO CLEMENTE LIMA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
MOTIVO FÚTIL
FRIEZA DE ÂNIMO
REFLEXÃO SOBRE OS MEIOS EMPREGADOS
ESPECIAL CENSURABILIDADE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO O RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

I - Não pode considerar-se que o arguido agiu por motivo irrisório ou insignificante, posto que todo o iter delitivo vem motivado por uma quezília precedente e persistente, entre o homicida e a vítima, seu irmão, por razões de partilhas, designadamente da utilização de um barracão agrícola que divide em duas parcelas, cultivadas por cada um, um terreno por partilhar, tendo a vítima, no dia precedente, colocado uma máquina agrícola de tal modo que impedia a passagem do arguido para a parcela de seu cultivo, vindo no dia seguinte a envolver-se em confronto físico, no decurso do qual, quando a vítima já se afastava, o arguido disparou o tiro que veio a tirar a vida ao irmão
II - O motivo do agir não pode ter-se como fútil, para os efeitos prevenidos na al. e) do n.° 2 do art. 132.° do CP, do passo em que, na subjectividade do arguido, o facto de, acentuando a quezília sobre a posse do terreno, a vítima lhe ter vedado o acesso à parcela que cultivava, não a justificando, explica a acção delitiva.
III - Verifica-se a qualificativa prevista na al. j) do n.° 2 do art. 132.° do CP, quando, traduzida na percepção, pelo arguido, da colocação da fresa, pela vítima, junto ao portão do falado barracão, que impedia a passagem para a metade do terreno que o arguido cultivava, do sequente telefonema deste à irmã de ambos, dizendo que dava «um tiro nos cornos» ao irmão, da deslocação, no dia seguinte, também pelo fim da tarde, do arguido ao terreno, munido da pistola examinada nos autos, com que. disparou sobre o irmão, que, num primeiro momento, não atingiu, vindo depois ambos a envolver-se em confronto físico, até que, quando a vítima se apartava e afastava do arguido, este, ainda por terra, disparou o tiro homicida sobre o peito daquele, assim lhe tirando a vida.
IV - Diante de tal materialidade, não pode deixar de considerar-se que a imagem global dos factos, a leitura compreensiva dos factos provados, no contexto do conflito precedente, da atitude assumida e verbalizada no dia anterior, na deslocação ao local da contenda, munido da pistola, os disparos sucessivos sobre a vítima, revela a persistência na reflexão sobre a intenção de matar e mesmo na execução dos disparos, uma certa insensibilidade e indiferença relativamente à vida do seu irmão, exteriorizando a exigência de especial censurabilidade.
V - Desse hiato temporal entre a ideação do acto delitivo, do meio a usar e a passagem à acção, por seu intermédio, titula firmeza, propósito, tenacidade, irrevogabilidade da decisão, tal seja, uma forte vontade criminosa, que não pode deixar de conter-se na regra prevenida no n.° 1 do art. 132.°, do CP, posto que, à luz da ponderação global do facto, espelha uma censura agravada, seja na medida em que tal circunstancialismo repercute um mais acentuado desvalor do facto (especial censurabilidade).
VI - Em face de tal contexto delitivo, a pena parcelar de 17 anos de prisão (na moldura abstracta de 12 a 25 anos) relativa ao crime de homicídio, concretizada na instância, deve ser reduzida a 16 anos de prisão, e a pena única ali aplicada, de 17 anos e 6 meses de prisão (na moldura abstracta de 17 anos a 18 anos e 6 meses de prisão), deve agora (na moldura abstracta de 16 anos a 17 anos e 6 meses de prisão), ser reduzida a 16 anos e 6 meses de prisão, relevando do cúmulo com a pena de 1 anos e 6 meses de prisão aplicada pelo crime de detenção de arma proibida, penas que se figuram adequadas e proporcionadas, de molde a satisfazer as fortes exigências de prevenção geral, sem afectar as necessidades de prevenção especial, sendo ademais permitidas pela medida da culpa.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 757/18.2JACBR.C1.S1

Recurso penal

Acordam, precedendo conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Nos autos de processo comum em referência, o arguido, AA, foi condenado, em 1.ª instância, nos seguintes termos (transcritos do acórdão do Tribunal da Relação …. referido infra, e na parcela que releva para apreciação do presente recurso):

«A) - absolver o arguido AA da prática do crime de ameaça agravado que lhe era imputado neste processo bem como da agravante prevista no n.º 3, do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23.02 quanto ao crime de homicídio qualificado;

B) - condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e concurso efectivo de:

B.1 - um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e j), ambos do Código Penal, na pena de dezassete anos de prisão;

B.2 - um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (Regime das Armas e suas Munições), na pena de um ano e seis meses de prisão;

C) - condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de dezassete anos e seis meses de prisão efectiva».

2. O arguido, como as assistentes/demandantes civis, BB, CC e DD, interpuseram recurso daquele acórdão para o Tribunal da Relação ……, que veio a julgar os recursos improcedentes, por acórdão de ……. de 2020.

3. O arguido interpôs recurso do acórdão do Tribunal da Relação …… para o Supremo Tribunal de Justiça.

Extrai da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

«1. O arguido não se conforma com a condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado, por não se terem verificado os elementos subjectivos do tipo.

2. Pois, o arguido é inocente.

3. Mais, o recorrente não agiu com frieza de ânimo, não tendo planeado nem persistido na ideia da execução da morte, não sendo igualmente possível aferir de que tenha persistido nessa intenção - de matar o seu irmão, por mais de 24 horas, pelo que não se deveria qualificar a sua conduta ao abrigo da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

4. Desde logo porque não se vislumbram circunstâncias que revistam de especial perversidade ou censurabilidade na sua actuação, na ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.

5. Não se vislumbra que a actuação do recorrente tenha sido causada por um motivo fútil.

6. Se tal não se entender, e atento o facto de o falecimento da vítima ter ocorrido em resultado de uma luta entre irmãos, deveria o recorrente ser condenado pela prática do crime de homicídio por negligência.

7. O cometimento do crime de homicídio por negligência é punido com uma pena de prisão até 3 anos, sendo que se a mesma for grosseira é punido com uma pena até 5 anos.

8. Atentas as circunstâncias do caso, o arguido deveria ser punido com a pena de prisão de 5 anos, caso assim não se entenda:

9. Deveria a conduta do recorrente ser desqualificada e o mesmo ser condenado pelo crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal.

10. Ora, a moldura prevista no art. 131.º é de 8 anos a 16 anos de prisão, pelo que atentas as circunstâncias concretas o arguido deveria ter sido punido numa pena de prisão de 13 anos.

11. Caso assim não se entenda, persistindo-se na condenação do arguido pelo cometimento de um crime de homicídio qualificado, p.e p. pelo artigo 132.º, n.º 1 e 2, a. e) e j), sempre se dirá que:

12. O tribunal a quo violou o disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal, ao fixar a medida da pena com base num grau de ilicitude “elevado”.

13. In casu, o grau de ilicitude não é reduzido, mas também não é elevado. Apenas um dos disparos teve caráter fatal. Apesar do sofrimento da vítima, não houve especiais requintes de malvadez que visassem prolongar o sofrimento do infeliz falecido, antes de lhe causar a perda da vida.

14. Deste modo, apenas se pode concluir que o grau de ilicitude é moderado. Nem reduzido nem elevado.

15. O acórdão recorrido viola a alínea a) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal também porque cingiu a avaliação do modo de execução pela seguinte circunstância: contexto de uma contenda decorrente de desentendimento por causa de terreno e barracão integrado em herança“, não ponderando as agressões mútuas que existiram, aquando a luta entre os intervenientes.

