Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
419/06.3TCFUN.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: DIREITO DO AMBIENTE
TUTELA DA PERSONALIDADE
ACTIVIDADES RUIDOSAS
ACÇÃO INIBITÓRIA
COLISÃO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
CONDENAÇÃO CONDICIONAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITOS REAIS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
DIREITO CONSTITUCIONAL
Doutrina: - Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado, pág. 325.
- Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. 2º, págs. 654 e 684.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 264.º, Nº3, 489.º, 506.º, 507.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 335.º, 1346.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 25.º, 26.º, Nº1, 66.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 22/10/98, PROCESSO Nº. 97B1024;
-DE 13/3/97, PROCESSO Nº. 96B557;
-DE 17/1/02, PROCESSO Nº. 01B4140;
-DE 6/7/04, PROCESSO Nº. 04A2405.
Sumário :
1.Em acção, fundada em alegada violação dos direitos de personalidade dos residentes em fracção habitacional, contígua àquela em que é exercida actividade de restauração por determinada sociedade, geradora de ruídos que afectam de forma relevante o direito ao sossego, repouso e tranquilidade dos AA, que peticionam a condenação da R. a abster-se de exercer no local tal actividade, incumbe à R. o ónus de alegar, de modo tempestivo e adequado, a sua disponibilidade para proceder a obras eficazes de isolamento acústico no seu estabelecimento, facultando à parte contrária o contraditório sobre tal matéria de facto – essencial para a dirimição do pleito, já que se traduz na invocação de factualidade parcialmente impeditiva do efeito jurídico pretendido pelos lesados.

2. Não tendo sido alegada tal factualidade pela R. durante o curso do processo e culminando este na prolação de sentença que julgou procedente o pedido de abstenção do exercício da actividade lesiva, não é lícito à Relação, exorbitando a matéria de facto alegada e processualmente adquirida, substituir – na óptica da aplicação dos princípios contidos no art. 335º do CC - tal condenação por uma inibição, meramente temporária e condicional, da actividade em causa, posta na dependência da realização eventual de obras eficazes de insonorização por parte da R., insuficientemente concretizadas e densificadas, e sem que aos AA. fosse facultada oportunidade processual de discutir tal factualidade nova.

3. A lei processual não admite em regra, por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a condenação condicional, ou seja, a sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa – particularmente nos casos em que o facto condicionante sempre exigiria ulterior verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I - AA e BB intentaram acção declarativa, com processo ordinário, contra “CC, LDA”, pedindo a condenação desta a abster-se de:
- Exercer actividade de restauração e afins na fracção “...” do “Edifício .............”;
- Usar um pátio existente no piso 1 desse edifício como esplanada e serventia do restaurante;
- Fazer funcionar o motor do exaustor aludido no artigo 19º da petição inicial.

Alegam, para tanto, que são donos da fracção designada pela letra "U", localizada no 2º piso, Bloco 2, do denominado "Edifício ............., em Câmara de Lobos, e que os ruídos e cheiros produzidos pelo funcionamento do restaurante da R., sito na fracção “K” do Bloco 1, piso 1, do mesmo Edifício, quer pelos trabalhadores, quer pelos clientes, tanto dentro do restaurante como na dita esplanada, instalada num pátio que constitui logradouro integrante da fracção autónoma “T”, sita nos pisos -1 e 1 do Bloco 2 e explorado também pela R., lhes retiram a paz, perturbam o sono, a concentração necessária ao estudo dos seus filhos, sendo fonte de “stress” e angústia, potenciando a depressão crónica de que a Autora sofre, sendo que também a utilização do dito pátio afecta a sua privacidade, por permitir a devassa do interior dos quartos da sua fracção que dão para o lado dessa esplanada.

A R. impugnou a existência de ruídos e cheiros que possam perturbar os Autores e filhos, alegando que a instalação do restaurante foi acompanhada de obras de isolamento sonoro e de extracção de fumos e cheiros eficazes e impugnam ainda os incómodos e perturbações invocados. .Alega ainda que, em reunião do condomínio em que a Autora esteve presente, foi aprovada, por maioria, deliberação autorizando a instalação da esplanada no dito logradouro.

Após réplica, teve lugar a audiência preliminar, procedendo-se à organização da base instrutória da causa e indicando as partes as respectivas provas, tendo sido requeridas perícia e inspecção judicial ao local, apresentando os peritos nomeados laudo unânime, que foi objecto de pedidos de esclarecimentos, oportunamente satisfeitos, sendo ainda requerida a presença dos peritos na audiência de discussão e julgamento.

Após realização da audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a R. abster-se de exercer a actividade de restauração e afins na fracção K do Edifício ............., a abster-se de usar o pátio existente no piso 1 como esplanada e serventia do restaurante, mas julgando improcedente o pedido de condenação da Ré de se abster de fazer funcionar o motor de exaustão do ginásio, absolvendo-a desse pedido.
Inconformada, interpôs a R. recurso de apelação, impugnando, desde logo, a matéria de facto, arguindo nulidades da sentença e questionando a solução normativa do pleito – requerendo os AA./recorridos a ampliação do objecto do recurso, no que se refere a determinados pontos da matéria de facto.

Apreciando tal impugnação, a Relação considerou parcialmente procedentes as objecções formuladas quanto à matéria de facto, mas teve por inverificadas as pretensas nulidades imputadas à sentença.
Relativamente à decisão de mérito, entendeu, porém, a Relação, no acórdão ora recorrido, que:

- os factos provados permitem concluir pela violação do direito ao sossego e ao repouso do Autores e dos filhos que com eles vivem, tanto pelo funcionamento do restaurante em espaço coberto, quer em esplanada;

- por aplicação e concretização dos critérios enunciados no art 335º do CC para a colisão de direitos, deve considerar- se prevalente o direito ao sossego e ao repouso dos Autores sobre o direito de iniciativa e exploração económica, exercitado pela sociedade R - o que impõe que a R. deva cessar a actividade que vem desenvolvendo no restaurante, quer na sala coberta, quer na esplanada.

