Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A4283
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BARROS CALDEIRA
Descritores: UNIÃO EUROPEIA
TRIBUNAL
COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: SJ200503030042831
Data do Acordão: 03/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : I - Na aferição da competência dos tribunais de um Estado-membro da Comunidade Europeia (com excepção da Dinamarca) é aplicável o Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, desde que as acções:
a) respeitem a matéria civil e comercial (âmbito material de aplicação);
b) o réu tenha domicílio (ou sede, administração central ou estabelecimento principal) no território de um Estado membro (âmbito espacial de aplicação);
c) e tenham sido intentadas após o dia 01-03-2002, data de entrada em vigor do Regulamento (âmbito temporal de aplicação).
II - Quando na aferição da competência internacional dos tribunais portugueses sejam aplicáveis as normas constantes do Regulamento, estas prevalecem sobre as normas de Direito Processual consagradas no Código de Processo Civil, não sendo aplicável a Convenção de Bruxelas, por ter sido substituída pelo Regulamento, nem tão pouco a Convenção de Lugano.
III - Dos art.ºs 25 e 26 do Regulamento decorre a regra do conhecimento oficioso da excepção de incompetência (absoluta) internacional decorrente da violação das disposições do mesmo Regulamento.
IV - O conceito de beneficiário do seguro constante do art.º 9, n.º 1, al. b) do Regulamento não coincide com o conceito de lesado num acidente coberto pelo seguro.
V - Para efeitos do disposto nos art.ºs 5, n.º 3, e 10, ambos do Regulamento, deverá entender-se que o conceito de "tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso" abrange tanto os tribunais do Estado membro em cujo território se verificou o facto ilícito gerador da responsabilidade civil extracontratual, como os tribunais do Estado membro em cujo território se verificou o dano.
VI - Mas não se pode fazer uma interpretação extensiva destes normativos por forma a considerar como lugar da materialização do dano o Estado ou os Estados onde se façam sentir as consequências danosas - incluindo sequelas e os danos futuros - de um evento que causou um dano num outro Estado.
VII - Da aplicação do Regulamento, em especial dos seus art.ºs 2, n.º 1, e 9, n.º 1, al. a), resulta que só os tribunais franceses são internacionalmente competentes para o julgamento de acção intentada, no dia 29-11-2002, num tribunal português, por cidadão português, residente em Portugal, para indemnização dos danos sofridos num acidente, ocorrido no dia 28-12-2000, numa estância de Andorra (País terceiro, onde não é obrigatório o Regulamento), provocado pelo despiste de um trenó conduzido por pessoa residente em França e que celebrara com a Ré, com sede social em França, um contrato de seguro de responsabilidade civil que cobre tal evento.
VIII - Pese embora as lesões sofridas pelo Autor tenham deixado sequelas - traduzidas numa incapacidade permanente parcial - que acarretam para ele danos futuros, não é possível considerar Portugal como "lugar do dano" para efeitos de aplicação dos art.ºs 5, n.º 3, e 10, do Regulamento.
IX - Não podendo o Autor demandar a Ré perante os tribunais portugueses, mas apenas perante os tribunais franceses, e não tendo a Ré contestado a acção, deve declarar-se oficiosamente a excepção de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional constantes do Regulamento (CE) n.º 44/2001.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

"A", residente no Edifício ..., ...., em Águeda, instaurou - em 29/11/2002 - contra "B - Companhia de Seguros, S.A.", com sede na Rue Guillaume Tell, 75808 Paris Cedex, ..., França, acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de 156.641,69 Euros, acrescida de juros de mora desde a citação, a título de indemnização por danos patrimoniais (discriminando as seguintes parcelas: 124.699,47 Euros pela incapacidade parcial permanente + 436,02 Euros de perdas salariais + 506,20 Euros de outros prejuízos + 1000 Euros pela perda de férias e regresso antecipado) e por danos não patrimoniais (30.000 Euros atinentes ao quantum doloris e ao prejuízo de afirmação pessoal).
Alegou, para tanto e em síntese, que no dia 28 de Dezembro de 2000, em Andorra, na estância "Soldeu El Tarter", quando acabava de terminar a descida da pista de ski e se encontrava à saída da mesma, foi abalroado por um trenó, que se despistara, conduzido por C, residente em França, acidente do qual lhe advieram lesões, com os consequentes danos, cuja reparação pretende obter com a presente acção, dado que a condutora do trenó celebrara com a Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil, através do qual transferira a sua responsabilidade pela ocorrência de acidentes como o dos autos para esta seguradora.
Citada a Ré, não apresentou contestação.

Foi então proferido o despacho de fls. 23 e 24, que decidiu julgar o Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, onde a acção foi instaurada, incompetente em razão da nacionalidade para decidir a causa, com a consequente absolvição da Ré da instância.

Deste despacho veio o Autor recorrer de agravo para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão constante de fls. 60 a 74, confirmou a decisão recorrida.

Inconformado, o Autor recorreu, novamente de agravo, para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
1. Em Novembro de 2002, no Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, A, residente no Edifício Village Alta Vila, ...., em Águeda, instaurou contra "B - Companhia de Seguros, S.A.", com sede em Rue Guillaume Tell - 75808 Paris Cedex, ..., França, acção declarativa com processo ordinário, pedindo a condenação da Ré no pagamento de € 156.641,69, por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo Autor - ora recorrente - acrescida de juros de mora desde a citação.

2. Tendo sido a Ré - Companhia de Seguros devidamente citada, não deduziu nenhuma oposição. Impunha-se, em consequência, ao abrigo do princípio cominatório semi-pleno, entre nós, legalmente consagrado, que fossem considerados confessados e assentes os factos articulados pelo Autor (arts. 480 e 484, n.º 1, do Código de Processo Civil português - doravante, simplesmente CPC).

3. Todavia, decidiu o Meritíssimo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Águeda afastar-se da aplicação do referido princípio, considerando oficiosamente que o Tribunal onde fora proposta a acção em apreço era absolutamente incompetente, à luz das regras que disciplinam a competência internacional dos nossos tribunais.

4. Com efeito, sustentou o Tribunal de 1.ª instância que nenhum dos quatro critérios de atribuição de competência elencados no n.º 1 do art. 65 do CPC se encontrava preenchido, daí extraindo (e só daí) a absolvição da Ré da instância.

5. Após a devida admissão do competente agravo, já perante o Tribunal da Relação de Coimbra, veio o Autor alegar a patente insubsistência jurídico-normativa da decisão que a 1.ª instância proferira. Nas suas linhas gerais, a fundamentação invocada era a seguinte:

6. A incompetência internacional do tribunal português, sustentada na decisão de 1.ª instância, teria de ser invocada por uma das partes pois não é de conhecimento oficioso.

7. Não obstante, ainda que tal conhecimento oficioso fosse juridicamente admissível, sempre haveria que concluir pela competência do Tribunal de Águeda, porquanto do acidente resultaram inúmeros danos que ocorreram em Portugal (gastos com medicamentos e médicos, dores resultantes dos tratamentos, etc.), pelo que a causa de pedir na acção sob análise envolve não só os elementos e factores que contribuíram para a colisão em si, mas igualmente os prejuízos e danos daí resultantes, bem como os demais factos jurídicos geradores do dever de indemnizar, sendo que, consequentemente, fica preenchido o critério plasmado na alínea c) do n.º 1 do art. 65 do CPC.