16. Dos factos provados retira-se que havia animosidade entre irmão, sendo que este provocava que o arguido, nomeadamente de que lhe vedada o acesso ao barracão.

17. Não pode, nem deverá o tribunal ignorar que o arguido não apresenta antecedentes criminais, em mais de 60 anos de vida; estava inserido na comunidade onde residia. Mais, o arguido desde tenra idade começo a trabalhar (14 anos) para ajudar a família, e criou sozinho a sua filha EE, actualmente com … anos de idade.

18. Nada mais de relevo consta dos factos provados, e com estes elementos não se pode concluir por um individuo perigoso para si e para a comunidade.

19. Ora, o facto de o arguido ser primário, estar inserido na sociedade, integrado familiar e socialmente, deveria ter sopesado para fazer baixar as exigências de prevenção especial.

20. Como tal, o acórdão não observou o disposto na alínea d) do nº 2 do artigo 71º do CP.

21. A pena aplicada ao arguido foi determinada tendo em consideração que ele quis “enganar o tribunal quanto à sua actuação”, mas nada disso figura nos factos provados. Tratou-se de apreciar a conduta posterior ao facto, conforme estipula a alínea e) do nº 2 do artigo 71º do CP, pelo que o tribunal desrespeitou a alínea e) do nº 2 do artigo 71º do CP.

22. Na operação de fixação da medida concreta da pena, atende-se ao disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal.

23. O limite máximo fixa-se de acordo com a culpa do agente. O limite mínimo situa-se de acordo com as exigências de prevenção geral. Assim, reduz-se a amplitude da moldura abstratamente associada ao tipo penal em causa.

24. A pena concreta é achada considerando as exigências de prevenção especial e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.

25. A moldura penal abstrata é de 12 a 25 anos de prisão.

26. A pena não pode ultrapassar a medida da culpa, sob pena de se atingir a dignidade da pessoa humana, pelo que tal limite encontra consagração no artigo 40º do Código Penal.

27. O arguido só compareceu naquele local, pra tratar das terras com a sua companheira.

28. Nada faria prever que o arguido se fosse envolver em confronto físico com a vítima

29. O arguido fez vários disparos, sendo apenas um apto a causar a morte.

30. A medida da culpa do arguido impõe que a pena não seja superior a 15 anos de prisão.

31. As exigências de prevenção geral não justificam que o limite mínimo ultrapasse o que é estabelecido pela moldura abstrata: 12 anos de prisão.

32. Os antecedentes criminais do arguido não tornam intensas as necessidades de prevenção especial.

33. Pelas razões já expostas, no que respeita às circunstâncias que não integram o tipo e que depõem a favor ou contra o arguido, há que afastar as seguintes, que constam do acórdão em crise: grau de ilicitude elevado; modo de execução, sentimentos manifestados no cometimento do crime, desprezo pela vida alheia por uma pessoa que tinha nas veias o mesmo sangue, não assumir os seus comportamentos antes tentando enganar o tribunal quanto à sua actuação.

34. Há, sim, que considerar o que figura na matéria de facto dada como provada e que se enquadram nomeadamente nas elencadas no nº 2 do artigo 71º do CP.

35. O grau de ilicitude há-de ter-se por moderado, conforme anteriormente exposto.

36. O modo de execução não depõe contra o arguido. Tudo decorreu no âmbito de um confronto físico com a infeliz vítima.

37. A intensidade do dolo situa-se no seu mais elevado patamar, conforme se afirma no douto acórdão.

38. Relativamente aos motivos, estão obviamente em conexão com desentendimento quanto ao barracão, mas também quanto às condutas provocatórias do irmão.

39. Das condições pessoais do arguido, retiram-se as várias ilações constantes do douto acórdão do acórdão: trabalhador, dedicação e empenho quanto à filha, referenciação reservada.

40. A medida da culpa não permite que a pena ultrapasse os 15 anos de prisão.

41. As necessidades de prevenção geral não tornam lícito elevar o limite mínimo resultante da moldura abstrata do tipo: 12 anos.

42. As intensas exigências de prevenção geral associadas a um conjunto de circunstâncias que pesam mais a favor do arguido do que contra ele, levam a que a pena concreta se fixe em medida não superior a 15 anos.

43. Os artigos 40º, 71º, 131º e 132.º do Código Penal implicam uma condenação a pena não superior a 15 anos de prisão.

44. Condenando o arguido a 17 anos, o tribunal a quo violou o disposto nesses preceitos legais.»

4. O recurso foi admitido por despacho de ……de 2020.

5. O Ministério Público no Tribunal da Relação…… respondeu ao recurso, defendendo a confirmação do julgado.

Extrai da respectiva minuta as seguintes (transcritas) conclusões:

«1. Quanto às questões de direito, atenta a inalterada matéria de facto, é inaplicável qualquer tentativa de subsunção ao tipo legal do homicídio por negligencia (art.º 137º do C. P

2. Também não merece censura a subsunção legal dos factos provados ao tipo legal do art.º 131º e 132º, n.º 1 e 2 als. e) e j) do C. P.

3. Bem assim, não merece censura a determinação em concreto da medida da pena de prisão aplicada, a qual se mostra devidamente ponderada, estando ajustada à gravidade dos factos e à personalidade do arguido.»

6. As assistentes/demandantes civis responderam ao recurso, defendendo a confirmação do julgado.

Extraem da respectiva minuta as seguintes (transcritas) conclusões:

«1) Em face da matéria considerada provada pelas instâncias, é evidente que tem de manter-se a condenação do arguido/recorrente pelo crime de homicídio qualificado, verificando-se, pelo menos, o preenchimento das alíneas e) e j) do n.º 2 do art. 132.º do CP, bem como a especial censurabilidade e perversidade exigida pelo n.º 1 do mesmo normativo, sempre conjugado com o artigo 131.º do CP;

2) A determinação da medida da(s) pena(s) aplicada(s) em concreto, bem como a pena única, não pode/deve ser revista em baixa, em função dos critérios legais e da fundamentação que ambas as instâncias plasmaram, pois a(s) pena(s) aplicada(s), a pecar, pecará(ão) por defeito e não por excesso.»

7. O Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça entende, por um lado, duvidoso que a conduta do arguido englobe o preenchimento da alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, ainda que se verifique uma actuação com frieza de ânimo, nos termos e para os efeitos prevenidos no artigo 132.º n.º 2 alínea j), do CP, e, por outro lado, que são de manter, quer a pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado, quer a pena única.

8. O objecto do recurso, tal como demarcado pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, reporta ao exame das seguintes questões:

(i) da qualificação jurídica dos factos;

(ii) da medida da pena parcelar (atinente ao crime de homicídio) e da pena única.

II

9. Os Senhores Juízes do Tribunal da Relação, recorrido, sedimentaram, como provados, os seguintes factos (transcritos, na parcela que importa ao conhecimento do objecto do recurso):

«1- O arguido AA e FF são irmãos, sendo ambos filhos de GG e de HH.

2- O arguido AA e FF vinham mantendo um diferendo devido à posse e uso de um barracão agrícola localizado na Rua …………, nas imediações da localidade de …………, ………...

3- O referido barracão, que estava a ser utilizado pelos dois irmãos, divide uma parcela de terreno cuja propriedade ainda se encontra registada em nome do falecido pai de ambos.

4- Aquela parcela de terreno era cultivada em cada um dos lados do aludido barracão pelo arguido AA e por FF, apesar de metade de cada uma dessas parcelas pertencer às duas irmãs de ambos.