Porém, e ao contrário do decidido em 1ª instância, entendeu a Relação que: a situação é susceptível de compatibilização, no que à sala coberta concerne, desde que a R. corrija as deficiências de isolamento acústico que as instalações apresentam, e que tanto o laudo pericial, como os esclarecimentos prestados pelos peritos das partes, permitem concretizar.
Assim, pode a R. substituir o vidro simples de 1 mm de espessura por vidro duplo com caixa-de-ar, em toda a parede que liga a sala coberta do restaurante ao logradouro onde até agora tem instalada a esplanada.
E pode colocar na caixa-de-ar formada entre os tectos falsos de pladur e as coberturas materiais eficazmente isoladores em termos especificamente acústicos, seja lã de rocha, seja outro qualquer disponível no mercado e que melhor assegure o isolamento acústico, isolamento que alegou ter instalado e que se veio a comprovar não existir, tanto no espaço existente fora da estrutura do edifício, como no existente sob tal estrutura.
Alternativamente, pode mesmo substituir os painéis tipo ”sandwich” por outros cujo material dos elementos interiores realize eficaz e especificamente o mesmo tipo de isolamento acústico.
Se dos autos resulta que com a realização de tais modificações é possível eliminar eficazmente a passagem de ruídos das instalações cobertas do restaurante para a fracção dos Autores, não há razão para que se não estabeleça um limite temporal (ainda que sem termo certo) à cessação da actividade de restauração e similar, que assim apenas perdurará até que as mesmas se concretizem.

E daí que conclua:

Impõe-se, deste modo, alterar a sentença, na parte em que foi determinada à R. a abstenção de exercício da actividade de restauração e afins na fracção “K” (correspondente à parte coberta do restaurante) do Edifício “.............”, por forma a determinar que tal abstenção perdurará até que se realizem na mesma fracção obras que assegurem eficazmente o isolamento acústico da mesma, por forma a que o exercício de tal actividade não perturbe o direito ao sossego e ao repouso dos Autores e respectivo agregado familiar, nomeadamente substituindo o vidro simples que separa a sala do logradouro em que tem funcionado a esplanada por vidro duplo com caixa de ar e colocando materiais especificamente isoladores acústicos sob a cobertura do restaurante e sob a placa que o separa do piso imediatamente superior, mantendo no mais a sentença.

E, em consonância com este entendimento, julgou parcialmente procedente a apelação, condenando a R. a abster-se de exercer a actividade de restauração e afins na fracção K do Edifício ............. até que se realizem na mesma fracção obras que assegurem eficazmente o isolamento acústico da mesma, por forma a que o exercício de tal actividade não perturbe o direito ao sossego e ao repouso dos Autores e respectivo agregado familiar, nomeadamente substituindo o vidro simples que separa a sala do logradouro em que tem funcionado uma esplanada por vidro duplo com caixa de ar e colocando materiais especificamente isoladores acústicos sob a cobertura do restaurante e sob a placa que o separa do piso imediatamente superior.

2. Inconformadas com o decidido, interpuseram os AA. a presente revista, que encerram com as seguintes conclusões que, como é sabido, lhe definem o objecto:

