Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2548/19.4T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
SUCUMBÊNCIA
VALOR DA CAUSA
JUROS
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 10/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Sendo o valor da sucumbência um valor não superior a € 15.000,00, ou seja, valor inferior a metade da alçada da Relação, tal impede a interposição de recurso de revista.

II – “ Conformando-se uma parte com o valor da condenação na 1ª instância e procedendo parcial ou totalmente a apelação interposta pela outra parte, a medida da sucumbência da apelada, para efeitos de ulterior interposição do recurso de revista, corresponde à diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1ª instância e no acórdão da Relação" – cf. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 10/2015 - Diário da República n.º 123/2015, Série I, de 2015-06-26.

III - Se o pedido de condenação em juros não releva para a determinação do valor da causa, também não pode ser tido em conta para achar o valor do decaimento do pedido com vista a apurar se a decisão é recorrível ou não.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Reclamação contra o despacho proferido ao abrigo do disposto nos artºs 679º e 652º nº 1 al.b) CPCiv que não admitiu o recurso de revista.


AA intentou acção declarativa com processo comum contra Crédito Agrícola Seguros – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. e Infraestrutuas de Portugal, S.A.

Pediu que as Rés fossem condenadas a pagar-lhe a quantia global de € 42.589,72, acrescida de juros de mora, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Alegou que, no dia .../11/2016, pelas 17:50 horas, ocorreu um acidente de viação e ferroviário em que foram intervenientes o veículo pesado articulado com a matrícula ...-RJ-... e o comboio de passageiros n.º ...25.

Tal acidente deveu-se ao facto de o condutor do veículo pesado segurado na 1ª Ré ter parado o veículo que conduzia na passagem de nível e ter deixado o seu semi-reboque a ocupar os carris de ambos os sentidos da via férrea, onde o comboio ...25 veio a embater.

Deveu-se igualmente ao facto de a 2ª Ré não ter concebido um sistema de protecção por forma a permitir que o movimento descendente da cancela fosse interrompido até à conclusão da travessia, caso a passagem de nível ainda estivesse ocupada por algum veículo.

Mais alegou que, como consequência directa e necessária do acidente, foram arrancadas e projectadas pedras da linha férrea contra a sua habitação e dois veículos automóveis de sua propriedade, causando-lhe estragos cuja reparação ascende a €12.589,72. Para além disso, também como consequência directa e necessária do acidente em discussão, desenvolveu um quadro clínico de ansiedade patológica que lhe vem causando ataques de pânico, insónias, tremores, aumento do ritmo cardíaco e dificuldade em respirar, devendo ser compensado pelos danos não patrimoniais sofridos no montante de €30.000.

Contestando, a Ré pediu a sua absolvição do pedido, apesar de ter admitido a ocorrência de um acidente de viação na data e local identificados pelo autor.

Sustentou que a culpa do acidente não coube ao condutor do veículo pesado, mas antes ao condutor do comboio e da 2ª Ré. Por um lado, o local onde ocorreu o acidente é precedido de uma recta com, pelo menos, um quilómetro e o atravessamento efectuado pelo veículo pesado era perfeitamente visível ao condutor do comboio, que deveria ter dado início à travagem assim que a passagem de nível e o pesado se lhe tornaram visíveis. De outra banda, o equipamento de segurança que guarnecia a passagem de nível era desadequado ao local e deveria estar munido de um sistema de segurança que informasse automaticamente o condutor do comboio de que a barreira não estava fechada ou que, pelo menos, impedisse que as barreiras fechassem caso a via estivesse ocupada por algum veículo que ainda estivesse a passar, o que teria igualmente evitado o acidente.

Impugnou o valor peticionado a título de danos não patrimoniais.


Em 1ª instância, foi julgada parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenada a ré Crédito Agrícola Seguros – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. a pagar ao autor AA a quantia global de €14.070,22 (catorze mil e setenta euros e vinte e dois cêntimos), vencendo juros desde a citação a parcela de €12.570,22 (doze mil quinhentos e setenta euros e vinte e dois cêntimos) fixada a título de indemnização pelos danos patrimoniais e vencendo juros desde a sentença a parcela de €1.500 (mil e quinhentos euros) fixada a título de compensação pelos danos não patrimoniais.

