Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3414/18.6T8VNF-B.G1.S1-A
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
PRESSUPOSTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
IDENTIDADE DE FACTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :

É manifestamente inadmissível e destituído de base legal um recurso para uniformização de jurisprudência (art. 688, 1, do CPC) se não subsiste uma relação de identidade entre as questões de direito que foram objecto de decisão nos acórdãos alegadamente em confronto; se o acórdão recorrido, na argumentação prévia e coadjuvante para a argumentação tecida para resolver a sua questão recursiva, concorda e segue na fundamentação a linha interpretativa do acórdão fundamento; se a questão fundamental de direito em que assenta a decisão do acórdão fundamento não assume carácter fundamental ou essencial para a solução da questão fundamental de direito decidida no acórdão recorrido; não interessando sequer analisar se temos no caso situações materiais litigiosas que sejam análogas ou equiparáveis em termos de circunstancialismo fáctico, pois as decisões em confronto não são desde logo divergentes na questão de direito em que se tocam, tanto mais que, no acórdão recorrido, a questão de direito tratada no acórdão fundamento (relativa à impugnação judicial de actos abrangidos no arco de aplicação dos arts. 161º a 164º do CIRE) não constitui a verdadeira “ratio decidendi” da decisão final no acórdão recorrido (vertida sobre o relevo da omissão do acto de notificação dos relatórios do AI no que toca à validade vs. nulidade por “excesso de pronúncia” da decisão judicial final de encerramento no apenso de liquidação insolvencial).

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 3414/18.6T8VNF-B.G1.S1-A

Recurso para Uniformização de Jurisprudência (arts. 688º e ss CPC)

Recorrente – «Natcal – Produtos Químicos e Máquinas Têxteis, Lda.»

Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. Notificada do acórdão proferido em 9/11/2022, transitado em julgado em 24/11/2022, a Recorrente de revista «V..., S.A.», que recebeu e viu no aresto julgar-se improcedente a revista, veio interpor recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência (RUJ), ao abrigo dos arts. 688º e ss do CPC, alegando a contradição com o Acórdão do STJ proferido em 4/4/2017, processo n.º 1182/14.0T2AVR-H.P1, Rel. FONSECA RAMOS, juntando certidão com nota comprovativa do trânsito em julgado.

2. Foi declarada a insolvência da «Sociedade Imobiliária São Mateus, S.A.» por sentença judicial transitada em julgado.
Apreendidos os bens para a massa insolvente, o respectivo administrador de insolvência (AI) deu início à respetiva liquidação em apenso próprio (art. 170º do CIRE).
Do auto de apreensão de bens (arrolamento) a cargo do AI constam 4 verbas, sendo a verba n.º 2 descrita e referida como segue:

“Prédio Rústico, denominado “...”, composto por Pinhal, sito no Lugar ..., freguesia ... (...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09 (...) e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...0, com valor patrimonial de € 74,50, a avaliar. (Neste prédio foram construídos 10 pavilhões, não totalmente acabados.)

Mais se descreve no auto:

Os imóveis identificados sob a verba n.º 1 a 3 encontram-se onerados com hipotecas a favor da Caixa Geral de Depósitos, S.A.
Foi reclamado o direito de retenção sobre o imóvel da verba n.º 1.
O imóvel identificado sob a verba n.º 2 encontra-se onerado com hipotecas a favor da Caixa Geral de Depósitos, S.A. (1.ª hipoteca) e I... S.A.R.L. (2.ª hipoteca).
Foi reclamado direito de retenção sobre oito pavilhões da verba n.º 2.

*

Notificado em várias oportunidades para o efeito (art. 61º, 1, CIRE), o AI apresentou nos autos vários requerimentos e relatórios informativos sobre o estado da administração e liquidação (29/1/2019, 15/3/2019, 3/9/2019, 5/6/2020, 31/7/2020, 31/3/2021 e 28/6/2021).

No relatório de 15/3/2019, sob a ref.ª ...58, informou:

“(…) que se procede junto da Câmara Municipal à elaboração da propriedade horizontal a fim de poder cumprir a outorgar da escritura de compra e venda dos outros oito pavilhões prometidos vender, bem como da alienação no que tange aos outros dois pavilhões.”

Por sua vez, no relatório de 3/9/2019, sob a ref.ª ...09, informou:

“O processo continua a aguardar a decisão que vier a recair sobre os recursos interpostos da venda dos pavilhões construídos na “...”, verba n.º 2.”

Em despacho proferido em 3/10/2019, decidiu-se:

“Os autos aguardarão por 60 dias o desfecho das questões que se prendem com a verba n.º 2.”

No relatório de 5/6/2020, sob a ref.ª ...52, o AI informou:

(…) o imóvel apreendido para a Massa Insolvente, identificado na verba n.º 2, foi vendido à empresa “H...” no processo executivo n.º ...3..., apesar do registo da declaração de insolvência, pelo que interpusemos recurso e cuja decisão continuamos a aguardar.
(…)
Concluindo-se que o processo de insolvência aguarda a decisão que vier a recair sobre os recursos interpostos da venda da verba n.º 2.”

No relatório de 31/3/2021, sob a ref.ª ...61, informou:

“- O único imóvel apreendido nos presentes autos e que ainda não foi vendido é o imóvel identificado sob a verba n.º 2, o qual havia sido alienado no processo executivo n.º ...3... após a declaração de insolvência;
- Após interposição de recurso, (…) houve ainda lugar a recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não teve provimento – cfr. doc. ...;
- Assim, manteve-se a decisão que ditou a nulidade da venda operada no processo executivo supra referenciado, tendo sido agora o Administrador de Insolvência notificado do despacho cuja cópia se junta, onde é ordenado que a M. I. Agente de Execução proceda à restituição de “(…) tudo o que tiver sido prestado (…)” assim como “(…) à entrega à Massa Insolvente (…)” do imóvel em questão – cfr. doc. ...;
- Face ao exposto, o Administrador de Insolvência remeteu e-mail à M. I. Agente de Execução a fim de agilizar a entrega do imóvel, assim como do cancelamento do registo respeitante à venda agora anulada – cfr. doc. ...;
- Assim, e após todas as operações de anulação da venda, o Administrador de Insolvência procederá de imediato à alienação do imóvel aqui em questão, o único bem apreendido para a Massa que falta vender, de modo a dar por finda a liquidação do ativo.”

Por fim, no relatório de 28/6/2021, sob a ref.ª ...57, consta:

“1º – Na sequência do informado anteriormente e após todas as operações de anulação da venda, o Administrador de Insolvência procedeu à alienação do último imóvel apreendido para a Massa que faltava vender, de modo a dar por finda a liquidação do ativo.
2º – Assim, no passado dia 14.05.2021, procedeu-se à escritura definitiva de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial ..., Dr. AA, pela qual o credor “P..., Lda.” titular do direito de retenção sobre o imóvel, o adquiriu pelo preço de 480.000,00 euros – cfr. doc. ....
3º – Procedeu ao pagamento de 380.000,00 euros, tendo, desta forma ficado cumprido o contrato-promessa de compra e venda, pelo qual já tinha entregue à insolvente o montante de 100.000,00 euros a título de sinal.
4º – Face ao exposto, encontra-se encerrada a liquidação do ativo.

É o que cumpre ao A.I. informar V.ª Ex.ª para os devidos e legais efeitos.

Junta: Escritura de Compra e Venda e Extrato atualizado”.

Na escritura pública de compra e venda aludida sob o ponto 2.º deste último relatório, refere-se como objecto do contrato o seguinte bem: Prédio rústico denominado “...”, sito no Lugar ..., freguesia ... (...), concelho ..., inscrito na atual matriz predial rústica sob o artigo ...0, com o valor patrimonial tributário de 74,50 euros”.