1) A decisão recorrida é inconciliável e contraditória com a matéria de facto definitivamente fixada pelo tribunal "a quo", designadamente com a resposta dada à matéria do quesito 19.° da base instrutória, segundo a qual "O ruído produzido pelos clientes quando estão no restaurante e respectiva esplanada, a sua entrada e saída, a própria azáfama dos funcionários do restaurante e o funcionamento da maquinaria deste, embora variável quanto à sua intensidade, causa desassossego, desconforto, stress e dificuldade em conciliar o sono e consequente perda da qualidade deste, aos Autores, aos seus filhos e neta - resposta ao quesito 19.°, além do mais porque, como é óbvio, quaisquer obras no interior do restaurante seriam sempre inermes relativamente ao ruído produzido, por exemplo, pela entrada, saída e permanência dos clientes do restaurante junto às áreas de acesso e ao impacto ambiental globalmente negativo que está natural e necessariamente associado ao seu funcionamento;
2) A decisão recorrida contraria flagrantemente o princípio do dispositivo, quer no plano da disponibilidade quer no plano da conformação da instância porque a Ré, em todo o processo, jamais se predispôs a realizar obras ou sequer introduziu a questão e formulou semelhante pretensão, defendendo apenas e só que o restaurante funciona numa estrutura com bom desempenho acústico, sem necessidade da realização de quaisquer obras;
3) A solução (salomónica) que o acórdão sob recurso noticia só podia ser enunciada se a Ré, na contestação, em pedido reconvencional, principal ou subsidiariamente, se tivesse proposto realizar obras concretamente adequadas à eliminação da incomodidade experimentada pelos Autores na sua residência, as quais teriam de ser descritas e especificadas, quer quanto aos processos construtivos quer quanto aos materiais a aplicar quer ainda quanto à aptidão do agente executor, caso em que teriam de ser objecto de prova e de averiguação da sua adequação e efectividade na fase da instrução do processo em primeira instância;
4) A Ré acabou por receber uma tutela jurisdicional mais ampla do que aquela que, nos limites do litígio por ela configurado, poderia ser-lhe concedida;
5) A decisão recorrida contraria flagrantemente o princípio do contraditório porque a observância regular dos ditames deste impunha que se facultasse aos Autores a possibilidade de contraditarem e produzirem prova acerca da questão da remoção das insuficiências acústicas e de insonorização da estrutura da Ré;
6) A decisão recorrida contraria a proibição da prolação de decisões surpresa, imposta pelo art. 3.°, n.° 3, do CPC;
7) A decisão recorrida propicia a quebra da paz social e da segurança jurídica porque a Ré, como aliás já o fez, aproveitará a brecha oferecida pela decisão "a quo" para reabrir o restaurante sem prestar contas e ninguém, constrangendo os Autores, porque lhes está vedada a auto tutela, a recorrerem de novo à tutela judicial para pôr cobro à abusiva interpretação que a demandada fez da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa com fundamento em possibilidades não alegadas, não sujeitas ao contraditório e em relação às quais estiveram, na fase instrutória deste processo, impossibilitados de se defenderem;
8) A decisão "a quo" promove também a incerteza e a insegurança jurídica porque nada esclarece acerca das espécies e quantidades de trabalhos, dos materiais e dos agentes executores das obras que terão de ser realizadas na fracção K do Edifício .......... para assegurar eficazmente o seu isolamento acústico, do processo a seguir e das autorizações a obter para a realização lícita dessas obras e do modo de as acompanhar e controlar a sua efectividade, o que aliás só poderia ser conseguido na dinâmica conjugada de todas as fases do processo em l.a instância e com recurso a prova pericial;
9) A decisão "a quo" violou as dimensões substantivas e processuais dos princípios do dispositivo (art. 264.° do CPC) e do contraditório (art. 3.° do CPC) e a norma doartigo3.°,n.°4doCPC.
Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de V. Exas. Venerandas, deve dar-se provimento a este recurso e, consequentemente, revogar-se a decisão recorrida e confirmar-se na íntegra a decisão da l.ª instância.
Por sua vez, a R. interpôs recurso subordinado, cumulando na mesma peça processual – apresentada nos 30 dias subsequentes à notificação da admissão do recurso subordinado, - quer a alegação a este referente, quer a contra-alegação no recurso principal da parte contrária, formulando as seguintes conclusões:
I
Os Recorrentes, ex vi, do n° 2 do artigo 721°, do artigo 722° e n° 2 do artigo 754° todos do C.P.C., não alegaram factos de direito substantivo ou processual, nulidades, contradição da matéria de facto e da decisão, nem contradição na jurisprudência que fundamentem o seu recurso, razão pela qual o presente recurso não deve ser admitido.
II
A decisão recorrida não apresenta qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, uma vez que a decisão deve ter por fundamento toda a matéria de facto produzida e não a resposta de um só quesito, nomeadamente, do quesito 19, como os Recorrentes alegam.
III
A decisão recorrida não apresenta qualquer contradição pois a mesma está devidamente fundamentada na aplicação do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18°daC.R.P.
IV
A decisão recorrida não viola o princípio do dispositivo (artigo 3o n°3 do C.P.C.), do contraditório (artigo 3o C.P.C.), da paz social, da proibição do efeito surpresa das decisões, nem da segurança jurídica, uma vez que o tribunal "a quo" fundamentou a sua decisão no laudo da prova pericial e nos esclarecimentos que os peritos prestaram em audiência de julgamento.
Recorrentes exerceram os seus direitos através da formulação de questões de facto aos peritos nos termos do n°l do artigo 578° do C.P.C., direito este que foi exercido pelos mesmos.
Os Recorrentes tiveram oportunidade de reclamar do relatório pericial conforme está previsto no n° 2 do artigo 587° do C.P.C.
Nos termos do artigo 588° do C.P.C., os peritos, a pedido dos Recorrentes, compareceram na audiência de julgamento e prestaram todos os esclarecimentos solicitados quer pelos Recorrentes, quer pela Recorrida, quer pelo juiz.
V
A prova pericial, ex vi do artigo 388° do Código Civil, tem por fim a apreciação de factos por meio de peritos com conhecimentos específicos em determinada área, o mesmo é dizer que tem por objecto a valoração da matéria de facto.
Sendo que a força probatório das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal, artigo 389° do C.C.
VI
Os Recorrentes com o presente recurso pretendem que o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a valoração que o Tribunal da Relação fez a matéria de facto, todavia, o Tribunal de Revista não pode sindicar a valoração da prova livremente apreciada pelo tribunal da decisão, ex vi, do n°6 do artigo 712° C.P.C.
VII
A decisão do tribunal "a quo", relativamente ao encerramento definitivo da esplanada, viola a lei substantiva, nomeadamente, o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18° da C.R.P.

Os recorrentes principais apresentaram ainda a sua contra-alegação no recurso subordinado de revista, interposto pela R.

Na contra-alegação apresentada, suscita a R. a questão prévia da idoneidade das questões colocadas pelos AA/recorrentes para integrarem o objecto de um recurso de revista, naturalmente circunscrito à dirimição de «questões de direito».
É, porém, evidente que nenhuma razão lhe assiste, já que a impugnação deduzida não visa fazer discutir pelo STJ a matéria de facto fixada pelas instâncias, no uso dos seus poderes de livre valoração dos meios probatórios produzidos : como resulta de tais alegações, devidamente interpretadas, o que se pretende discutir, em primeira linha, é o conteúdo da decisão sobre o mérito da causa, na óptica de uma incorrecta aplicação pela Relação dos princípios fixados na lei civil para a «colisão de direitos», como decorrência de uma violação do princípio da efectividade da tutela jurídica dos direitos de personalidade, invocados como base da acção ( cfr. conclusão 7ª).
E acessoriamente a tal objecto, nos termos consentidos pelo art. 722º, nº1, do CPC, invocam os recorrentes relevantes violações da lei de processo – nomeadamente dos princípios do dispositivo, do contraditório e da necessária determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, emergentes da inovatória decisão proferida pela Relação que – assentando na interpretação e aplicação de critérios normativos, nada tendo a ver com a apreciação e valoração da concreta matéria de facto apurada e fixada pelas instâncias – se situam obviamente no âmbito dos poderes cognitivos do STJ, podendo, em consequência, ser apreciadas no presente recurso.
Improcede, pois, a questão prévia suscitada pela sociedade R.