8. Perante o alegado pelo Autor da presente acção - então (e ainda agora) recorrente - veio o Tribunal da Relação negar provimento ao agravo interposto, confirmando a decisão recorrida e declarando, concomitantemente, a incompetência absoluta dos Tribunais portugueses para conhecerem do objecto da causa.

9. Segundo os doutos Juízes Desembargadores, a correcta leitura interpretativa dos preceitos contidos nos artigos 101 e 102, n.º 1, do CPC imporia, sem mais, a conclusão de que, sendo os tribunais portugueses incompetentes para julgar o pleito em causa, ficaria relegada ao seu poder discricionário a declaração da respectiva incompetência, sendo que, ademais, a consideração das várias normas inclusas nas Convenções de Bruxelas (de 1968) e Lugano (de 1988), relativas à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, não autorizaria conclusão diversa.

10. Ora, em primeiro lugar, sempre haverá que ter em apreço que aplicável à presente contenda é o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 (doravante citado somente como Regulamento do Conselho), e não as Convenções de Bruxelas e Lugano. Tudo porque o referido Regulamento veio substituir, desde 1 de Março de 2002, a versão da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968, que até àquela data vigorava entre os Estados-membros da União Europeia.

11. É verdade que, no que respeita à sistematização e conteúdo, o Regulamento não diverge significativamente da Convenção de Bruxelas de 1968. Porém, é também certo que a linha de continuidade entre ambos os textos foi quebrada em aspectos pontuais.

12. Além do mais, é igualmente seguro que as referências normativas que in casu cumpre efectuar têm de ter por sede o instrumento jurídico efectivamente em vigor, pelo que se impõe buscar no aludido Regulamento do Conselho uma solução que caiba ao caso em apreço.

13. Ora, atento o disposto nos arts. 25 e 26, n.º 1, do Regulamento do Conselho, é mister concluir pela impossibilidade de averiguação oficiosa de competência por parte do tribunal português no caso sub judice.

14. Na verdade, determina aquele art. 25 que "o juiz de um Estado-Membro, perante o qual tiver sido proposta, a título principal, uma acção relativamente à qual tenha competência exclusiva um tribunal de outro Estado-Membro por força do art. 22, declarar-se-á oficiosamente incompetente". Daqui se extrai, portanto, por argumento "a contrariu" que, no caso sobre o qual versa o presente recurso, o Tribunal português não poderia ter oficiosamente conhecido da sua competência internacional - outra não é a conclusão possível, uma vez compulsado o conteúdo do art. 22, que não cobre, de jeito algum, a situação que temos em apreço.

15. Contra a utilização de tal argumento não vale o emprego de uma (outra) linha argumentativa que se desenvolva por sobre um suposto princípio de que, no seio do quadro normativo estabelecido pelo Regulamento, prepondera a atribuição de competência aos tribunais do Estado-membro onde esteja domiciliado o demandado. De facto, tal género de argumentação (sempre seguida pelo Acórdão recorrido) esquece o dado normativo fundamental desvelado pelo n.º 1 do art. 3 do Regulamento, que é lesto a esclarecer que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-membro podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-membro "por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capitulo": fica absolutamente desnudada, pois, a possibilidade de razões ponderosas imporem o reconhecimento de competência a um tribunal de um Estado-membro em que o demandado não esteja domiciliado.

16. Do mesmo modo, sempre haverá que concluir que o preceituado no art. 26, n.º 1, do Regulamento não obsta ao entendimento que acabou de perfilhar-se. Na verdade, esta norma determina o seguinte: "Quando o requerido domiciliado no território de um Estado-membro for demandado perante um tribunal de outro Estado-membro e não compareça, o juiz declarar-se-á oficiosamente incompetente se a sua competência não resultar das disposições do presente regulamento" (sublinhado nosso). Ora, como é bom de ver, de acordo com o Regulamento do Conselho, é iniludível a competência dos tribunais portugueses para julgarem a presente acção, não obstante a Ré não ter domicílio em Portugal: basta, para tal concluir, relancear o disposto nos arts. 3/1, 9/1/b e 11/2.

17. Assim sendo, é manifesta a inaplicabilidade do art. 26/1 do Regulamento ao nosso caso (a despeito do argumento vertido no Acórdão recorrido que se estribava em norma análoga vertida na já citada Convenção de Bruxelas), bem como resulta mais uma vez reforçado o peso do argumento interpretativo "a contrariu" já antes por nossa parte invocado, no que tange à possibilidade de conhecimento oficioso por parte do Tribunal português da sua competência nacional.

18. Cumpre ainda salientar que a decisão recorrida sempre se revelaria, neste ponto, insubsistente, mesmo que fosse de considerar aplicável à presente acção a Convenção de Bruxelas de 1968. Na verdade, seria identicamente forçoso concluir que o Meritíssimo Juiz do Tribunal de Águeda extrapolou as suas competências ao considerar que o Tribunal era incompetente em face da nacionalidade, pois, não tendo nenhuma das partes alegado esta excepção, ela não é de conhecimento oficioso.

19. Efectivamente, de acordo com o preceituado no artigo 19 da Convenção de Bruxelas, também interpretado a contrario sensu, o juiz de um Estado contratante está impedido de apreciar oficiosamente a competência do tribunal quando não estejam em causa as Competências Exclusivas constantes do artigo 16 da referida Convenção Internacional.

20. Já quanto à averiguação da competência dos tribunais portugueses para julgarem a presente causa, impõe-se analisar qualquer um destes dois caminhos: em primeiro lugar, é mister atender às regras de atribuição de competência plasmadas no nosso CPC; em segundo lugar, haverá que apurar se as regras de atribuição de competência existentes no nosso ordenamento interno são secundadas ou antes contrariadas pelos instrumentos de direito comunitário ou internacional (de carácter convencional).

21. Ora, o que se conclui é que tanto as normas de competência plasmadas no CPC, como as regras de atribuição de competência internacional vazadas no Regulamento do Conselho coincidem nesta solução absoluta e limpidamente clara - os tribunais portugueses são competentes para apreciarem casos em que uma empresa seguradora domiciliada em França seja responsável por uma indemnização a prestar em virtude da ocorrência de danos produzidos na esfera jurídica de cidadão domiciliado em Portugal, quando tais danos se tiverem feito sentir ainda em território português, não obstante terem sido causados por facto ocorrido num terceiro Estado (a parte em itálico reflecte apenas uma condição exigível para que os tribunais portugueses sejam competentes à luz das regras do CPC, já que as exigências do Regulamento se bastam com o facto de o lesado ter domicílio em Portugal - cfr. infra).

22. Com efeito, o artigo 61 do CPC é líquido ao estatuir que «Os tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifique alguma das circunstâncias mencionadas no artigo 65» Por sua vez, o artigo 65, n.º 1, do Código de Processo Civil enumera os quatro critérios de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses.