*

Qualquer dos relatórios que antecedem não foi notificado a qualquer dos credores da insolvência ou da massa insolvente nem ao devedor insolvente.

*

A aqui Recorrente «Natcal» reclamou no apenso “B” do processo de insolvência (reclamação, verificação e graduação de créditos) um crédito de € 206.071,83, resultante da celebração de contrato-promessa com a devedora insolvente, em 23/12/2002, tendo como objecto (cláusula 1.ª) o “pavilhão número oito, com a área coberta de 800 m2, sito no Lugar ..., da freguesia ..., conforme Alvará de Licença de Construção n.º ...00”, que foi reconhecido como “comum” pelo AI (após resolução) no relatório elaborado nos termos do art. 129º, 1, do CIRE (ref.ª CITIUS n.º ...03); impugnou essa natureza, sustentando que o crédito deveria ser classificado como “garantido” pela existência de direito de retenção sobre o referido “pavilhão” prometido vender (ref.ª CITIUS ...09).

A adquirente do imóvel correspondente à verba n.º 2 do auto de apreensão de bens para a massa insolvente, a saber, a «P..., Lda.» (doravante, «P...») reclamou no mesmo apenso “B” do processo de insolvência um crédito de € 200.000, resultante da celebração de contrato-promessa com a devedora insolvente em 21/10/2008, tendo como objecto (cláusulas 1.ª e 2.ª) “oito pavilhões dos referidos dez pavilhões em construção”, “destinados a comércio e indústria, com os n.os 1 a 10, que estão a ser construídos sobre o solo do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...0 e descrito na Conservatória do Registo Predial competente sob o nº ...81, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., ao abrigo do alvará de licença nº 490/2006, emitido pela Câmara Municipal ..., com processo de construção nº ...0” (ref.ª CITIUS n.º ...94), tendo sido reconhecido pelo AI no relatório elaborado nos termos do art. 129º, 1, do CIRE um crédito de € 100.000 como “privilegiado” pela existência de direito de retenção (ref.ª CITIUS n.º ...03); impugnou (i) o montante do crédito reconhecido, uma vez que deveria ser reconhecido o valor correspondente à restituição do sinal pago em dobro (= € 200.000), acrescido de juros vincendos moratórios, com o direito de retenção referido ao “prédio rústico, sito no Lugar ..., na freguesia ... (...), do concelho ... sob o n.º ...81 e inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo ...0º ou sobre os pavilhões industriais aí existentes e construídos ao abrigo do alvará de licença n.º 490/2006 emitidos pela Câmara Municipal ..., a que correspondia o processo de construção n.º ...0”; (ii) a verificação do crédito do reclamante a título de benfeitorias realizadas no prédio objecto do contrato no valor de € 207.997, 68, com reconhecimento do direito de retenção do mesmo prédio rústico ou dos pavilhões industriais aludidos; (iii) o reconhecimento do crédito sob condição suspensiva (art. 50º, 2, a), CIRE), “uma vez que não foi tomada ainda decisão quanto à execução ou recusa do cumprimento do contrato promessa” (ref.ª CITIUS ...81).

Em 18/2/2019, o AI comunicou à «P...» a decisão de “cumprir o contrato prometido de compra e venda de 8 pavilhões industriais dos dez existentes em construção no prédio rústico (…)”, o que foi comunicado e junto aos autos nesse apenso “B” e nessa mesma data (ref.ª ... n.º 8267714).
             
Em 7/3/2019, o AI requereu prazo para “proceder às diligências necessárias à preparação da referida propriedade horizontal a fim de individualizar as fracções e efectuar a escritura referente aos mesmos”, considerando que “em relação aos 10 pavilhões apreendidos sob a verba n.º 2, oito deles são da P... enquanto que os outros dois pertencem a entidades diferentes” e “torna-se necessário proceder à propriedade horizontal para individualizar os lotes, sem a qual não é possível outorgar a escritura em separado” (ref.ª CITIUS n.º ...05).
             
Em 20/9/2021, o AI veio aos autos do apenso “B” esclarecer: “d) Em resultado da celebração do negócio relativo à verba n.º 2 com a P..., Lda. ficou efetivamente ultrapassada a questão que se prendia com o seu direito de retenção sobre as 10 estruturas inacabadas, semi edificadas sobre o prédio rústico apreendido sob a verba n.º 2, sendo que, com esta venda, a P..., Lda., ex detentora do direito de retenção, fundiu a posse do imóvel com a sua propriedade efetiva” (ref.ª CITIUS n.º ...34).

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Na última e corrigida lista de créditos reconhecidos apresentada nos autos (24/11/2021), depois de despacho proferido para o efeito em 9/11/2021 (ref.ª CITIUS n.º ...29), o AI relacionou o crédito da credora reclamante «P...» como € 0,00 (ref.ª CITIUS n.º ...12).

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Em 26/1/2022, foi proferido despacho de suspensão da instância no apenso “B”, antes de ser proferida decisão uma vez saneados os autos, determinando-se que “aguarde este apenso a decisão a tomar no apenso de liquidação até que ali transite em julgado a forma de desfecho daquele apenso”.

3. O Juiz ... do Juízo de Comércio ... proferiu decisão (4/7/2021) em que julgou encerrada a liquidação do activo, com o seguinte teor:

“Por se mostrarem liquidados todos os bens apreendidos para a massa insolvente, conforme informação prestada nos autos, julgo encerrada a liquidação do ativo.
Notifique.

O Administrador da Insolvência deverá juntar, em 10 dias, a prestação de contas.

No mais,
Vão, desde já, os autos principais à conta.

Arquive este apenso, por não existiram custas autónomas”.

4. Inconformada, a credora «Natcal – Produtos Químicos e Máquinas Têxteis, Lda.» interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG), ao qual se juntou igualmente o inconformismo revelado pelo recurso de apelação da credora «P..., Unipessoal, Lda.».
Foi proferido despacho de admissão dos recursos e, quanto à nulidade imputada pela Apelante «Natcal», concluiu-se pela respectiva improcedência, nos seguintes termos:

“Dado que as nulidades que invocam decorrem da falta de notificação do requerimento apresentado pelo Administrador da Insolvência onde dava conta da conclusão das diligências de venda, considerado que a sentença não padece, ela própria, de qualquer nulidade”.

Na sequência, o TRG proferiu acórdão (13/7/2022) que julgou:

(i) rejeitar o recurso interposto pela apelante “P..., Unipessoal, Lda.”;

(ii) quanto ao recurso interposto pela apelante «Natcal – Produtos Químicos e Máquinas Têxteis, Lda.»:
“a – admitir a junção aos autos dos documentos juntos pela apelante em anexo às suas alegações de recurso, exclusivamente pelos fundamentos supra expostos;
b – rejeitar o recurso apresentado (…) quanto ao pedido principal que formula, em que pede que esta Relação revogue a sentença recorrida e proceda à sua substituição “por outra em que ordene a prossecução do presente apenso através da declaração de nulidade da supra identificada escritura pública de compra e venda, dado que o Sr. Administrador Judicial transmitiu o prédio baseado numa promessa, até ao momento inexequível e abrangendo um ativo superior ao pactuado”;
c – no mais, julgam a presente apelação improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.”

5. Novamente inconformada, a credora «Natcal» interpôs recurso de revista excepcional para o STJ, fundando-se em oposição jurisprudencial nos termos do art. 672º, 1, c), do CPC.
No acórdão final, foi preliminarmente configurada a impugnação recursiva a título de revista normal por convolação processual (arts. 6º, 2, 193º, 3, 547º, CPC), uma vez não verificada a hipótese da dupla conformidade impeditiva da revista (art. 671º, 3, CPC), fazendo apelo do fundamento previsto nos arts. 671º, 1, e 674º, 1, c), do CPC.

