Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6553/12.3TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
SUBSIDIARIEDADE
COISA ALHEIA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
VENDA DE BENS ALHEIOS
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/22/2015
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.
Doutrina:
- Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª edição, p.402.
- Meneses Leitão, Direito das Obrigações, volume I, p.404.
- Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil” anotado.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 474.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16-01-2007, PROCESSO N.º4386/06, 1.ª SECÇÃO;
-DE 04-10-2007, PROCESSO N.º 2721/07, 2.ª SECÇÃO;
-DE 02-02-2010, PROCESSO N.º 1761/06.9TVPRT.S1, 1.ª SECÇÃO;
-DE 18-12-2012, PROCESSO N.º 978/10.6TVLSB-A.L1.S1, 2.ª SECÇÃO;
-DE 19-02-2013, PROCESSO N.º1051/03.9TBVNO.C1.S1, 1.ª SECÇÃO.
Sumário :
I - Tendo o autor, proprietário da coisa alheia vendida, à disposição a acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, não podia accionar a subsidiária acção de indemnização com base no enriquecimento sem causa.

II - Sendo alegado um enriquecimento por intervenção – em que o enriquecimento da ré foi obtido através da venda de um bem alheio do autor – encontra-se o autor empobrecido protegido pela acção de indemnização civil.

III - Se não a usou, preferindo socorrer-se da acção com base no enriquecimento sem causa que lhe estava vedada, verifica-se a excepção peremptória da violação do princípio da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, inscrito no art. 474.º do CC, o que conduz à improcedência da acção.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



AA

intentou, em 5 de Setembro de 2012, contra

BB

acção ordinária, agora a correr no Tribunal de Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, Instância Local, Secção Cível, Juiz 4, com o nº6553/12.3TBCSC, pedindo que a ré seja condenada a restituir-lhe a quantia de 60 000,00 euros, acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal de 4%, vencidos desde a citação, bem como os juros vincendos até efectivo pagamento.

Alega, em suma:

viveu com a Ré, como se marido e mulher fossem, durante anos e até meados de 2011;

em 20/07/2007, o Autor adquiriu por compra uma viatura nova da marca Mercedes Benz, pelo preço global de 62.150,00€;

para acautelar eventuais penhoras de bens, o Autor decidiu titular a viatura Mercedes em nome de terceiros, primeiro de sua mãe e depois, em 10-1-2011, para o nome da Ré;

o que a Ré aceitou sem quaisquer reservas, sabendo que tal viatura não lhe pertencia, por nunca ter havido qualquer negócio ou acordo;

em 03/01/2012 a viatura desapareceu da via pública, e no dia 07/01/2012, o Autor veio a constatar que o veículo tinha sido entregue para venda num Stand de Fernão Ferro a mando da ré;

e anunciada num site do Stand CC, por um preço irrisório e insólito;

sem que para isso a ré fosse possuidora do consentimento do autor;

que tal venda se concretizou e que a Ré recebeu o preço que fez seu, lesando a esfera patrimonial do Autor no montante do valor de comércio da viatura de 31 000,00€.

E conclui por que a Ré incorreu na obrigação de restituir o valor do veículo com base no instituto do enriquecimento sem causa.

A ré contestou (fls. 38) dizendo, em resumo:

o automóvel foi um presente de aniversário do Autor à Ré;

apesar de diversas insistências suas, o Autor nunca quis transferir a propriedade do veículo automóvel para o seu nome, dele autor, ou para o nome de terceiro;

porque sempre o autor lhe garantia que o automóvel tinha sido presente de aniversário para si, porque não tinha dinheiro para sustentá-la e porque a viatura estava em seu nome, resolveu vendê-la no final de 2012.

E acrescentou factos vários retratando a vida de autor e ré, em “união” de facto.

Foi elaborado (fls. 64) despacho saneador, com dispensa de selecção da matéria de facto.

Efectuado o julgamento, foi proferida a sentença de fls.90 a 114 que julgou a acção improcedente por não provada e em consequência absolveu a ré do pedido.

Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação e o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de fls. 155 a 161, datado de 12 de Março de 2015, julgou procedente o recurso e, assim, revogando a sentença recorrida, condenou a ré a restituir ao autor a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, a contar da data do recebimento pela ré da quantia correspondente ao preço de venda do identificado veículo.

É agora a vez de se não conformar a ré/apelada que, por isso, interpõe (fls. 177) recurso de revista para este Supremo Tribunal, em cujas alegações  CONCLUI:

I – o enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária.

II – no caso, em face do trazido pelo autor quer na petição inicial quer na prova produzida quer nas alegações, aplicável seriam outros institutos ou figuras, como a nulidade do negócio ou a invocação da responsabilidade civil extracontratual.

II – logo, não pode prosseguir uma decisão fundada no enriquecimento sem causa.

IV – mais: nunca poderá prosseguir uma decisão que é parcial e lesiva do ónus que recai sobre as partes no que respeita à alegação de factos.

V – o ora recorrido não soube trazer factos que demonstrassem a sua pretensão, quer a mesma assente no enriquecimento sem causa quer noutro instituto.

VI – a Relação não se pode substituir ao recorrido nesse papel se não violando o disposto nos arts.4º e 5º, nº1 do CPCivil.

Não houve contra-alegações.

Estão cumpridos os vistos legais.

FACTOS tais como vêm fixados das instâncias, designadamente no acórdão recorrido:

1.) Em 20/07/2007, o Autor declarou comprar e DD - Metalomecânica de Reparações e Construção Automóveis, Ldª, na qualidade de concessionária oficial da Mercedes Benz, declarou vender-lhe, uma viatura nova da marca MERCEDES BENZ, modelo C220 COI AV ANTGARO, a que coube a matrícula …-DZ-…, pelo preço global de 62.150,00€, que o Autor pagou.

2.) O Autor recebeu o veículo e utilizou-o desde então até 3-1-2012, data em que o mesmo desapareceu do local onde era usual estar estacionado.

3.) Em 10-1-2011 o Autor promoveu a inscrição da propriedade do veículo de matrícula na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa a favor da Ré, por meio concreto que se não logrou apurar, o que esta aceitou.

4.) Nem o Autor nem a Ré tiveram a intenção, com esse ou outro acto, de transferir para a segunda a propriedade do veículo automóvel.

5.) A inscrição da propriedade do veículo em nome da Ré na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa teve apenas em vista acautelar eventuais penhoras desse bem.

6.) A Ré mandou efectuar a venda do veículo automóvel, sem o consentimento do Autor.

7.) A Ré recebeu quantia que se não logrou apurar como contrapartida da declaração de venda e entrega do veículo automóvel.


~~


É sabido, e nem vale a pena repetir, que são as conclusões da alegação de recurso que fixam o seu âmbito e objecto, dentro delas e só dentro delas (com excepção de questões de conhecimento oficioso) se devendo movimentar quem do recurso conhece.

Então a questão que nos ocupa é tão só a de saber se sim ou não nos defrontamos com a violação do princípio da subsidiariedade inscrito no art.474º do CCivil que estabelece que não há lugar à restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído …

Empobrecido aqui - e assente que está que é ele mesmo o proprietário do veículo automóvel vendido pela ré/recorrente (que com o respectivo preço, que recebeu, enriqueceu) - é o autor/recorrido.

Mas se a ré se intrometeu (veja-se Pires de Lima/Antunes Varela, CCivil anotado; Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações) em propriedade alheia, na propriedade do autor, e agindo contra a forma como lhe era exigível que agisse, ou seja, agindo com culpa, depauperou o património deste, ele podia ver-se ressarcido por inteiro sustentando o seu pedido de ressarcimento na acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, tanto mais que o enriquecimento que assaca à autora se situa dentro do dano que atingiu o património dele, autor.

Ao autor, proprietário da coisa alheia vendida, sempre estaria reservada a mencionada acção de indemnização.

E, se tinha essa acção, não podia accionar a (subsidiária) acção de indemnização com base no enriquecimento sem causa – vejam-se os autores citados, por exemplo, CCivil Anotado, volume 1º, 4ª edição, pag. 458 – a acção baseada nas regras do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, só podendo recorrer-se a ela quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reacção – ou Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, que nos fala deste requisito negativo do instituto para nos dizer, a págs. 402, que o empobrecido apenas poderá recorrer à acção de enriquecimento quando a lei não lhe faculte outro meio para cobrir os seus prejuízos.