5- Assim, a primeira parcela de terreno, era cultivada por FF enquanto a segunda parcela, após o barracão, era cultivada pelo arguido AA.

6- No dia ……. de 2018, ao fim da tarde, o arguido AA encontrava-se no referido terreno e verificou que o seu irmão FF tinha encostado uma fresa ao portão do referido barracão.

7- Ainda nesse mesmo dia, o arguido AA telefonou à sua irmã II queixando-se de que o irmão FF tinha colocado uma fresa a impedir a passagem e disse que lhe dava “um tiro nos cornos”.

8- No dia ……. de 2018, cerca das 18:00 horas, o arguido AA, fazendo-se transportar no seu tractor de marca “……”, de matrícula …………, seguindo juntamente com a sua companheira JJ, deslocou-se para o aludido terreno, mantendo o propósito de tirar a vida ao seu irmão FF.

9- O arguido AA levava na caixa de ferramentas, na parte lateral direita daquele tractor, uma pistola de alarme, adaptada para calibre 6,35mm e que ostenta na face lateral esquerda as referências “……” e “6,35mm” e na face lateral direita a referência “…….”.

10- Chegados ao local, cerca das 18:20 horas, o arguido viu o seu irmão FF estava junto do seu tractor a comer e a beber uma cerveja encontrando-se por perto LL com uma máquina ceifeira preparando-se para começar a cortar milho do FF.

11- Então, o arguido parou o seu tractor, retirou da caixa de ferramentas a referida pistola, desceu do tractor e disparou dois tiros na direcção do seu irmão FF.

12- Perante esses disparos, que não o atingiram, FF arremessou na direcção do arguido a garrafa de cerveja que estava a beber, bem como algumas espigas de milho que ali se encontravam.

13- Acto contínuo, FF avançou na direcção do arguido AA e envolveram-se os dois em confronto físico, tentando aquele retirar a pistola a este.

14- Ao mesmo tempo, JJ tentou cessar o confronto, procurando imobilizar o arguido AA, mas sem qualquer sucesso.

15- No decurso do envolvimento/confronto físico, o arguido AA e o seu irmão FF movimentaram-se para um terreno contíguo, cujo milho já tinha sido cortado.

16- Enquanto decorreu tal envolvência física entre ambos, o arguido AA manteve a referida pistola empunhada.

17- A certa altura, FF libertou-se e levantou-se.

18- Quando FF já estava de pé, a cerca de dois metros, a recuar, para se afastar, o arguido AA, ainda no chão, disparou em direcção daquele atingindo-o na região torácica esquerda.

19- Por força do impacto do tiro, FF caiu.

20- De imediato, o arguido AA levantou-se e foi envolver-se com FF ficando os dois deitados, em posição lateral, com o arguido por cima e ambos com as mãos na arma.

21- Então, MM e NN, que tinham chegado ao local momentos antes, mas não se aperceberam do tiro devido ao barulho da máquina, viram os dois em disputa, aproximaram-se e decidiram intervir.

22- Apercebendo-se que a pistola tinha ficado encravada, MM conseguiu retirar a mesma e levou-a consigo para um barracão do seu pai situado nas proximidades, enquanto o NN tentava contactar o “112” através do telemóvel da JJ.

23- Verificando que o irmão FF estava completamente desfalecido, o arguido AA abandonou o local, seguindo de tractor para a sua residência.

24- Devido ao disparo efectuado com a dita arma contra o peito do seu irmão FF, o arguido causou-lhe as diversas lesões traumáticas, verificadas na autópsia:

F. Exame do Hábito Externo:

Tórax: Orifício sensivelmente ovalar, no terço proximal (medial) do hemitórax esquerdo (anterior), com um centímetro por meio centímetro de maiores eixos, com orla acastanhada, mais extensa lateral e inferiormente, medindo nessa localização sete milímetros de maior eixo, com equimose arroxeada em redor com seis milímetros de comprimento. Este orifício distava do mamilo esquerdo onze centímetros e meio, do ponto mediano da fúrcula esternal seis centímetros e meio, e do calcanhar esquerdo cento e quarenta e dois centímetros;

Orifício no terço proximal (lateral) do hemitórax direito (anterior), irregular, com um centímetro por meio centímetro de maiores eixos, com equimose arroxeada localizada superiormente, com um centímetro de diâmetro. Este orifício distava do mamilo direito dez centímetros, do ponto mediano da fúrcula esternal quinze centímetros e do calcanhar esquerdo cento e trinta e nove centímetros; G. Exame do Hábito Interno:

Tórax

Paredes: Duas soluções de continuidade, em correspondência com o descrito no Hábito Externo, no tecido adiposo, tecidos celular subcutâneo e muscular;

Infiltração sanguínea no tecido adiposo e celular subcutâneo adjacente ao orifício descrito no hemitórax direito. Infiltração sanguínea do músculo grande peitoral direito, transversal, estendendo-se da região esternal ao orifício no hemitórax direito;

Infiltração sanguínea do tecido adiposo, tecido celular subcutâneo e músculo grande peitoral esquerdo a nível do orifício no hemitórax esquerdo;

Clavícula, costelas e cartilagens direitas: Ausência de sinais de fracturas. Solução de continuidade circular no 1.º espaço intercostal, pelo arco anterior, com infiltração sanguínea. Infiltração sanguínea no 1.º espaço intercostal pelo arco médio;

Clavícula, costelas e cartilagens esquerdas: Fractura da 1.ª costela sensivelmente semicircular com concavidade inferior, infra-clavicular a nível do arco anterior, rodeada de infiltração sanguínea. Infiltração sanguínea no 1º e 2º espaços intercostais pelo arco médio;

Mediastino: Infiltração sanguínea do mediastino (superior e anterior) com presença de trajecto em canal, fazendo comunicação com a cavidade pleural direita, entre as duas soluções de continuidade descritas no Hábito externo;

Pericárdio e cavidade pericárdica: Infiltração sanguínea do saco pericárdico (metade superior). Cavidade pericárdica continha cerca de 5 mililitros de líquido amarelo citrino; folhetos lisos e brilhantes sem soluções de continuidade;

Pulmão direito e pleura visceral: Aspecto colapsado; amtracose ligeira; parênquima seco em todos os lobos; sinal da digito-pressão negativo (inexistência de friabilidade pulmonar); solução de continuidade arredondada no lobo superior (na transição medial do segmento apical com o segmento anterior) e de outra também na mesma zona, mas localizada ligeiramente mais lateralmente que a anterior, com zona hemorrágica adjacente;

Pulmão esquerdo e pleura visceral: Antracose ligeira; parênquima com ligeiro edema em todos os lobos; sinal da digito-pressão negativo (inexistência de friabilidade pulmonar).

Esófago: Infiltração sanguínea peri-esofágica no terço médio.

25- Tais lesões foram a causa da morte de FF e foram produzidas pelo referido projéctil disparado pela arma do arguido.

26- Além das referidas lesões traumáticas torácicas, o arguido também provocou ao seu irmão FF, lesões traumáticas ao nível da cabeça, da região lombar e dos membros.

27- Ainda no dia …… de 2018, pelas 22:00 horas, foi realizada uma busca ao veículo automóvel do arguido AA, de marca “……”, modelo “…” e matrícula ………………, o qual se encontrava estacionado no Largo …………, na localidade de …………….

28- No decorrer da referida busca foi apreendido ao arguido AA um boxer (vulgarmente designada de “soqueira”), em ferro forjado de fabrico artesanal, próprio para empunhar e potenciar o efeito de agressão a soco, o qual apresenta 14,5 cms de comprimento por 8,2 cms de largura, 1,3 cms de espessura e um peso bruto aproximado de 477, 62 gramas; apresenta ainda quatro protuberâncias em bico na zona dos nós dos dedos e uma extremidade pronunciada ao nível superior/inferior com cerca de 3,5 cms também em bico.