6. A aqui Recorrente para o Pleno das Secções Cíveis finalizou as suas alegações neste RUJ com as seguintes Conclusões, visando a revogação do acórdão recorrido e a fixação de jurisprudência no sentido em que “o disposto no artigo 163º do CIRE não pode ser interpretado de forma a excluir o papel imparcial e soberano do Juiz no incidente de liquidação da massa insolvente, tendo este o dever, a obrigação, de apreciar toda a tramitação respetiva, nomeadamente a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência”:

“A) O Douto Acórdão ora recorrido e conforme dele expressamente decorre, adere e sufraga, no essencial, a fundamentação do Acórdão proferido em segunda instância, o qual entende que, como não existe sindicância judicial obrigatória aos atos praticados pelo administrador judicial nem tão pouco a possibilidade destes serem impugnados junto do Juiz, também não é necessária a notificação aos interessados dos atos pelo administrador judicial praticados.

B) Ou seja, no entendimento proferido pelo Acórdão recorrido, assiste-se, na prática, a uma demissão da intervenção judicial no escrutínio destes atos, impelindo à necessidade dos interessados processuais deles tomarem conhecimento unicamente através da sua consulta nos próprios autos.

C) O aludido entendimento, com o sempre devido e muito respeito, não parece razoável, equivalendo a uma “missão impossível” por parte dos intervenientes processuais, pois não é raro suceder, como “in casu”, que a tramitação de um apenso de liquidação demore anos a ser concluída e, sem a necessária notificação aos intervenientes processos, com o concomitante e indispensável escrutínio por parte do Juiz do processo previamente ao seu encerramento, dos atos em tal apenso praticados ou a possibilidade destes serem judicialmente impugnados, levará a que todo o tipo de ilegalidades sejam cometidas sem qualquer crivo ou apreciação judicial.

D) O entendimento perfilhado pelo Douto Acórdão fundamento terá de ser forçosamente o acolhido pois acresce que o que resulta do Acórdão ora recorrido já foi, inclusivamente, declarado inconstitucional, pelo próprio Tribunal Constitucional através do seu Acórdão nº 616/2018 de 21.11.2018 relativo ao processo 251/2018, por preterição do artigo 20º nos 1, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa.

E) Conforme bem é referido no mencionado Douto Acórdão desse Colendo Tribunal, “Cremos que tal entendimento viola o art. 20º, nos 1 e 5, da Constituição da República se se entender, como no Acórdão recorrido, que “O administrador está vinculado a actuar como administrador criterioso e ordenado, sob pena de responder pelos danos que a sua actuação cause aos credores. Contudo, os seus actos não podem ser impugnados perante o juiz, já que perante terceiros, em regra, se mantém válidos e eficazes, sem prejuízo do dever de indemnização que façam recair sobre o administrador…”

F) ”… A tutela jurisdicional deve ser efectiva, e não o é quando a lei assegura, mas de forma colateral, a “protecção” de direitos, quando a parte, que se considera prejudicada em processo pendente, argui perante o Juiz, a existência de vícios processuais que contendem com o seu direito.

G) No caso, mesmo que a prática de actos de especial relevo da competência do administrador da insolvência, na fase de liquidação da massa insolvente, evidenciem terem sido por si violados os arts. 161º e 162º do CIRE pelo administrador da insolvência, o art. 163º do CIRE estatui que tal violação “não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”.

H) Este normativo, na interpretação do Acórdão recorrido, não contempla o direito da parte lesada, no incidente de liquidação, por acto ou omissão do AI, poder arguir, perante o Juiz do processo, vícios procedimentais. A vingar tal interpretação, o remédio ao alcance de quem no processo for lesado, por actuação ilegal daquele órgão, é nenhum em termos imediatos e de proporcionalidade, exprimindo indefesa. (bold e sublinhado nosso)

I) A lei confere ao lesado como que uma possibilidade de actuação sancionatória de um órgão da insolvência, mas permanece eficaz o acto praticado que não será sindicável no processo. Parece incongruente: o lesado quererá, sobretudo, ver declarada a ineficácia de um acto que patrimonialmente pode ser danoso. (bold e sublinhado nosso)

J) Não obterá a reparação, pela via da arguição da nulidade processual do acto, mas apenas, no contexto de responsabilização em acção judicial em que terá que ser demandante, podendo obter uma indemnização pelos prejuízos sofridos.

K) O processo de insolvência, que o legislador quis célere e desjudicializado, não pode erigir tais valores em objectivos em si mesmos, com prejuízo dos interesses que nele se jogam. A celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do Juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência.

L) A interpretação que o douto Acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação violadora do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar essa actuação ilícita perante o Juiz do processo, e que o despacho do julgador da 1ª Instância que apreciou tal arguição decretando a pedida nulidade, é ilegal por o acto ser eficaz, considerando que resta ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o AI, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o art. 20º, nos 1 e 5, da Constituição da República, por não assegurar imediatamente no processo, tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador, estando no limite de violar o princípio da proibição da indefesa. (sublinhado nosso)

M) Efectivamente, “no balanceamento ou ponderação de interesses” do credor, alegadamente lesado, no seu interesse patrimonial, e as exigências de “simplificação, celeridade e desjudicialização”, que não permitem directa e imediata sindicância judicial de actos violadores da lei, fazem pender, desproporcionalmente, o equilíbrio processual e substantivo, não sendo compagináveis com aquele princípio constitucional – cfr. Processo nº 110/2015, I Série do Diário da República de 8.6.2015.

N) Assim, este Supremo Tribunal de Justiça considera que a interpretação que, no Acórdão recorrido foi acolhida do art. 163º do CIRE, sentenciando que “a decisão recorrida tem de ser revogada por o decidido [anulação da venda] exceder os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência em relação aos actos praticados na liquidação do activo”, é materialmente inconstitucional, por violar o art. 20º, nos 1 e 5, da Constituição da República, do ponto em que não garante ao lesado tutela jurisdicional efectiva do seu direito, e, consequentemente, revoga o Acórdão recorrido.

EM CONSEQUÊNCIA DO EXPOSTO

O) Parece evidente que a interpretação acolhida pelo Douto Acórdão ora recorrido na sequência da sua adesão à fundamentação do Acórdão de segunda instância e relativamente ao artigo 163º do CIRE, de que inexiste no âmbito do CIRE a faculdade de impugnar junto do juiz os atos do administrador da insolvência, viola a tutela jurisdicional efetiva e assim artigo 20º nos 1, 4 e 5 da Constituição da República, inconstitucionalidade esta que se argui expressamente.

P) E assim, evidente se torna de que assiste legitimidade à Recorrente para arguir a nulidade do Douto Despacho prolatado em primeira instância, ao abrigo do disposto nos artigos 195º nº 1 e 615º nº 1 al. d) do CPC o qual extingue, sem mais, o apenso de liquidação, dada a dimensão e gravidade da ilicitude dos atos praticados pelo administrador judicial, em grande parte consubstanciados na manifesta preterição de formalidades legais.

Q) Com efeito, compete ao Juiz do processo a pronúncia e o escrutínio, obrigatório, sobre os gravíssimos factos e actos praticados pelo Sr. Administrador Judicial e que correspondem a uma grosseira violação da lei, mormente dos artigos 161º, 163º e 164º do CIRE, pois qualquer interpretação deste artigo 163º que retire a esse mesmo Juiz esse direito inelutável à tutela jurisdicional efetiva do direito da Recorrente viola, conforme supra referido, o disposto no artigo 20º nos 1, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa.

