Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
086647
Nº Convencional: JSTJ00028004
Relator: JOAQUIM DE MATOS
Descritores: SEGURO
APÓLICE DE SEGURO
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: SJ199509280866472
Data do Acordão: 09/28/1995
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N449 ANO1995 PAG374
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT. DIR ECON - DIR SEG.
Doutrina: Anot. de M.J.Almeida Costa. - RLJ A. 129, nº 3862 (Mai. 1996)
Legislação Nacional: CCOM888 ARTIGO 426.
DL 183/88 DE 1988/05/24 ARTIGO 8.
CCIV66 ARTIGO 220 ARTIGO 236 N1 ARTIGO 286 ARTIGO 334 ARTIGO 364 N2.
Jurisprudência Nacional: ASSENTO STJ DE 1929/01/22 IN DG IIS DE 1929/02/05.
Sumário : I - O contrato de seguro é de natureza formal, dado que a lei exige, para a sua validade, a observância de forma escrita traduzida na chamada apólice.
II - A apólice, ou a minuta depois de aceite pela seguradora, constitui formalidade "ad substantiam".
III - A existência do contrato de seguro não obsta a que a seguradora invoque a sua nulidade por vício de forma, o que determina a sua ineficácia contratual, salvo em caso de a seguradora "venire contra factum proprium", por violação do princípio da confiança, constitutiva de abuso de direito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - Os A.A. A, B e mulher C, D e marido E, F e G, e, ainda, H e marido I, todos identificados nos autos, intentaram acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra J e mulher L, também identificados, pedindo a condenação solidária dos R.R. a pagarem-lhes as seguintes quantias: a) À 1. A., a quantia de 6162745 escudos; b) Aos 2. A.A., a quantia de 1540686 escudos; c) Aos 3. A.A., a quantia de 9244117 escudos; d) Aos 4. A.A., a quantia de 8363725 escudos; e e) Aos 5. A.A., a quantia de 8363725 escudos.
Pedem ainda os mesmos A.A. a condenação dos R.R.. J mulher L a pagar-lhes, a título de juros vencidos, até à data da propositura da acção, as quantias seguintes: a) À 1. A., a quantia de 1756382 escudos; b) Aos 2. A.A., a quantia de 439095 escudos; c) Aos 3. A.A., a quantia de 2634573 escudos; d) Aos 4. A.A., a quantia de 2383661 escudos e 50 centavos; e e) Aos 5. A.A., a quantia de 2383661 escudos e 50 centavos, acrescidas, todas essas quantias, dos juros vincendos até efectivo pagamento à taxa de juro de 19 porcento.
Além disso os A.A. pedem também a condenação da R. seguradora "Real" a pagar a todos eles juros à taxa legal de 15 porcento sobre o capital em dívida, contados desde a data da citação até integral pagamento.
Alegam, para tanto, em síntese, que:
Por escritura de 25 de Julho de 1990, outorgada no 4. Cartório Notarial do Porto, a 3. A., devidamente autorizada por seu marido, as 4. A.A. e os 5. A.A. cederam ao R. J as quotas que detinham na sociedade "J e Companhia Limitada", com sede em Espinho, nas condições de preço e prazo de pagamento discricionadas nos artigos 7. e 11. da petição inicial, não tendo o mesmo R. liquidado as prestações que se venceram nos dias 31 de Janeiro e 30 de Julho de 1991;
Por escritura pública de partilha, realizada por óbito de N, na mesma data e no mesmo Cartório Notarial, foram adjudicadas ao R. J as quotas que o 1. e os 2. A.A. detinham na sociedade, tendo aquela ficado a dever as quotas à 1. A. no montante de 6162745 escudos e ao 2. A. de 1540686 escudos, que deveriam ser liquidadas nas prestações e prazos constantes nos artigos 24 a 26 do mesmo articulado, não tendo também o R. liquidado as prestações que se venceram nos dias 31 de Janeiro de 1991 a 30 de Julho de 1991, implicando sempre o vencimento das restantes; e
Em ambas as escrituras referidas ficou consignado que "o pagamento das referidas prestações fica garantido por apólice acção emitida pela M - Companhia de Seguros S.A.", a qual aceitou a emissão de tal apólice em conformidade com uma carta que endereçou à A. F, na data da celebração das escrituras, sem a qual os A.A. não as teriam outorgado, sendo assim este R. responsável pelo pagamento aos A.A. dos respectivos créditos sobre os 1. R.R.