29- O arguido AA agiu motivado por um diferendo quanto à utilização de um barracão agrícola e, bem assim, com o propósito de, com a conduta descrita, tirar a vida a FF, seu irmão, tendo persistido nesse propósito por mais de 24 horas.

30- O arguido bem sabia que a pistola, por si utilizada, era adequada para causar a morte ao irmão e que a mesma havia sofrido alterações.

31- O arguido sabia ainda que não possuía licença de uso e porte de arma e que não podia deter consigo a referida pistola, nem tinha quaisquer motivos para a deter e bem sabia que a mesma era passível de ser utilizada como instrumento de agressão contra a vontade de qualquer pessoa com quem viesse a entrar em litígio.

32- O arguido AA quis ter na sua posse, a referida arma de fogo que lhe foi apreendida, bem conhecendo as suas características e apesar de saber que a mesma não se encontrava manifestada e registada.

33- Além disso, o arguido sabia que a detenção, aquisição, transporte e guarda da referida pistola é proibida e punida por lei.

34- O arguido AA bem sabia ainda que não podia deter consigo o referido boxer, nem tinha quaisquer motivos para o deter e bem sabia que o mesmo era passível de ser utilizado como instrumento de agressão contra a vontade de qualquer pessoa com quem viesse a entrar em litígio.

35- O arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei.

36- No registo criminal do arguido AA nada consta.

37- O arguido AA nasceu a …… de 1958, em ………, ………, sendo o mais velho de quatro filhos de um casal em que o pai era …… e a mãe proprietária de uma pequena ……...

38- O arguido AA concluiu o 6º ano de escolaridade, com 14 anos, e abandonou a escola para começar a trabalhar e contribuir para a economia familiar.

39- Então, o arguido AA começou a trabalhar como aprendiz de bate-chapas na empresa “………”, em ……………, funções que desempenhou durante quatro anos.

40- Posteriormente, trabalhou como motorista de pesados e na manutenção de automóveis em várias empresas.

41- Aos …. anos de idade, o arguido AA iniciou uma relação amorosa com OO, então com …. anos, empregada num……, a qual resultou em união de facto, que durou seis anos; desta relação nasceu uma filha, EE, actualmente com …. anos, criada pelo arguido após a separação do casal.

42- Em ……, o arguido iniciou nova relação afectiva com a actual companheira, JJ, presentemente com …… anos de idade.

43- Aos …. anos de idade, na sequência de uma intervenção cirúrgica a uma hérnia discal que o deixou incapacitado para desenvolver aquela actividade laboral, o arguido foi despedido da empresa “…………”, em …………, não voltando a trabalhar nesta área.

44- Nestas circunstâncias, o arguido frequentou uma formação profissional de ……, concluindo o 9º ano de escolaridade.

45- O arguido AA tentou iniciar actividade profissional nessa área mas não conseguiu pelo que se dedicou a trabalhos na agricultura, nas terras pertencentes à família ou executando trabalhos para terceiros com um tractor agrícola que possuía.

46- Em …… de 2018, o arguido vivia com JJ  em …………………; moravam no primeiro andar de uma casa de construção antiga, propriedade da mãe do arguido que residia no rés-do-chão.

47- O arguido e a companheira não estavam empregados, beneficiando do rendimento social de inserção; o arguido também realizava alguns arranjos como bate-chapas e plantava milho que depois vendia, enquanto tirava curso de condução de tractores e a companheira frequentava uma formação para cuidar de idosos.

48- No meio de residência, os factos descritos nos autos suscitaram surpresa e consternação junto dos vizinhos que conheciam a conflitualidade antiga entre os irmãos motivada por partilhas.

49- O arguido é considerado, no meio onde reside, como reservado, nervoso e impulsivo, sobretudo quando consome bebidas alcoólicas em excesso.

50- O arguido AA mantinha relações pacatas com a comunidade circundante mas existiam quezílias com vizinhos cujas propriedades confinavam com as suas.

51- O arguido AA demonstra aptidões básicas ao nível da capacidade de aprendizagem, capacidade de utilização dos conhecimentos e capacidade de lidar com fontes de informação escrita; demonstra, igualmente, capacidades de pensamento e raciocínio crítico, como competências de resolução de problemas pessoais.

52- O arguido AA apresenta dificuldades ao nível da capacidade de resolução de conflitos, comunicação, negociação, descentração e auto-controlo.

53- O arguido AA ingressou no Estabelecimento Prisional ……, em ...…2018, preso preventivamente à ordem do presente processo.

54- Entre ……. de 2018 e …… de 2019, o arguido frequentou o curso …… dinamizado pelo Centro Protocolar de Formação Profissional para o Sector da Justiça; presentemente, encontra-se na situação de inactivo.

55- O seu comportamento em meio prisional é adequado não registando infracções disciplinares e mantendo uma relação assertiva e educada com funcionários e restante população reclusa.

56- No estabelecimento prisional, o arguido AA recebe visitas da companheira, filha, genro, netos e amigos com regularidade.

57- O arguido AA não manifesta arrependimento.

[…]»

10. Em vista de tal materialidade, que não evidencia vício ou invalidade de que cumpra conhecer (artigo 434.º, do Código de Processo Penal), importa examinar as questões de jure suscitadas pelo recorrente.

Vejamos.

11. Como acima se deixou editado (§ 8), a primeira questão suscitada pelo arguido respeita à qualificação jurídica dos factos.

12. No seu dizer, (i) o arguido devia ter sido condenado pela prática de um homicídio por negligência, «atento o facto de o homicídio ter ocorrido em resultado de uma luta entre irmãos», e (ii) não se verificam as qualificativas previstas nas alíneas e) e j) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, aduzindo, a respeito, que «3. Mais, o recorrente não agiu com frieza de ânimo, não tendo planeado nem persistido na ideia da execução da morte, não sendo igualmente possível aferir de que tenha persistido nessa intenção - de matar o seu irmão, por mais de 24 horas, pelo que não se deveria qualificar a sua conduta ao abrigo da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. 4. Desde logo porque não se vislumbram circunstâncias que revistam de especial perversidade ou censurabilidade na sua actuação, na ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto. 5. Não se vislumbra que a actuação do recorrente tenha sido causada por um motivo fútil.»

13. A tanto opõe o Ministério Público, na instância, por um lado, que «a matéria de facto provada não permite enquadrar ou tipificar os elementos do crime de homicídio por negligência, de acordo com o disposto no art.º 137º do CP» e, por outro lado, que «não merece censura a subsunção legal dos factos provados ao tipo legal do art.º 131º e 132º, n.º 1 e 2 als. e) e j) do CP.»

Já o Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, é de entender que a prática delitiva deve ser subsumida, tão apenas, à qualificativa prevista na alínea j), que não àquela prevista na alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, ponderando que «o contexto que precedeu o mesmo, designadamente a circunstância de  a vítima ter colocado uma fresa [máquina rotativa para cortar] junto ao portão do  barracão utilizado  pelo arguido, impedindo a sua passagem para o campo circundante por si cultivado, base  de subsistência do recorrente, situação que detonou a intenção do arguido em retirar a vida ao seu irmão FF, afigura-se não poder ser enquadrado como algo de  insignificante,  que não tem qualquer relevo, que não chega a ser motivo, por forma a considerar-se preenchido exemplo padrão previsto na alínea e) do nº2 do art. 132º do CP (motivo torpe ou fútil).»