R) O Sr. Administrador Judicial fez “tábua rasa” das suas obrigações legais, sendo certo que a sua destituição e/ou a eventual possibilidade aventada no Acórdão de segunda instância ao qual o Acórdão recorrido, repete-se, aderiu, de ser proposta ação judicial autónoma contra a sua pessoa e contra a compradora, não é de todo suficiente para assegurar os lídimos interesses da Recorrente e/ou de qualquer outro credor da presente insolvência.

S) Aliás, como bem é referido no Acórdão fundamento, não é concebível que um administrador judicial utilize e disponha dos bens de uma massa insolvente a seu “bel prazer” sem que o Juiz titular do processo possa escrutinar os seus atos.

T) Sendo assim certo que a interpretação dada ao artigo 163º do CIRE por parte do Acórdão recorrido ao aderir à fundamentação do Acórdão de segunda instância, é inconstitucional, por violar a referida tutela jurisdicional efetiva e assim, o disposto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa temos pois, que a nulidade do Despacho proferido pelo Tribunal de primeira instância, invocada pela Recorrente deverá ser, por V. Exas., Venerandos Conselheiros, julgada procedente dado que o Juiz tem forçosamente de se pronunciar sobre os atos praticados pelo Administrador Judicial que são um absoluto atropelo à legalidade e com óbvios e evidentes indícios criminais.

U) Com efeito e conforme resulta das alegações de revista, a Recorrente é credora privilegiada e assim, com categoria superior ao credor hipotecário por, muito embora se aguarde ainda o julgamento da impugnação apresentada, por deter o direito de retenção sobre um dos armazéns pertencentes à sociedade insolvente e que foi entretanto ilicitamente vendido pelo administrador judicial.

V) Acresce ao supra exposto de que a tutela jurisdicional efetiva “in casu” é premente, pois a Douta Sentença de primeira instância ao declarar findo, sem mais, o apenso de liquidação, valida sem prévia análise judicial, gravíssimas ilegalidades nele ocorridas.

W) Tinha o Tribunal de primeira instância a obrigação de analisar e escrutinar o histórico do apenso bem como os termos concretos da venda efetuada pelo Administrador Judicial e que ele próprio juntou aos autos, previamente a extinguir, sem mais, o apenso respetivo através do Douto Despacho colocado oportunamente em crise pela Recorrente, pelo que a sua nulidade é inquestionável.

X) Com efeito, o Sr. Administrador Judicial por requerimento de 26.12.2018, referência ...94 do apenso “C” destes autos junta à apelação como doc. nº ..., juntou a reclamação de créditos apresentada pela credora “P...”, a qual se encontra instruída com o contrato promessa de compra e venda que, na sua cláusula 2ª, promete vender oito dos dez prédios que fazem parte da verba nº 2 do auto de apreensão.

Y) Ulteriormente, por requerimento de 07.03.2019, referência ...05 do apenso “C”, o Sr. Administrador Judicial e bem, diga-se, declara, relativamente à mesma verba nº 2, ser “necessário proceder à propriedade horizontal para individualizar os lotes, sem a qual não é possível outorgar a escritura em separado.” mais peticionando à Meritíssima Juiz “a quo” “o prazo de 30 dias para proceder às diligências necessárias à preparação da referida propriedade horizontal a fim de individualizar as fracções e efectuar a escritura referente aos mesmos.”, isto “sem prejuízo de tal poder acontecer antes, uma vez que fará tudo o que for possível para abreviar tal facto.”, do qual obteve provimento através do Douto Despacho de 12.03.2021, referência ...25 do apenso “C”.

Z) A 12.04.2019, a credora “P...”, através de requerimento com a referência ...14 do apenso “C”, informa estes autos que “o Sr. Administrador de insolvência em 18 de Fevereiro de 2019, comunicou à reclamante a sua intenção em cumprir o contrato prometido de compra e venda de oito pavilhões industriais dos dez existentes em construção no prédio rústico, sito no Lugar ..., na freguesia ... ( ...), do concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...81 e inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo ...0.º ou sobre os pavilhões industriais, aí existentes e construídos ao abrigo do alvará de licença n.º 490/2006 emitido pela Camara Municipal ..., a que correspondia o processo de construção n.º ...0. (sublinhado nosso)

A.A.) “Mais comunicou que a respetiva escritura de compra e venda seria outorgada no Cartório Notarial ... no dia 12 de Março de 2019 às 11,30H.
A reclamante respondeu afirmativamente a esta marcação, questionando apenas o Sr.º administrador sobre a existência ou não da propriedade horizontal referente às construções existentes no dito terreno. (sublinhado nosso)
Perante este alerta, o Sr.º Administrador, veio requerer a este tribunal o prazo de 30 dias para proceder às diligências necessárias à preparação da referida propriedade horizontal a fim de individualizar as fracções e efectuar a escritura referente dos mesmos. (sublinhado nosso)
O requerido foi deferido por este tribunal.

A.B.) A 29.04.2019, por requerimento com a referência ...95 do apenso “C”, o Sr. Administrador Judicial refere que “Conforme informado nos autos, em relação ao cumprimento dos contratos prometidos vender, procedeu-se à escritura de compra e venda do imóvel apreendido sob a verba n.º 1, não se tendo procedido à escritura do imóvel aprendido sob a verba n.º 2, uma vez que da mesma fazem parte 10 pavilhões, e o contrato prometido apenas incidir sobre oito pavilhões.
Motivo por que foi necessário recorrer à elaboração e aprovação da propriedade horizontal junto da Câmara Municipal.”

A.C.) De igual forma e já neste apenso, o Sr. Administrador Judicial por requerimento de 15.03.2019, referência ...58, vem informar a Meritíssima Juiz “a quo” “mais uma vez que se procede junto da Câmara Municipal à elaboração da propriedade horizontal a fim de poder cumprir a outorgar da escritura de compra e venda dos outros oito pavilhões prometidos vender, bem como da alienação no que tange aos outros dois pavilhões.” (sublinhado nosso)

A.D.) A verdade porém é que, desde 15.03.2019 não informou mais o Sr. Administrador estes autos sobre a dita elaboração da propriedade horizontal do prédio, para que pudesse cumprir com os termos do contrato promessa.

A.E.) Qual não é o espanto da Recorrente quando é notificada da Douta Sentença cuja nulidade arguiu no recurso de apelação a declarar o apenso findo por alienação de todos os bens apreendidos, quando é certo que não teve conhecimento da existência da constituição de qualquer propriedade horizontal e sem que o Tribunal de Primeira Instância tivesse colocado qualquer questão, sem que tivesse feito qualquer escrutínio à total ilegalidade praticada, pelo administrador judicial.

A.F.) Ora, sendo a Recorrente credora privilegiada, muito embora com esta qualificação por dirimir no apenso “C” da reclamação de créditos e relativamente a um dos dez prédios do empreendimento, conforme resulta da sua reclamação de créditos junta por requerimento do Sr. Administrador Judicial de 26.12.2018, referência ...32 do mesmo apenso “C”, tinha legítimas expetativas em receber em sede de liquidação o valor respetivo previamente a qualquer outro credor e/ou para si adjudicar o prédio, nos termos legalmente previstos.

A.G.) Sucede que o Sr. Administrador Judicial e a credora “P...” cometeram uma gravíssima ilegalidade, que terá certamente, repete-se, contornos criminais, ao celebrarem, nos termos efetuados, a escritura pública de compra e venda de 14.05.2021, celebrada a folhas 38 a 40 verso das notas do Cartório de AA e que instrui o já supra mencionado requerimento 28.06.2021, referência ...57, não notificado a nenhum interveniente processual e sem qualquer escrutínio judicial em primeira instância.