Contestou a R. "M-Companhia de Seguros, S.A.", alegando, em suma, não ter celebrado com o R. J qualquer contrato de seguro-caução, de que os A.A. fossem beneficiários e contestaram este e a esposa L, impugnando os montantes das prestações devidas aos 4. e 5. A.A., e alegando terem liquidado a todos os A.A. as prestações que se venceram no dia 31 de Janeiro de 1991, estando apenas em dívida as 2., 3., 4. e 5. prestações, bem como os juros de 19 porcento ao ano desde 25 de Maio de 1990 relativamente a essas prestações.
Replicaram os A.A., como dos autos consta.
Realizada uma audiência preparatória, e por se haver entendido estarem reunidas as condições legais exigidas para o conhecimento do pedido, foi proferido o saneador-sentença de folhas 93 a 102 que, concluindo não revestir a carta de folha 26 a natureza da apólice-caução (de seguro), absolveu o R. "M" do pedido contra ele formulado pelos A.A. e condenou no mesmo, depois de corrigido, os R.R. J José e mulher L.
De tal decisão apelaram os A.A. e estes R.R. para a Relação do Porto, tendo o recurso dos mesmos R.R. sido julgado deserto por falta de alegações e havendo o recurso dos A.A. sido julgado procedente, com a consequente revogação da mesma decisão, na parte em que a R. "M" foi absolvida do pedido, e a condenação deste a pagar aos A.A., solidariamente com aqueles R.R., as mesmas quantias que estes haviam sido condenados a pagar-lhes no saneador-sentença, acrescidas, quanto a ele, de juros à taxa legal de 15 porcento apenas, contados só desde a data da citação até efectivo pagamento.
Inconformada com o decidido pela Relação, recorreu a R. "M", da revista, para este Supremo Tribunal, concluindo, em suma, que:
1) O acórdão recorrido não pode manter-se, pois que, ao invés do nele decidido, não existe, nos autos, qualquer contrato de seguro de caução;
2) É que a recorrente limitou-se a subscrever a carta de folha 26, donde consta apenas a sua disponibilidade para vir a celebrar um contrato de seguro de caução, preenchidos que forem os requisitos formais exigidos nesse tipo de contrato e as condições previamente definidas;
3) A recorrente refere expressamente a celebração posterior do contrato de seguro, não existindo declaração de vontade do tomador do seguro de celebrar o contrato respectivo, nem, tampouco, declaração de aceitação da seguradora ou vontade da aceitação;
4) Não se verifica, assim, no caso em apreço, o consenso indispensável à própria existência do contrato;
5) A recorrente desconhecia, aliás, que o destinatário da carta se dispunha a celebrar os contratos definitivos, motivo porque, na carta de folha 26, se alude aos "Contratos da Promessa da Sessão de Quotas e das Partilhas celebrados na presente data";
6) O sentido exposto é o único que um declaratário, normal, colocado na posição de vendedor, poderia atribuir-lhe;
7) Não se pode, todavia, retirar daquela carta, nem com grande esforço da vontade, a ilação de que a seguradora dispensou o tomador do seguro do pagamento do prémio inicial ou, por outras palavras, que tenha renunciado ao seu recebimento, sendo certo que tal pagamento é imprescindível para o início da produção de efeitos de um contrato de seguro de caução;
8) Por outro lado, não bastaria a dispensa tácita do pagamento do prémio inicial, já que a mesma, tal como o próprio contrato, tem de ser reduzida a escrito;
9) Nesta conformidade, inexiste um contrato de seguro de caução;
10) A carta em apreço só pode assumir o sentido de uma comunicação emitida a solicitação do promitente-comprador das quotas, destinado a dar a conhecer aos promitentes vendedores que a ora recorrente se encontrava disponível para celebrar com o R. J um contrato de seguro de caução, de acordo com as condições que este lhe apresentaria e com a prática corrente em semelhantes casos;
11) Não é aplicável ao caso "sub judice" a figura do abuso do direito na modalidade de "venire contra factum proprium", pois não se encontram preenchidos cumulativamente os pressupostos do princípio da tutela de confiança;