14. Em matéria de qualificação jurídica dos factos, os Senhores Juízes do Tribunal da Relação, recorrido, ponderaram nos seguintes termos (transcritos, na parcela que releva para o conhecimento do objecto do presente recurso):

«No crime de homicídio qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º do CP, a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado.

Objectivamente, o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no artigo 131º, funcionando a qualificação na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão.

Assim, nos termos do n.º 1 do artigo 132º, a qualificação consiste em matar “em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”, apresentando o n.º 2 um conjunto de circunstâncias (os designados exemplos padrão, meramente indicativos) que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade e, desse modo, conduzir à qualificação do crime de homicídio.

Portanto, as circunstâncias referidas nas diversas alíneas do n.º 2 do citado artigo 132º são meramente exemplificativas, porquanto ali se diz entre outras e, enquanto elementos da culpa, não funcionam automaticamente, mas apenas se no caso concreto revelarem especial censurabilidade ou perversidade do agente.

Acerca dos conceitos de censurabilidade ou perversidade, escreveu Teresa Serra: “Dominantemente, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.

A ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No art. 132º, trata-se duma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que pode revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.

Importa salientar que a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do art. 132º ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou de outra circunstância susceptível de preencher o chamado Leitbild dos exemplos padrão.”

A especial perversidade tem em vista uma atitude com base em motivos ou sentimentos profundamente rejeitados pela mesma sociedade – cfr. Ac. do STJ de 12-6-2003, in www.dgsi.pt.

Ora, sobre as circunstâncias qualificativas do homicídio [als. e) e j) do n.º 2] por que o arguido se encontrava acusado considerou a decisão recorrida:

«tendo em conta o contexto da actuação do arguido, a motivação assente na divergência quanto à utilização do barracão, o facto de se tratar de um irmão e ser um terreno herdado dos pais, mostra a “futilidade” do motivo bem como a desproporcionalidade e falta de justificação do crime praticado pelo arguido.

Por isso, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, se considera que se mostra preenchida a previsão desta alínea e) no segmento “motivo fútil”.

Aceitando a definição do Tribunal da Relação de Guimarães, pode dizer-se que a circunstância qualificativa “frieza de ânimo” está relacionada com o processo de formação da vontade de planear e persistir na execução da morte, implicando a reflexão e um amadurecimento temporal sobre os meios e o modo de realizar o crime e, por isso, uma actuação insensível “com indiferença pela vida humana”, com a escolha e o estudo ponderados, calmos e imperturbavelmente reflectidos dos meios que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam acentuadamente as possibilidades de defesa da vítima.

O comportamento do arguido, as conversas anteriores e o modo como se aproximou do irmão mostram não só a frieza de ânimo como a persistência da intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.

Assim, se considera que a actuação do arguido também se enquadra nesta alínea j), do nº 2, do artigo 132º.

Verifica-se, nestes termos, o cometimento do imputado crime de homicídio qualificado previsto nos termos conjugados das alíneas e) e j) do nº 2, do artigo 132º.»

Afigura-se-nos correcta a apreciação do tribunal de 1ª instância. Com efeito,

Motivo fútil é o motivo de importância mínima. Será também o motivo “frívolo, leviano, a ninharia” que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida, o que se apresenta notoriamente desadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática. - Ac. STJ, de 18-1-2012, proc. 306/10.0JAPRT.P1.S1 Ou, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, motivo torpe ou fútil “significa que o motivo de actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana”.

In casu, tal como foi dado como provado, o arguido e a vítima mantinham um diferendo sobre a posse de um barracão agrícola que ambos utilizavam e, na véspera dos factos o arguido verificou que o irmão FF tinha encostado uma fresa ao portão de tal barracão, o que impedia a passagem.

E foi ainda neste dia, que o arguido ligou à irmã II, queixando-se da colocação da fresa, dizendo-lhe que ia matar o FF.

Acontece, que o arguido teria uma “fixação” com este barracão, há muitos anos. Pois, como relatou a sua irmã, a test. II “sabia que ele tinha uma arma, por causa de um incidente, que houve há uns anos, ainda o pai era vivo, de ele ter apontado uma arma ao pai, por causa de o pai ter aberto um cadeado nesse mesmo barracão”; esta testemunha não presenciou o irmão a apontar a arma ao pai (08:20 do seu depoimento), mas tal, foi presenciado, então, pela test. PP prima, que conhecia os irmãos desde pequenos), como declarou em audiência (02:15 do seu depoimento).

Ainda que o barracão fosse essencial para a sua actividade agrícola, como alega o recorrente, o mesmo também era necessário para o irmão, sendo óbvia a constatação de que o arguido teve uma reacção completamente desproporcional; houve uma “desproporção manifesta” entre a gravidade do facto e o motivo que o impeliu à acção. Pelo que, sendo esse o motivo de actuação, o comportamento do arguido revelou-se repugnante, gratuito, e com profundo desprezo pelo valor da vida humana, no caso o seu irmão.

Na al. j) do n.º 2 do artigo 132.º do CP está prevista a premeditação, tendo o legislador reunido neste conceito a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 h. A agravante encontra-se conexionada com a actuação calma ou imperturbada reflexão, no assumir pelo agente da resolução de matar a que se alia a firmeza dessa mesma resolução criminosa. - Ac. STJ de 19-2-2014, proc. 168/11.0GCCUB.S1

É entendimento pacífico do STJ que a qualificativa prevista na al. j) consubstancia-se em agir “de forma calculada, planeada quanto ao local e ao momento, com imperturbada calma, revelando-se indiferença e desprezo pela vida, firmeza, tenacidade, sangue frio, um lento, reflexivo e cauteloso processo na execução e preparação do crime de forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humana.” - Ac. STJ de 30-5-2019, proc. 21/17.4JAFUN.L1.S1

E, no que respeita à intenção de matar por mais de 24 h, relativamente à qual o recorrente afirma Não se saber se mediaram mais ou menos de 24 horas entre a conversa com a irmã II e o disparo fatal, como sublinha QQ (ob. cit. pág. 80) “o número de horas é meramente indicativo, o que se pretende demonstrar é que decorre tempo suficiente para que o agente descarregue as suas emoções e medindo o alcance e as consequências da sua actuação recue nas suas intenções”.

Revertendo ao caso dos autos, do acervo factológico provado resulta que o arguido formou o propósito de tirar a vida ao irmão FF, em função dos conflitos que já existiam; daí que, quando chegou ao local, com a sua companheira, indo munido de uma arma, ao aperceber-se que o irmão ali se encontrava, nada lhe disse, desceu do tractor e, a cerca de 3 metros disparou dois tiros na direcção do irmão, não lhe tendo acertado. Depois, o id. FF atirou-lhe umas espigas e foi ao encontro do arguido, e andaram embrulhados um com o outro, no chão, não tendo o FF conseguido retirar-lhe a arma; entretanto, o FF levantou-se, já estava a recuar para sair dali, quando o arguido, a cerca de dois metros, disparou na sua direcção, atingindo-o na zona torácica esquerda.

Ou seja, desde o momento em que o arguido telefonou à irmã, dizendo-lhe que ia matar o FF e que lhe daria um tiro nos cornos, o que veio a acontecer na tarde do dia seguinte, o arguido persistiu na intenção de matar.

Entendemos, assim, que também esta qualificativa se verifica.

Termos em que, face à factualidade dada como provada, mostra-se correcta a condenação do arguido/recorrente pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131º e 132º, n.º 2, als. e) e j), do Código Penal.»