A.I) Dela resulta que o Sr. Administrador Judicial e a credora “P...” em cumprimento do contrato promessa vendem a totalidade do prédio, ainda rústico e assim os dez pavilhões pelo preço constante do contrato promessa ou seja, pelo preço convencionado para a venda de oito pavilhões!!!!

A.J.) Muito embora o contrato promessa refira na sua cláusula 4ª que são prometidos comprar oito pavilhões ao preço de €: 60.000,00 (sessenta mil euros) cada, num valor total de €: 480.000,00 (quatrocentos e oitenta mil euros), o Sr. Administrador Judicial vendeu dez pavilhões pelo mesmo preço!!!!!

A.K.) E pior, o Sr. Administrador Judicial tem o desplante de declarar, de forma expressa, no ponto 3 do seu mencionado requerimento de 28.06.2021, referência ...57 que a credora “P...” “procedeu ao pagamento de € 380.000,00, tendo, desta forma ficado cumprido o contrato-promessa de compra e venda, pelo qual já tinha entregue à insolvente, o montante de € 100.000,00 a título de sinal.”

A.L.) E na própria escritura são referidos os pagamentos efetuados a título de sinal ainda ao abrigo do contrato promessa de compra e venda tudo tendo, em vista enganar o Tribunal e todos os demais intervenientes processuais o que é grave, muito grave!

A.M.) Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso para Uniformização de Jurisprudência e, em consequência, revogar-se o Douto Acórdão recorrido, fixando-se Jurisprudência de acordo com os fundamentos decididos no Douto Acórdão fundamento, assim se decidindo que o disposto no artigo 163º do CIRE não pode ser interpretado de forma a excluir o papel imparcial e soberano do Juiz no incidente de liquidação da massa insolvente, tendo este o dever, a obrigação, de apreciar toda a tramitação respetiva, nomeadamente a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência, sob pena de manifesta violação do artigo 20º nº 1, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 195º nº 1 e 615º nº 1 al. d) do CPC e, consequentemente, dos artigos 161º, 163º e 164º do CIRE.
 
A.N.) Em consequência de tal uniformização de jurisprudência, deve o Douto Acórdão ora recorrido ser revogado e, em consequência, ser este substituído por outro que declare a nulidade da Sentença proferida em primeira instância, compelindo o Juiz a prosseguir com os termos do apenso de liquidação através, nomeadamente, do competente escrutínio judicial de toda a sua tramitação e assim, da supra identificada escritura pública de compra e venda dado que o Sr. Administrador Judicial transmitiu o prédio baseado numa promessa, até ao momento inexequível e abrangendo um ativo superior ao pactuado bem como ordenando as notificações legalmente previstas aos credores para sua ulterior pronúncia, mormente o teor do requerimento apresentado pelo Sr. Administrador Judicial a 28.06.2021, referência ...57.”

Nenhuma das restantes partes apresentou contra-alegações.

7. Uma vez aferidos os requisitos legais de admissibilidade do recurso, fixados nos termos dos artigos 688º, 689º, 690º e 692º, 1, do CPC, foi proferida Decisão Singular de Apreciação Liminar,  de acordo com o previsto no art. 692º, 1, do CPC, dispondo a rejeição deste RUJ.

8. Inconformada, veio a Recorrente deduzir Reclamação para a Conferência, de acordo com o admitido no art. 692º, 2, do CPC, pugnando novamente pela admissão do presente RUJ, em especial tendo em conta a necessidade de “uniformizar o papel, os poderes do Juiz, no âmbito do artigo 163º do CIRE, na análise dos atos praticados pelo administrador judicial”.

*

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir em conferência.

II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO

A decisão singular agora reclamada estruturou-se em diferentes parcelas de análise e fundamentação.

A saber – e transcrevemos nesta oportunidade.

1. Sobre a questão fundamental de direito e os requisitos de admissão do RUJ


1.1. A Recorrente identifica como objecto de decisão contraditória no STJ a questão de direito relativa à faculdade de impugnar junto do juiz os actos do administrador da insolvência que consubstanciem a violação do regime predisposto em conjunto pelos arts. 161º, 163º e 164º do CIRE.

1.2. O art. 688º, 1, do CPC estabelece: «As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito».

Não basta que se verifique uma qualquer diversidade ou oposição de acórdãos para que se sacrifique a certeza do caso julgado e o STJ seja chamado a pronunciar-se em Pleno. Para este efeito, tem de existir uma inequívoca contradição entre o modo como dois acórdãos decidem a mesma questão fundamental de direito.

Para que a contradição exista é necessário que os acórdãos em confronto interpretem e apliquem a ou as mesmas disposições legais, num e noutro acórdão, em termos opostos (de forma directa e expressa, por regra), sendo essa interpretação/aplicação essenciais para a decisão jurídica obtida numa e noutra das decisões (ratio decidendi), no contexto de uma identidade ou similitude do núcleo factual subjacente, o que tem pressuposta, por via de regra, a equiparação tipológica das circunstâncias do litígio ao qual a lei é aplicável.


2. Os acórdãos em confronto

2.1. No acórdão recorrido, o objecto da revista incidiu sobre a “invocação da nulidade imputada à decisão proferida pelo juiz em 1.ª instância (arts. 195º, 1, e 615º, 1, d), do CPC), por omissão da notificação do relatório sobre o estado da administração e liquidação a cargo do AI, com referência, no que toca à actuação do administrador da insolvência, à demanda pela Recorrente para o caso dos arts. 161º, 163º e 164º do CIRE”.

Assim, decidiu-se, preliminarmente, que o vício imputado configuraria uma nulidade decisória enquanto alegado “excesso de pronúncia” (art. 615º, 1, d), 4, CPC);
depois ponderou-se “se o vício apontado teria consequência sobre a validade processual da decisão de encerramento da liquidação em função do (não) exercício de contraditório convocado pela aplicação do estatuto de poderes-deveres funcionais do AI, para efeitos de aplicação do art. 195º, 1, do CPC, no que toca à não notificação do(s) relatório(s) do AI sobre o estado da liquidação, prévio a essa mesma decisão sobre o encerramento do apenso liquidatório”;
por outras palavras, usadas mais à frente, “saber se a não notificação dos relatórios do AI constitui um vício processual nos termos do art. 195º, 1, do CPC, que contagia com gravidade e depois a decisão judicial final” (nos termos do art. 615º, 1: nulidade decisória).

2.2. No acórdão fundamento, o objecto recursivo incidiu sobre a seguinte questão:

saber se é possível impugnar (invocação da nulidade) junto do juiz do processo de insolvência a venda por negociação particular, realizada pelo AI, de duas fracções autónomas prediais integradas na massa insolvente, tendo em conta que o crédito reclamado e reconhecido ao credor recorrente dispunha sobre elas de garantia hipotecária, à luz da sindicação  do disposto no arts. 164º, 2 e 3, e 165º do CIRE, e 815º, 2 e 3, do CPC, em face do contexto de interpretação e aplicação do art. 163º do CIRE.