- a situação objectiva de confiança;
- o investimento da confiança; e
- a boa-fé subjectiva de quem confiou;
12) Não existe, desde logo, uma situação objectiva de confiança, pois que a recorrente se limitou a subscrever uma comunicação donde consta a disponibilidade para celebrar posteriormente um contrato de seguro, fazendo depender a emissão da apólice de seguro de duas condições a cumprir pelo tomador do seguro: a apresentação à seguradora da proposta de seguro e o pagamento do prémio inicial;
13) Ora, nem uma nem outra condição foi cumprida;
14) A recorrente não agiu, assim, de forma a criar no destinatário a expectativa de que o contrato de seguro já fora celebrado ou de que a respectiva celebração não dependia da vontade do R. J, ou, ainda, de que estava dispensado o pagamento do prémio inicial;
15) Também não existe, na actuação dos A.A. recorridos, a boa fé em sentido subjectivo, pois que aqueles não tomaram os cuidados e as precauções usuais no tráfico jurídico no tipo de negócio celebrado entre eles e o R. J;
16) Realmente aqueles não diligenciaram junto da seguradora sob o conteúdo de tal contrato de seguro, a fim de averiguarem se o mesmo defendia os seus interesses, e, ainda, se o prémio se encontrava pago;
17) Não se pode, assim, no caso "sub judice", recorrer à figura do abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprium", pela inexistência de dois dos requisitos essenciais do princípio da tutela da confiança aplicáveis à chamada conduta contraditória; e
18) O acórdão recorrido violou, pois, o disposto nos artigos 236 e 331 do Código Civil, motivo porque deve prover-se o recurso, com a consequente revogação do mesmo acórdão.
A R. "M" aqui recorrente, juntou aos autos, em defesa do seu ponto de vista, um douto parecer subscrito por um Ilustre Mestre de Direito, Parecer esse que consta de folhas 177 a 209.
Os A.A. recorridos, em contra-alegações, propõem se negue a revista e se confirme o acórdão dela objecto.
II - Após os "vistos", cumpre decidir:
A) Factos Provados:
1) Os A.A. e o R. J eram os únicos e exclusivos sócios da sociedade "J Limitada", com sede na Avenida 8, n. 1054, em Espinho, constituída por escritura pública de 1 de Março de 1923, lavrada no Cartório Notarial daquela mesma cidade;
2) O capital social daquela sociedade era de 150000 escudos, dividido em quatro quotas, sendo uma com o valor nominal de 75000 escudos, outra com o valor nominal de 67500 escudos, e mais duas com o valor nominal de 3750 escudos cada uma;
3) A primeira daquelas quotas pertença, em comum e partes iguais aos 1. e 2. A.A. e ao R. J José, sem determinação da parte ou direito, um quarto, à 3. A. mulher, um quarto, às 4. A.A., um quarto, e aos 5. A.A. um quarto;
4) A segunda das referidas quotas, com o valor nominal de 67500 escudos, pertençia aqueles A.A. e R. na mesma exacta proporção de uma 4. parte indivisa para cada um deles;
5) E as duas quotas com o valor nominal de 3750 escudos cada, pertenciam, respectivamente, à 3. A. mulher, uma, e às 1. A., 2. A. e R. J José, outra, em comum e sem determinação da parte ou direito;
6) Por escritura pública de 25 de Julho de 1990, outorgada no 4. Cartório Notarial do Porto, foram efectuadas ao R. J as seguintes cessões de quota da referida sociedade; a) A 3. A., devidamente autorizada por seu marido, cedeu a quota com o valor nominal de 3750 escudos e uma parte indivisa das quotas com o valor nominal de 75000 escudos e 67500 escudos; b) As 4. A.A. cederam também a 4. parte indivisa que detinham das quotas referidas com o valor nominal de 75000 escudos e 67500 escudos; e c) Os 5. A.A. cederam ainda a 4. parte indivisa das mesmas quotas;
