Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3368/06.1TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Data do Acordão: 05/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / DISPOSIÇÕES E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS / PRINCIPIO DA COOPERAÇÃO.
Doutrina:
-Fredie Didier, Fundamentos do Princípio da cooperação no direito processual civil português, 2010, página 16, citado por Maria Coelho Torres Galindo, na Dissertação de Mestrado “Princípio da Cooperação: Dever de Consulta e a Proibição das Decisões-Surpresa”, página 50, Coimbra 2014, in www.estudogeral.sib.uc.pt;
-Paulo Ramos de Faria, “O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa”, Revista Julgar on line, 2015, páginas 5 e 6, 17 e 19;
-Teixeira de Sousa, blog do IPPC, Fevereiro de 2015, Jurisprudência 75;
-Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, 2000, páginas 56/57.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 7.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 02-02-2015, RELATOR JOÃO DIOGO RODRIGUES.
Sumário :
I - Deve ser anulada a decisão que decreta a deserção da instância, que, por inobservância do dever de consulta e do dever de prevenção das partes – cujo cumprimento se impunha face às circunstâncias concretas do processo –, integra violação do princípio da cooperação (art. 7.º do CPC).
Decisão Texto Integral:
PROC. N.º 3368/06.1TVLSB.L1.S1

REL. 35[1]

                                                           *

  ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

AA, BB, CC, DD, EE (1ºs Autores), FF e mulher, GG(2ºs Autores), HH e mulher, II(3ºs Autores), e JJ e mulher, KK (4ºs Autores) instauraram acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra LL, MM(estes dois últimos na qualidade de herdeiros de NN e de OO), PP e mulher, QQ, RR, "SS, S.A", TT, UU, VV, XX, ZZ, AAA, BBB, CCC, DDD, EEE, FFF, GGG e mulher, HHH, III, JJJ, KKK e LLL, pedindo que seja declarado que:

- Por efeito de usucapião, os 1°s AA. adquiriram o direito exclusivo de propriedade horizontal sobre a fracção autónoma correspondente ao 7° andar esquerdo do prédio descrito no art. 1° da petição inicial ( sito na Av. …, n° …, contornando para a Rua …, nos …, …, …, …, …, … da freguesia do ..., concelho de Lisboa) e de compropriedade sobre as partes comuns do edifício;

- Por efeito de usucapião, o 2° A. adquiriu o direito exclusivo de propriedade horizontal sobre a fracção autónoma correspondente ao 4° andar esquerdo do prédio descrito no art. 1° da petição inicial e de compropriedade sobre as partes comuns do edifício;

- Por efeito de usucapião, os 3°s AA. adquiriram o direito exclusivo de propriedade horizontal sobre a fracção autónoma correspondente ao 3° andar esquerdo do prédio descrito no art. 1° da petição inicial e de compropriedade sobre as partes comuns do edifício;

- Por efeito de usucapião, os 4°s AA. adquiriram o direito exclusivo de propriedade horizontal sobre as fracções autónomas correspondentes ao 7° andar direito e 6° andar esquerdo do prédio descrito no art. 1° da petição inicial e de compropriedade sobre as partes comuns do edifício.

Mais peticionaram que seja declarada a constituição do prédio objecto dos presentes autos em regime de propriedade horizontal e que o remanescente das fracções autónomas não adjudicadas aos aqui AA. sejam adjudicadas, cada uma, a todos os RR., em regime de compropriedade, na proporção correspondente às quotas de que actualmente são titulares na compropriedade do prédio.

Nos autos apensos registados sob o n° 3368/06.1TVLSB-A foi declarado habilitado CCC como único sucessor dos direitos do falecido MMM.

Após a prolação de despacho saneador, foi julgado habilitado LL como único adquirente da parte do bem imóvel titulado por NN, e foi declarada suspensa a instância por óbito de FFF.

Em 13.10.2011 ( fls. 1118 e 1119) foram declarados habilitados NNN, OOO, PPP, QQQe RRR como únicos e universais sucessores da Ré FFF.

"SS, S.A" recorreu do despacho saneador na parte em que não atendeu à excepção dilatória de erro na forma de processo.

O recurso foi admitido como de agravo, com efeito devolutivo e subida diferida.

Em 13.03.2012 ( fls. 1158) foi declarada suspensa a instância até se mostrarem habilitados os sucessores da R. UU.

