Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A1110
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Nº do Documento: SJ20080603011106
Data do Acordão: 06/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. A competência territorial fixada no art. 73º do Cód. de Proc. Civil – foro da situação dos bens - está numa relação de especialidade em relação à competência territorial fixada no art. 74º do mesmo diploma – foro para cumprimento de obrigações.
II. Assim sempre que uma acção se refira a um direito real ou pessoal de gozo sobre imóvel, a competência territorial pertence à comarca da situação do imóvel, independentemente de nessa acção ser pedido o cumprimento de uma obrigação ou a resolução de um contrato que incida sobre o referido imóvel.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Banco AA S.A., intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, na 13ª Vara Cível de Lisboa, contra BB – Importação e Exportação, Lda., pedindo:
a) Que seja declarado validamente resolvido o contrato de locação financeira imobiliária que celebrou com a ré por escritura pública outorgada em 14 de Novembro de 2001, no 19º Cartório Notarial de Lisboa;
b) Que a ré seja condenada a restituir à autora, com carácter definitivo, a fracção autónoma designada pela letra “A”, que corresponde a sub-cave esquerda, armazém com arrecadação no piso superior, do prédio urbano sito na Rua ...., n.º 0 - Monte Abraão, freguesia de Queluz, Concelho de Sintra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o n.º 12, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º 3181 da referida freguesia; da fracção autónoma, designada pela letra “A”, que corresponde a segundo sub-cave, armazém, do prédio urbano sito na Rua ..., n.º 1 e Rua ..., números 2 e 2 - A - Monte Abraão, freguesia de Queluz, Concelho de Sintra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz, sob o n.º 351, e inscrito na matriz predial urbana sob o art. n.º 3182 da referida freguesia; e da fracção autónoma designada pela letra “B”, que corresponde a sub-cave, composta de armazém, do prédio urbano sito na Rua ..., n.º 5 e entradas pelos n.ºs 6 e 6A, para a Av. ... – Monte Abraão, freguesia de Queluz, Concelho de Sintra, descrito na Conservatória do Registo predial de Queluz sob o n.º 340 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. n.º 3183 da referida freguesia, livres e devolutas de pessoas e bens, bem como ordenado o cancelamento do respectivo registo de locação financeira, efectuado a favor da aqui Requerida, na Conservatória do Registo Predial de Queluz correspondente à inscrição F4 e à apresentação 35/011213;
c) Que a ré seja condenada no pagamento à autora do valor correspondente à indemnização pelo atraso na devolução do imóvel, após a resolução do contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre ambos, acrescido dos correspondentes juros de mora vencidos, calculados à taxa de 11,04%, do respectivo imposto do selo, bem como dos juros vincendos e respectivo imposto do selo, até que se verifique a liquidação integral do devido;
d) Que a ré seja condenada a Ré no pagamento à Autora do valor correspondente à primeira e segunda prestação do Imposto Municipal sobre Imóveis, bem como do valor correspondente à Taxa Anual de Conservação de Esgotos, todos referentes ao ano de 2005, no montante global de € 938,21 (novecentos e trinta e oito euros e vinte e um cêntimos), acrescido dos correspondentes juros de mora vencidos, calculados à taxa anual de 11,04%, no valor de € 56,09 (cinquenta a seis euros e nove cêntimos), do respectivo imposto de selo, no valor de € 2,24 (dois euros e vinte e quatro cêntimos), bem como dos juros vincendos - com a capitalização anual, prevista no n.º 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 344/78, de 17 de Novembro (com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 83/86, de 6 de Maio) - e respectivo imposto do selo, até que se verifique a liquidação integral do devido;
e) Que a ré seja condenada na sanção compulsória prevista no art. 829.º-A do Código Civil e, em conformidade, no pagamento à autora de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso na restituição definitiva dos imóveis identificados em b), correspondente a 3,5% sobre o valor da renda mensal vigente à data da resolução do Contrato de Locação Financeira (de € 1.957,42); bem como, a acrescer a todos os montantes peticionados, no pagamento à Autora de juros à taxa anual de 5%, desde a data em que a Douta Sentença de condenação venha a transitar em julgado.