A Ré Infraestruturas de Portugal foi absolvida do pedido.

A Ré Crédito Agrícola apelou então da sentença e, na Relação, foi decidido absolver a Ré Crédito Agrícola do pedido.


Recorre agora o Autor de Revista, formulando as seguintes conclusões:

1º - Nos termos do nº 1 do artº 662 do CPC os Tribunais da Relação devem alterar a decisão sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

2º - Não nos parece, salvo o devido respeito entendimento diverso, que seja aqui o caso. Senão vejamos:

3º - Fundou o venerando Tribunal recorrido a sua decisão de proceder à modificação dos factos dados como provados em primeira instância referentes aos pontos 16 a 22 e ao aditamento dos pontos 3-A, 11-A, 11-B, e 22-B, nos depoimentos das testemunhas BB, motorista do camião sinistrado e de CC, bem como na prova documental junta aos autos, mormente o relatório Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (doravante, GPIAAF).

4º - Quanto à matéria modificada, nos pontos 17 a 22, tal alteração decorre apenas do depoimento do motorista do camião sinistrado, não encontrando qualquer sustentação na demais prova produzida.

5º - Aliás é o seu próprio depoimento contrariado pelo relatório do GPIAAF.

6º - Ao contrário defendido no douto acórdão em crise, os depoimentos daquelas testemunhas não poderão de forma alguma ser considerados sinceros e credíveis.

7º - A versão apresentada pelo motorista do veículo sinistrado mostra-se claramente em contradição com o que havia dito durante a investigação do GPIAAF, cujo relatório se encontra junto aos autos e também com as declarações que havia prestado em sede de instrução no âmbito do processo-crime nº 68/16… do Juízo de Instrução Criminal  ... - Juiz …, no qual houve decisão instrutória, já em momento posterior à prolação da sentença em primeira instância, a qual foi todavia junta a estes autos em sede de contra-alegações para o venerando Tribunal da Relação de Évora.

8º - Documento que, diga-se, não mereceu qualquer pronúncia ou análise por parte daquele venerando Tribunal.

9º - Tendo assim violado o disposto no nº 1 do artº 662 do CPC.

10º - Já quanto à testemunha, maquinista, devemos referir que mantém algum interesse nas declarações que prestou, até porque é inclusivamente apontado no relatório do GPIAFF como podendo ter alguma responsabilidade na produção do acidente.

11º - Daí os depoimentos convergentes quanto à existência de um canavial junto ao local, o qual impediria que o comboio e o camião intervenientes no acidente fossem visíveis um para o outro, versão acolhida pelo venerando Tribunal recorrido ao aditar aos factos dados como provados o ponto 22-A.

12º - Contudo, além dos depoimentos daquelas testemunhas, em lado algum se encontra referida ou documentada a existência de tal canavial.

13º - Apenas lançaram mão daquela afirmação para de alguma forma afastarem das suas pessoas qualquer tipo de responsabilidade por mínima que fosse, como que dizendo a culpa não foi nossa, foi das canas que impediam a visibilidade.

14º - Aliás, ainda que assim fosse, tal em nada diminuía responsabilidade do motorista do camião, pois o que está aqui em causa é apenas e somente o facto de este ter imobilizado o camião em cima da linha férrea com os alarmes de aproximação de comboio a soar, dando assim tempo à aproximação do dito comboio, e permitindo por via disso o embate na parte de trás do seu semi-reboque.

15º - Determinantes são ainda algumas das conclusões do GPIAAC, tendo o estudo do acidente versado sobre o ensaio repetido três vezes, duas delas com o arguido, com o propósito de cronometrar a travessia da passagem de nível ao volante de um veículo com características semelhantes ao que a testemunha BB, motorista do camião sinistrado conduzia nas circunstâncias de tempo e lugar em foco nos autos.

16º - Os referidos ensaios contabilizaram o tempo demorado quer sem implicar meias barreiras quer incluindo o obstáculo consistente em ter de vencer a meia barreira caída em cima da máquina transportada no camião.

17º - Uma das hipóteses testadas foi o tempo que implicava a travessia da passagem de nível com a dita meia barreira descida.