Na mesma data foi ainda consignado que o Tribunal pronunciar-se-ia quanto ao agravo logo que cessasse a suspensão da instância, sem prejuízo da convocação para uma tentativa de conciliação.

Em 11.04.2013 foi declarada interrompida a instância.

A fls. 1288 os AA. vieram requerer a continuação dos autos e desistiram da instância quanto à Ré UU.

Em 01.10.2014 foi requerida a habilitação de herdeiros (cônjuge e três filhos, SSS, TTT e UUU) por óbito da Autora KK.

Em 30.10.2014 foi declarada suspensa a instância por óbito de KK.

Após várias diligências com vista à regularização do patrocínio judiciário quanto a parte dos Autores, foi, em 14.04.2016, dado sem efeito tudo o que foi realizado pelas Exm°as advogadas em nome de CC e foi designada data para tentativa de conciliação.

Em 08.07.2016 foi realizada tentativa de conciliação e na mesma data foi declarada suspensa a instância nos termos que seguem:
“Uma vez que faleceu a Ré VVV, declaro a suspensão da instância (artigo 269º, n.º 1, alínea a) e 270º, n.º 1, do CPC)”.

Em 26.01.2017 foi proferido o seguinte despacho:
O novo Cód. de Proc. Civill, aplicável aos autos por via do disposto no art. 5° da Lei n° 41/2013, de 26.06, revogou a figura de interrupção da instância.
À luz do disposto no art. 297°, n°1 do Cód. Civil - na falta de disposição transitória sobre esta questão - sendo encurtado o prazo de deserção da instância (de dois anos para seis meses), o novo prazo conta-se a partir da entrada em vigor da nova Lei, ou seja, desde 1 de Setembro de 2013 - no mesmo sentido da aplicabilidade daquele preceito aos prazos processuais, veja-se Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pg. 63 a 65.

Em consequência profere-se a seguinte decisão:
Nos presentes autos de acção declarativa, com forma de processo comum, mostrando-se suspensa a instância desde 8/7/2016, em virtude do falecimento da ré VVV e não tendo sido intentado o competente incidente de habilitação de herdeiros, julgo deserta a instância —arts. 276°, n°1, a), 281°, n°s 1 e 3 e 351°, n°1 do Cód. Proc. Civil de 2013.

Custas pelos autores.

Registe e notifique.»

AA e filhos, FFe mulher, HH e mulher, JJe filhos recorreram da decisão que julgou deserta a instância.

A Relação de Lisboa julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão da 1ª instância, embora com voto de vencido de um dos Exºs Desembargadores.

Desse acórdão foi agora interposto recurso de revista.

Concluem do modo que segue:
1. Os Recorrentes discordam do Acórdão que julgou deserta a presente instância por não ter sido tempestivamente intentado o incidente de habilitação de herdeiros da ré VVV, razão pela qual vêm interpor recurso de apelação.
2. Por um lado, não se verifica que tenha existido negligência das partes, requisito fundamental para o julgamento da deserção da instância, nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 1 do CPC.
3. A ré VVV já tinha transmitido, por venda, em 1994, o seu direito de propriedade, facto que apenas foi supervenientemente conhecido pelos Recorrentes, já que, por lapso da Conservatória do Registo Predial, a certidão predial inicialmente junta aos autos não continha aquela transmissão.
4. Não sendo a ré VVV titular de qualquer direito de propriedade sobre o imóvel em discussão nos presentes autos, não seria parte legítima para os presentes autos.
5. Na prática, a presente acção foi julgada deserta pela omissão da prática de um acto que não poderiam as partes ter praticado, uma vez que se aperceberam que tinham chamado a juízo, como ré, alguém que apuraram supervenientemente que não era parte legítima na presente acção.
6. Não houve qualquer atitude omissiva relativamente à abertura do incidente de habilitação de herdeiros, pelo que não houve negligência das partes uma vez que não só não o fizeram, como nem sequer o poderiam ter feito.
7. Para além disso, na apreciação do elemento subjectivo da deserção da instância não pode desconsiderar-se a antiguidade do processo e toda a actividade processual por elas entretanto desenvolvida.
8. Durante o período em que esteve suspensa a instância, e conforme é do conhecimento do Tribunal a quo – que assim o deixou expressamente lavrado em acta -, as partes estiveram a discutir os termos da transacção a celebrar nos presentes autos, razão pela qual não é possível concluir que descuraram o impulso necessário ao prosseguimento da acção.
9. Não se verificando o requisito da negligência das partes, a instância deverá ser renovada e os autos prosseguirem os seus normais termos.
10. Por outro lado, na data em que foi proferida a Sentença ainda não tinha decorrido o prazo de seis meses para julgamento da deserção da instância, que apenas terminaria no dia 8 de Março de 2017, pelo que também por este motivo a instância deveria ser renovada.
11. Acresce que o Tribunal a quo não notificou, previamente à prolação da sentença, no âmbito de um dever preventivo, quanto ao decurso do prazo para a deserção da instância e das suas consequências.
12. Perante a falta daquela notificação prévia, em especial atendendo às circunstâncias do caso concreto (acção muito antiga, com várias dezenas de partes e com negociações em curso), a sentença que julgou a acção deserta é violadora do princípio da cooperação, do princípio do dever de gestão processual e do princípio do contraditório.
13. Por fim, atentas todas as circunstâncias, constitui imperativo do princípio da economia processual o não desaproveitamento de todos os actos praticados nos autos ao longo de mais de 10 anos, em função da omissão de um acto sem significado relativo.
14. Por todo o exposto, deverá conceder-se provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e determinando-se, consequentemente, a renovação da instância e o prosseguimento dos autos.