E, nesse âmbito, argumentou-se:


“Será o regime legal vigente, de reacção aos actos ilegais do AI, mormente o art. 163º do CIRE, compatível com a tutela jurisdicional efectiva dos direitos afectados no processo da insolvência?
Recusando-se ao juiz do processo de insolvência poder apreciar e anular a venda por negociação particular, promovida pelo AI, em violação das normas que lhe impõem a adopção das formalidades previstas nos arts. 161º e 162º do CIRE, não sairá afectado o direito fundamental dos prejudicados, de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previsto no art. 20º da Constituição da República?
Cremos que tal entendimento viola o art. 20º, nos 1 e 5, da Constituição da República se se entender, como no Acórdão recorrido, que “O administrador está vinculado a actuar como administrador criterioso e ordenado, sob pena de responder pelos danos que a sua actuação cause aos credores. Contudo, os seus actos não podem ser impugnados perante o juiz, já que perante terceiros, em regra, se mantém válidos e eficazes, sem prejuízo do dever de indemnização que façam recair sobre o administrador. Tanto basta para concluir que o recurso não pode deixar de improceder uma vez que não cabe na competência jurisdicional apreciar a regularidade dos actos praticados pelo administrador que motivaram o recurso.” (destaque e sublinhado nosso)
(…)
O art. 20º, nº1, da Constituição da República estatui: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” e o nº5 – “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
(…)
A tutela através dos tribunais deve ser efectiva. O princípio da efectividade articula-se, assim com uma compreensão unitária da relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais e organização e processo de protecção e garantia.
Não obstante reconhecer o direito à protecção de direitos e interesses, não é suficiente garantia o direito de acção para se lograr uma tutela efectiva. O princípio da efectividade postula, desde logo, a existência de tipos de acções ou recursos adequados (cfr. Código de Processo Civil, art. 2°-2), tipos de sentenças apropriados às pretensões de tutela deduzida em juízo e clareza quanto ao remédio ou acção à disposição do cidadão (cfr. As formas de processo hoje consagradas no Cód. Proc. Trib. Admin., arts. 35° e ss.). A imposição constitucional da tutela jurisdicional efectiva impende, em primeiro lugar, sobre o legislador, que a deve tomar em consideração na organização dos tribunais e no recorte dos instrumentos processuais, sendo-lhe vedado: (1) a criação de dificuldades excessivas e materialmente injustificadas no direito de acesso aos tribunais; (2) a criação de “situações de indefesa” originadas por conflitos de competência negativos entre vários tribunais.”
A tutela jurisdicional deve ser efectiva, e não o é quando a lei assegura, mas de forma colateral, a “protecção” de direitos, quando a parte, que se considera prejudicada em processo pendente, argui perante o Juiz, a existência de vícios processuais que contendem com o seu direito.
No caso, mesmo que a prática de actos de especial relevo da competência do administrador da insolvência, na fase de liquidação da massa insolvente, evidenciem terem sido por si violados os arts. 161º e 162º do CIRE pelo administrador da insolvência, o art. 163º do CIRE estatui que tal violação “não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepeto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”.
Este normativo, na interpretação do Acórdão recorrido, não contempla o direito da parte lesada, no incidente de liquidação, por acto ou omissão do AI, poder arguir, perante o Juiz do processo, vícios procedimentais. A vingar tal interpretação, o remédio ao alcance de quem no processo for lesado, por actuação ilegal daquele órgão, é nenhum em termos imediatos e de proporcionalidade, exprimindo indefesa.
Disporá, quem for prejudicado, do direito de intentar acção indemnizatória para obter a condenação do AI, pelos danos patrimoniais sofridos e pedir a destituição do cargo com justa causa, esta, sim, a apreciar no processo pelo Juiz.
A lei confere ao lesado como que uma possibilidade de actuação sancionatória de um órgão da insolvência, mas permanece eficaz o acto praticado que não será sindicável no processo. Parece incongruente: o lesado quererá, sobretudo, ver declarada a ineficácia de um acto que patrimonialmente pode ser danoso.
Não obterá a reparação, pela via da arguição da nulidade processual do acto, mas apenas, no contexto de responsabilização em acção judicial em que terá que ser demandante, podendo obter uma indemnização pelos prejuízos sofridos.
Segundo o art. 839º, nº1, c) do Código de Processo Civil, a venda forçada fica sem efeito, em processo executivo, se for anulado o acto da venda, nos termos do art. 195º, ou seja, são aplicáveis as regras gerais sobre a nulidade dos actos omissivos ou comissivos prescritos na lei. Não se ignora que a insolvência é um processo de liquidação universal, que se rege por regras próprias, sendo, subsidiariamente, aplicável o Código de Processo Civil, como prevê o art. 17º do CIRE; estando em causa, no processo de insolvência, interesses dos credores (que podem ser muitos) – a execução é universal e concursal – do devedor insolvente e outros, não parece que a não apreciação imediata no processo de direitos alegadamente violados, exprima tutela efectiva.
Só excepcionalmente – ut. parte final do art. 163º do CIRE – a violação do disposto nos arts. 161º, nº1, e 162º (que contemplam actos de “especial relevo”) conduzirá à ineficácia dos actos ilícitos praticados.
O processo de insolvência, que o legislador quis célere e desjudicializado, não pode erigir tais valores em objectivos em si mesmos, com prejuízo dos interesses que nele se jogam. A celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do Juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência.
A interpretação que o douto Acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação violadora do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar essa actuação ilícita perante o Juiz do processo, e que o despacho do julgador da 1ª Instância que apreciou tal arguição decretando a pedida nulidade, é ilegal por o acto ser eficaz, considerando que resta ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o AI, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o art. 20º, nos 1 e 5, da Constituição da República, por não assegurar imediatamente no processo, tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador, estando no limite de violar o princípio da proibição da indefesa.
Efectivamente, “no balanceamento ou ponderação de interesses” do credor, alegadamente lesado, no seu interesse patrimonial, e as exigências de “simplificação, celeridade e desjudicialização”, que não permitem directa e imediata sindicância judicial de actos violadores da lei, fazem pender, desproporcionalmente, o equilíbrio processual e substantivo, não sendo compagináveis com aquele princípio constitucional – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, de 12.5.2015, Processo nº110/2015, I Série do Diário da República de 8. 6.2015.
Assim, este Supremo Tribunal de Justiça considera que a interpretação que, no Acórdão recorrido foi acolhida do art. 163º do CIRE, sentenciando que “a decisão recorrida tem de ser revogada por o decidido [anulação da venda] exceder os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência em relação aos actos praticados na liquidação do activo”, é materialmente inconstitucional, por violar o art. 20º, nos 1 e 5, da Constituição da República, do ponto em que não garante ao lesado tutela jurisdicional efectiva do seu direito, e, consequentemente, revoga o Acórdão recorrido.”

Assim foi sumariado:

“A interpretação que o Acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar tal questão perante o Juiz do processo, e que a decisão judicial proferida na 1ª Instância, que decretou a pedida nulidade daquela venda, é ilegal por o acto ser eficaz, restando ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o administrador da insolvência, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o art. 20º, nos 1 e 5, da Constituição da República por não assegurar, imediatamente no processo, tutela efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do julgador.”

2.3. No acórdão recorrido, argumentou-se:

“Julgamos que, a partir do momento em que o AI promove a junção aos autos dos relatórios sobre o estado da administração e liquidação dos bens integrados na massa insolvente, este acto processual permite que a informação se torne acessível a todos os interessados e, em primeira linha, ao tribunal, a quem se destina de forma privilegiada (atento o poder fiscalizador conferido pelo art. 58º do CIRE[1], em conjugação com o art. 61º, 1, do CIRE)[2]. Aliás, a essa promoção acresce o dever de o AI permitir aos credores e ao próprio tribunal a consulta de toda a documentação referida nesses relatórios, se e quando tal lhe vier a ser solicitado, em condições que permitam a fiscalização do tribunal e o exercício dos direitos que assistam aos credores[3] (nomeadamente, aos credores com garantia real sobre bens a alienar, nos termos da tutela concedida pelo art. 164º, 2, do CIRE na fase da liquidação) e ao próprio devedor insolvente. Em contrapartida, tais deveres do AI são acompanhados por um ónus de diligência dos interessados, nomeadamente os credores da insolvência e da massa insolvente, relativamente ao conhecimento do conteúdo dos relatórios cuja elaboração e junção aos autos constituem dever legal específico e de execução vinculada por parte do AI.