23. No caso em apreço, impõe-se-nos que indaguemos se o critério previsto na al. c) do artigo 65 - o denominado princípio da causalidade - se verificou (pois os outros três critérios certamente não são aplicáveis ao caso em apreço) para, deste modo, avaliarmos se o tribunal a quo é competente em razão da nacionalidade.

24. Ora, determina a sobredita alínea do artigo 65 que os tribunais portugueses são competentes em razão da nacionalidade, quando tiver «sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram».

25. Tanto é dizer que basta que algum dos factos que integram a causa de pedir se verifique em território nacional para que os tribunais portugueses se devam considerar competentes.

26. Incluem-se, assim, nos factos que compõem a causa de pedir, como danos sofridos, os dias de incapacidade para o trabalho, os gastos em consultas médicas e medicamentos, a própria determinação da IPP, as perdas salariais, a dor sofrida e demais prejuízos, sendo que, na presente acção, o Autor alegou profusamente factualidade que demonstra e consubstancia o que se acabou de referir.

27. Deste modo, é forçoso concluir que os tribunais portugueses são, à face do CPC, competentes para apreciar e decidir a presente acção, pelo que, tais tribunais somente poderão ter-se por incompetentes para apreciar e julgar o caso sub judice se porventura se pudesse concluir que as regras de atribuição de competência no CPC plasmadas caem em antinomia para com o estatuído no Regulamento do Conselho.

28. Sucede, porém - ao contrário do que se diz no Acórdão recorrido -, que não poderá jamais afirmar-se que o citado Regulamento contraria a solução que resulta, neste concreto caso, da aplicação das regras de atribuição de competência vazadas no CPC.

29. Com efeito, se vimos que os tribunais portugueses são competentes para julgar o presente pleito em face do que no CPC se determina, idêntica conclusão se impõe quando tenhamos em apreço o estatuído no Regulamento do Conselho.

30. Basta que se tenha em apreço o preceituado nos arts. 3/1, 9/1/b e 11/2 do Regulamento, para que assim se conclua.

31. Na verdade, resulta límpida e claramente das normas acabadas de citar que, em situações como as dos presentes autos, é de concluir pela competência dos tribunais portugueses.

32. Apenas podemos crer que a (errada) solução perfilhada no douto Acórdão recorrido se ficou a dever a um lapso no "jogo normativo" originado pela sucessão de fontes em causa: parece, efectivamente, que os doutos Desembargadores fundamentaram o seu juízo por sobre o plasmado na Convenção de Bruxelas de 1968, olvidando que a única fonte normativa efectivamente vigorante é o Regulamento do Conselho a que nos vimos referindo. A isto acresce que tomaram a parte pelo todo, quando parecem postular a exacta coincidência entre o conteúdo da sobredita Convenção e o teor do Regulamento referido (cfr. o Acórdão recorrido, p. 7: "Mas analisando essas regras [as do Regulamento do Conselho], elas em pouco diferem das citadas Convenções").

33. No entanto, é imprescindível notar que, apesar das muitas semelhanças, não deixam de existir diferenças entre os dois corpos normativos: uma delas é precisamente o teor absolutamente claro do actual art. 9/1/b do Regulamento, que torna absolutamente estéril a discussão na qual o Acórdão recorrido faz incidir o primordial enfoque (cfr. p. 6) - a de se saber se a expressão "facto danoso" constante do art. 9 da antiga Convenção de Bruxelas prejudica (ou não) tudo o que até ver já fomos alegando.

34. Deve ainda salientar-se que a absolutização do "princípio de que a competência tem por base o domicílio do requerido" (cfr. p. 7 do Acórdão da Veneranda Relação) não encontra eco no Regulamento do Conselho: é verdade que, em princípio, a competência se estabelece daquele modo. Mas também é insofismável (embora se depreenda o contrário da decisão de que ora se recorre) que não há absolutização dessa regra: basta atentar na miríade de excepções previstas nas secções 2 a 7 do capítulo II do citado Regulamento e, sobretudo, no que explicitamente resulta da alínea b) do n.º 1 do art. 9.

35. Resta apenas referir que a solução que desta norma resulta não pode deixar de ligar-se uma intencionalidade assumida pelo legislador comunitário de conceder, no próprio domínio da eleição das conexões relevantes para efeitos de escolha das jurisdições competentes, uma protecção a sujeitos jurídicos que, normalmente, se vêem remetidos ao papel de parte (economicamente) mais fraca - é esse o caso, em regra, dos beneficiários de contratos de seguro celebrados com seguradoras que se revelam autênticos potentados económicos.

36. Tudo razões apontando, enfim, para a conclusão clara de que o douto Acórdão recorrido violou as seguintes normas: arts. 65, n.º 1, al. c), 101 e 102, n.º 1, todos do CPC, bem como os arts. 3, n.º 1, 9, n.º 1, al. b) e 11, n.º 2, todos do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000.
Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido.

As questões a decidir são:
1.ª) saber se é de conhecimento oficioso a violação das regras que definem a competência internacional para conhecer da acção da qual emerge o presente agravo e a incompetência absoluta daí resultante;

2.ª) saber se, à face dessas regras, se verifica a incompetência absoluta, em razão da nacionalidade, para o Tribunal Judicial de Águeda conhecer da acção aí instaurada pelo Autor.

Antes de vermos qual a solução a dar às questões enunciadas, e porque, como é indiscutível, a competência internacional é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, aferindo-se pelo objecto apresentado pelo autor na petição inicial (nesse sentido, a título exemplificativo, o Ac. do STJ de 25/11/2004, proc. 04B3758, disponível para consulta em www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Araújo Barros), atente-se na matéria de facto alegada pelo Autor em sede de petição inicial e que no acórdão recorrido vem assim resumida:

1. Em Dezembro de 2000, o Autor deslocou-se a Andorra para a prática de ski, onde, no dia 28, foi vítima de um acidente que consistiu em ter sido abalroado por um trenó, à saída de uma pista destinada aos praticantes desse desporto na neve.

2. Esse trenó era, na ocasião, conduzido por C, residente em França, a qual perdeu o controle do trenó, permitindo o seu despiste e o embate no autor.

3. Em consequência desse embate, o Autor sofreu fracturas dos 3.º, 4.º e 5.º metacárpios da mão direita e fez um golpe junto ao olho direito, tendo sido imediatamente assistido ainda em Andorra, no Centre Médic Soldeu - El Tarter.

4. Dessas lesões resultou-lhe uma incapacidade temporária absoluta durante 30 dias, e uma incapacidade temporária parcial de 50% durante 15 dias.

5. Apesar da alta o Autor sente dor à mobilização activa das zonas fracturadas, o que o impede de retomar a referida actividade desportiva, além de se encontrar afectado com uma incapacidade parcial permanente de 41, 42%.

6. Também o Autor deixou de auferir vencimento durante os referidos 45 dias, num total de 436, 02 Euros, além de ter suportado despesas várias.

7. O Autor sofreu dores até ter ficado curado, e sofre de desgosto por se sentir limitado na sua actividade pessoal.

8. A referida condutora do trenó havia celebrado com a Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º 70630300QP 112212Z.