Não houve contra-alegações.

                                                           *

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes, a questão a apreciar, em última análise, é a de saber se estavam reunidas as condições legais para ser decretada a deserção da instância.

                                                           *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Os factos que interessam à resolução da revista são os explanados no antecedente relatório.

O DIREITO

O acórdão recorrido confirmou a decisão da 1ª instância, afirmando ter havido  negligência dos Autores ao não darem impulso ao processo, e concluindo que não foram violados, pelo tribunal, os princípios da cooperação, do dever de gestão processual e do contraditório.

Parece-nos, contudo, que se impunha outra decisão.

Na abordagem dos vários aspectos ligados à questão principal a decidir, seguiremos a ordem da síntese conclusiva apresentada pelos recorrentes.

a)

A intervenção legislativa no campo da deserção da instância, no CPC de 2013[2], foi orientada pela preocupação de reduzir o decurso do tempo susceptível de causar a extinção da instância, o que passou pela eliminação da figura da interrupção da instância.

Agora, nos termos do artigo 281º, n.º 1, a instância considera-se deserta quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

A adoção da expressão “negligência das partes” não significa que seja necessário, para operar a deserção da instância, um juízo de culpa sobre a conduta da parte que omitiu a prática do acto e a quem cabia o ónus de impulso processual. Bastará, para integrar o conceito, a omissão não subtraída à vontade da parte, isto é, a omissão que não resulte de facto de terceiro ou de força maior impeditiva da prática do acto[3].

Será, portanto, negligente a conduta da parte que, estando em condições de praticar o acto, o não faz, sendo-lhe essa omissão directamente imputável.

Na hipótese concreta, a suspensão da instância foi motivada pelo falecimento da Ré VVV (cfr. acta de tentativa de conciliação de 08.07.2016, a fls. 1408/1409), o que significa que cabia aos Autores (aqui recorrentes) o ónus de promover a habilitação dos sucessores da pessoa falecida, de acordo com o disposto no artigo 276º, n.º 1, alínea a), do CPC.

A verdade é que, em 26.01.2017, nada tendo sido requerido pelos Autores, o Mmº Juiz da 1ª instância, no primeiro acto que praticou após ter assumido a titularidade dos autos, proferiu o despacho em que julgou deserta a instância.

Sustentam os Autores que não houve negligência da sua parte, porque, antes de requererem o incidente de habilitação dos sucessores da VVV, aperceberam-se, através de consulta no registo predial, que a falecida tinha transmitido, por venda realizada em 1994, o seu direito de propriedade sobre o imóvel em discussão nos autos Por isso, carecendo a mesma de legitimidade para ser demandada nesta acção, não faria sentido habilitar os seus sucessores.

Com efeito, as alegações do recurso de apelação vêm acompanhadas de uma certidão da Conservatória do Registo Predial de Lisboa que confirma a situação descrita (cfr. fls. 7 e 8 da certidão, a fls. 1425, verso, e 1426 dos autos).