Assim sendo, e incidindo sobre os interessados esse ónus e seu aproveitamento útil no processo de liquidação, não está excluída a reacção judicial contra actos de alienação levados a cabo pelo próprio AI, ou até mesmo dirigida à destituição do AI, por força de violação dos seus poderes-deveres funcionais (v. arts. 56º («a todo o tempo») e 169º do CIRE), na própria tramitação da liquidação da massa insolvente, e após o conhecimento desses actos – ou de decisão judicial que os tenha como pressuposto –, sem prejuízo de estar em aberto a propositura de acções autónomas para o efeito punitivo ou compensatório dessa violação (nomeadamente, a responsabilidade civil delimitada pelo art. 59º do CIRE).

Será o caso de se arguir a invalidade das alienações de bens onerados por direitos reais de garantia – especialmente tutelados no regime da liquidação insolvencial – a que o AI procede nos termos do art. 164º, 1, do CIRE, de acordo nomeadamente com a aplicação dos arts. 280º e 281º do CCiv., ou, para o caso de contravenção das garantias processuais individuais dos credores garantidos (art. 47º, 4, a), CIRE), enquanto manifestações dessa especial tutela do direito real de garantia, previstas nos n.os 2 e 3 do art. 164º do CIRE para a alienação de bens onerados com tais direitos (simpliciter, omissão de audição prévia e/ou informação do valor base fixado ou do preço da alienação projectada, assim como respeito do prazo para proposta de aquisição do bem), a anulação tout court de tais vendas (por aplicação do art. 839º, 1, c)[4], e 3[5], do CPC, ex vi art. 17º, 1, do CIRE; e efeitos do art. 289º do CCiv.) e/ou a revogação de decisão judicial na liquidação que tenha como pressuposto tais alienações, sempre por terem sido concluídas com a preterição de tais garantias formais (causa de nulidade processual, de acordo com o art. 195º, 1, do CPC, e convertível em nulidade de decisão subsequente, a arguir nos termos correspondentes), com a consequente ordenação do cumprimento de tais garantias antes de concluídas tais vendas[6].

A resposta a esta reacção pelo juiz no próprio apenso de liquidação não excede os respectivos poderes jurisdicionais em relação à conexão desses poderes com os actos praticados na liquidação do activo e por si fiscalizados (enquanto garante da legalidade)[7] e, por seu turno, não se encontra prejudicada pela estatuição de oponibilidade de ineficácia contemplada pelo art. 163º, reservada para a violação do disposto nos arts. 161º e 162º do CIRE[8].

Logo, essa faculdade poderia ser exercida por credor garantido, uma vez conhecido o relatório nos autos (eventualmente com o pedido de esclarecimentos ao AI) ou depois de notificada a decisão de encerramento da liquidação, invocando-se essa qualidade de credor com garantia real, como tal reconhecido e graduado, e a violação do n.º 2 do art. 164º do CIRE, no que respeita à invalidação da venda do imóvel relacionado como verba n.º 2 no auto de apreensão de bens e a consequente determinação da notificação do credor garantido e prejudicado nos termos desse preceito do CIRE – a este propósito, v. as Conclusões N) e A.B.) da revista quanto à ainda não reconhecida qualidade de credor garantido da Recorrente, atenta a impugnação feita no apenso “B” quanto à natureza do seu crédito, na correspondente (ainda não proferida) sentença de verificação e graduação (geral e especial) de créditos ex art. 140º, 1 e 2, do CIRE (cfr. pontos 16. e 20. do Relatório).

                  

Pois bem e sem prejuízo.

                  

Não foi este o contexto e o fundamento em que a aqui Recorrente invoca a nulidade da decisão de encerramento da liquidação e que foi objecto de apreciação pelo acórdão recorrido – cfr. nomeadamente Conclusões P) a R). Na verdade, questão diferente da antes exposta é tão-só saber se a não notificação dos relatórios do AI constitui um vício processual nos termos do art. 195º, 1, do CPC, que contagia com gravidade e depois a decisão judicial final.

Esta é a questão que o STJ reaprecia e apenas esta e a ela é alheio o eventual imbróglio jurídico relativo, em particular, à venda da verba n.º 2 em sede de liquidação e à natureza do crédito reclamado pela aqui Recorrente no apenso “B” deste processo de insolvência.

                  

Ora.

Deriva a nosso ver da lei que, no que tange à questão posta, não estamos perante um vício cometido pelo AI e que apresente reflexos no processo de liquidação quanto à validade da decisão proferida em 1.ª instância – esta não é nula por “excesso de pronúncia”, nos termos almejados pela Recorrente, por falta de exercício de contraditório.
Tal notificação não constitui um acto necessário prescrito pela lei que se radique como direito subjectivo dos intervenientes processuais a exigir ao AI ou ao tribunal; nessa circunstância, a sua omissão não pode ser censurada e, ademais, sobreleva o ónus de diligência dos interessados no respectivo conhecimento e subsequentes possíveis reacções no apenso de liquidação: o art. 61º, 1 – enquanto emanação do art. 55º, 5, sempre do CIRE – é claro na destinação do relatório de administração e liquidação e obriga apenas «a ser junto ao processo»; mesmo o art. 58º do CIRE não refere nem exige algo mais na relação do AI com o juiz e com o processo em si mesmo[9]; aos interessados cabe reagir ao conteúdo desses relatórios e às decisões judiciais que neles se apoiam – como é o caso da decisão proferida em 1.ª instância – sem que essa falta de notificação prejudique essa mesma faculdade de reacção.”    

Logo, assim se sumariou quanto à questão decidenda:

“Não enferma de nulidade decisória (arts. 195º, 1, 615º, 1, d), CPC: “excesso de pronúncia”) a decisão de encerramento da liquidação do activo apensada à insolvência sem que o(s) relatório(s) sobre o estado da administração e liquidação do administrador da insolvência, uma vez juntos aos autos por solicitação do juiz e disponíveis para fiscalização do tribunal e conhecimento dos interessados (arts. 61º, 1, 58º, CIRE), não tenha sido notificado aos credores da insolvência e da massa insolvente e ao devedor insolvente.”
           

2.4. Daqui resulta que, no que toca à questão elencada pela Recorrente como estando alegadamente em contradição, esta oposição não existe.