3. As instâncias fizeram assentar a decisão jurídica do pleito na seguinte matéria de facto:

1 - Os Autores são proprietários e vivem na fracção designada pela letra "U", localizada no 2º piso, Bloco 2, do denominado "Edifício .............", à Rua da ......... n º .... 9300-116 Câmara de Lobos – Alínea A).
2 - O "Edifício ............." é constituído por seis pisos, um abaixo da estrada, um à cota da estrada e quatro ao nível superior, identificados de baixo para cima, respectivamente por "piso menos um", piso zero", "piso um", "piso dois", "piso três" e "piso quatro", comportando dois blocos, identificados por "Bloco Um" e "Bloco Dois", interligados entre si, totalizando 29 fracções autónomas, das quais sete destinadas ao exercício do comércio, seis a estacionamentos e dezasseis a habitação, tudo conforme melhor consta da escritura de constituição de propriedade horizontal exarada, em 30 de Agosto de 2001, de fls. 44 a fls. 51 do livro de notas para escrituras diversas nº 84 D e respectiva escritura de rectificação, lavrada, em 7 de Novembro de 2001, de fls. 83 a fls. 91 verso do livro de notas para escrituras diversas nº 90 D, ambas do Cartório Notarial de Câmara de Lobos – Alínea B).
3 - A Ré é proprietária das fracções autónomas do "Edifício ............." designadas pelas letras "K" do "Bloco Um" e "T" do "Bloco Dois" – Alínea C).
4 - Na fracção "T" a demandada instalou e explora um ginásio, que funciona, de segunda a sexta -feira, das 10:00 às 22:00 horas, ao sábado, das 10:00 às 20:00 horas, encerrando ao domingo – Alínea D).
5 - Na fracção "K" a demandada instalou e explora um restaurante, denominado "Toca do Lobo", que tem autorização camarária para funcionar entre as 08:00 e as 24:00 horas, todos os dias da semana – Alínea E).
6 - Os estabelecimentos identificados em D) e E) funcionam no piso imediatamente inferior ao apartamento onde habitam os Autores, com o esclarecimento que a habitação dos AA. e o restaurante fazem parte do mesmo Edifício, mas em blocos diferentes, o restaurante encontra-se implantado no Bloco 1 e a habitação dos AA. no Bloco 2, sendo a respectiva estrutura separada por junta de dilatação, não havendo uma continuidade na estrutura de betão armado dos dois blocos – Facto 2º da BI.
7 - Na sua empena virada a norte, o restaurante está construído com uma estrutura em vidro e metal – Facto 3º da BI.
8 - Esses materiais atenuam o ruído aéreo e de impacto produzido pelos clientes, funcionários e maquinaria do restaurante, ruído esse que, deste modo, se propaga pelas redondezas – Facto 4º da BI.
9 – Não foi realizado o projecto de acondicionamento acústico – Facto 5º da BI.
10 - Parte do espaço onde funciona o restaurante, mais concretamente o local mais próximo da respectiva entrada e da Rua da ......... onde está fixado o balcão, e, no interior deste, a máquina do café, está coberto por uma laje que constitui o piso da fracção “O” do Bloco 1, cuja estrutura está separada da Estrutura do Bloco 2 por uma junta de dilatação – Facto 6º da BI.
11 - A Ré vem utilizando o pátio existente no "piso um" para o exercício da sua actividade de restauração e afins, pois nele coloca cadeiras e mesas, onde serve bebidas e comida aos seus clientes – Facto 11º da BI.
12 - O ruído produzido pelos clientes quando estão no restaurante e respectiva esplanada, a sua entrada e saída, a própria azáfama dos funcionários do restaurante e o funcionamento da maquinaria deste, embora variável quanto à sua intensidade, causa desassossego, desconforto, stress e dificuldade em conciliar o sono e consequente perda da qualidade deste, aos Autores, seus filhos e neta – Facto 19º da BI.
13 –Em 21/12/05, a A. tinha uma doença depressiva, acompanhada por médico, que lhe prescrevia medicamentos, sendo os ruídos excessivos nocivos ao seu estado de saúde ( Factos 21º e 22º da BI)
14- ….
15 - Os Autores têm dois filhos e uma neta a viver com eles – Facto 23º da BI.
16 – Os filhos dos AA. são estudantes – Facto 24º da BI.
17 - O restaurante tem uma estrutura mista de pilares, vigas, pórticos e lajes, constituída por alvenaria de blocos de cimento nas paredes e betão armado nos elementos da estrutura, sendo utilizado na parede norte da fracção um vidro temperado de 10 mm e caixilharia em metal – Facto 28º da BI.
18 – A cobertura do restaurante é revestida com painéis metálicos duplos, tipo sandwich, com 8 cm de espessura e com mousse de poliuretano no meio, para garantir isolamento térmico e acústico, sendo que sob estes painéis há um tecto falso em pladure, com caixa de ar de cerca de 20 cm. – Facto 29º da BI.
19 - Os materiais utilizados são adequados a promover o isolamento acústico, com excepção do vidro que separa o restaurante da esplanada, o qual deveria ser de vido duplo – Facto 30º da BI.
20 - As refeições servidas por este estabelecimento são confeccionadas: o almoço entre às l0h da manhã e às 13h da tarde e o jantar entre às 18h e 22h, sendo que antes das 10h da manhã, no intervalo das l4h às 18 e depois das 22h, por regra, não são confeccionadas refeições – Facto 31º da BI.
21 - A cozinha está equipada com um circuito de exaustão de fumos, sendo a hotte em chapa de aço inox, com filtro de gorduras sobre o fogão, equipada com motor com comando de velocidade de extracção, não cobrindo a totalidade do fogão, uma vez que deixa duas bocas de fora , tendo a R. procedido em data posteroir à propositura da acção a alterações que permitiram que a Hotte passasse a abranger as 4 bocas do fogão a gás – Facto 32º da BI.
22 – A saída dos odores é processada na parte superior do prédio, a aproximadamente 12m de altura, ficando assim a um nível muito superior em relação ao apartamento dos AA. – Facto 33º da BI.
23 - A Ré usufrui das fracções autónomas designadas pela letra "K" e pela letra "T", ambas do Edifício ............. – Facto 35º da BI.
24 - As referidas fracções foram afectadas a actividade comercial – Facto 36º da BI.
25 - Na referida escritura consta que a fracção " T " é constituída por um logradouro com a área de 83,60m2, o qual pertence, exclusivamente, à referida fracção, no qual a Ré instalou uma esplanada no referido pátio – Facto 37º da BI.
26 – A leste do restaurante existem duas chaminés – Facto 45º da BI.
27 – Na madrugada de 5/8/2008, pelas 3,46 horas, a R. tinha o restaurante a funcionar com 12 pessoas no interior e tendo a música ligada a médio som.