18º - O GPIAAF confirmou no estudo realizado e exarou no Relatório apresentado que:

• Entre o momento em que são accionados sinais sonoros e luminosos de alerta e o início da descida das meias barreiras, decorrem sete segundos;

• A descida total das meias-barreiras demora outros sete segundos; vinte e cinco segundos depois da descida completa das meias barreiras, um comboio, à velocidade de 140Km/h atinge a passagem de nível:

• O modelo dos mecanismos de alerta do sistema ferroviário, na passagem de nível em apreço, estava concebido e funcionava de modo que, entre o início do alerta e a passagem do comboio, decorresse intervalo não inferior a quarenta segundos.

• Esse intervalo de quarenta segundos pressupunha que a composição ferroviária circulasse à velocidade de 140 Km/H.

• No primeiro ensaio com o GPIAFF, na travessia completa da passagem de nível, o arguido demorou 25 segundos sem barreiras e 55 com barreiras descidas.

• No segundo ensaio, o arguido demorou 20 segundos sem barreiras e 25 segundos com barreiras.

• O técnico presente com carta de pesados mas desconhecendo o local demorou 65 segundos sem barreiras e 70 com barreiras.

19º - Tendo o motorista de facto violado a proibição de parar em passagem de nível, infringindo o Código da Estrada, temos que em alternativa este sempre teria a possibilidade de não parar, prosseguindo a marcha apesar dos danos que a meia barreira poderia provocar na máquina que transportava.

20º - Para aferir da adequação do comportamento alternativo de modo a evitar o resultado colisão, importa considerar e analisar rigorosamente os tempos para a realização da manobra em causa.

21º - Mormente, de quanto tempo ainda dispunha então o motorista para concluir em segurança a travessia da linha férrea, ou seja, quanto tempo teve desde o accionamento dos sinais sonoros e luminosos e desde a descida da barreira até o comboio atingir a passagem de nível.

22º - Pois, só cruzando estes tempos com aquele de que o motorista efectivamente necessitava para concluir a travessia em segurança da via férrea é que será possível ajuizar se a colisão poderia ou não ter sido por este evitada.

23º - No momento em que o motorista parou em cima da linha férrea, já tinham decorrido pelo menos 10 segundos.

24º - Já tinham decorrido os 7 segundos desde o accionamento dos sinais sonoros e luminosos até ao início da descida das barreiras e a este somou-se mais metade do tempo dos 7 segundos que as barreiras demoravam a descer, sendo que a barreira parou sensivelmente a meio quando atingiu a máquina transportada no semi-reboque.

25º - Contando-se como momento zero o início dos sinais sonoros, conclui-se que foi por volta dos 10 segundos que o motorista parou.

26º - Se este necessitava ao todo de 25 segundos e dos quarenta que importava todo o processo, tinham decorrido 10, o motorista dispunha ainda de 30 segundos.

27º - Há ainda que considerar que o motorista já tinha cerca de metade do pesado fora da passagem de nível.

28º - Isto significa que dos 25 segundos necessários para a travessia integral da via férrea este já só necessitaria no máximo de 20 segundos, sendo certo que ainda dispunha de outros 30.

29º - A diferença de tempo registada entre o ensaio com obstáculo e sem obstáculo foi de apenas cinco segundos.

30º - A transposição das barreiras apenas acarretava um acréscimo de 5 segundos do que uma travessia sem incidentes.

31º - Logo no primeiro ensaio, apesar de ter feito manobras sem o obstáculo da barreira descida, o motorista demorou 25 segundos.

32º - Por conseguinte, à luz destas capacidades reveladas tem de se concluir que, para a travessia completa, este não necessitaria nunca de mais do que trinta segundos.

33º - Tendo decorrido já 10 até ao momento em que parou, só precisaria de mais vinte.

34º - Dispunha, porém, ainda de trinta segundos.

35º - Significa isto que uma diferença de cinco segundos teria, com elevadíssima probabilidade, feito a diferença no sentido de se ter evitado a colisão.

36º - O dispositivo sonoro luminoso foi activado quando já se encontrava a iniciar a travessia da linha férrea.

37º - O motorista parou por sua própria iniciativa quando viu a barreira descer sobre a máquina que transportava.

38º - Se o motorista não tivesse parado por sentir a barreira cair sobre a máquina e tivesse, ao invés, decidido não arriscar a sua vida e a de outros, atravessando sem mais a passagem de nível, sacrificando, caso fosse necessário, o para-brisas da retroescavadora, teria logrado completar a manobra.