A 1.ª instância, no despacho de fls. 23 e 24, depois de afirmar que a infracção das regras da competência internacional determinava a incompetência absoluta do tribunal, excepção dilatória que é de conhecimento oficioso, considerou que a causa submetida à sua apreciação não apresentava qualquer conexão objectiva ou subjectiva relevante com a ordem jurídica interna nos termos previstos no art.º 65 do CPC.

A Relação de Coimbra, no acórdão constante de fls. 60 a 74, entendeu que a infracção às regras da competência internacional (salvo caso de mera violação de um pacto privativo de jurisdição) determinava a incompetência absoluta do tribunal, vício que é de conhecimento oficioso. Considerou, em especial, que as normas constantes da Convenção de Bruxelas (assinada em 27/09/1968) e da Convenção de Lugano (celebrada em 16/09/1988) não permitiam fundamentar a tese que o agravante, invocando o disposto nos art.ºs 16 e 19 daquela Convenção, defendia no sentido da impossibilidade de conhecimento oficioso da excepção em apreço.

Por outro lado, quanto à questão de saber se o Tribunal recorrido era incompetente, em razão da nacionalidade, para o conhecimento do objecto da acção, afirmou a Relação de Coimbra que, à luz das referidas Convenções, e em especial do art.º 9 da Convenção de Bruxelas invocado pelo Autor, não podia a Ré ser demandada em Portugal, idêntica conclusão resultando da aplicação do disposto no Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, bem como das normas do direito ordinário interno, com especial destaque para a al. c) do n.º 1 do art.º 65 do CPC, normativo que o agravante também invocava para fundamentar a sua tese da competência internacional dos tribunais portugueses.

O Autor, ora recorrente, na alegação de recurso dirigida a este Supremo Tribunal, afirma que ao caso é aplicável o Regulamento (CE) n.º 44/2001, e não a Convenção de Bruxelas.
Sem embargo da razão que ao recorrente assiste neste particular (o que desde já se adianta e adiante melhor se explicará), não pode, contudo, deixar de se salientar que na alegação de recurso dirigida ao Tribunal da Relação de Coimbra o Autor sustentava a aplicabilidade dos art.ºs 9 e 16 Convenção de Bruxelas e do seu art.º 19 interpretado "a contrariu" (erro ortográfico que, certamente por lapso, repete mais algumas vezes na alegação de recurso dirigida a este Supremo).

O Autor afirma agora que a Relação decidiu "olvidando que a única fonte normativa efectivamente vigorante é o Regulamento do Conselho a que nos vimos referindo" e que "a solução (errada) perfilhada no douto Acórdão recorrido se ficou a dever a um lapso no jogo normativo originado pela sucessão das fontes em causa".
Esqueceu-se o Autor de mencionar o próprio lapso em que incorreu na sua alegação de recurso dirigida à Relação de Coimbra, parecendo-nos que quando a Relação ponderou a solução a dar ao caso à luz dos normativos constantes da Convenção de Bruxelas fê-lo precisamente para rejeitar os argumentos jurídicos apresentados pelo Autor.

Passemos então à análise das questões a decidir.

Primeira questão
Importa começar por apreciar e decidir se a violação das regras que definem a competência internacional para conhecer da presente causa e a incompetência absoluta daí resultante é de conhecimento oficioso.
Como é consabido, a incompetência absoluta decorrente da infracção das regras da competência internacional é, no nosso ordenamento jurídico, uma excepção dilatória que o tribunal aprecia oficiosamente. É o que resulta dos termos conjugados dos art.ºs 101, 102, n.º 1, 288, n.º 1, al. a), 494, n.º 1, al. a) e 495, todos do Cód. Proc. Civil.

Os art.ºs 25 e 26, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (adiante designado apenas por Regulamento), invocados pelo Autor, em nada contrariam este entendimento, que é, aliás, pacífico, na doutrina e na jurisprudência nacionais.

É o que se passa a explicar, apreciando a aplicabilidade do Regulamento à acção da qual emerge o presente agravo.
Por força do disposto no art.º 249 do Tratado da Comunidade Europeia, o Regulamento em causa é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável nos Estados membros.
"Do mesmo preceito resulta implicitamente que, no seu específico âmbito de aplicação, o Regulamento prima sobre as normas do Direito interno dos Estados membros, exceptuadas, nos termos do art.º 67 do Regulamento, as que visem harmonizar as leis nacionais em conformidade com o disposto em actos comunitários" (Dário Moura Vicente, pág. 360 do estudo "Competência Judiciária e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras no Regulamento (CE) n.º 44/2001", publicado na revista Scientia Iuridica, n.º 293, págs. 347 a 379).

O Regulamento substitui, entre os Estados membros (excepto a Dinamarca) a Convenção de Bruxelas (art.º 68, n.º 1, do Regulamento). No que concerne à delimitação do campo de aplicação da Convenção de Lugano relativamente ao Regulamento, salienta-se que a Convenção de Lugano não prejudica a aplicação do Regulamento às relações entre os Estados membros da Comunidade Europeia, mas a Convenção será aplicável sempre que as regras dela constantes atribuírem competência aos tribunais de um Estado contratante que não seja membro da Comunidade Europeia, isto é, a Islândia, a Noruega, a Polónia e a Suíça (veja-se Dário Moura Vicente, págs. 374 a 377 do estudo citado, e Miguel Teixeira de Sousa, págs. 684 a 687 do estudo "Âmbito de Aplicação do Regulamento n.º 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000 (Regulamento Bruxelas I)", in "Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço", Vol. II, págs. 675 a 691).

"Em traços largos, pode dizer-se que o Regulamento n.º 44/2001 é aplicável sempre que se trate de aferir a competência dos tribunais de um Estado-membro quando o demandado tenha domicílio num outro Estado-membro (...)" (Miguel Teixeira de Sousa, pág. 685 do estudo citado).
Mais concretamente, para determinar se o Regulamento é aplicável na presente acção, há que considerar três vertentes (veja-se a análise feita por Dário Moura Vicente, no estudo citado, págs. 355 a 359, e por Miguel Teixeira de Sousa, no estudo acima referido, págs. 676 a 683):
- o seu âmbito material de aplicação, que compreende, nos termos do seu art.º 1, a "matéria civil e comercial", entendida esta à luz do que resulta dos objectivos e do sistema do próprio Regulamento, bem como dos princípios gerais decorrentes dos sistemas jurídicos nacionais;
- o seu âmbito de aplicação espacial, resultando do art.º 3, n.º 1, que as regras de competência do Regulamento são aplicáveis, em princípio, quando o réu tenha domicílio (ou sede, administração central ou estabelecimento principal - cfr. art.º 60 do Regulamento) no território de um Estado membro;
- o seu âmbito temporal de aplicação, regulado no art.º 66, que consagra o princípio geral da não retroactividade, por força do qual as regras do Regulamento apenas se aplicam às acções intentadas após a entrada em vigor do Regulamento, sendo que essa entrada em vigor foi fixada - pelo art.º 76 do Regulamento - para o dia 1 de Março de 2002.