Ao invés, o acórdão recorrido concorda e segue a posição do acórdão fundamento quando conclui, na questão coadjuvante e tratada como preliminar da questão decidenda, em síntese:


(i) com a junção aos autos pelo AI dos relatórios sobre o estado da administração e liquidação dos bens integrados na massa insolvente, este acto processual permite que a informação se torne acessível a todos os interessados e desencadeia-se um ónus de diligência dos interessados, nomeadamente os credores da insolvência e da massa insolvente, relativamente ao conhecimento do conteúdo dos relatórios cuja elaboração e junção aos autos constituem dever legal específico e de execução vinculada por parte do AI;
(ii) aceita-se a reacção judicial contra actos de alienação levados a cabo pelo próprio AI, ou até mesmo dirigida à destituição do AI, por força de violação dos seus poderes-deveres funcionais, na própria tramitação da liquidação da massa insolvente, e após o conhecimento desses actos – ou de decisão judicial que os tenha como pressuposto –, como é o caso, em especial, de se arguir junto do juiz a invalidade das alienações de bens onerados por direitos reais de garantia – especialmente tutelados no regime da liquidação insolvencial – a que o AI procede nos termos do art. 164º, 1, do CIRE, de acordo nomeadamente com a aplicação dos arts. 280º e 281º do CCiv., ou, para o caso de contravenção das garantias processuais individuais dos credores garantidos (art. 47º, 4, a), CIRE), enquanto manifestações dessa especial tutela do direito real de garantia, previstas nos n.os 2 e 3 do art. 164º do CIRE para a alienação de bens onerados com tais direitos (omissão de audição prévia e/ou informação do valor base fixado ou do preço da alienação projectada, assim como respeito do prazo para proposta de aquisição do bem), a anulação tout court de tais vendas e/ou a revogação de decisão judicial na liquidação que tenha como pressuposto tais alienações, sempre por terem sido concluídas com a preterição de tais garantias formais;
(iii) sustenta-se que a resposta a esta reacção pelo juiz no próprio apenso de liquidação não excede os respectivos poderes jurisdicionais em relação à conexão desses poderes com os actos praticados na liquidação do activo e por si fiscalizados (enquanto garante da legalidade) e, por seu turno, não se encontra prejudicada pela estatuição de oponibilidade de ineficácia contemplada pelo art. 163º, reservada para a violação do disposto nos arts. 161º e 162º do CIRE; logo, essa faculdade poderia ser exercida por credor garantido, uma vez conhecido o relatório nos autos (eventualmente com o pedido de esclarecimentos ao AI) ou depois de notificada a decisão de encerramento da liquidação, invocando-se essa qualidade de credor com garantia real, como tal reconhecido e graduado, e a violação do n.º 2 do art. 164º do CIRE, no que respeita à invalidação da venda do imóvel em causa.

2.5. O certo é que, sendo manifesto o predito, não é essa a questão de direito que é resolvida no acórdão recorrido; antes o de saber se a notificação dos relatórios do AI constitui vício processual susceptível de constituir nulidade da decisão de encerramento da liquidação insolvencial.

Concluiu-se que tal notificação não constitui um acto necessário prescrito pela lei que se radique como direito subjectivo dos intervenientes processuais a exigir ao AI ou ao tribunal; a sua omissão não pode ser censurada e, ademais, sobreleva o ónus de diligência dos interessados no respectivo conhecimento e subsequentes possíveis reacções no apenso de liquidação; a falta de notificação não prejudica a anteriormente referida e sufragada faculdade de reacção junto do juiz do processo.

3. Da oposição jurisprudencial

Assim sendo:

— não subsiste uma relação de identidade entre as questões de direito que foram objecto de decisão nos acórdãos alegadamente em confronto;

— o acórdão recorrido, na argumentação prévia e coadjuvante para a argumentação tecida para resolver a sua questão recursiva, concorda e segue na fundamentação a linha interpretativa do acórdão fundamento;

— a questão fundamental de direito em que assenta a decisão do acórdão fundamento não assume carácter fundamental ou essencial para a solução da questão fundamental de direito decidida no acórdão recorrido;

— não interessa sequer analisar se temos no caso situações materiais litigiosas que sejam análogas ou equiparáveis em termos de circunstancialismo fáctico, pois as decisões em confronto não são desde logo divergentes na questão de direito em que se tocam, tanto mais que, no acórdão recorrido, tal questão de impugnação judicial não constitui a verdadeira “ratio decidendi” da decisão final (vertida sobre o relevo da omissão do acto de notificação dos relatórios do AI no que toca à decisão judicial final de encerramento no apenso de liquidação).

Por isso, a alegada contradição de decisões na questão da reacção junto do tribunal dos actos praticados pelo AI em sede de liquidação insolvencial, que, na tese da Recorrente e aqui Reclamante, conduziria ao recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, não se verifica, pelo que este recurso extraordinário é destituído de base legal.

4. Não podendo restar quaisquer dúvidas sobre o sentido e o alcance deste corpo argumentativo, não se vêm razões para censurar e alterar o decidido, em todas as vertentes analisadas.
Na Reclamação, a Recorrente vencida na revista reitera a sua posição de que há oposição jurisprudencial, uma vez que a questão decidida no acórdão seria, a seu ver, uma “mera questão ad latere relativamente à interpretação e integração do art. 163º do CIRE”, inclusivamente aduzindo agora argumentos de inconstitucionalidade servida para esse normativo e só esse que não entram em colisão com o sustentado no acórdão recorrido.
Como vimos, não é de todo assim e falecem à Reclamente razões para ter ganho de causa na sua pretensão extraordinária de uniformização, servindo agora este acórdão para, agora colegialmente e em conferência, sublinhar a adequação e subscrever a argumentação constante da Decisão Singular liminar.

Consequentemente, faz-se recair acórdão sobre a decisão reclamada, confirmando-se o entendimento de que não se verifica a contradição-oposição de decisões sobre a mesma questão de direito (que justifique a admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.


III) DECISÃO

Pelo exposto, julga-se indeferir a Reclamação, confirmando-se a rejeição do recurso para unifiormização de jurisprudência, uma vez mais demonstrada a sua inadmissibilidade.

Custas pela Reclamante, que se fixa em taxa de justiça no montante correspondente a 3 (três) UCs.

STJ/Lisboa, 16 de Maio de 2023

Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] «O administrador da insolvência exerce a sua atividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da atividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação
[2] Neste sentido, CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, “Artigo 61º”, Código da insolvência e da recuperação de empresas anotado, 2.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2013, pág. 372.
[3] Ainda e também: CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, “Artigo 61º”, ob. cit., pág. 373; igualmente: ANA PRATA/JORGE MORAIS DE CARVALHO/RUI SIMÕES, “Artigo 61º”, Código da insolvência e da recuperação de empresas anotado, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 196 (exprimindo como destinatários-beneficiários de igual forma, se assim for, a comissão de credores ou a assembleia de credores e baseando-se nos arts. 58º, 68º, 2, e 79º).
[4] «Além do caso previsto no artigo anterior, a venda [em processo de execução] só fica sem efeito: Se for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195º (…).»
[5] «Nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1, a restituição dos bens tem de ser pedida no prazo de 30 dias a contar da decisão definitiva, devendo o comprador ser embolsado previamente do preço e das despesas de compra; se a restituição não for pedida no prazo indicado, o vencedor só tem direito a receber o preço.»
[6] Convergentes: ANA PRATA/JORGE MORAIS DE CARVALHO/RUI SIMÕES, “Artigo 164º”, ob. cit., pág. 465.
[7] Essa faculdade processual foi afirmada com acuidade por este STJ para a violação do art. 164º, 2, do CIRE, em matéria de não audição e de garantias de aquisição do bem a alienar em benefício dos credores com garantia real: v. Acs. de 4/4/2017, processo n.º 1182/14.0T2AVR-H.P1, Rel. FONSECA RAMOS, e de 15/2/2018, processo n.º 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1, Rel. HENRIQUE ARAÚJO, in www.dgsi.pt.
[8] V., em abono do que se sustenta nestes parágrafos, DAVID SEQUEIRA DINIS/LUÍS BÉRTOLO ROSA, “A proteção dos credores garantidos e o regime do artigo 164º, nº 2, do CIRE”, RDInsolvência n.º 2, 2018, págs. 22 e ss, 31, 37-38.
[9] «Quando as informações sejam prestadas através da elaboração de relatório ou por meio de qualquer outro escrito, elas integram o processo e, nessa medida, ficam acessíveis a todos os interessados. Nada obsta, todavia, a que o juiz obtenha do administrador os esclarecimentos que entenda por contacto directo com ele, sem tradução ou expressão documental nos autos.”: CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, “Artigo 58º”, ob. cit., pág. 357.