7) Tais cessões foram efectuadas nas condições de preço e prazo de pagamento seguintes: a) As primeiras cessões foram efectuadas pelo preço global de 9244117 escudos, sendo de 880392 escudos o preço acordado para a quota com o valor nominal de 3750 escudos, 4257136 escudos para a quarta parte indivisa da quota com o valor nominal de 75000 escudos e 4106589 escudos para a quarta parte indivisa da quota com o valor nominal de 67500 escudos; b) As segundas cessões foram efectuadas pelo preço global de 8363725 escudos nele correspondendo 4257136 escudos à quarta parte indivisa da quota com o valor nominal de 75000 escudos e 4106589 escudos, à 4. parte indivisa da quota com o valor nominal de 67500 escudos; e c) As terceiras cessões foram efectuadas pelo preço global de 8363725 escudos nele correspondendo 4257136 escudos à 4. parte indivisa da quota com o valor nominal de 75000 escudos e 4106589 escudos à 4. parte indivisa da quota com o valor nominal de 67500 escudos;
8) Conforme acordado, os montantes referidos deveriam ser pagos em cinco prestações com vencimentos em 31 de Janeiro de 1991, 30 de Junho de 1991, 31 de Dezembro de 1991, 30 de Junho de 1992 e 31 de Dezembro de 1992;
9) Tais prestações seriam dos seguintes montantes: a) No que toca ao débito à 3. A., seriam de 1050000 escudos, da 1312500 escudos, 1312500 escudos, 1575000 escudos e 3994117 escudos, respectivamente; e b) No que toca às 4. A.A. e 5. A.A., e para cada um, as prestações seriam de 950000 escudos, 1187500 escudos,
1187500 escudos, 1425000 e 3613725 escudos; respectivamente;
10) Nos termos previstos na escritura da cessão de quotas, o R. J reserva-se o direito de pagar antecipadamente aquelas prestações e caso não fossem elas pagas até, no máximo, 31 de Janeiro de 1991, passariam a vencer juros à taxa de 19 porcento, contabilizados desde 25 de Maio de 1995, data em que se procedeu à avaliação de cada uma das quotas cedidas;
11) A quota com o valor de 3750 escudos e as quartas partes indivisas das quotas com o valor nominal de 75000 escudos e 67500 escudos pertencentes à 1. A. e 2. A.A. e ao R. J, em comum e sem determinação da parte ou direito, foram objecto de partilha entre eles, por óbito de N, partilha essa realizada por escritura pública também outorgada no 4.
Cartório Notarial do Porto, no dia 25 de Julho de 1990;
12) Nessa partilha foi a quota referida com o valor nominal de 3750 escudos e a dita 4. parte indivisa das outras duas quotas adjudicadas ao R. J;
13) Que ficou a dever tornas à 1. A. no montante de 6162745 escudos;
14) E ficou ainda a dever tornas aos 2 A.A. no montante de 1540686 escudos;
15) As tornas devidas à 1. A. deviam ser liquidadas nas prestações e prazos seguintes: a) Uma prestação no montante de 700000 escudos, com vencimento em 31 de Janeiro de 1991; b) Duas prestações no montante de 875000 escudos cada uma, com vencimentos em 30 de Junho de 1991 e 31 de Dezembro de 1991; c) Uma prestação no montante de 1050000 escudos, com vencimento em 30 de Junho de 1992; e d) Uma prestação no montante de 2662746 escudos, com vencimento em 31 de Dezembro de 1992.
16) As tornas aos 2 A.A. deveriam ser liquidadas também em cinco prestações, com vencimentos nas mesmas datas e nos montantes de 175000 escudos, 218750 escudos, 218750 escudos, 262500 escudos e 665686 escudos;
17) Os montantes referidos venciam juros à taxa de 19 porcento, contados desde 25 de Maio de 1990, caso não fossem liquidados por antecipação até 31 de Janeiro de 1991;
18) O R. J José liquidou a todos os A.A. as prestações que se venceram em 31 de Janeiro de 1991;
19) A 1. A. abdicou dos juros por si peticionados; e
20) A R. "M-Companhia de Seguros, S.A." endereçou à A. F a carta de folha 26, datada de 25 de Julho de 1990, na qual, para além do mais, confirma terem sido aceites por esta seguradora a emissão de Apólices de Seguro - Caução a favor e nos montantes que discrimina.
B) Os Factos e o Direito:
1) A douta decisão recorrida:
Esta decisão, julgando procedente o recurso interposto pelos A.A. da sentença da 1. Instância, na parte em que a R. "M" foi absolvida do pedido, condenou a mesma a pagar àquelas solidariamente com os R.R. J e mulher L as mesmas quantias em que estes foram condenados no saneador-sentença, acrescidos, quanto a ela, de juros à taxa legal de 15 porcento apenas, contados só desde a data da citação até efectivo pagamento.