O Regulamento é obrigatório no nosso ordenamento jurídico nacional, uma vez que Portugal é Estado membro da Comunidade Europeia.
A presente acção tem indiscutível natureza civil, atento o seu objecto, pois funda-se na responsabilidade civil extracontratual, transferida para a Ré seguradora através de contrato de seguro. Foi demandada uma sociedade cuja sede se situa em França (Estado membro). A acção foi instaurada no dia 29/11/2002.

Conclui-se, assim, que o Regulamento é aqui aplicável para aferição da competência internacional dos tribunais portugueses, prevalecendo as normas dele constantes sobre as normas de Direito Processual consagradas no Código de Processo Civil, não sendo aplicável a Convenção de Bruxelas, por ter sido substituída pelo Regulamento, nem tão pouco a Convenção de Lugano.

Analisemos agora os art.ºs 25 e 26, n.º 1, do Regulamento invocados pelo Autor para fundamentar a sua tese da impossibilidade de conhecimento oficioso da excepção de incompetência internacional.
Tais artigos encontram-se na Secção 8 do Regulamento, sob a epígrafe "Verificação da competência e da admissibilidade".
Preceitua o primeiro que "O juiz de um Estado-Membro, perante o qual tiver sido proposta, a título principal, uma acção relativamente à qual tenha competência exclusiva um tribunal de outro Estado-Membro por força do artigo 22.º, declarar-se-á oficiosamente incompetente."

Por sua vez, o n.º 1 do art.º 26 estabelece que "Quando o requerido domiciliado no território de um Estado-Membro for demandado perante um tribunal de outro Estado-membro e não compareça, o juiz declarar-se-á oficiosamente incompetente se a sua competência não resultar das disposições do presente regulamento".

A norma constante do art.º 25 visa assegurar as competências exclusivas em razão da matéria consagradas na Secção 6, art.º 22 do Regulamento, designadamente em matéria de direitos reais sobre imóveis, que prevalecem sobre todas as competências estabelecidas nos artigos anteriores e operam ainda que o réu não se encontre domiciliado num Estado membro. São competências que constituem expressão do princípio da soberania estadual e que estão consagradas no direito interno português no art.º 65-A do CPC, cuja redacção, introduzida pela Reforma de 1995/96, se inspira no preceito correspondente da Convenção de Bruxelas - o art.º 16 (cfr. Dário Moura Vicente, estudo citado, pág. 369).
É nosso entendimento que o citado art.º 25 - atinente apenas aos casos de competência exclusiva - não consente a interpretação a contrario sensu que o Autor pretende fazer, pois o art.º 26 dispõe precisamente para a generalidade das outras situações, estabelecendo a regra do conhecimento oficioso da incompetência resultante da violação das disposições do Regulamento sempre que o requerido domiciliado no território de um Estado-Membro seja demandado perante um tribunal de outro Estado-Membro e não compareça.

O art.º 26 visa assegurar o respeito pelos critérios de conexão estabelecidos nas secções 1 a 7 do Capítulo II do Regulamento, com especial destaque para aquele que é o critério de conexão fundamental adoptado pelo Regulamento em matéria de competência internacional: o domicílio do réu. Este critério encontra-se consagrado no art.º 2, n.º 1, disposição que dá corpo ao princípio da protecção das pessoas domiciliadas nos Estados membros, preceituando que "Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado".

Como escreve o Conselheiro Neves Ribeiro (in "Processo Civil da União Europeia", pág. 59), "O artigo 2.º constitui um preceito fundamental do regulamento, à semelhança do que sucede com o preceito paralelo da Convenção de Bruxelas (e de Lugano), que reproduz integralmente.

É a regra geral do domicílio do requerido, como critério fundamental de conexão, para fixação da competência judiciária independentemente da nacionalidade do requerido.
Trata-se de uma norma de direito uniforme que afasta a aplicação das normas internas sobre a competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros (artigos 7.º-2, 65.º e 65.º-A do Código de Processo Civil)".
O teor do art.º 26 é bem elucidativo quanto à necessidade de apreciação oficiosa por parte do tribunal dos diferentes critérios de conexão adoptados pelo Regulamento em matéria de competência internacional. E percebe-se que essa apreciação apenas seja oficiosa nos casos em que o requerido/demandado não compareça. É que o art.º 24 do Regulamento admite uma prorrogação ou extensão tácita da competência jurisdicional que o Direito português não prevê (cfr. Dário Moura Vicente, estudo citado, pág. 371, e Conselheiro Neves Ribeiro, ob. cit., pág. 94), preceituando que "Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 22.º".

Portanto, o legislador comunitário entendeu que quando o requerido compareça perante o tribunal do Estado membro em que foi demandado, excepto se o fizer com o objectivo de arguir a incompetência do tribunal ou se a acção for da competência exclusiva dos tribunais de outro Estado membro por força do art.º 22, não se justifica a declaração oficiosa de incompetência, reconhecendo a autonomia da vontade como um outro princípio fundamental em torno do qual está estruturado o regime instituído pelo Regulamento no que respeita à repartição da competência internacional (para além dos já referidos princípios da protecção das pessoas domiciliadas nos Estados membros e da soberania estadual).

Trata-se de "uma forma particular de competência judiciária aceite e pode ser assim consensualizada por autor e réu, desde que não seja afastada por nenhuma das disposições do regulamento (Conselheiro Neves Ribeiro, ob. cit., pág. 94).

Com efeito, se a parte é demandada no tribunal de um Estado membro que não seria competente à luz das regras do Regulamento, mas opta por comparecer nesse tribunal, e não invoca, como é seu direito, a excepção de competência, o tribunal não deve declarar-se incompetente, mas conhecer do processo, pois considera-se que há uma aceitação tácita da competência por parte do requerido, ou seja, que tacitamente as partes acordaram quanto à sua competência. Logo, não há qualquer incompetência internacional que deva ser declarada.

Ora, na presente acção, a Ré - domiciliada em França - foi demandada em Portugal e não compareceu (não constituiu sequer mandatário judicial). Logo, impunha-se averiguar se estava verificado o pressuposto processual da competência internacional dos tribunais portugueses, averiguação a fazer em conformidade com as disposições constantes do Regulamento, aplicável à presente acção, sendo certo que, a concluir-se pela negativa, o tribunal deveria declarar oficiosamente a incompetência (absoluta) internacional (decorrente da violação das disposições do Regulamento).

O Autor defende que a 1.ª instância, ao invés de conhecer dessa excepção, deveria ter dado cumprimento ao disposto no art.º 484 do Cód. Proc. Civil. Todavia, uma vez que, no entendimento do tribunal se verificava a aludida excepção, ter-se-á querido evitar a prática dos actos previstos nesse normativo, por inúteis, o que é consentâneo com o disposto no art.º 137 do Cód. Proc. Civil.

Não obstante o tribunal de 1.ª instância não tenha feito aplicação do Regulamento e a Relação não se tenha limitado a aplicar o mesmo, daí não resulta que a excepção dilatória que julgaram verificada - a incompetência absoluta, em razão da nacionalidade - não seja de conhecimento oficioso. A excepção é de conhecimento oficioso, resta agora saber se a mesma está verificada.