Todavia, ainda que nem sequer se questione o conhecimento superveniente dos Autores relativamente a essa situação, era sua incumbência transmitir esse facto ao tribunal antes de decorrido o prazo de seis meses, porquanto o processo continuava a aguardar o necessário impulso processual. Se o facto conhecido após a realização da tentativa de conciliação em que se suspendeu a instância determinava a inutilidade da habilitação dos sucessores da falecida VVV, era obrigação dos Autores informarem o tribunal dessa circunstância para que a instância fosse reatada antes de decorrido o prazo de seis meses previsto no artigo 281º, n.º 1, do CPC.

Não o tendo feito, agiram negligentemente.

Portanto, nessa parte, a avaliação feita no acórdão recorrido não mereceria qualquer reparo, não fosse a circunstância de a decisão proferida na 1ª instância padecer de erro genético, como veremos mais adiante.

b)

Dizem também os recorrentes que o prazo de seis meses só atingiria o seu termo em 08.03.2017, uma vez, sendo a decisão que ordenou a suspensão da instância susceptível de recurso nos termos do artigo 644º, n.º 2, alínea c), do CPC, as partes dispunham de 15 dias para, querendo, interpô-lo (artigo 638º, n.º 1). Ou seja, o recurso podia ser apresentado até ao dia 08.09.2016 (dado que entre o dia 16 de Julho e 31 de Agosto os prazos se suspendem em razão de férias judiciais), atingindo-se, consequentemente, os seis meses na referida data de 08.03.2017.

Este entendimento não se coaduna com o disposto na lei.

Em primeiro lugar importa salientar que o prazo de seis meses começa a contar-se a partir do dia em que os Autores tomaram conhecimento da decisão determinante da suspensão da instância. Esse conhecimento ocorreu na própria tentativa de conciliação em que estiveram presentes ou se fizeram representar, e que ocorreu, como vimos, em 08.07.2016.

Por outro lado, o artigo 138º, n.º 1, do CPC estipula que o prazo processual, estabelecido por lei ou fixado por despacho do juiz, é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a sua duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes. Logo, de acordo com esta norma, o prazo a que se refere o artigo 281º do CPC, porque superior a seis meses, não se suspende nas férias judicias de Verão.

Sendo suficiente para a decisão da deserção da instância o decurso de um período de inacção de seis meses e um dia, verifica-se que esse termo foi alcançado em 09.01.2017. 

c)
Nas conclusões 11ª e 12ª, os recorrentes consideram que foram violados os princípios da cooperação, do dever de gestão processual e do contraditório.
Esta é a parte mais sensível do recurso, colocando-se a sua dilucidação a montante das questões já tratadas.

O artigo 7º do CPC[4] consagra o princípio da cooperação como pedra angular de toda a estrutura do direito processual civil, conforme já se proclamara no diploma preambular do DL n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro.
 Refere o n.º 1 desse artigo que, na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
Este princípio é fundamental à dinâmica do processo e está intimamente ligado ao dever de gestão processual de que fala o artigo 6º do CPC, na medida em que, ao exercer os deveres de cooperação, o magistrado está, no fundo, a gerir o processo, eliminando os formalismos desnecessários, facilitando e estimulando o envolvimento das partes no procedimento, e esclarecendo dúvidas quanto às questões suscitadas, por forma a garantir a justa composição do litígio, em tempo breve e de modo eficaz.
Teixeira de Sousa[5] assinala que, do ponto de vista do tribunal, o princípio da cooperação impõe quatro poderes-deveres ou deveres funcionais: de esclarecimento [artigo 7º, n.º 2, do CPC]; de prevenção [artigos 590º, n.º 2, alínea b) e artigo 591º, n.º 1, alínea c)]; de consulta [artigo 3º, n.º 3, do CPC]; e de auxílio das partes [artigo 7º, n.º 4, artigo 418º, n.º 1, e artigo 754º, n.º 1, alínea a), do CPC].
O dever de consulta, exigível ao longo de todo o procedimento, tem por finalidade impedir que o magistrado profira decisões com base em questões, de facto ou de direito (mesmo as que sejam de conhecimentos oficioso), sem que tenha sido possibilitada às partes a oportunidade de sobre elas se pronunciarem.