Na origem do acórdão da Relação do Porto esteve o entendimento, com base na teoria da impressão do destinatário, de que a carta de folha 26, não obstante a nulidade do contrato de seguro vinculou a R. "M" nos termos do que nela se contém, não sendo admissível que uma posterior conduta contraditória dele R., viesse causar aos A.A. quaisquer danos e que estes tivessem de suportá-los.
Daí que, não aceitando a argumentação da R. "M" que invocara a nulidade formal do contrato de seguro e considerando que essa argumentação excedia "manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes", integrando "mesmo um inaceitável venire contra factum proprium", o emitido acórdão tenha revogado o decidido na 1. Instância quanto à aludida R., e tenha condenado esta nos termos antes referidos.
2) A nossa decisão:
Dispõem os artigos 684, n. 3, e 690, n. 1, do Código de Processo Civil, que as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso pelo mesmo interposto.
As conclusões do presente recurso reconduzem-nos a duas questões - que constituem afinal o cerne do problema a decidir - consubstanciadas nas perguntas: Existirá ou não contrato de seguro entre os R.R. J e mulher L e a R. "M"? A existir nulidade daquele contrato de seguro, será que a sua invocação pela R. "M" produz o efeito por esta pretendido ou será que tal efeito não ocorre por aquela invocação lhes estar interdita?
Passemos a focar detalhadamente essas duas questões fulcrais, seguindo o alegado e contra-alegado, sem esquecer o contido no douto Parecer junto a folhas 177 a 209, da autoria do Professor Doutor Mário Júlio de
Almeida Costa. a) Existência ou não do contrato de seguro invocado pelos A.A. recorridos: a1) "O contrato de seguro é o contrato pelo qual uma pessoa (seguradora) se obriga, mediante remuneração (prémio), a realizar a favor de outra pessoa (segurado ou outra pessoa-beneficiário), no caso da verificação de um evento futuro e incerto (risco), uma prestação que pode consistir numa indemnização pelos danos sofridos em consequência de um sinistro ou, no caso do evento relativo à pessoa humana, num capital ou rendas" (cfr. Luís Pinto Correia, in "Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado", 5, páginas 662 a 669).
Tal contrato, aleatório, deve ser reduzido a escrito num instrumento, que constitui a apólice de seguro, o qual deve ser datado, "assinada pelo segurador e enunciar o nome ou firma e o domicílio do segurador e do segurado, o objecto seguro e a sua natureza e valor, os riscos contra que se fez o seguro e o período em que vigore, a quantia segurada, o prémio do seguro e, em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, bem como todas as condições estipuladas pelas partes" (cfr. artigo 426 do Código Comercial e autor e ob. cit., páginas 667 a 669). a2) No caso em apreço estamos perante uma modalidade de seguro,o seguro-caução, que se encontra regulado no Decreto-Lei n. 183/88, de 24 de Maio, designadamente nos seus artigos 6 e 7, e, também nos artigos seguintes. Destes é de destacar o artigo 8 daquele
Decreto-Lei que estatui dever constar do respectivo contrato, "além do estabelecido no Código Comercial, o seguinte: a) Identificação do tomador do seguro e do segurado, no caso de as duas figuras não coincidirem na mesma pessoa; b) Obrigação a que se reporta o contrato de seguro; c) Percentagem ou quantitativo de crédito seguro; d) Prazos de participação do sinistro e de pagamento das indemnizações". a3) Reportando-nos ao contido nas conclusões 1) a 10) do alegado pela R. recorrente, diremos não poder aceitá-lo. É que, ao invés do defendido pela R. "M" temos para nós que entre as partes foi celebrado o contrato que os A.A. invocaram como causa de pedir para condenação daquela seguradora nos montantes indicados na carta de folha 26. Só que tal contrato está ferido de manifesta nulidade, como bem se demonstra no douto acórdão da Relação do Porto objecto deste recurso.
Diz-se naquela carta o seguinte:
"Servimo-nos da presente para confirmar terem sido aceites por esta Seguradora a emissão da Apólice de Seguro-Caução a favor e nos montantes a seguir descriminados:
D. A (6172745 escudos), B (1540686 escudos e 30 centavos), D e E (9244117 escudos e 60 centavos), F (8363725 escudos e 50 centavos), H e J (8363725 escudos e 50 centavos).