39º - Afirma-se no relatório do GPIAAF claramente que uma das causas do acidente foi “o motorista do veículo pesado ter saído da cabina para verificar o local exacto onde a meia barreira oposta conflituava com o seu veículo”.

40º - A proibição de paragem em passagens de nível destina-se justamente a evitar acidentes.

41º - O condutor sabe que em caso algum pode parar naquele local, ainda mais com os sinais de alerta accionados.

42º - Até porque na maioria dos casos se desconhece o tempo que o comboio demora a passar, como aparenta ser aqui o caso, implicando esse desconhecimento um factor de cautela acrescido e não de confiança que o tempo será suficiente para se concluir a manobra.

43º - Era-lhe exigível não ter hesitado, não ter saído da viatura, e ter continuado a marcha, de forma a não arriscar a sua sorte, uma vez que não sabia quanto tempo demoraria o comboio a passar e estava já a ouvir os sinais sonoros há vários segundos.

44º - Omitiu, pois, o motorista um dever de cuidado que lhe era exigível e que se tivesse sido observado teria evitado a produção do acidente do qual resultaram como causa directa as lesões patrimoniais e não patrimoniais dos bens jurídicos do A.

45º - Clara ficou a inobservância da norma contida no art. 49º, nº 1, do Código da Estrada por parte do motorista do camião sinistrado.

46º - Ademais conhecia o motorista as características daquela passagem de nível, sabia da curva apertada e da existência do dito talude, sabia que por via disso não podia desperdiçar tempo e, ainda assim, decidiu imobilizar o veículo em cima da passagem de nível, com os alarmes a soar.

47º - Correu um risco desnecessário, optando por um comportamento temerário.

48º - Aliás, a tomarmos por bom o ponto 3-A aditado pelo venerando Tribunal da Relação aos factos dados como provados, de que o motorista daquele veículo rodoviário estava devidamente habilitado para a função, mais grave é o facto de ter reagido como reagiu e de, apesar de conhecer a configuração da passagem de nível em causa não ter optado por um itinerário mais seguro para o seu destino evitando por completo aquela passagem de nível.

49º - O facto de, como se diz, no ponto 11-B adicionado, de que não estava imposta naquela estrada, incluindo a passagem de nível, qualquer restrição aos condutores não pode ser entendido como motivo suficiente para eximir o condutor de qualquer responsabilidade.

50º - O condutor conhecia o local, conhecia as suas características e conhecia o risco que corria ao optar por aquele itinerário.

51º - Como bem mandam as regras estradais, o condutor deve adequar a sua condução às condições da via, o que, conhecendo aquelas condições não fez.

52º - Mesmo entendimento teve o Juízo de Instrução de ... no processo nº 68/… ao dar como indiciariamente provados os seguintes factos:

1. Cerca das 17:52:30h do dia … de Novembro de 2016, o arguido conduzia o veículo pesado de mercadorias, marca ..., modelo …, com a matrícula ...-RJ-..., pela Estrada …, em ..., no sentido …/..., ou seja, este/oeste.

2. Tal veículo trazia acoplado um semi reboque marca … – … com a matrícula …-…36, o qual transportava uma retroescavadora da marca …, modelo … e matrícula …-SA-….

3. O arguido viajava acompanhado por DD que ocupava o lugar dianteiro, lado direito da cabine, do veículo trator matrícula ...-RJ-....

4. O conjunto do veículo trator e do semirreboque, quando acoplados, tem um comprimento aproximado de 16,5m.

5. A ... é atravessada pela linha férrea denominada linha do norte, constituída por uma via dupla eletrificada –via A (sentido .../...) e via B (sentido .../...).

6. A passagem de nível situa-se ao km 69,474 da linha do norte e a circulação rodoviária é protegida por um sistema de sinalização automático e luminoso e por meias barreiras de funcionamento automático, isto é, trata-se de uma passagem de nível com guarda.

7. O sistema de proteção é ativado quando, no sentido ascendente (.../...), o comboio ocupa a secção de via 67… através do acionamento de contadores de eixos pelas suas rodas e, no sentido descendente (.../...), a sinalização é ativada quando o comboio ocupa a secção 72…, através de pedais direcionais atuados pelas rodas.