4. Como vem sendo jurisprudencialmente decidido, de forma reiterada, a produção ou emissão de ruídos, geradora de poluição sonora, lesiva de direitos individuais e colectivos, obviamente carecidos de protecção e tutela, pode ser encarada por três ópticas distintas, embora , em muitos casos, conexionadas e interligadas:
- a do direito do ambiente, enquanto causa de evidente poluição ambiental, com assento primacial no próprio texto constitucional, no plano dos direitos e deveres sociais, de natureza análoga aos direitos fundamentais, em que se insere o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado ( art. 66º),complementado e densificado pelas normas constantes da Lei de Bases do Ambiente, fundamentalmente orientada, imediatamente e em primeira linha, para a protecção de interesses colectivos ou difusos;

- a clássica visão da tutela do direito de propriedade, no domínio das relações jurídicas reais de vizinhança, permitindo ao proprietário de um prédio opor-se às emissões, provenientes de prédios vizinhos, que importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam ( art. 1346º do CC);

- finalmente, - e como ocorre na situação dos autos - a dos direitos fundamentais de personalidade, consagrados, desde logo, no texto constitucional – direito à integridade física e moral e ao livre desenvolvimento da personalidade ( arts. 25º e 26º, nº1) e reiterados no CC, ao contemplar, no art. 70º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral – sendo óbvio e inquestionável que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade. Daí que, em regra – e sem prejuízo de uma concreta e casuística ponderação judicial, a realizar em função do princípio da proporcionalidade acerca da intensidade e relevância da invocada lesão da personalidade – se imponha a conclusão de que, em caso de conflito, efectivo e relevante, entre o direito de personalidade e o direito ao lazer ou `a exploração económica de indústrias de diversão, se imponha a preservação dos direitos básicos de personalidade, por serem de hierarquia superior à dos segundos, nos termos do art. 335º do CC.

Impõe-se, por outro lado, distinguir claramente os planos de uma possível ilegalidade administrativa no exercício das actividades que geram a poluição ambiental, decorrente do desrespeito das normas regulamentares ou atinentes ao licenciamento e à polícia administrativa, e da ilicitude, consubstanciada na lesão inadmissível do direito fundamental de personalidade . Tal diferenciação de planos tem justificadamente conduzido à conclusão de que os tribunais constituem a última linha de defesa daquele direito fundamental de personalidade, sempre que o mesmo não tenha sido devidamente acautelado pela actividade regulamentar ou de polícia da Administração, em nada obstando à tutela prioritária do direito fundamental lesado a mera circunstância de ter ocorrido licenciamento administrativo da actividade lesiva ou os níveis de ruído pericialmente verificados não ultrapassarem os padrões técnicos regulamentarmente definidos ( vejam-se, por exemplo, os acs. do STJ de 22/10/98- p. 97B1024-de 13/3/97 – p.96B557- e de 17/1/02 – p. 01B4140).

Merece particular realce a conclusão de que as normas, constitucionais e legais, que tutelam a preservação do direito básico de personalidade não podem ser vistas como contendo uma mera proclamação retórica ou platónica, sendo essencial que lhes seja conferido o necessário relevo e efectividade na vida em sociedade – não sendo obviamente tolerável que o interesse no exercício ou exploração lucrativa de quaisquer actividades lúdicas, de diversão ou económicas se faça com o esmagamento dos direitos básicos de todos os cidadãos que tiverem o azar de residir nas proximidades, aniquilando, em termos claramente desproporcionados, o direito a gozar de um mínimo de tranquilidade , sossego e qualidade de vida no seu próprio domicílio.

E não pode aceitar-se a tese de que tal situação lesiva – no caso dos autos, as perturbações na fruição do domicílio dos AA, bem documentadas na prova produzida - se deveria considerar como inócua, corrente ou irrelevante, por a actividade «normal» do estabelecimento da R. ser a restauração : como temos por evidente e seguro, cabe a quem pretenda exercer uma actividade dessa natureza em edifício habitacional uma obrigação de especial contenção quanto aos níveis de poluição sonora que provoca e o dever de optar pelas soluções técnicas adequadas, no que respeita ao isolamento acústico das suas instalações, que eliminem ou reduzam ao máximo possível os incómodos causados aos outros residentes , degradando a sua qualidade de vida.