As Apólices referidas têm por fim a garantia do bom cumprimento por parte do epigrafado (A. Pereira Reis) das prestações preconizadas nos Contratos de Promessa de Cessão de Quotas e de Partilhas celebrados na presente data, com os Beneficiários acima indicados, de acordo com as condições previamente definidas com o Sr. J em contrato do qual uma cópia fará parte integrante da respectiva Apólice de Seguro".
Desta carta de folha 26, como bem se faz notar no contra alegado pelos A.A. recorridos, ressalta clara a existência de um acordo de vontades, traduzido, na linguagem de Mota Pinto, in "Teoria Geral da Relação
Jurídica", página 265, "em duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas convergente, ajustando-se na sua comum pretensão de produzir resultado jurídico unitário, embora com significado para cada parte".
Quer isto dizer que tendo a R. "M" recebido uma proposta do R. J para a celebração de um contrato de seguro-caução, proposta essa donde constavam os montantes em causa e os beneficiários respectivos, respondeu a mesma, pela carta em causa, referindo que "tinha aceite essa proposta e aceite consequentemente dar ao contrato... a forma legal, emitindo a correspondente apólice" (cfr. folha 267 e 268 das contra-alegações dos recorridos).
Crê-se inequívoca a interpretação daquela carta nesses termos e isso ao abrigo do estabelecido no artigo 236, n. 1, do Código Civil. É que, segundo este artigo, "a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ela". Temos como ponto assente não ser viável outra leitura daquela carta que não seja a feita nos termos antes mencionados à luz daquele artigo, em cujo n. 1 foi acolhida e chamada doutrina da impressão do destinatário (ou declaratário).
É para nós evidente a existência do contrato, dado o mútuo consenso das partes nesse sentido, mútuo consenso esse que resulta do facto de a propostas do R. J José ter sido aceite pela "M".
Em contrário não se argumenta nos termos constantes das alegações desta seguradora, sumariados nas conclusões 1) a 4), pois que a carta em questão "vai muito para além da mera disponibilidade da recorrente para vir a celebrar o contrato, como não subordina essa aceitação à verificação futura de qualquer condição".
E não se diga também, como o fez a Seguradora nas suas alegações sumariadas em 5) a 8) das conclusões, que apenas estavam em causa contratos-promessa e não contratos definitivos, e que, em qualquer caso, nunca se teve em vista dispensar o tomador do seguro do prémio inicial, sem cujo pagamento não se inicia a "produção de efeitos de um contrato de seguro de caução".
A referência a contrato-promessa, efectivamente feita na carta, é irrelevante, pois que tais contratos não foram os realizados na data daquela carta - 25 de Julho de 1990 - por já haverem sido celebrados anteriormente, sendo certo que a mesma carta fala nos "Contratos"...
"celebrados na presente data" e "tinha em vista permitir a outorga das escrituras" respectivas (cfr. folha 270 das contra-alegações). Daí que aquela referência se deva tão só a lapso manifesto da R. Seguradora...
No tocante à questão da dispensa ou não dispensa do pagamento do prémio inicial de seguro, apenas é de referenciar que da carta resulte a todas as luzes que aquela R. não subordinou a sua aceitação do contrato à verificação futura de qualquer condição, designadamente a do pagamento prévio do prémio inicial. a3) Reafirma-se, pois, a existência do contrato de seguro, mas existência não significa validade e esta, na verdade, não se verifica, já que tal contrato é nulo por falta de forma legal, a forma escrita (apólice de seguro que, no caso de seguro-caução, deve conter, além dos elementos referidos no artigo 426 do Código Comercial, os quatro outros requisitos enumerados no artigo 8 do Decreto-Lei n. 183/88, de 24 de Maio).
É que o contrato de seguro é de natureza formal e isso porque a Lei exige, para a sua validade, a observância da forma escrita, "in casu" a chamada apólice (cfr. aludido artigo 426 do Código Comercial e também o artigo 8 do Decreto-Lei n. 183/88).
Como se sabe, desses artigos resulta que a Lei exige a forma escrita para o contrato em questão. E, como ensinou Castro Mendes, in "Teoria Geral do Direito Civil", 1979, III, página 136, "quando a lei exige uma certa forma, exige-a, em regra, ad substantiam".