8. Ambas as secções estão instaladas à distância necessária para permitir o acionamento do sistema de proteção da Passagem de Nível com uma antecedência mínima de 40 segundos para um comboio que circule à velocidade de 140Km/h.

9. Com o acionamento do sistema de protecção, inicia-se o anúncio acústico e luminoso localizado junto às meias barreiras as quais iniciam a descida 7 segundos após o inicio de tal sinal, finalizando a descida 7 segundos após o início desta.

10. A passagem de nível dispõe, ainda, de ambos os lados, de placas informativas com a indicação de “PARE Ao sinal vermelho”.

11. A ... tem uma largura de cerca de 3,60m e, à entrada da passagem de nível, atento o sentido de marcha do veículo ...-RJ-..., tem uma largura de cerca de 5,00m sendo que, à saída da passagem de nível, a mesma tem uma largura de cerca de 7,30m seguida de uma curva apertada à esquerda com um ângulo próximo dos 102⁰.

12. No dia … de Novembro de 2016, o comboio nº ...25, constituído por duas carruagens denominadas de ….84 e …83, efetuava o serviço regional de passageiros e procedia de ... com destino a ....

13. Pelas 17:50:14h do referido dia … .11.2016, o comboio nº ...25 parte do apeadeiro de ... de ..., acionando o sistema de proteção da passagem de nível da ... ao passar, pelas 17:51:44h, pela secção de via 67….

14. Nas circunstâncias tempo e lugar referidas, o arguido conduzia o conjunto de veículos supra descrito pela ..., em ..., no sentido .../..., ou seja, este/oeste, iniciando a travessia da passagem de nível em hora não concretamente apurada mas situada entre as 17:50:14h e as 17:52:30h.

15. Quando o arguido se encontrava a efetuar a travessia da passagem de nível, o sistema de proteção acionou-se por força da passagem do comboio pela secção de via 67…, iniciando-se a sinalização luminosa e acústica seguida, 7 segundos depois, do início da descida das meias barreiras.

16. Porque o arguido ainda não tinha concluído a travessia da passagem de nível quando se ativou a referida sinalização rodoviária, a meia barreia localizada à saída (atento o sentido de marcha do arguido) embateu no vidro da máquina retroescavadora que era transportava no semirreboque.

17. Ao aperceber-se que a meia barreira havia “apanhado” a máquina e de modo a evitar que esta fosse danificada, o arguido, desconsiderando a sinalização rodoviária de indicação de aproximação de comboio, parou o conjunto de veículos que conduzia na passagem de nível, ficando o semi reboque a ocupar os dois carris da via férrea A.

18. Após imobilizar o veículo, o arguido saiu do seu interior, no que foi seguido pelo passageiro, DD.

19. Porque o semirreboque ocupava ainda a via férrea por onde circulava o comboio nº ...25, este (carruagem da frente –…84) embateu na traseira do semirreboque …36 imobilizando-se a cerca de 227m a jusante da passagem de nível, apesar de o maquinista ter acionado os procedimentos de emergência, nomeadamente acionando o freio.

20. Com a violência do embate, o semi reboque foi empurrado no sentido de marcha do comboio, rodando para a direita, à passagem da composição e originando:

21. a queda da retrosescavadora;

22. o descarrilamento do primeiro Bogie da composição;

23. a projeção de balastro da via e a destruição da meia barreira que se encontrava pousada em cima da retroescavadora; atingindo, ainda, DD, cujo corpo foi projetado a diversos metros de distância do local do embate, o qual se encontrava no exterior do veículo por dele ter saído após a sua imobilização. Em consequência direta do acidente, resultaram diversos danos materiais em bens patrimoniais de valor não concretamente apurado, mas seguramente superior a € 5.100,00, nomeadamente:

i) Danos na frente e lateral e interior da carruagem …28, propriedade Caminhos de Ferro, E.P.E.;

ii) Danos no veículo trator de matrícula ...-RJ-..., propriedade de “Manuel & Lopes, Ldª”;

iii) Danos no semi-reboque de matrícula …90, propriedade de “Sicomape Centro Import & Export, Ldª”;

iv) Danos na máquina retroescavadora, matricula ...-SA-..., propriedade de “Patirent –Aluguer de Equipamentos, Unipessoal, Ldª.”; e

v) Danos no imóvel para habitação sito em ..., nº …, propriedade de EE e AA.