Nesta perspectiva, é obviamente improcedente a argumentação expendida no recurso subordinado, em que se questiona a decisão de ordenar a inibição do exercício de actividades no pátio/esplanada explorado pela R., face aos relevantes incómodos que provoca na fruição do domicílio dos AA, sem que se vislumbre qualquer solução técnica adequada para minimizar o impacto ambiental negativo que indiscutivelmente origina (não bastando obviamente para tal a instalação de um simples toldo ou a restrição do horário de funcionamento, como bem decidiu a Relação) – não violando obviamente tal entendimento o princípio da proporcionalidade.


5. Passando a apreciar o recurso interposto pelos AA, importa começar por caracterizar adequadamente o objecto da presente acção, tendo na devida conta as pretensões nela deduzidas pelas partes e a natureza das decisões que foram proferidas em 1ª instância e na Relação.

Assim:
a) - na petição inicial , formularam os AA. um pedido de condenação da R. a abster-se de exercer a actividade de restauração e afins na fracção em causa, bem como de se abster de usar o pátio contíguo como esplanada e serventia do restaurante;

b) - na contestação apresentada, limitou-se a R. a invocar que a sua actividade empresarial não era idónea para lesar os direitos de personalidade dos AA., deduzindo defesa por impugnação e sustentando, designadamente, que a instalação do restaurante obedecia a todos os requisitos técnicos adequados para um perfeito isolamento sonoro, caracterizando-se ainda as condições de funcionamento pelo escrupuloso respeito pelo horário estabelecido no licenciamento e por um ambiente «calmo e acolhedor», o que inviabilizaria que pudesse ser causado qualquer tipo de transtorno aos vizinhos do estabelecimento;

c) - face à prova produzida –cujos resultados abalaram decisivamente a linha argumentativa da defesa por impugnação da R., ao darem por demonstrado, nomeadamente , o elevado nível de ruído existente, quer no interior do restaurante, quer na esplanada, e a manifesta insuficiência do isolamento acústico existente no local, gerando lesão efectiva ao direito de personalidade invocado pelos demandantes – a sentença proferida em 1ª instância teve por procedente o pedido de abstenção do exercício de actividade de restauração, quer no interior do estabelecimento, quer no pátio anexo;

d) - o acórdão recorrido – sem que tivesse introduzido alterações fundamentais no núcleo essencial da matéria litigiosa, na sequência da apreciação da impugnação deduzida pelas partes quanto à decisão sobre a matéria de facto - «convolou» de tal decisão de condenação na abstenção , pura e simples, do exercício da actividade para a condenação na abstenção temporária e condicional da actividade empresarial que vinha sendo realizada no interior do estabelecimento, - a qual apenas seria imposta e se manteria até que se realizassem obras que assegurassem isolamento acústico eficaz, de modo a evitar a lesão dos direitos de personalidade dos AA.

e) - proferiu, deste modo, a Relação aquilo a que poderíamos chamar de «absolvição parcial por atenuação qualitativa» , expressa na atribuição pela decisão recorrida de uma forma de tutela ou protecção de interesses menos intensa do que a pretendida pelo A. , sem, todavia, extravasar para um quadro normativo, figura ou instituto jurídico substancialmente diverso do peticionado : em vez do decretamento da suspensão «definitiva» e incondicionada da actividade empresarial da R. no interior do seu estabelecimento, decretou-se uma suspensão « temporária» e «condiciona» de tal actividade, ficando a R. inibida de a exercer se e apenas enquanto não procedesse às obras de isolamento acústico que se mostrassem eficazes;

f) - porém, o acórdão recorrido não definiu nem densificou minimamente quais os parâmetros fundamentais a que deveriam obedecer tais obras «eficazes», na óptica da prevenção da lesão do direito de personalidade dos AA., limitando-se a tecer vagas e genéricas considerações, não alicerçadas suficientemente na matéria de facto que teve por processualmente adquirida e previamente fixou – o que naturalmente, como adiante melhor se demonstrará, é susceptível de colidir com o princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais condenatórias e com as exigências de definitividade na composição do litígio que decorrem, desde logo, do princípio da efectividade da tutela jurídica dos direitos fundamentais.

É contra este sentido decisório que se insurgem, desde logo, os AA./recorrentes, invocando, em primeiro lugar, que o decidido pela Relação seria contraditório com a base factual do litígio, já que se apurou definitivamente que o nível de ruído interior e a deficiente insonorização do estabelecimento provocava efectiva lesão dos direitos de personalidade invocados : não parece, todavia, que tal contradição entre os fundamentos de facto e a decisão jurídica da causa, em rigor, se possa ter por verificada, uma vez que a Relação se limitou a dar por assente que os vícios e defeitos de isolamento sonoro não eram absolutamente definitivos e irremediáveis, daí extraindo consequências ao nível da decisão jurídica do pleito. Ou seja: tal contradição só se verificaria efectivamente se as instâncias tivessem considerado provado que os defeitos de isolamento sonoro eram tecnicamente insupríveis e por natureza irremediáveis – sendo então, nessa perspectiva, obviamente inadmissível e contraditório com tal pressuposto que se condicionasse o reinício da actividade do restaurante a uma verdadeira condição impossível…

Como mais adiante se demonstrará, o eventual vício imputável ao acórdão recorrido não se situa propriamente ao nível da contradição entre os fundamentos e a decisão, mas antes ao nível da aquisição processual da matéria de facto idónea para suportar a conclusão de que obras de isolamento a cargo da R – de conteúdo insuficientemente definido, concretizado e densificado - seriam idóneas para evitar a lesão dos direitos dos demandantes , justificando o parcial impedimento ao efeito jurídico pretendido pelos demandantes.