15. Vejamos das razões trazidas pelo arguido recorrente à apreciação deste Tribunal.

16. Importa, antes de tudo, afastar a pretextada subsunção dos factos à previsão contida no artigo 137.º, do CP (homicídio por negligência), na medida em que, à luz do disposto nos artigos 14.º e 15.º, do CP, e em vista da factualidade sedimentada no Tribunal recorrido, designadamente nos pontos 7 a 9, 11, 18, 24, 25 e 35, que revela, com nitidez, uma conduta dolosa (avulta que o disparo é efectuado, não enquanto o arguido e a vítima lutavam entre si mas já «quando a vítima estava de pé, a cerca de dois metros, a recuar, para se afastar» – ponto 18 do rol de factos julgados provados), não pode de todo conceder-se que a prática do crime de homicídio em referência tenha ocorrido por negligência, sendo ademais que o julgamento da matéria de facto levado nas instâncias não pode ser sindicado pelo Supremo Tribunal de Justiça, como decorre do disposto no artigo 434.º, do Código de Processo Penal.

17. Assim, nesta parcela, o recurso não pode lograr procedência.

18. Quanto à qualificativa prevista na alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, vejamos.

19. Nos termos do n.º 1 do artigo 132.º, do CP (homicídio qualificado) «se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos».

Dispõe a alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito que «é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente […] e) «ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil».

20. No caso, o Tribunal de 1.ª instância, em tese confirmada pelo Tribunal da Relação, recorrido, que o arguido agiu por «motivo fútil», revelador de especial censurabilidade.

Ponderou-se, a respeito, nos seguintes transcritos (cfr. acima) termos:

«In casu, tal como foi dado como provado, o arguido e a vítima mantinham um diferendo sobre a posse de um barracão agrícola que ambos utilizavam e, na véspera dos factos o arguido verificou que o irmão FF tinha encostado uma fresa ao portão de tal barracão, o que impedia a passagem.

E foi ainda neste dia, que o arguido ligou à irmã II, queixando-se da colocação da fresa, dizendo-lhe que ia matar o FF.

Acontece, que o arguido teria uma “fixação” com este barracão, há muitos anos. Pois, como relatou a sua irmã, a test. II “sabia que ele tinha uma arma, por causa de um incidente, que houve há uns anos, ainda o pai era vivo, de ele ter apontado uma arma ao pai, por causa de o pai ter aberto um cadeado nesse mesmo barracão”; esta testemunha não presenciou o irmão a apontar a arma ao pai (08:20 do seu depoimento), mas tal, foi presenciado, então, pela test. PP (prima, que conhecia os irmãos desde pequenos), como declarou em audiência (02:15 do seu depoimento).

Ainda que o barracão fosse essencial para a sua actividade agrícola, como alega o recorrente, o mesmo também era necessário para o irmão, sendo óbvia a constatação de que o arguido teve uma reacção completamente desproporcional; houve uma “desproporção manifesta” entre a gravidade do facto e o motivo que o impeliu à acção. Pelo que, sendo esse o motivo de actuação, o comportamento do arguido revelou-se repugnante, gratuito, e com profundo desprezo pelo valor da vida humana, no caso o seu irmão.»

21. O «exemplo-padrão» de motivo fútil como de circunstância reveladora de especial censurabilidade tal como previsto na alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, tem sido entendido como aquele que não chega a ser razão, como um motivo sem relevo no padrão do homem médio, que não pode justificar nem explicar a conduta homicida, devendo encontrar-se no subjectivismo do agente a natureza da motivação delitiva para efeitos de ponderação da futilidade do motivo.

22. Tal seja, no dizer do acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Novembro de 2015 (Processo 320/13.4BCBNV.E1.S1, disponível, como os mais citandos, na base de dados do IGFEJ):

«Para se avaliar se um motivo é fútil tem que se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. Se nenhum motivo explicar a causa da morte de outrem (daí ser crime e crime grave), a grande desproporção entre o que se elege como motivo da acção e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das concepções éticas correntes, da sociedade. A razão do cometimento do crime tem um desvalor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este.»

23. No caso, porém, o arguido não agiu por motivo irrisório ou insignificante, posto que todo o iter delitivo vem motivado por uma quezília precedente e persistente, entre o homicida e a vítima, seu irmão, por razões de partilhas, designadamente da utilização de um barracão agrícola que divide em duas parcelas, cultivadas por cada um, um terreno por partilhar, tendo a vítima, no dia precedente, colocado uma máquina agrícola de tal modo que impedia a passagem do arguido para a parcela de seu cultivo, vindo no dia seguinte a envolver-se em confronto físico, no decurso do qual, quando a vítima já se afastava, o arguido disparou o tiro que veio a tirar a vida ao irmão – cfr. pontos 2 a 5 e 13 a 20 do rol de factos julgados provados.

24. O motivo do agir não pode ter-se como fútil, para os efeitos prevenidos na alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, do passo em que, na subjectividade do arguido, o facto de, acentuando a quezília sobre a posse do terreno, a vítima lhe ter vedado o acesso à parcela que cultivava, não a justificando, explica a acção delitiva.

25. Termos em que, nesta parcela, o recurso deve lograr provimento.

Vejamos ainda.

26. Dispõe a alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, que «é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente […] j) agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas».

27. A qualificação do homicídio, neste particular, que não vem (pelo menos pontualmente) discutido pelo arguido nem pelo Ministério Público, reporta à materialidade relatada nos pontos 6 a 12 do rol de factos sedimentados, como provados, nas instâncias, traduzindo a percepção, pelo arguido, da colocação da fresa, pela vítima, junto ao portão do falado barracão, que impedia a passagem para a metade do terreno que o arguido cultivava, do sequente telefonema deste à irmã de ambos, dizendo que dava «um tiro nos cornos» ao irmão, da deslocação, no dia seguinte, também pelo fim da tarde, do arguido ao terreno, munido da pistola examinada nos autos, com que disparou sobre o irmão, que, num primeiro momento, não atingiu, vindo depois ambos a envolver-se em confronto físico, até que, quando a vítima se apartava e afastava do arguido, este, ainda por terra, disparou o tiro homicida sobre o peito daquele, assim lhe tirando a vida.

28. Diante de tal materialidade, não pode deixar de considerar-se que a imagem global dos factos, a leitura compreensiva dos factos provados, no contexto do conflito precedente, da atitude assumida e verbalizada no dia anterior, na deslocação ao local da contenda, munido da pistola, os disparos sucessivos sobre a vítima, revela a persistência na reflexão sobre a intenção de matar e mesmo na execução dos disparos, uma certa insensibilidade e indiferença relativamente à vida do seu irmão, exteriorizando a exigência de especial censurabilidade.

29. Desse hiato temporal entre a ideação do acto delitivo, do meio a usar e a passagem à acção, por seu intermédio, titula firmeza, propósito, tenacidade, irrevogabilidade da decisão, tal seja, uma forte vontade criminosa, que não pode deixar de conter-se na regra prevenida no n.º 1 do artigo 132.º, do CP, posto que, à luz da ponderação global do facto, espelha uma censura agravada, seja na medida em que tal circunstancialismo repercute um mais acentuado desvalor do facto (especial censurabilidade) – veja-se, neste particular, com proveito até ao presente, a lição do Professor Beleza dos Santos, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 67.º, pp. 306 ss.

30. Termos em que a conduta do arguido deve ser subsumida à previsão típica da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, por isso que, nesta parcela, o recurso não pode lograr procedência.

Vejamos ainda.

31. A segunda questão suscitada pelo arguido (cfr. § 8, acima) reporta ao exame da questão atinente à medida da pena parcelar aplicada pelo crime de homicídio e à medida da pena única.

