Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B820
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
Nº do Documento: SJ200304100008207
Data do Acordão: 04/10/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1689/02
Data: 10/31/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" e B interpuseram, em 31 de Julho de 2000, na 1ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, recurso de revisão, nos termos do art.º 771.º, al. c), do Código de Processo Civil, da sentença de 28 de Outubro de 1997, proferida no âmbito de uma acção, com processo ordinário.
Esta sentença julgou a acção procedente, e condenou, os ora recorrentes, a pagar a C - Sociedade Financeira para Aquisições a Crédito, S.A. - a quantia de 5. 319 609$00, acrescida de juros de mora, desde 15 de Fevereiro de 1992, até integral pagamento, bem como do imposto de selo sobre tais juros.
1.1. Para tanto, alegaram, em síntese que, na referida sentença condenatória, se considerou que os autores tinham recebido da vendedora um tractor, já que tinham subscrito o auto de recepção atinente a tal bem.
Ora, segundo dizem, sucedeu que a vendedora, em 10 de Março de 1992, emitiu uma declaração escrita, segundo a qual "não é possível entregar o tractor de marca FIAT (..) ao Senhor A (..) em consequência esta empresa compromete-se a devolver-lhe o montante do financiamento recebido por nós da C a que se refere o contrato n.º 8319 ".
Este documento chegou ao poder do recorrente há menos de 15 dias (nessa altura), sendo suficiente para pôr em causa os alicerces sobre os quais assentou a sentença.
2. Por despacho constante de fls. 15 a 19, o Senhor Juiz indeferiu liminarmente, o recurso de revisão, considerando-o manifestamente improcedente.
Inconformados, os recorrentes agravaram desse despacho, que a Relação de Lisboa confirmou (fls. 66).
3. Daí o presente agravo, onde se concluiu, na parte que releva de essencial para dele conhecer, o seguinte ( não sem esconder alguma dificuldade na compreensão da argumentação):
1. O critério que permitiria a distinção entre recursos ordinários e extraordinários, partia da noção de trânsito em julgado das decisões judiciais, sendo ordinários os recursos interpostos de decisão nos transitados em julgado.
2. A referida classificação legal viria também a ser consagrada no CPC de 1961 (art° 676º), regulando-se, no art° 771°, as condições da admissibilidade do recurso de revista, podendo dizer-se que o mesmo se delimita exclusivamente pelos seus fundamentos.
3. Um desses fundamentos é a apresentação de documento de que a parte não tivesse possibilidade de fazer uso no processo em que foi proferida a decisão, e que, por si só, seja suficiente para modificá-la, em sentido mais favorável à parte vencida (artigo 771°, c).
4. O referido preceito do C.P.C, tal como se encontra gizado, revela assinalável diferença de redacção relativamente o preceito correspondente do CPC de 1939, referindo-se, este último, a documento novo superveniente, que, por si só, fosse suficiente para destruir a prova em que a sentença se havia fundado.
5. Que, para determinação de uma estado de facto diverso daquele em que a sentença se fundou - a que alude ALBERTO DOS REIS (não se indica o lugar de texto) - quer para a determinação de uma decisão mais favorável à parte vencida, sempre o documento determinaria a alteração maior ou menor, das circunstâncias de facto em que a sentença se fundou. Mais precisamente, o que parecia exigir-se desse documento, para efeito da admissibilidade da revisão, era a criação de uma radical alteração da factualidade em que a sentença se fundava, de modo a destruir a prova realizada.
6. Daí que este contrato se não configure como de mútuo, atenta a definição que dele dá o art° 1.142º do Código Civil.
7. Os contratos, no entanto, definem-se pelos seus termos, e não pela designação feita pelas partes, sendo que a qualificação jurídica dos factos sempre compete ao Tribunal - art° 664°, do C PC.
8. Elemento essencial de um contrato de mútuo é a entrega de dinheiro ou outra coisa fungível, pelo «a convenção negocial só se considera perfeita, devidamente completada, com o acto material da entrega da coisa» - Prof. A. Varela, in. RLJ 124°- 252.
9. A relação que se estabelece entre o consumidor e o fornecedor dos bens é de «compra e venda», em que o preço é pago por terceiros, dele sendo reembolsado à posterior pelo consumidor .
10. Por sua vez, a relação que intercede entre o credor e o consumidor traduz-se na assunção da divida deste, pelo primeiro, naturalmente ratificada pelo vendedor dos bens (credor do preço dos bens fornecidos).
11. Assumida a divida, o novo devedor obriga-se perante o credor a pagá-la não existindo aqui, também, qualquer relação de mútuo.