Segunda questão
Trata-se de saber se, face às regras aplicáveis ao caso, se verifica a incompetência absoluta, em razão da nacionalidade, do Tribunal Judicial de Águeda para conhecer da acção aí instaurada pelo Autor.
Importa analisar a questão à luz das disposições constantes do Regulamento, por ser aplicável à presente acção, como já se referiu, sendo certo que se das disposições do Regulamento - e só destas - não resultar a competência (internacional) dos tribunais portugueses, mas dos tribunais de outro Estado membro, será de concluir pela incompetência absoluta do Tribunal Judicial de Águeda, em razão da nacionalidade, como decidiram as instâncias, embora com diferente fundamentação.

No que "respeita à repartição da competência internacional, o regime instituído pelo Regulamento estrutura-se em torno de cinco princípios fundamentais: a protecção das pessoas domiciliadas nos Estados membros, a proximidade ou forum conveniens, a protecção da parte mais fraca na relação jurídica, a soberania estadual e a autonomia da vontade" (Dário Moura Vicente, estudo citado, pág. 360).

O critério de conexão fundamental adoptado pelo Regulamento em matéria de competência internacional é o domicílio do réu. Este critério, a que já fizemos referência, está consagrado no art.º 2, n.º 1, do Regulamento, visando-se com esta regra poupar ao réu as dificuldades inerentes à condução da sua defesa perante um tribunal estrangeiro (assim Dário Moura Vicente, estudo citado, pág. 360).

A importância deste critério é salientada no parágrafo 11 das considerações prévias do Regulamento, nos seguintes termos "As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular-se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, excepto em alguns casos bem determinados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro critério de conexão. No respeitante às pessoas colectivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição".

A regra geral consagrada no Regulamento é a mesma que já vigorava no nosso ordenamento jurídico para determinar a competência internacional dos tribunais portugueses, nos termos do art.º 2, parágrafo 1, da Convenção de Bruxelas e do art.º 65, n.º 1, al. a), do CPC.
Importa, todavia, assinalar uma novidade. Com efeito, "No tocante às pessoas colectivas existe, porém, a este respeito uma diferença de vulto entre o Regulamento e a Convenção de Bruxelas: ao passo que esta, depois de equiparar a sede ao domicílio, remete a determinação da sede para a lei designada nos termos das normas de Direito Internacional privado do Estado do foro, o Regulamento consagra no art. 60.º, n.º 1, uma definição autónoma do factor de competência em questão" (Dário Moura Vicente, estudo citado, págs. 360 e 361), dispondo este normativo que "Para efeitos da aplicação do presente regulamento, uma sociedade ou outra pessoa colectiva ou associação de pessoas singulares e colectivas tem domicílio no lugar em que tiver: a) A sua sede social (...)".

Ora, tendo a Ré a sua sede social em França, onde foi, aliás, citada, é evidente que, segundo a regra geral consagrada no art.º 2, n.º 1, do Regulamento, deveria ter sido demandada perante os tribunais franceses.

Para além desta regra geral, outros critérios de conexão foram considerados pelo legislador comunitário, estabelecendo o Regulamento foros alternativos. No parágrafo 12 das considerações prévias do Regulamento refere-se precisamente que "O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça".
Assim, preceitua o art.º 3 do Regulamento que:
"1. As pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo".
2. Contra elas não podem ser invocadas, nomeadamente, as regras de competência nacionais constantes do anexo I".
De referir que essas regras são, no caso de Portugal, os art.ºs 65 e 65-A do Código de Processo Civil (e o art. 11 do Código de Processo do Trabalho), atento o 10.º travessão do Anexo I do Regulamento (veja-se a crítica feita por Dário Moura Vicente, no estudo citado, págs. 361 e 362).

Apreciemos então se as regras constantes das secções 2 a 7 do capítulo II do Regulamento possibilitam a demanda da Ré nos tribunais portugueses.
Essas regras podem agrupar-se da seguinte forma: as atinentes às competências especiais previstas nos art.ºs 5 a 7; as de competência em matéria de contratos de seguros (art.ºs 8 a 14); as de competência em matéria de contratos individuais de trabalho (art.ºs 18 a 21); as de competências exclusivas (art.º 22); e as de competências atributivas (art.ºs 23 e 24).

Ora, considerando que a Ré é uma sociedade seguradora e que foi demandada precisamente por causa de contrato de seguro, importa que concentremos a nossa atenção nas regras constantes da Secção 3 do Regulamento, relativas à competência em matéria de seguros, as quais (bem como as regras em matéria de contratos celebrados pelos consumidores e de contratos individuais de trabalho) se fundam no objectivo de proteger a parte mais fraca.
Preceitua o art.º 8 do Regulamento que "Em matéria de seguros, a competência é determinada pela presente secção, sem prejuízo do disposto no artigo 4.º e no ponto 5 do artigo 5.º".
Seguidamente, o art.º 9 do Regulamento estabelece que:
"1. O segurador domiciliado no território de um Estado-Membro pode ser demandado:
a) Perante os tribunais do Estado-Membro em que tiver domicílio; ou
b) Noutro Estado-Membro, em caso de acções intentadas pelo tomador de seguro, o segurado ou um beneficiário, perante o tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio; ou
c) Tratando-se de um co-segurador, perante o tribunal de um Estado-Membro onde tiver sido instaurada acção contra o segurador principal.
2. O segurador que, não tendo domicílio no território de um Estado-Membro, possua sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento num Estado-Membro, será considerado, quanto aos litígios relativos à exploração daqueles, como tendo domicílio no território desse Estado-Membro."
Por sua vez, o art.º 10, dispõe que "O segurador pode também ser demandado perante o tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu quando se trate de um seguro de responsabilidade civil ou de um seguro que tenha por objecto bens imóveis. Aplica-se a mesma regra quando se trata de um seguro que incida simultaneamente sobre bens imóveis e móveis cobertos pela mesma apólice e atingidos pelo mesmo sinistro".
De referir ainda o art.º 11 nos termos do qual:
"1. Em matéria de seguros de responsabilidade civil, o segurador pode também ser chamado perante o tribunal onde for proposta a acção do lesado contra o segurado, desde que a lei desse tribunal assim o permita.
2. O disposto nos artigos 8.º, 9.º e 10.º aplica-se no caso de acção intentada pelo lesado directamente contra o segurador, sempre que tal acção directa seja possível.
3. Se o direito aplicável a essa acção directa previr o incidente do chamamento do tomador do seguro ou do segurado, o mesmo tribunal será igualmente competente quanto a eles."

Ora, da aplicação da regra constante do art.º 9, n.º 1, al. a) resulta que a acção de que emerge o presente agravo deveria ter sido intentada em França. Assim, no caso em apreço, chega-se a um resultado coincidente com o que resulta da aplicação da regra geral.

Por outro lado, pensamos não ser possível concluir no sentido da atribuição de competência aos tribunais portugueses por força do critério estabelecido no art.º 9, n.º 1, al. b) do Regulamento. Esse normativo, com evidentes propósitos de protecção da parte mais fraca, atribui relevância a um diferente factor de conexão: o domicílio do tomador de seguro, do segurado ou do beneficiário de seguro.