32. O arguido defende que, face à «provocação» da vítima, e ao facto de o disparo mortal ser surgido na sequência de uma contenda física entre ambos, o grau de ilicitude não deve considerar-se elevado e, demais, os comprovados e factores de integração, social e familiar, de par com a primariedade delitiva, atenuam as exigências de prevenção especial, por isso que a pena deve reduzir-se a não mais do que 15 anos de prisão.

33. A tanto opõe o Ministério Público, no Tribunal recorrido e no Supremo Tribunal de Justiça, muito em resumo, que a pena de prisão aplicada se ajusta à gravidade dos factos e à personalidade do arguido.

Vejamos.

34. Em sede de escolha e medida das penas, os Senhores Juízes do Tribunal da Relação, recorrido, ponderaram nos seguintes termos (transcritos, na parcela que importa ao conhecimento do recurso):

«Foi o arguido condenado pela prática dos crimes:

- de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131º, 132º n.º 2, alíneas e) e j), do Código Penal, na pena de 17 anos de prisão;

- de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

E, em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 17 anos e 6 meses de prisão.

Tais crimes são puníveis, em abstracto:

- o de homicídio qualificado, na pena de 12 a 25 anos de prisão; e,

- o de detenção de arma proibida, na pena de 1 a 5 anos de prisão, (ou com pena de multa até 600 dias. Quanto a este crime, sendo punido com pena compósita alternativa, o tribunal a quo, ao abrigo do art. 70º do CP, optou pela pena de prisão, por considerar que a pena de multa se mostra inadequada e insuficiente para realizar as finalidades da punição).

De harmonia com o disposto nos artigos 70º e 71º do Código Penal a escolha e a medida da pena, ou seja, a determinação das consequências do facto punível, é feita dentro dos limites da lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo ainda atender-se a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o mesmo.

Ora, dentro da moldura penal abstracta, as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime depõem a favor ou contra o agente são, designadamente:

- O grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente);

- A intensidade do dolo ou negligência;

- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Deste modo, o juiz conforme a natureza do facto punível, a sua gravidade e a forma de execução, aplicando o direito, escolhe uma das várias possibilidades legalmente previstas.

No entanto, em caso algum, a pena poderá ultrapassar a medida de culpa do agente, concretamente revelada, correspondendo o limite superior da pena ao máximo grau de culpa e, o limite mínimo aquele abaixo do qual se não respeitam as expectativas da comunidade (art. 40º, n.º 2 do C.Penal).

Como salientámos, não pode apenas atender-se à culpa e à sua medida, impôs o legislador que a determinação concreta da pena seja feita também em função da prevenção. O que no entender do Prof. Figueiredo Dias “(…) é perfeitamente compreensível e justificável; através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária de punição do caso concreto e, consequentemente, à realização “in casu” das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limita de forma inultrapassável as exigências de prevenção” (cfr. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime – Notícias editorial – pág. 215).

O Tribunal a quo na determinação da medida concreta das penas aplicadas ao arguido ponderou o seguinte:

“- o grau de ilicitude do facto é elevado tendo em conta a intensidade da actuação do arguido e o contexto de actuação do mesmo, sobre o seu irmão;

- modo de execução dos crimes: no contexto de uma contenda decorrente de desentendimento por causa de terreno e barracão integrado em herança e ter no carro a soqueira mesma em posição de facilmente ser utilizada;

- gravidade das consequências: a consumação do crime de homicídio com a morte;

- grau de violação dos deveres impostos ao agente: um suplementar desrespeito pela vida de uma pessoa que até era seu irmão;

- intensidade do dolo: grau mais elevado – dolo directo – artº 14º, nº 1, representação do facto e actuação com intenção de o realizar;

- sentimentos manifestados no cometimento do crime: desprezo pela vida alheia de uma pessoa que tinha nas “veias o mesmo sangue”;

- fins ou motivos que o determinaram: resolver “à sua maneira” o referido desentendimento;

- condições pessoais do arguido e situação económica: trabalhava e apresentava integração familiar e social;

- conduta anterior aos factos: sem condenações anteriores; vivia com a companheira;

- conduta posterior aos factos: falta de arrependimento; no estabelecimento prisional tem comportamento adequado.

Definindo, a partir deste quadro, a importância da justa retribuição do ilícito e da culpa, bem como as necessidades da prevenção especial e, depois, da prevenção geral (confirmação da ordem jurídica), chamando a ponderação entre a gravidade da culpa expressa no facto e a gravidade da pena com a graduação da importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo delito (conteúdo da culpa), considerando as respectivas molduras penais, o tribunal colectivo entende que o arguido AA deve ser condenado:

- homicídio qualificado (moldura entre 12 e 25 anos): 17 anos de prisão (levando em conta o tipo de instrumento utilizado, o contexto da actuação e o facto de ser o seu irmão)

- detenção de arma proibida (moldura entre um a cinco anos): um ano e seis meses de prisão.”

Como verificamos da transcrição efectuada, o acórdão recorrido sopesou todos aqueles factores com influência na medida concreta das penas, tendo procedido a uma adequada fixação das mesmas e, bem assim, da pena única (17 anos e 6 meses de prisão), de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 77º do CP.

In casu, a moldura penal abstracta correspondente ao concurso é de:

- 17 anos de prisão o limite mínimo e, 18 anos e 6 meses de prisão o limite máximo.

Na determinação da pena única há que ponderar o conjunto de todos os factos, o grau de ilicitude dos mesmos, o grau de culpa, as exigências de prevenção especial, a personalidade do agente, as necessidades de prevenção geral, atenta a natureza e o número de crimes cometidos.

Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artigo 71º, n.º 1, um critério especial: o do artigo 77º, nº 1, 2ª parte. “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado; sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”».

Vejamos.

35. Na determinação da medida concreta da pena deve atender-se a todas as circunstâncias que possam ser consideradas a favor ou contra o agente, entre as quais as que estão exemplificativamente referidas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 71.º do CP.

36. Constituem elementos de referência na determinação da medida da pena o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e as respectivas consequências.

37. Na realização dos fins das penas (protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40.º n.º 1, do CP), as exigências de prevenção geral constituem, nos casos de homicídio, uma finalidade de primordial importância.

38. A vida humana é valor fundamental, como valor sobre os valores, inviolável na expressão constitucional (artigo 24.º n.º 1, da Constituição) – na acentuação de sentimentos e emoções a comunidade sofre sempre uma violência comum quando por acto voluntário se ofende a vida de um dos seus.

39. No caso, perante as circunstâncias reveladas na prática dos factos, a função de prevenção geral, que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial, tem de ser eminentemente assegurada, e sobreleva, decisivamente, as restantes finalidades da punição, considerado o valor afectado - a vida, como valor dos valores do género humano.

40. A dimensão global da ilícito na manifestação intensa em que se apresenta, pelo modo de actuação e pela ausência de contramotivação ética no respeito, socialmente muito valioso no plano dos valores essenciais, pelas razões da biologia na relação com a vítima, é factor também preponderante para a determinação da pena.

41. As exigências de prevenção, para não serem unicamente funcionalistas, têm de ser conjugadas com imposições de prevenção geral, medidas estas pelas características da personalidade, modo de vida e de conduta do recorrente e da razão que aconselhem na intervenção dedicada ao reencaminhamento do agente para a interiorização e o respeito dos valores sociais e comunitários afectados.