Para o efeito, alega que celebrou com a ré um contrato de locação financeira imobiliária, tendo por objecto as fracções autónomas identificadas no art. 7º da petição inicial, todas sitas na área da comarca de Sintra, contrato esse que a ré deixou de cumprir.
Citada a ré, não contestou, pelo que foi proferido despacho a considerar provados os factos alegados, em obediência ao disposto no art. 484º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil.
Apresentadas as alegações da autora, foi proferido despacho a considerar o tribunal demandado incompetente em razão do território e competente o tribunal da comarca de Sintra, para onde foram mandados remeter os autos.
Inconformada a autora agravou desta decisão, tendo a Relação de Lisboa negado provimento ao agravo.
Mais uma vez inconformada, veio a autora agravar para este Supremo Tribunal, ao abrigo da excepção prevista na segunda parte do nº 2 do art. 754º do Cód. de Proc. Civil – a que se referirão todas as disposições a citar sem indicação de origem -, tendo nas suas alegações formulado conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritas e nas quais apenas levanta, para conhecer neste recurso, a questão seguinte:
À determinação da competência territorial para a presente acção aplica-se o disposto no art. 74º e não o art. 73º, pelo que o tribunal demandado é o competente em razão do território para conhecer da presente acção ?

Não houve contra-alegação.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Já vimos a questão levantada pela recorrente como objecto deste recurso.
Os factos a considerar apurados nesta acção e com interesse para a decisão do agravo são os constantes da petição inicial e que constam, em síntese, acima.
A questão aqui em apreço consiste em saber se para determinar a competência territorial para a presente acção se deve aplicar o disposto no art. 73º, como entenderam as instâncias ou o estipulado no art. 74º como defende a recorrente, e decidiram as duas decisões da Relação de Lisboa que serviram de fundamento para a admissibilidade deste agravo.
Pensamos que a razão está do lado da decisão das instâncias proferida na presente acção, ou seja, pensamos que a recorrente não tem razão.
Com efeito, a competência dos tribunais em geral “é a medida de jurisdição dos diversos tribunais; o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais” – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 88 e 89, ed. de 1979.
“A lei assinala a cada tribunal uma certa circunscrição territorial ( distrito, círculo, comarca ), localizando depois nas várias circunscrições as diferentes causas, através do elemento de conexão que, segundo os casos, considera decisivo para o efeito. Por isso mesmo se qualifica de territorial esta competência. (...) A competência territorial é competência subjectiva: competência de cada tribunal em concreto, entre os vários que constituem as diversas ordens de tribunais, segundo a nossa organização judiciária. Ao passo que nas categorias anteriores trata-se de competência objectiva: competência de todos os tribunais (em conjunto) que integram cada uma daquelas ordens.” – obra e autor citado a fls. 100 e 101.
As regras de competência territorial destinando-se precisamente a localizar a causa dentro da área de jurisdição dos diferentes tribunais de comarca espalhados pelo território nacional, sendo esta área fixada nos mapas anexos à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei nº 38/87 de 23 de Dezembro.
A lei fixou um critério geral de determinação da competência territorial no art. 85º coincidente com o tribunal do domicílio do réu, mas antes, nos arts. 73º e segs., estabeleceu vários regimes especiais.
Assim, o art. 73º, nº 1 estabelece que devem ser propostas no tribunal da situação dos bens as acções referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, as acções de divisão de coisa comum, e despejo, de preferência e de execução específica sobre imóveis, e ainda as de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas.
No caso concreto, como bem acentua a decisão da 1ª instância, citando José Andrade Mesquita, Direitos Pessoais de Gozo, págs. 38 a 46, está em causa precisamente um direito pessoal de gozo sobre imóveis, ou seja, o litígio em causa é uma situação equivalente à de despejo, em que o contrato de locação em causa tem natureza financeira.