12. Ora, a obrigação de entregar a coisa expressa no artigo 879°, alínea b), do Código Civil, é um dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda.
Sendo certo que a recorrida tinha uma reserva de propriedade sobre o bem (v .doc.1, anexo à p.i. cláusulas 5ª e 7ª).
13. O contrato de financiamento não pode produzir os seus efeitos atenta a falta da entrega do bem.
14. Competirá à recorrida accionar os mecanismos legais com vista à entrega do bem.
15. Não é assim inócuo o documento que serve de base ao recurso de revisão.
Concluindo:
O acórdão recorrido deverá ser substituído por outro que ordene o prosseguimento do recurso de revisão.
4. Estão provados os seguintes factos que relevam de utilidade para conhecer do agravo:
a. Por sentença de 28 de Outubro de 1997, os Recorrentes foram condenados a pagar à Recorrida a quantia de 5. 319 609$00, acrescida dos juros de mora, desde 15 de Fevereiro de 1992, até integral pagamento, bem como do imposto de selo sobre tais juros, baseando-se a condenação no incumprimento de um contrato (n.º 8319), que se qualificou de financiamento (mútuo), por falta de pagamento, desde logo, da primeira das prestações.
b. Dessa sentença não houve recurso ordinário.
c. A fls. 47 da acção, encontra-se um documento, junto pela Recorrida, denominado "auto de recepção/bem objecto de financiamento", assinado pelos recorrentes, na qualidade de "cliente", e, na qualidade de "vendedor", D - Sociedade Agrícola, L.da, do qual consta, como bem financiado, " um tractor de rastos FIAT Tipo SM Montanha" e a declaração: "O cliente acima referido declara que o bem supra foi, nesta data, entregue e instalado pelo vendedor e aceite definitivamente pelo cliente, pelo que, nos termos do n.º 10 das condições gerais, o contrato de financiamento entra imediatamente em vigor ".
d. No requerimento de recurso de revisão, a fls. 7, encontra-se um documento, com o timbre de D - Sociedade Agrícola, L.da, denominado "Declaração", assinado por "o gerente" e datado de 10 de Março de 1992, constando do mesmo o seguinte texto: " não é possível entregar o tractor de marca Fiat tipo SM, Montanha de rastos, ao Senhor A.
Em consequência esta empresa compromete-se a devolver-lhe o montante do financiamento recebido por nós da C a que se refere o contrato nº 8319".

5. Direito aplicável
1. A questão do agravo consiste em saber se o documento junto e referido na alínea d), anterior, é susceptível de corresponder à previsão do n.º 1, alínea c), do artigo 771º, do Código de Processo Civil, ao estabelecer que « A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão ... quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida».
Trata-se de um recurso extraordinário que, à semelhança do recurso de oposição de terceiro, permite a reabertura de um processo civil anteriormente encerrado, com trânsito da respectiva decisão, porque adjectiva uma realidade que não se verificou, ou provavelmente não se terá verificado, nos termos do julgado definitivamente.
A lei abre, excepcionalmente, a rediscussão de uma matéria definitivamente encerrada, porque, entre o interesse da certeza da declaração judiciária do direito e a exigência de um direito justo (ao ser declarado), considerou relevante a abertura do debate, mesmo que a decisão se encontre dentro da alçada do tribunal que decidiu, da forma viciada por que indica o aludido artigo 771º.
São vícios de tal modo graves que abalam o princípio da justiça material do caso, injustiça que interessa remover.
Mas também é verdade que o prestígio de um Estado de Direito recomenda que a reapreciação ("rescisão", como dizem os autores que tratam a matéria) de uma decisão judicial ( ou mesmo arbitral) com trânsito em julgado, só, por excepção, pode ser revista, dentro de determinado prazo, quando afectada na sua formação e formulação, por vícios graves que a desalicerçam - ou desalicerçam os pressupostos probatórios materiais em que se suportou.
A excepção - insista-se - corresponde ao segundo interesse acima referido, sacrificando um direito certo e seguro, por causa de um direito recto e justo.
5.1. Na situação em julgamento, foi apresentado um documento superveniente ao conhecimento do recorrente, relativamente à época que poderia dele fazer uso no processo, donde emergiu a sentença cuja revisão pede.
O documento superveniente apenas fundamentará a revisão quando, por si só, seja capaz de modificar a decisão em sentido mais favorável ao recorrente. Se o documento, quando relacionado com os demais elementos probatórios produzidos em juízo, não tiver força suficiente para destruir a prova em que se fundou a sentença, não se vê razão para se abrir recurso de revisão. (1)
O recorrente apresentou como fundamento da revisão o documento de mencionado na alínea d), da autoria da vendedora em que esta declara que não foi possível entregar o tractor.