Sendo indiscutível que o Autor não é o tomador do seguro que pretende accionar, nem tão pouco o segurado, pode questionar-se se terá a qualidade de beneficiário do contrato de seguro invocado nos autos. Mas pensamos que a resposta deve ser negativa. Com efeito, tal entendimento obrigaria a uma interpretação extensiva do preceito, de forma a considerar que beneficiário do seguro é também o lesado quando se trate de um seguro de responsabilidade civil.

Ora, tal interpretação não nos parece acertada do ponto de vista sistemático, face ao teor dos art.ºs 10 e 11 do Regulamento. Pensamos que se o legislador comunitário tivesse pretendido que o conceito de beneficiário constante do art.º 9, n.º 1, al. b) abrangesse também o de lesado, que é utilizado no art.º 11 do Regulamento, tê-lo dito, já que utiliza esses dois conceitos em artigos inseridos na mesma Secção atinente à competência em matéria de seguros.

Ficaria, assim, por esclarecer por que motivo, tendo o legislador comunitário, estabelecido dois normativos que tratam precisamente da competência nas acções atinentes a seguro de responsabilidade civil, não teria consagrado nesses normativos, se fosse essa a sua intenção, a regra da competência dos tribunais do lugar/Estado membro do domicílio do lesado.

Sendo o objectivo das normas a protecção da parte mais fraca, essa parte será, em princípio, a parte no contrato de seguro, sendo certo que o lesado não é parte nesse contrato.
Por outro lado, não se pode olvidar que o Regulamento destina-se a assegurar que as regras de competência apresentem um elevado grau de certeza jurídica, apenas cedendo a regra geral do domicílio do requerido, por motivos atinentes ao vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça.

Ora, pensamos que aquele objectivo ficaria prejudicado, sem razões suficientemente válidas, no caso de se entender que beneficiário do seguro seria também o lesado nas acções respeitantes a seguro de responsabilidade civil extracontratual.
É que atribuir uma tal relevância ao domicílio do lesado levaria a uma grande dose de incerteza na aferição da competência internacional nas acções fundadas em responsabilidade extracontratual - transferida através de contrato de seguro -, sobretudo no caso, tão frequente, de existência de vários lesados, num mesmo sinistro, domiciliados em diferentes Estados membros, situação em que a seguradora teria sérias dificuldades em defender-se numa multiplicidade de acções instauradas em diferentes Estados, com óbvios inconvenientes para a boa administração da justiça.

Por outro lado, a regra constante do art.º 10 mais não é do que o "retomar" da regra do art.º 5, n.º 3. O segurador pode também ser demandado perante o tribunal onde ocorreu o facto danoso nas situações em que o risco coberto abrange a responsabilidade civil, como fonte da obrigação de indemnizar.
Se é verdade que as regras de competência em matéria de seguros têm como principal escopo a protecção da parte mais fraca, não se pode olvidar que o art.º 5, n.º 3, se funda no princípio da proximidade ou forum conveniens acima referido, o qual encontra especial consagração no art.º 5 da Secção 2, sob a epígrafe "Competências especiais".

Por força do disposto no n.º 3 deste art.º 5 uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.

Foi questão muito discutida durante a negociação técnica do Regulamento, a de saber qual o lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso. O Conselheiro Neves Ribeiro (obra citada, pág. 70), depois de lembrar o conhecido acórdão "Minas de Potassio" - acórdão C-21/76, de 30 de Novembro - em que o Tribunal das Comunidades decidiu que o réu pode ser demandado, por escolha do autor, perante o tribunal onde o dano emergiu, ou perante o tribunal do lugar do acontecimento causal que originou o dano, afirma que "a questão está em saber qual o local de produção do dano, do resultado ou do efeito danoso, sobretudo quando ocorre em vários locais (a acção, a omissão, ou, então, efeito lesivo plurilocalizado). A ideia prevalecente foi deixar-se à apreciação de cada caso, conforme o grau maior ou menor de conexão com o foro demandado". Já na anotação ao art.º 10 (pág. 76), este autor refere-se ao facto danoso como "a acção ou omissão, o resultado ou o efeito lesivo".

Dispondo o art.º 5, n.º 3, da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 que o requerido com domicílio no território de um Estado contratante pode ser demandado num outro Estado contratante, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso, facilmente se conclui que a única novidade do n.º 3 do art.º 5 do Regulamento consiste em abranger "não só os casos em que o facto danoso já se produziu, mas também aqueles em que há o risco de ele se produzir" (Dário Moura Vicente, estudo citado, pág. 363). Ou seja, pretendeu-se abranger as acções preventivas (assim, Conselheiro Neves Ribeiro, obra citada, pág. 70).

Assim, pensamos que na interpretação do art.º 5, n.º 3, do Regulamento, importa ter presente a jurisprudência firmada pelo Tribunal das Comunidades Europeias atinente ao conceito "lugar onde ocorreu o facto danoso" constante do art.º 5, ponto 3 da Convenção de Bruxelas (já que não se localizou jurisprudência sobre o preceito correspondente do Regulamento).

No recente Acórdão do Tribunal das Comunidades Europeias de 10/06/2004 (disponível para consulta em www.dgsi.pt), relatado pelo Sr. Conselheiro Cunha Rodrigues, começa-se por lembrar que o sistema de atribuição das competências comuns previstas no Título II da Convenção se baseia na regra de princípio, enunciada no art.º 2, primeiro parágrafo, segundo o qual as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado, e que é só por derrogação a este princípio fundamental da competência dos tribunais do domicílio do requerido que a secção 2 do Título II da Convenção prevê alguns casos de atribuição de competências especiais, entre as quais a que consta do art.º 5, ponto 3, da Convenção.

Afirma-se de seguida, nesse Acórdão, que as "regras definidoras de competências especiais são de interpretação estrita, não permitindo uma interpretação que vá além das hipóteses explicitamente consideradas pela convenção", e que "segundo jurisprudência assente, a regra enunciada no artigo 5.º, ponto 3, da convenção é fundada na existência de uma conexão particularmente estreita entre o litígio e tribunais diferentes dos do domicílio do requerido, que justifica uma atribuição de competência a esses tribunais por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo".

Refere-se ainda neste Acórdão que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias já declarou que, "caso o lugar onde se situa o facto susceptível de implicar uma responsabilidade extracontratual não coincida com o lugar onde esse facto provocou o dano, a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso», que figura no artigo 5.º, ponto 3, da convenção, deve ser entendida no sentido de que se refere simultaneamente ao lugar onde o dano se verificou e ao lugar onde ocorreu o evento causal na origem deste dano, de modo que o requerido pode ser demandado, consoante a opção do requerente, perante o tribunal de um ou outro desses dois lugares".

Este entendimento do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem subjacente um sistema de responsabilidade civil extracontratual assente em dois elementos constitutivos essenciais: o facto ilícito ou delito, por um lado; e o dano, por outro.
Perante um tal sistema e a ratio do art.º 5, n.º 3 (facilitar a produção da prova e a organização do processo), justifica-se plenamente considerar que na aferição da competência dos tribunais dos Estados contratantes quanto às acções fundadas em responsabilidade extracontratual deve ser atribuída igual relevância a ambos os elementos essenciais constitutivos da responsabilidade.