Note-se que, de um ponto de vista normativo, nada obstaria a que o Tribunal, em aplicação dos critérios, constantes do referido art. 335ºdo CC e que definem as regras gerais de resolução das situações de colisão de direitos, optasse por proferir condenação numa inibição meramente condicional ou temporária da actividade lesiva dos direitos dos AA., se a matéria de facto alegada pelas partes e apurada na causa mostrasse que as causas da lesão eram efectivamente elimináveis ou removíveis através de procedimentos técnicos determinados, por essa forma se limitando o sacrifício do direito do demandado ao estritamente necessário para assegurar o exercício pleno do direito prevalente do demandante.

Não é, porém, manifestamente essa a situação que se verifica no caso dos autos : porque a R. não curou efectivamente de alegar, como seria seu ónus, durante o processo, a sua disponibilidade para remover as deficiências construtivas que potenciavam o incómodo substancial dos lesados, tal matéria não foi objecto de discussão entre as partes, nem foram processualmente adquiridos factos que demonstrassem, por um lado, que as insuficiências do isolamento acústico eram, do ponto de vista técnico e económico, remediáveis; e, por outro lado, quais seriam exactamente as obras e procedimentos que se impunha à R. realizar no seu estabelecimento para alcançar plenamente aquele objectivo ( definindo, afinal, em termos minimamente consistentes, o projecto de isolamento acústico que se verificou inexistir ).

6. O interesse e relevância desta matéria justifica que se proceda a uma análise mais aprofundada, no que respeita às formas de aquisição processual dos factos relevantes para suportarem uma ponderação ou balanceamento dos interesses contrapostos das partes em acções análogas à que ora está em discussão, de modo a verificar-se em que termos será admissível o decretamento de uma inibição meramente temporária e condicionada de actividade, quando o A. peticionou um encerramento «definitivo» do estabelecimento gerador das emissões nocivas.

a) Assim, em primeiro lugar, pode naturalmente o R., nos casos análogos ao dos presentes autos, ao contestar a acção em que se formulou a pretensão de condenação na inibição do exercício da actividade lesiva dos direitos e personalidade do A., invocar, a título principal ou subsidiário, um verdadeiro facto impeditivo da integral procedência da pretensão do A., alegando fundamentadamente que é possível a harmonização ou conciliação prática dos direitos em confronto através de uma alteração no modo e circunstâncias como a actividade em causa vem sendo exercida, assumindo, nomeadamente, a disponibilidade para proceder às obras de isolamento acústico que – sendo tecnicamente viáveis - ele afirma estar pronto a realizar, a expensas suas.
Note-se que este facto «novo», parcialmente impeditivo do efeito jurídico pretendido pelo A., integra uma verdadeira excepção peremptória que – no seu núcleo essencial - tem de ser necessariamente deduzida na contestação, por força do preceituado no art. 489º do CPC : o que poderá ser adquirido processualmente em momento ulterior à apresentação da defesa são os factos complementares ou concretizadores de tal excepção – nomeadamente a exacta caracterização técnica das obras e procedimentos de isolamento a efectuar pelo R.,ou seja, o exacto projecto de isolamento acústico, a estabelecer e avaliar pericialmente – nos termos consentidos pelo nº3 do art. 264º do CPC.

b) Se, porém, o R. não curou de invocar na contestação tal factualidade essencial para a justa composição do litígio, como lhe cumpria, tem ainda uma outra oportunidade processual de trazer ao processo tal questão - e que se traduz em realizar, ele próprio, por sua iniciativa e risco, no decurso da causa, as obras de isolamento acústico necessárias à salvaguarda do direito invocado pelo A., trazendo tal factualidade nova – e impeditiva da integral procedência do pedido - aos autos através do pertinente articulado superveniente, apresentado ao abrigo do preceituado nos arts. 506º/507º do CPC e objecto de exercício do contraditório pela parte contrária: como é evidente, tal matéria inovatória terá que ser suscitada antes do encerramento da discussão da causa, por ser este o momento processual em que se estabiliza irremediavelmente a base factual do litígio ( não sendo, como é sabido, os recursos – que se não destinam a criar matéria nova - instrumento adequado para introduzir na lide factos ou questões novas, não invocadas perante a 1ª instância).

c) Finalmente, se o R. não tiver seguido nenhuma destas vias procedimentais, fica naturalmente sujeito a ver proceder inteiramente a pretensão formulada pelo A., como lógica consequência de não ter trazido à colação, como era seu ónus, uma circunstância de facto impeditiva da plena procedência do pedido: note-se, todavia, que terá de ser interpretada em termos hábeis a decisão que tenha decretado a cessação ou inibição «definitiva» da actividade lesiva, nos casos – como o dos autos – em que tal cessação ou suspensão de actividade não decorre de uma impossibilidade legal absoluta ( como sucederá, por ex., quando o título constitutivo da propriedade horizontal proibir o exercício no prédio de actividades comerciais ou estas forem, no caso, insusceptíveis do licenciamento legalmente imposto), mas de uma impossibilidade relativa, que se conexiona apenas com o modo e as circunstâncias concretas do exercício da actividade empresarial em causa, enquanto geradoras de um impacto ambiental negativo, lesivo de direitos de terceiros : neste caso, a proibição judicialmente decretada vale apenas «rebus sic stantibus», deixando de se justificar se o lesante vier ulteriormente a remover, de forma adequada e satisfatória, as fontes de poluição ou emissões nocivas e lesivas dos direitos da vizinhança.
Tratando-se, porém, de matéria que terá necessariamente de ser jurisdicionalmente apreciada – dado o efeito de caso julgado material emergente da inibição ou suspensão anteriormente decretada pelo tribunal – é evidente que o reinício da actividade só será possível se o lesante propuser e obtiver ganho de causa em acção de simples apreciação, em que invoque e demonstre que, em momento ulterior ao encerramento da discussão na primeira acção, logrou remover, de forma satisfatória, o impacto ambiental negativo que justificara a inibição de actividade, judicialmente decretada : está, pois, obviamente excluída a licitude do comportamento, denunciado pelos recorrentes na sua alegação, traduzido em a R. ter alegadamente reiniciado a sua actividade, por entender unilateralmente que teria removido a situação lesiva, judicialmente verificada, dando, na sua óptica, cumprimento adequado à «condição» introduzida pela Relação na inibição temporária que decretou no acórdão recorrido.