24. De igual modo, do acidente resultaram, direta e necessariamente para alguns dos passageiros que se faziam transportar no comboio nº ...25, lesões corporais, a saber:

25. Para FF resultaram as lesões melhor descritas nos autos de exame médico de fls. 159 a 160, nomeadamente, contusão lombar que lhe determinaram 6 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho;

26. Para GG resultaram lesões na coluna e pescoço;

27. Para HH, resultaram as lesões melhor descritas no auto de exame médico de fls. 118 a 121 e 297 a 298 que aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente, traumatismo do pé esquerdo que lhe determinaram 157 dias de doença, dos quais, 24 dias com afetação da capacidade de trabalho geral e 157 dias com afetação da capacidade de trabalho profissional.

28. Para II, resultou traumatismo abdominal com risco de nascimento prematuro do bebé.

29. Para JJ, resultaram lesões no corpo não concretamente apuradas;

30. Para LL, resultaram lesões na face não concretamente apuradas;

31. Para MM, resultaram lesões no couro cabeludo e traumatismo craniano sem perda de consciência;

32. Colocando, ainda, em perigo a vida e/ou integridade física dos restantes passageiros do comboio nº...25, nomeadamente, de NN e de OO.

33. Ainda em consequência do acidente, o comboio nº ...25 ficou retido no local entre as 17:51h do dia … de novembro e as 04:10h do dia 9 de novembro, provocando a retenção de 121 comboios, num total de 8.851 minutos.

34. Finalmente, em consequência do acidente resultaram para DD graves lesões traumáticas crâneo-meningo-encefálicas, toraco-abdominais e dos membros superiores e inferiores melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 188 a 190 que aqui se dá por integralmente reproduzido, as quais foram causa adequada da sua morte.

35. O arguido conhecia bem o local e as características da passagem de nível onde ocorreu o acidente, tendo carta de condução das categorias C, C1, C1E e CE, desde … .10.1975.

36. O arguido sabia que é proibido parar em passagem de nível, por força do disposto no artº 49º, nº 1, al. a) do Código da Estrada.

37. Sabia, ainda, o arguido que a sinalização de proteção da passagem de nível, quando accionada, indica a aproximação de comboio, bem sabendo que qualquer obstáculo colocado na via, nomeadamente o veículo que conduzia, atenta contra a segurança de transporte por caminho de ferro.

38. Mais sabia o arguido que, se tal sucedesse, estaria a sujeitar os ocupantes do veículo de transporte ferroviário (passageiros e/ou tripulação) e/ou terceiros a um grave risco de morte ou ofensa à integridade física, colocando, ainda, em risco, bens alheios de valor superior a €5.100,00, nomeadamente o veículo ferroviário e o semi-reboque.

39. Não obstante saber que estava obrigado e era capaz de cumprir as obrigações acima mencionadas, o arguido BB, não as cumpriu, infringindo normas legais e representando como possível que o facto de parar o conjunto de veículos na passagem de nível, no momento em que se encontrava acionada a sinalização de proteção, indicando a aproximação de um veículo de transporte ferroviário, criasse perigo para a vida e a integridade física dos ocupantes de ambos os veículos, porém, não se conformou com a criação de tal perigo, conforme veio a suceder com FF, HH e DD, cujas ofensas à integridade física e a morte não se teriam verificado se o arguido tivesse obedecido à norma estradal referida, quando podia e devia tê-lo feito.

40. Ao invés, o arguido perante a obrigação de não danificar os bens que transportava e a obrigação de não atentar contra a segurança de transporte ferroviário praticando ato de qual podia resultar desastre, optou por sacrificar este último dever de valor consideravelmente superior ao primeiro.

41. Ao agir do modo acima descrito, o arguido não atuou com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz, sabendo quais eram os cuidados que deveria ter tomado para evitar a colisão e, se os tivesse tomado, esta não se teria verificado, nem se teriam verificado as consequências supra referidas.

42. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente nos termos supra referidos, sabendo proibida e punida por lei a sua conduta.