Logo, apesar da formulação do pedido de reconhecimento de resolução do contrato de locação financeira, o que releva no interesse da autora é a consequência legal daquela resolução consistente na restituição dos imóveis locados financeiramente em causa e o consequente pagamento da indemnização e respectivos juros por atraso na restituição dos imóveis e das despesas fiscais dos mesmos bens referentes ao tempo de atraso na restituição.
Trata-se aqui de uma cumulação aparente de pedidos, em que substancialmente apenas existe um pedido: o de restituição dos imóveis – cfr José Alberto dos Reis, Comentário ao Cód. de Proc. Civil, vol. 3º, pág. 147 e 148.
A razão da fixação do foro da situação dos imóveis – forum rei sitae – é a de facilitar a subsequente execução da decisão com a localização do imóvel na área do tribunal onde corre o processo – cfr. J. Rodrigues Bastos, em Notas ao Cód. de Proc. Civil, vol. I, pág. 209.
Por isso, a lei que na redacção do citado art. 73º do Cód. de Proc. Civil de 1939 falava em “ acção que tenha por objecto fazer valer direitos reais sobre imóveis” passou na redacção actual a falar de “acções referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis (...).”
Desta forma, dada a abrangência da lei e o interesse do legislador na fixação da competência territorial para as acções em que estejam em causa direitos reais ou pessoais de gozo referentes a imóveis nos tribunais da situação destes imóveis, não restam dúvidas de que a competência para a presente acção se radica no tribunal da comarca da situação dos imóveis que, no caso, é o de Sintra.
Pretende o recorrente que ao caso se aplica o disposto no art. 74º que estabelece que a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento deve ser proposta, à escolha do credor, no tribunal do lugar em que a obrigação devia ser cumprida ou no tribunal do domicílio do réu.
À primeira vista haveria uma simultânea incidência dos dispositivos legais dos referidos arts. 73º e 74º sobre a situação factual e haveria que interpretar qual dos dois preceitos em confronto seria aplicável.
O douto acórdão em recurso entendeu que o disposto no art. 73º está em relação ao previsto no art. 74º numa relação de especialidade, no sentido de que se o referido cumprimento de obrigações ou a resolução do contrato por falta de cumprimento disser respeito a direitos pessoais de gozo será aplicado o critério do art. 73º e só no caso contrário, se aplicará o regime do art. 74º.
Pensamos que está certa esta conclusão.
Por um lado, o legislador no art. 73º estabeleceu uma regra imperativa, no sentido de que a competência para as acções ali previstas tem um foro certo ou determinado, por tal corresponder a um interesse que a lei achou relevante.
Já no tocante ao art. 74º, o legislador estabeleceu uma regra alternativa na dependência da vontade do autor, por não haver um interesse relevante da lei na fixação de um foro determinado, antes a lei apenas pretendeu distribuir a competência, sem que tivesse manifestado uma preferência determinada sobre o concreto foro a escolher, pois colocou a escolha, dentro de certos condicionalismos, na dependência do autor.
É este o entendimento do Prof. José Alberto dos Reis, no seu “Comentário ao Cód. de Proc. Civil”, vol. 1º, pág. 193, onde refere que o texto do art. 73º teve origem no art. 91 º do projecto primitivo, enquanto o art. 74º teve origem no art. 92º do mesmo projecto e este último começava com a expressão “ Quando a acção não esteja abrangida pela disposição do artigo anterior...”.
Este texto visava aclarar o aspecto da relação de especialidade entre os dois preceitos.
Apesar deste texto não ter passado para a redacção que vingou, ensina aquele mestre na obra e local citados: “não obstante a eliminação das palavras transcritas, julgo que a doutrina do Código é a mesma do Projecto (...)”.
Desta forma, entendemos que sempre que uma acção se refira a um direito real ou pessoal de gozo incidente sobre imóvel, a competência territorial é a do tribunal da situação do imóvel, independentemente de nessa acção ser pedido o cumprimento de obrigações ou a resolução de contrato que incida sobre imóveis.
Improcede, assim, o fundamento do recurso.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela agravante.

Lisboa, 03 de Junho de 2008

João Camilo ( Relator )
Fonseca Ramos
Cardoso de Albuquerque.