Ora então, neste caso de enriquecimento por intervenção (assim lhe chama Meneses Leitão “in Direito das Obrigações, volume I, página 404), de um enriquecimento – da ré – obtido através da venda de bem alheio – do autor – o autor empobrecido estava protegido pela acção de indemnização civil.

Se a não usou – preferindo socorrer-se da acção com base no enriquecimento sem causa, que lhe estava vedada – sibi imputat.

No mesmo sentido segue a jurisprudência deste STJ

Por exemplo:

«a obrigação de restituir assume sempre natureza subsidiária, não sendo invocável quando a lei faculte ao empobrecido outro meio de reacção contra a deslocação patrimonial que o afecte – cf. art. 474.º do CCivil » - acórdão de 19-02-2013 (1ª Secção, Alves Velho), na revista nº1051/03.9TBVNO.C1.S1;

«o instituto do enriquecimento sem causa em carácter subsidiário no sentido de ser um meio residual e de inexistir acção alternativa para ressarcimento do dano, devendo ser apurado que outras normas eventualmente aplicáveis ao litígio não garantem a tutela da situação em concreto» - acórdão de 16-01-2007, (1ª Secção, Sebastião Póvoas), na revista nº4386/06;

«a obrigação de restituir com base no enriquecimento sem causa tem carácter subsidiário: se alguém obtém um enriquecimento à custa de outrem, sem causa, mas a lei faculta ao empobrecido algum meio específico de desfazer a deslocação patrimonial, será a esse meio que ele deverá recorrer, não se aplicando as normas dos arts.473.º e segs. do CCivil », acórdão de  04-10-2007 (2ª secção, Santos Bernardino), na revista nº 2721/07; 

«o enriquecimento sem causa só pode ser invocado a título subsidiário …», acórdão de 02-02-2010 (1ª Secção, Sebastião Póvoas), na revista n.º 1761/06.9TVPRT.S1 ;

«de acordo com a regra estabelecida no art.474.º do CCivil, o empobrecido só pode socorrer-se das regras do enriquecimento sem causa quando a lei não faculte aos empobrecidos outros meios de reacção », no acórdão de 18-12-2012  (2ª secção, Oliveira Vasconcelos), na revista nº978/10.6TVLSB-A.L1.S1.

Ora exactamente o instituto do enriquecimento sem causa foi, perante a sentença de 1ª instância que julgou a acção improcedente, a questão central do recurso de apelação dinamizado pelo autor para quem, como se pode verificar das conclusões inscritas no acórdão recorrido «o caso sub judice integra-se no artigo 473º e seguintes do CCivil».

E é o acórdão recorrido que chama à sua preocupação a necessidade da consideração do princípio da subsidiariedade do instituto escrevendo além do mais que «o instituto do enriquecimento sem causa, surge como fonte autónoma das obrigações, sendo certo que, de acordo com o princípio da subsidiariedade, o empobrecido só pode recorrer à acção de enriquecimento à custa de outrem, quando não tenha outro meio para cobrir os seus alegados prejuízos».

Só que depois, tratando sobre o caso concreto os mais pressupostos do instituto, esquece por uma qualquer razão a análise deste requisito negativo.

E o que acontece é que, como se disse, esse princípio de subsidiariedade foi violado – o autor tinha ao seu dispor o meio jurídico necessário ao seu ressarcimento - e se verifica, portanto, a excepção peremptória da violação do princípio da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, inscrito no art.474º do CCivil, o que conduz à procedência do recurso e à absolvição da ré do pedido.


D   E   C   I   S   à  O


Na procedência do recurso, concede-se a revista e, revogando-se o acórdão recorrido, julga-se a acção improcedente, absolvendo-se do pedido a ré BB.

Custas, aqui e nas instâncias, a cargo do autor.

LISBOA, 22 de Outubro de 2015


Pires da Rosa (Relatora)

Maria dos Prazeres Beleza

Salazar Casanova