53º. E ao pronunciar o motorista do camião BB, pela prática de factos consubstanciam, a prática de:

a) Um crime de Atentado à Segurança de Transporte por Caminho de Ferro, p.p. pelo artº 288º, nºs 1, al.s b) e d), 2 e 3, do Código Penal;

b) Um crime de Ofensa à Integridade Física Negligente, p.p. pelo artigo 148.º, n.º 1, por referência ao artigo 15º, al. a), todos do Código Penal, e de

c) Um crime de Homicídio Negligente, p.p. pelo artº 137º, nº 1, por referência ao artigo 15º, al. a), todos do Código Penal.”

54º - Não existiu, pois, qualquer erro na apreciação da matéria de facto pelo tribunal de primeira instância e da sua subsunção ao direito aplicável.

55º - Houve, outrossim, salvo o devido respeito por opinião diversa uma aplicação errada por parte do venerando Tribunal das disposições do artigo 662, nº1 do CPC, uma vez que analisada a prova carreada em toda a sua plenitude e alcance se deveria ter concluído que não há lugar à imposição de decisão diversa.

56º - Houve ainda violação daquela disposição legal pelo facto de o venerando Tribunal recorrido não se ter pronunciado sobre ou analisado o documento (decisão instrutória atrás referida) junto com as contra-alegações do A.

57º - Assim, por todo o expendido e, respondendo às questões inicialmente formadas pelo douto acórdão em crise,

- saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (testemunhal e documental) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada; a resposta terá de ser necessariamente negativa.

- saber se o condutor segurado na R. não teve qualquer culpa na produção do acidente em causa e, por via disso, não poderá aquela ser responsabilizada civilmente pelo pagamento de uma indemnização ao A. pelos danos patrimoniais e não patrimoniais; a resposta terá de ser necessariamente no sentido de se reconhecer sem margem para dúvidas a responsabilidade daquele e ser a R. ora recorrida condenada a pagar aquela indemnização.

58º - Em consequência deve ser revogado douto acórdão do venerando Tribunal da Relação, expurgando-se as alterações e aditamentos a factualidade dada como provada, mantendo-se na íntegra a douta sentença proferida em de primeira instância.


A Ré Crédito Agrícola pugnou pela negação da revista.


Por despacho do presente relator de 11/6/2021, determinou-se a audição das partes acerca da matéria do valor da sucumbência do Autor - € 14.070,22 – aparentemente impeditivo da interposição do recurso, por força da norma do artº 629º nº1 CPCiv, matéria até então não discutida no processo.

A Ré Crédito Agrícola pronunciou-se pela inadmissibilidade do recurso (“conformando-se uma parte com o valor da condenação na 1.ª instância e procedendo parcial ou totalmente a apelação interposta pela outra parte, a medida da sucumbência da apelada, para efeitos de ulterior interposição de recurso de revista, corresponde à diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1.ª instância e o acórdão da Relação” – tal como exarado no Ac. S.T.J. 14/5/2005, p.º n.º 687/10.6TVLSB.L1.S1-A).

O Autor/Recorrente pronunciou-se no sentido de que o conceito de sucumbência, previsto no n.º 1 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, deve ser atendido com referência ao valor do pedido inicialmente formulado em primeira instância; a sucumbência equivale à diferença entre o valor do pedido feito na acção e o valor atribuído pelo acórdão do Venerando Tribunal da Relação; de facto o A. atribuiu inicialmente à acção o valor de € 42.589,72; foi proferida decisão em primeira instância, condenando a R. no pagamento de € 14.070,22; o A. não interpôs recurso daquela decisão, mas não o fez porque naquela primeira decisão estava disposto a aceitar um prejuízo parcial, decorrente da decisão proferida, sendo que tal não significa que o A. estava disposto a aceitar um prejuízo, o qual com a decisão Tribunal da Relação de Évora esse prejuízo se tornou muito mais gravoso.

Nesse sentido, entende o Recorrente que a não interposição de recurso de apelação irreleva e que “o prejuízo que serve de base para definir o valor da sucumbência é sempre igual em qualquer fase do processo: a diferença entre aquilo que a parte pensa ser o seu direito, o valor do seu pedido, e o valor no qual a decisão de que recorre lhe fixa esse mesmo direito, sendo esse, para todos os efeitos, o seu prejuízo efectivo”.