A forma é "ad substantiam" quando ela própria é um requisito da validade do acto jurídico, e, por isso, "a declaração negocial que careça de forma legalmente prevista é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na Lei" (cfr. artigo 220 do Código Civil).
A forma é "ad probationem" quando é apenas necessária à prova de certo acto e a sua inobservância não determina a nulidade do mesmo (cfr. artigo 364, n. 2, do Código Civil).
No caso do contrato de seguro é indubitável que a forma escrita a apólice (ou a minuta depois de aceite pela seguradora, e isto por força do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Janeiro de 1929), constitui formalidade "ad substantiam" (cfr. Pinheiro Torres, in "Ensaio Sobre o Contrato de Seguro", página 46, J. C. Moitinho de Almeida, in "O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado páginas 37 e 38, Adriano Antero, in "Comentário ao Código Comercial, II, página 135, Cunha Gonçalves, in "Comentário ao Código Comercial", II, página 500, Guerra da Mota, in "O
Contrato de Seguro Terrestre", página 421, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Outubro de 1993, in "Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça", 1993, III, páginas 54 a 55).
Decorre do explanado que, não obstante a efectiva existência do contrato invocado pelos A.A. recorridos, tal contrato está ferido de nulidade, o que determina a impossibilidade de, como contrato produzir os efeitos pretendidos pelos mesmos A.A. no sentido da responsabilização da R. "M". b) Dada a nulidade do contrato, a invocação do mesmo pela R. "M" produzirá o efeito por esta pretendido ou não ocorrerá tal efeito por aquela invocação lhe estar interdita:
Como bem se vê do alegado a R. recorrente insurge-se com o decidido em que se entendeu estar-lhe vedada a invocação da nulidade do contrato, nos termos dos artigos 220 e 286 do Código Civil, por tal invocação integrar a figura do abuso de direito, designadamente na sua manifestação de "venire contra factum proprium".
A essa matéria, a que se referem as conclusões 11) a 17) do alegado, aludiremos a partir de agora, desde já afirmando que carece de razão aquela R. e que foi curial o decidido na Relação do Porto. b1) Advém do ensinamento de Baptista Machado, in "Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium", "Rev. Leg. e Jusrisp.", 117, 363 e seguintes, e de
Menezes Cordeiro, in "Da Boa Fé no Direito Civil", II, páginas 661 e seguintes, e, em especial, 742 e seguintes, que a teoria do abuso de direito, no seu desenvolvimento, veio a dar relevo a uma das manifestações desse abuso, o chamado "venire contra factum proprium".
No nosso ordenamento jurídico, em que o abuso de direito se encontra consagrado no artigo 334 do Código Civil, dir-se-á que "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".
Nesse normativo a proibição do "venire" estará contida no seguimento da norma, que alude aos limites impostos pela boa-fé. b2) Focando-se as conclusões do recurso, antes mencionados em b), dir-se-á o seguinte:
Quanto à conclusão 11), a matéria a que respeita, a mesma não é exacta, pois que, ao invés do nela contido, se verificam os pressupostos do princípio da tutela da confiança, a saber: uma situação objectiva de confiança, o investimento da confiança e a boa-fé subjectiva de quem confiou, o que, de seguida se demonstrará.
Lembrando que "a confiança digna da tutela tem de radicar em algo de objectivo: numa conduta de alguém que possa, de facto, ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura" (cfr. Baptista Machado, in ob. e loc. citados), diremos que a carta de folha 26, antes reproduzida, integra manifestamente essa situação objectiva de confiança.
É que, como bem se salienta no contra-alegado, aquela carta foi destinada a confirmar a aceitação pela R. "M" da emissão da apólice de seguro-caução, a favor e nos montantes discriminados...", identificando-se de seguida "individualmente cada um dos credores do segurado, os montantes devidos a cada um deles, e as condições e objecto do contrato donde provinham essas obrigações", sucedendo até que a mesma carta remetida a R. recorrida F e não ao R. J.
Por outro lado em nenhuma passagem da carta se condiciona a assumpção das obrigações advenientes do seguro-caução, e a emissão das apólices respectivas, à produção de qualquer evento futuro, tudo antes levando a crer que a R. - conhecedora da situação, como bem revela na mesma carta de folha 26 - estava segura de tudo e pronta a honrar o seu compromisso...