7. Das considerações precedentes decorre que assiste razão aos AA. /recorrentes quando invocam violação dos princípios do dispositivo e do contraditório pela Relação, ao fundar-se em factos que não podiam ter-se por processualmente adquiridos para convolar da inibição do exercício da actividade lesiva, decretada na 1ª instância, para uma mera suspensão «condicionada» de tal actividade, posta na dependência de uma hipotética realização de obras que – garantindo o eficaz isolamento acústico – prevenissem a lesão dos direitos de personalidade dos AA.: é que tal juízo decisório assenta em factos novos, relevantes para a composição material do litígio – e, nessa medida, configuráveis como «essenciais», enquanto parcialmente impeditivos do efeito jurídico que o A. pretendia obter – que a parte interessada não curou de alegar durante o curso do processo e a parte contrária não teve qualquer oportunidade de contraditar – por essa forma exorbitando da matéria de facto que teve por fixada, após julgamento da impugnação inserida no recurso de apelação( totalmente omissa sobre a questão da viabilidade prática e conteúdo de um eventual suprimento ou correcção das deficiências do isolamento acústico, matéria não suscitada nem minimamente discutida entre as partes no decurso do processo).

É, aliás, esta indefinição que explica que a Relação, no acórdão recorrido, para fundamentar a absolvição parcial por «redução qualitativa» que decretou, em vez de se estribar na matéria de facto que teve por fixada, a fls. 763/786, se tivesse antes baseado em meras considerações genéricas, extraídas, de modo vago e infundamentado, da perícia realizada (que não teve como objecto a específica indagação da idoneidade de uma eventual realização de obras novas, mas apenas o apuramento dos defeitos construtivos da obra já existente no local) - e não no acervo factual que definiu previamente como sendo a base fáctica do litígio, totalmente omissa sobre a problemática de uma possível e hipotética eliminação das deficiências construtivas de isolamento sonoro que determinavam a efectiva lesão dos direitos dos AA.

Tal «iter» decisório obriga a trazer à colação a problemática da admissibilidade da «condenação condicional», particularmente nos casos – como o dos autos – em que a «condição» se mostra assente em factos insuficientemente densificados e definidos, traduzindo-se, na prática, na imposição ao R. de uma prestação de facto de contornos perfeitamente difusos – exigindo o facto condicionante, pela sua natureza e indeterminação, ulterior verificação jurisdicional e, nessa medida, resultando comprometida uma finalidade básica do processo civil: a definição e certeza das relações jurídicas controvertidas.

Efectivamente, a doutrina tem entendido que a lei processual não admite, em princípio, a condenação condicional, ou seja, a sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa – sendo tal orientação inquestionavelmente justificada nos casos em que o facto condicionante exigiria ulterior verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção ( cfr. Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. 2º, pags. 654 e 684).
Como refere Castro Mendes (Limites Objectivos do Caso Julgado, pag. 325, citando Guasp), «a sentença, como os restantes actos processuais, foge, em geral, de condicionamentos que põem em incerteza a decisão do litígio, comprometendo por isso uma das finalidades básicas do processo civil: a certeza das relações que compõem o sistema jurídico privado».

Ou, como se refere no Ac. de 6/7/04, proferido pelo STJ no P. 04A2405: pedindo-se ao tribunal, através de acção visando a condenação da ré em prestação de facto, a resolução de um conflito, não pode este proferir decisão final em termos de tal modo indefinidos que mais configure uma decisão em procedimento cautelar e transferir para a execução a concretização dos comportamentos a adoptar pela ré.

Ora, não estando minimamente densificados e determinados, no acórdão recorrido, os procedimentos construtivos idóneos para eliminarem satisfatoriamente a verificada lesão do direito de personalidade dos AA., a decisão proferida acaba por não solucionar definitivamente o litígio que – subsistindo, na prática, quase integralmente entre as partes – acabaria por ter de ser resolvido através de uma nova acção, em que se controvertesse a viabilidade técnica e a idoneidade, suficiência e real eficácia das obras que, porventura, viessem a ser realizadas pela sociedade R. – o que não é naturalmente compatível com o princípio da efectividade da tutela dos direitos de personalidade invocados como base da presente acção.

8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados:
a) concede-se provimento à revista dos AA., condenando, em consequência, a sociedade R. a abster-se de exercer a actividade de restauração e afins na fracção K do edifício .............;
b) nega-se provimento ao recurso subordinado, interposto pela R., confirmando-se no mais o decidido no acórdão recorrido.
Custas da revista pela sociedade recorrente e da acção e apelação por ambas as partes, na proporção fixada na sentença de 1ª instância.

Lisboa, 7 de Abril de 2011

Lopes do Rego (Relator)
Távora Victor
Pires da Rosa