Por despacho do relator de 28/6/2021, foi decidido que, sendo o valor da sucumbência um valor não superior a € 15 000,00, ou seja, valor inferior a metade da alçada da Relação, tal impede a interposição de recurso de revista, recurso que, dessa forma, não foi admitido.

O Reclamante requer agora que a Conferência se pronuncie, nos termos do disposto no artº 652º nº 3 CPCiv.

Factos Provados

Encontram-se provados os factos relativos à tramitação processual e à alegação do Recorrente, supra resumidamente expostos.


Conhecendo:

Os fundamentos da presente reclamação para a Conferência encontram-se supra elencados.

Pese o devido respeito, na ausência de novos argumentos, coloca-se agora à apreciação da Conferência os exactos termos do despacho anteriormente proferido.

E assim, como é sabido (artº 629º nº 1 CPCiv), o recurso ordinário só é admissível:

- quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre;

- e quando a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

Nos termos do artº 44º nº 1 LOSJ, a alçada dos tribunais da Relação encontra-se fixada em € 30 000,00.

Ora, o Autor formulou, no respectivo petitório, pedido de indemnização de € 42.589,72, acrescido de juros de mora.

A final, a Ré seguradora veio a ser condenada a pagar ao Autor a quantia global de € 14 070,22, acrescida dos respectivos juros.

Apenas a Ré interpôs recurso de apelação – contra-alegando, o Autor pugnou pela improcedência do recurso.

Conhecendo da matéria do recurso de apelação, a Relação absolveu a Ré do pedido.

Ora, em matéria de valor de sucumbência no recurso de revista, a interpretação propugnada pelo Autor/Recorrente foi já objecto de resposta uniformizadora no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 10/2015 - Diário da República n.º 123/2015, Série I, de 2015-06-26 – tendo sido afastada, nos seguintes termos:

"Conformando-se uma parte com o valor da condenação na 1ª instância e procedendo parcial ou totalmente a apelação interposta pela outra parte, a medida da sucumbência da apelada, para efeitos de ulterior interposição do recurso de revista, corresponde à diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1ª instância e no acórdão da Relação".

Portanto, o valor da sucumbência do Autor situa-se no valor da condenação em 1ª instância - € 14 070,22, valor inferior a metade da alçada da Relação supra aludido.

Como considerar, porém, a condenação do Réu nos juros contados, seja da citação, seja da sentença, como constante do dispositivo desta última?

Nos termos do artº 297º nº2 2ª parte CPCiv, «quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos».

Daí que se possa plenamente afirmar a irrelevância do pedido de juros para a determinação do valor da causa.

A condenação em juros não constitui o objecto próprio da acção e está fora do âmbito da controvérsia, emergindo, unicamente, como consequência da dedução do pedido principal.

E se o pedido de condenação em juros não releva para a determinação do valor da causa, também não pode ser tido em conta para achar o valor do decaimento do pedido com vista a apurar se a decisão é recorrível ou não – veja-se Ac. S.T.J. 14/12/2006, pº 06S2573 (Pinto Hespanhol), e demais jurisprudência ali citada.

Logo, não há qualquer dúvida de que, sendo o valor da sucumbência um valor não superior a € 15 000,00, ou seja, valor inferior a metade da alçada da Relação, tal impede a interposição de recurso de revista.

Concluindo:

I - Sendo o valor da sucumbência um valor não superior a € 15.000,00, ou seja, valor inferior a metade da alçada da Relação, tal impede a interposição de recurso de revista.

II – “ Conformando-se uma parte com o valor da condenação na 1ª instância e procedendo parcial ou totalmente a apelação interposta pela outra parte, a medida da sucumbência da apelada, para efeitos de ulterior interposição do recurso de revista, corresponde à diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1ª instância e no acórdão da Relação" – cf. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 10/2015 - Diário da República n.º 123/2015, Série I, de 2015-06-26.

III - Se o pedido de condenação em juros não releva para a determinação do valor da causa, também não pode ser tido em conta para achar o valor do decaimento do pedido com vista a apurar se a decisão é recorrível ou não.

Decisão

Confirma-se o despacho do relator.


Custas pelo Recorrente.


S.T.J., 14/10/2021



Vieira e Cunha (relator)                                              

Abrantes Geraldes                                              

Tomé Gomes