Ainda nessa carta se não antolha que a R. "M" apusesse quaisquer condições à sua vinculação nos termos decorrentes dela, nada permitindo a leitura que fez da situação por si criada de que terá feito depender, a emissão das apólices de duas condições a cumprir pelo tomador J, as quais seriam: a apresentação pelo mesmo da proposta de seguro e o pagamento do prémio inicial.
A conduta tida pela mesma R. foi, indubitavelmente, apta e adequada a fazer crer aos A.A. recorridos - a um dos quais foi enviada a carta de folha 26 - que o seu compromisso era definitivo e de que nenhumas condições relativas ao seguro se verificavam ou obstavam à validade e força legal de tal compromisso.
Do acabado de explanar temos como verificada uma situação objectiva de confiança, razão porque não colhem os argumentos sumariados nas conclusões 12) e 13).
No que concerne ao investimento de confiança e à boa-fé subjectiva dos A.A. recorridos, diremos, quanto ao primeiro pressuposto, que ele também se configura, já que, como refere, Batista Machado, para a existência do investimento de confiança, é necessário que a situação de confiança criada dê lugar a que a contraparte tome disposições ou faça planos de vida "de que lhe surgirão danos, se a sua confiança legitima vier a ser frustrada" (cfr. autor e ob.e loc. citados).
"In casu" é notório que exista uma relação causal entre o facto gerador de confiança e o "investimento" dos A.A. recorridos, tudo levando a crer que, a não existir a carta de folha 26, endereçada a um deles - a A. F - não se teria realizado a cedência de quotas e a outorga das partilhas pelas escrituras inseridas nos autos. É que o conteúdo daquela carta deu àqueles AA. a certeza de que as obrigações de pagamento dos preços e das tornas estavam garantidas pelo seguro-caução anunciado pela "M".
De resto na escritura da cessão de quotas diz-se expressamente que "o bom pagamento das referidas prestações fica garantido por apólice caução emitida pela M Companhia de Seguros, S.A.". E o mesmo se diz na escritura de partilha.
Relativamente à boa-fé subjectiva de quem confiou (os A.A. recorridos), também não é de acolher a argumentação da R. "M".
Dessa argumentação resulta que esta R. entende ser irrelevante o conteúdo da carta de folha 26, em nada a si responsabilizando, não obstante haver induzido em erro os A.A. recorridos e os ter conduzido à outorga das escrituras nos termos já mencionados.
O entendimento, sufragado pela R. de que os A.A. deveriam, logo que recebida a carta, obter confirmação do seu sentido e intenção, é, a nosso ver, inaceitável.
Não pode esquecer-se que a carta está datada, precisamente, de 25 de Julho de 1990, ou seja, do próprio dia de celebração das escrituras, e também não é de olvidar que o conteúdo da carta, a um destinatário normal, não dava lugar a dúvidas, já que os seus termos se têm por inequívocos e claros. Daí que, na verdade, nada houvesse a esclarecer perante a confirmação de "terem sido aceites por esta Seguradora a emissão de Apólices de Seguro-Caução a favor e nos montantes a seguir discriminados...".
Por último é de salientar, uma vez mais, que em nada a Seguradora condicionou o seu conformismo contido na carta, fosse exigindo uma apresentação de proposta de seguro, fosse exigindo o pagamento do prémio inicial. É que a carta aludida, como bem se diz a folha 272, revela da parte da R. "M" um comportamento "conclusivo quanto ao efectivo e imediato compromisso para com os recorridos". E, perante isto, esclarecer o quê e para quê?
Também aqui falece razão à R. Seguradora, sendo óbvio que se não adere às conclusões 14) a 17) do alegado, pois que não se verifica a inexistência de qualquer dos três requisitos essenciais do princípio da tutela de confiança antes referenciados. b3) Configura-se assim, como bem se entendeu na douta decisão da 2. Instância uma situação configurável como abuso de direito, nos termos do artigo 334 do Código Civil, sendo certo que, ao invés do peticionado na conclusão 18), se não dá razão à R. recorrente, indo, assim, manter-se aquela decisão.
III - Em face do exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar o douto acórdão recorrido, com custas pela R. "M".
Lisboa, 28 de Setembro de 1995.
Henriques de Matos.
Costa Soares.
Lopes Cardoso.
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 7 de Janeiro de 1993 do T.C. Espinho - 2. Juízo;
II - Acórdão de 24 de Maio de 1994 da Relação do Porto.