A Relação, no acórdão recorrido, a propósito da interpretação a ser dada ao art.º 5, n.º 3, aderindo à posição já defendida no Ac. da RC de 19/12/2000, considerou que o "facto danoso" deve "ser interpretado no sentido do facto também pressuposto da responsabilidade civil extracontratual, aliás o seu primeiro pressuposto, entendido este como o elemento básico da responsabilidade delitual, como o facto voluntário, ou seja, o facto dominável ou controlável pela vontade humana, a conduta do agente causadora do dano".

E citou o Prof. Miguel Teixeira de Sousa (in "A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns", pág. 72), quando escreve que nas "acções relativas a matéria extracontratual, a parte pode ser demandada perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso (art.º 5.º, n.º 3, CBrux); se o lugar desse facto não coincidir com o do dano, a acção pode ser instaurada no tribunal deste último". A Relação criticou esta doutrina, por falta de apoio legal, mas, na verdade, ela mais não é do que o reconhecimento da orientação jurisprudencial firmada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.

Assim, não pode aceitar-se a interpretação preconizada no acórdão recorrido, antes consideramos, na esteira da jurisprudência do TJCE, que no caso das acções fundadas em responsabilidade civil extracontratual, quando o lugar do facto e o lugar do dano, seus pressupostos, não coincidem, tanto são competentes os tribunais do Estado contratante em cujo território se verificou o facto ilícito gerador da responsabilidade, como os tribunais do Estado contratante em cujo território se verificou o dano.

Mas atenção porque essa jurisprudência não tem o alcance que o Autor pretende, não sendo possível considerar como lugar da materialização do dano o Estado ou Estados onde se façam sentir as consequências danosas - incluindo as sequelas e os danos futuros - de um evento que causou um dano num outro Estado.

Por isso, decidiu-se no referido Acórdão do TJCE que "o artigo 5.º, ponto 3, da convenção deve ser interpretado no sentido de que a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» não se refere ao lugar do domicílio do requerente, no qual se localiza «o centro do seu património», pelo simples motivo de aí ter sofrido um prejuízo financeiro resultante da perda de elementos do seu património ocorrida e sofrida noutro Estado contratante".

No mesma linha se pronunciara já o Acórdão do TJCE de 19 de Setembro de 1995 (disponível para consulta em www.dgsi.pt), relatado pelo Conselheiro Moitinho de Almeida, decidindo que o conceito "lugar onde ocorreu o facto danoso", constante do art. 5, ponto 3, da Convenção de Bruxelas, "deve ser interpretado no sentido de que não abrange o lugar em que a vítima pretende ter sofrido um prejuízo patrimonial consecutivo a um dano inicial ocorrido e sofrido por ela num outro Estado contratante. Assim, embora se admita que este conceito pode visar simultaneamente o lugar onde se produziu o dano e o do evento causal, não pode todavia ser interpretado de modo extensivo ao ponto de englobar todo e qualquer lugar onde se podem fazer sentir as consequências danosas de um facto que causou já um dano efectivamente ocorrido noutro lugar."

Transpondo a jurisprudência do TJCE para o caso concreto submetido à apreciação deste Supremo Tribunal, consideramos que o Autor não podia demandar a Ré nos tribunais portugueses, por ter sido em Andorra (país terceiro, embora com relações privilegiados com os Estados-Membros como resulta, por ex., do Regulamento (CE) n.º 539/2001, do Conselho, de 15/03/2001) que foi praticado o facto ilícito gerador de responsabilidade civil e que logo teve lugar o dano consistente nas lesões físicas sofridas pelo Autor, não obstante estas lesões tenham deixado sequelas - traduzidas numa incapacidade permanente parcial - que acarretam para o Autor danos futuros.

Portanto, o dano aconteceu no mesmo Estado onde foi praticado o facto ilícito, em Andorra, país terceiro, onde não é obrigatório o Regulamento, sendo inaceitável uma interpretação extensiva do art.º 10 do Regulamento, que levasse a considerar Portugal como lugar do dano, pelo simples facto de o dano inicial ter tido sequelas e implicar despesas e danos futuros no nosso País.

As normas do Regulamento ao definirem a competência dos tribunais dos Estados comunitários, constituem uma "lei especial" perante as normas reguladoras da competência internacional previstas nas leis internas. Assim, como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 25/11/2004, no processo 04B3758, supra citado, "sempre que o caso concreto cabe no âmbito de aplicação do citado Regulamento, as respectivas normas prevalecem sobre a regulamentação geral interna de cada Estado. Não sendo esse o caso, as normas nacionais mantêm a sua plena vigência".

Por isso, dispõe hoje o art. º 65, n.º 1, do CPC que a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos factores de conexão aí previstos "Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais".

Já explicámos que a presente acção cabe no âmbito de aplicação do Regulamento n.º 44/2001, sendo à luz das regras deste constante - e só destas - que deve ser averiguado se os tribunais portugueses são ou não competentes para conhecerem da mesma.

A 1.ª instância limitou-se a analisar a questão da competência internacional segundo as regras constantes do Código de Processo Civil (art.ºs 65 e 65-A).
A Relação de Coimbra já ponderou a aplicação - não exclusiva - do Regulamento, embora sem precisar qual a interpretação a fazer dos seus normativos, mormente dos art.ºs 5, n.º 3, e 10, antes considerando aplicáveis o art.º 5, n.º 3 da Convenção de Bruxelas e o art.º 65, n.º 1, al. c), do CPC, que interpretou com o sentido de atribuírem competência aos tribunais do Estado onde ocorreu o facto ilícito, primeiro pressuposto da responsabilidade delitual.

Face ao teor dos art.ºs 2, n.º 1, 8, 9, n.º 1, als. a) e b), e 10 do Regulamento, aplicáveis à presente acção, interpretados conjugada e sistematicamente da forma acima referida, concluímos que o Autor deveria ter demandado a Ré perante os tribunais franceses, não o podendo fazer perante os tribunais portugueses.

Logo, o Tribunal Judicial da Comarca de Águeda não tem competência internacional (comunitária) para a acção declarativa de condenação intentada pelo Autor e da qual emerge o presente agravo, verificando-se a excepção de incompetência internacional declarada pela 1.ª instância em despacho que a Relação confirmou.

Para concluir, lembramos que, pese embora as naturais dificuldades colocadas ao Autor pela necessidade de demandar a Ré nos tribunais franceses, tal demanda, no respeito das regras do Regulamento comunitário, também se reveste de vantagens para ele na medida em que evita que tenha de apresentar em França requerimento de declaração de executoriedade de eventual sentença condenatória proferida em Portugal, sendo certo que correria o risco de não ver reconhecida uma tal sentença face ao disposto nos art.ºs 35, n.º 1, e 43 a 45 do Regulamento.

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, confirmando-se a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação.
Custas pelo Autor.

Lisboa, 3 de Março de 2005
Barros Caldeira
Faria Antunes
Moreira Alves