É uma declaração cujo conteúdo contraria o conteúdo do documento de fls. 47, também da vendedora e dos recorrentes em que se declara que estes receberam o mesmo tractor. ( Note-se que é um auto de entrega - como o classifica o recorrente, fls.73).
5.2. A contradição é evidente! E não pode deixar de envolver um juízo de cumplicidade dos recorrentes ao declararem que receberam o tractor ( tal como a vendedora ao declarar que lho entregou), e virem agora, dizer que só, nesta altura, souberam do documento em que se nega a entrega, ou a possibilidade da sua entrega!
Ambos são documentos de natureza particular com força probatória igual.
O que é certo é que, para além da reserva atrás colocada que não resiste à observação da mais elementar argúcia, (e sugere a interrogação de saber, quando é que as partes disseram a verdade ?), seguro é que, as provas colhidas no processo, donde emergiu a sentença que se pretende rever, não se cingiram ao documento então apresentado, relevando de uma fundamentação de facto avaliada e motivada por forma mais ampla.
A este propósito, no artigo primeiro quesitado, perguntava-se se houve entrega real do tractor ao recorrente, tendo a pergunta sido julgada pela positiva (Fls.64).
5.3. A singularidade - de par com alguma estranheza - de um documento, ora apresentado, e pouco conciliável com a própria postura dos recorrentes, ao assinarem o primeiro documento (o de fls. 47), não confere garantidamente idoneidade suficiente que abra o caminho da revisão.
Caminho que, exporia, banalizando, o recurso de revisão a um qualquer documento (forjado ou não) posterior à decisão, ou supostamente, só ter sido conhecido pela parte a quem aproveita, depois dela proferida.
Não teria sentido vulgarizar a reabertura de um processo, quando a razão da lei ao permiti-la, depois de proferida a decisão definitiva, como se começou por salientar, é a título de excepção, repercutida com estreiteza, na idoneidade do motivo da revisão, na tipificação dos motivos e nos prazos da sua invocação.
5. 4. Observe-se ainda que o financiamento para a compra do tractor é uma coisa; outra coisa representa a sua entrega.
O compromisso da recorrida, feito em 1992, era financiar; não era entregar o tractor.
De nada interessa para aqui, argumentar-se com o mecanismo de operatividade do contrato de consumo face ao contrato de financiamento correspondente. (Conclusões: 9ª/13ª).
E mesmo assim não está demonstrado, nem sequer alegado, como é que a compra de um tractor (fatalmente para o exercício de uma actividade agrícola, porventura lucrativa) é um contrato de consumo, segundo o artigo 1º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (o destino do bem ou do serviço visa um fim não profissional).
De qualquer modo, é uma questão sem interesse, ou então com interesse lateral, pois que, o que é importante, é que os factos julgados provados, e nunca objecto de reclamação, não asseguram o caminho que os recorrentes pretendem seguir para demonstrar que não lhe foi entregue o tractor, como causa liberatória do seu compromisso obrigacional para com a financiadora - autor na acção donde emergiu a sentença, pretensamente revidenda.
5.5. Duas observações finais - uma interrogativa, outra afirmativa - a que não resistimos, mercê da necessidade de pedagogia judiciária que lhes está subjacente e que, nem sempre, a cultura judiciária a observa, como deve.
A observação interrogativa é esta:
Como (?) é que os recorrentes puderam ignorar, a seu tempo, a não entrega de um tractor agrícola " como se fosse uma agulha em palheiro", tentando passar, agora, esta mensagem ao Tribunal, em três níveis de instância?
Quanto à afirmativa: ignoram-se, ou então, aceitam-se com alguma estranheza, quais as vicissitudes de trajecto que levou os recorrentes, a um tempo, a subscrever o documento em que se declarou receber o tractor cuja aquisição a recorrida financiou; e, em outro momento, a abrir mão de novo documento, alegadamente de obtenção posterior, em que a empresa vendedora diz que não tinha possibilidade de lhes entregar o mesmo tractor!
Algures, pelo caminho, ficou o dinheiro!

6. Em síntese, no quadro exposto, o documento apresentado pelos recorrentes, não tem credibilidade para sustentar liminarmente o pedido de recurso extraordinário de revisão de sentença.
Bem andaram as instâncias ao indeferi-lo.
Termos em que, sem necessidade de maiores explanações, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 10 de Abril de 2003.
Neves Ribeiro
Araújo de Barros
Oliveira Barros
--------------------------
(1) Conselheiro Amâncio Ferreira Manual dos Recursos em Processo Civil, páginas 525