42. Neste particular, o recorrente, como vem provado, «é considerado, no meio onde reside, como reservado, nervoso e impulsivo, sobretudo quando consome bebidas alcoólicas em excesso» (ponto 49 do rol de factos julgados provados), mantinha «quezílias com vizinhos cujas propriedades confinavam com as suas» detém «poucas capacidades de resolução e resolução de conflitos e adversidades» (ponto 50), e «não manifesta arrependimento» (ponto 57), revelando, assim, uma personalidade com dificuldades de ajustamento e de superação de acontecimentos desfavoráveis, com o consequente risco de comportamentos reactivos, a aconselhar intervenção de ressocialização que se coordene, porém, com a possibilidade de regresso em tempo ainda útil ao convívio social e ao apoio afectivo revelado pelas visitas regulares da família próxima e pelo comportamento que vem mantendo em meio prisional (pontos 55 e 56).

43. A culpa do recorrente, como decorre de quanto se salientou, apresenta-se em elevado grau pela especial censurabilidade, especialmente na fragilidade ética revelada na afectação no mais elevado grau do valor fundamental da vida do seu ascendente directo e da desconsideração comunitariamente insuportável dos laços básicos do parentesco.

44. Por outro lado, o bom comportamento posterior, em meio de privação da liberdade, não difere da normalidade esperada, e as condições pessoais foram devidamente ponderadas no acórdão recorrido.

45. Ponderadas todas estas circunstâncias, não podendo deixar de relevar-se, nesta sede, a inverificação (como acima se deixou expresso) da circunstância qualificativa prevenida na alínea e) do n.º 2 o artigo 132.º, do CP, a penas concretizada nas instâncias, de 17 anos de prisão (na moldura abstracta de 12 a 25 anos de prisão), pelo crime de homicídio qualificado, deve ser reduzida a 16 anos de prisão, não merecendo reparo [inviabilizado, desde logo pelo disposto nos artigos 400.º n.º 1 alíneas e) e f) e 432.º n.º 1 alínea b), do Código de Processo Penal] a pena de 1 ano e 6 meses de prisão (na moldura abstracta de 1 a 5 anos de prisão ou multa até 600 dias), pelo crime de detenção de arma proibida, p. e p. nos termos do disposto no artigo 86.º n.º 1 alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, e, em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, a pena única de 16 anos e 6 meses de prisão (próxima da moldura abstracta aplicável, de 16 anos a 17 anos e 6 meses de prisão), figuram-se adequadas e proporcionadas, de molde a satisfazer as fortes exigências de prevenção geral, sem afectar as necessidades de prevenção especial, sendo ademais permitidas pela medida da culpa.

46. Acresce salientar que tais penas respeitam o juízo de proporcionalidade decorrente do sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça [v.g., acórdãos de 10 de Setembro de 2020 (Processo 55/19.4GBTNV.S1), de 18 de Outubro de 2017 (Processo 1019/15.2PJPRT.G1.S1), de 12 de Novembro de 2015 (Processo 320/13.4GCBNV.E1.S1), de 19 de Fevereiro de 2014 (Processo 168/11.0GCCUB.S1), de 13 de Novembro de 2013 (Processo 938/12.2JAPRT.P1.S1), de 17 de Abril de 2013 (Processo 237/11.7JASTB.L1.S1), e de 21 de Janeiro de 2009 (Processo JSTJ000)].

47. Termos em que, nesta parcela, o recurso merece provimento, decorrente da não verificação de uma das qualificativas e da consequente redução da pena parcelar relativa à punição do crime de homicídio qualificado.

48. Em face da parcial procedência do recurso, não cabe tributação – artigo 513.º n.º 1, do Código de Processo Penal.

49. Em conclusão e síntese:

(i) não pode considerar-se que o arguido agiu por motivo irrisório ou insignificante, posto que todo o iter delitivo vem motivado por uma quezília precedente e persistente, entre o homicida e a vítima, seu irmão, por razões de partilhas, designadamente da utilização de um barracão agrícola que divide em duas parcelas, cultivadas por cada um, um terreno por partilhar, tendo a vítima, no dia precedente, colocado uma máquina agrícola de tal modo que impedia a passagem do arguido para a parcela de seu cultivo, vindo no dia seguinte a envolver-se em confronto físico, no decurso do qual, quando a vítima já se afastava, o arguido disparou o tiro que veio a tirar a vida ao irmão;

(ii) o motivo do agir não pode ter-se como fútil, para os efeitos prevenidos na alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, do passo em que, na subjectividade do arguido, o facto de, acentuando a quezília sobre a posse do terreno, a vítima lhe ter vedado o acesso à parcela que cultivava, não a justificando, explica a acção delitiva;

(iii) verifica-se a qualificativa prevista na alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, quando, traduzida na percepção, pelo arguido, da colocação da fresa, pela vítima, junto ao portão do falado barracão, que impedia a passagem para a metade do terreno que o arguido cultivava, do sequente telefonema deste à irmã de ambos, dizendo que dava «um tiro nos cornos» ao irmão, da deslocação, no dia seguinte, também pelo fim da tarde, do arguido ao terreno, munido da pistola examinada nos autos, com que disparou sobre o irmão, que, num primeiro momento, não atingiu, vindo depois ambos a envolver-se em confronto físico, até que, quando a vítima se apartava e afastava do arguido, este, ainda por terra, disparou o tiro homicida sobre o peito daquele, assim lhe tirando a vida;

(iv) diante de tal materialidade, não pode deixar de considerar-se que a imagem global dos factos, a leitura compreensiva dos factos provados, no contexto do conflito precedente, da atitude assumida e verbalizada no dia anterior, na deslocação ao local da contenda, munido da pistola, os disparos sucessivos sobre a vítima, revela a persistência na reflexão sobre a intenção de matar e mesmo na execução dos disparos, uma certa insensibilidade e indiferença relativamente à vida do seu irmão, exteriorizando a exigência de especial censurabilidade;

(v) desse hiato temporal entre a ideação do acto delitivo, do meio a usar e a passagem à acção, por seu intermédio, titula firmeza, propósito, tenacidade, irrevogabilidade da decisão, tal seja, uma forte vontade criminosa, que não pode deixar de conter-se na regra prevenida no n.º 1 do artigo 132.º, do CP, posto que, à luz da ponderação global do facto, espelha uma censura agravada, seja na medida em que tal circunstancialismo repercute um mais acentuado desvalor do facto (especial censurabilidade);

(vi) em face de tal contexto delitivo, a pena parcelar de 17 anos de prisão (na moldura abstracta de 12 a 25 anos) relativa ao crime de homicídio, concretizada na instância, deve ser reduzida a 16 anos de prisão, e a pena única ali aplicada, de 17 anos e 6 meses de prisão (na moldura abstracta de 17 anos a 18 anos e 6 meses de prisão), deve agora (na moldura abstracta de  16 anos a 17 anos e 6 meses de prisão), ser reduzida a 16 anos e 6 meses de prisão, relevando do cúmulo com a pena de 1 anos e 6 meses de prisão aplicada pelo crime de detenção de arma proibida, penas que se figuram adequadas e proporcionadas, de molde a satisfazer as fortes exigências de prevenção geral, sem afectar as necessidades de prevenção especial, sendo ademais permitidas pela medida da culpa.

III

50. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:

a) julgar o recurso interposto pelo arguido parcialmente procedente, alterando-se o decidido, no Tribunal recorrido, em sede de qualificação jurídica dos factos e de medida da pena, passando o arguido a condenado:

(a1) pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível nos termos do disposto nos artigos 131.º n.º 1 e 132.º n.os 1 e 2 alínea j), do Código Penal, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão;

(a2) pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível nos termos do disposto no artigo 86.º n.º 1 alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

(a3) em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na pena única de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão

b) não caber tributação.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2020

António Clemente Lima (relator) – Margarida Blasco