Observa Fredie Didier[6] que tal dever não só representa a concretização do princípio da cooperação como também do princípio do contraditório, por ser responsável por assegurar às partes o poder de influenciar na solução da lide através da instigação do diálogo entre os sujeitos processuais. Pode assim dizer-se que o dever de consulta se apresenta como ponto de confluência ou intersecção entre esses dois princípios.
O presente relator subscreveu, na ocasião como desembargador adjunto na Relação do Porto, o acórdão de 02.02.2015[7], onde, depois de se fazer uma comparação entre os regimes de deserção da instância pré e pós reforma de 2013, se escreveu o seguinte:
“(…) o regime que actualmente vigora é bem mais severo para as partes, mas, em contrapartida, é também mais exigente para o tribunal. Para as partes, o efeito preclusivo da sua inacção negligente determina o cancelamento imediato da tutela jurisdicional das respectivas pretensões; mas, para o tribunal deixou também de haver qualquer automatismo entre essa inacção e as suas consequências processuais. Impõe-se sempre, no fundo, um balanceamento de valores, no sentido de determinar se a tutela jurisdicional requerida pelas partes foi por elas, voluntária ou negligentemente, desperdiçada ou mesmo prescindida, caso em que essa tutela não se justifica, de todo.
Ora, esta mudança de regime deve ser também seguida pela alteração de procedimentos. Às partes exige-se um maior cuidado no acompanhamento das suas causas para que as mesmas atinjam a finalidade normal para que foram instauradas, ou seja, a declaração, por acto jurisdicional, do direito controvertido. E ao tribunal, por sua vez, exige-se também, como já dissemos, que só cancele a tutela jurisdicional que lhe foi solicitada se houver dados bastantes para concluir, com certeza, pelo total alheamento das partes em relação à referida finalidade. O que significa, em suma, que, por regra, não pode, nem deve, proceder a esse cancelamento sem se certificar previamente que esse alheamento, propositado ou negligente, existe. E uma das formas de o conseguir é através do contraditório prévio, que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, designadamente em relação a questões, como é o caso dos autos, em que as partes não tiveram prévia oportunidade de sobre elas se pronunciarem (artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Não significa isto, obviamente, que a falta de impulso processual não possa ser considerada, ela mesma, sinónimo de negligência das partes ou de alguma delas. Mas não basta presumi-lo. É necessário, como dissemos, certificá-lo”.

           No blog do IPPC, Teixeira de Sousa, em comentário concordante com a decisão da Relação do Porto, deixou as seguintes palavras[8]:
Efectivamente, como a deserção da instância exige que a falta de impulso decorra da negligência das partes (cf. art. 281.º, n.º 1, CPC), haverá que avaliar, caso a caso, se se justifica o cumprimento pelo tribunal do dever de prevenção. Procurando exemplificar, poderá haver razões para o cumprimento desse dever se a parte à qual cabe o impulso não estiver representada por advogado ou se esta mesma parte tiver demonstrado, pelo seu anterior comportamento processual, que está interessada na continuação do processo e se, por isso, for surpreendente a falta de impulso processual.

Paulo Ramos de Faria[9] desenvolve esta ideia do seguinte modo: “(…) não se poderá dizer, sem mais, que devem as partes ser ouvidas depois de se verificarem os pressupostos da deserção, mas antes do seu julgamento. Tudo dependerá do caso concreto – mihi factum dabo tibi jus –, isto é, do grau de satisfação, pelo tribunal, do princípio da cooperação, do dever de prevenção e do dever de gestão processual, antes de se ter completado o prazo de deserção. O mais que se poderá dizer é que, quando estes princípio e deveres não tenham sido satisfeitos, não se podendo concluir que o demandante foi esclarecido pelo tribunal, deve ser oferecido o contraditório prévio à decisão”.

O presente processo oferece o paradigma ideal para a justificação da observância, pelo tribunal, do dever de consulta (e também do dever de prevenção[10]) à parte em falta, antes de proferir decisão de decretação da deserção da instância.

Trata-se, na verdade, de um processo iniciado há 12 anos (2006), com 7 volumes e mais de 1500 páginas de processado.

Além do mais, não se pode ser indiferente ao esforço já realizado pelas partes e pelo tribunal[11] no sentido de se conseguir uma solução para o litígio. Esforço esse reconhecido na tentativa de conciliação de 08.07.2016, em cuja acta se pode ler:

“Neste momento, foi referido pelos ilustres mandatários das partes que, desde que foram notificados da marcação da presente diligência, houve já uma aproximação, encontrando-se a trabalhar sobre uma proposta apresentada, tendo sido ultrapassadas algumas divergências, existindo, ainda, algumas questões quanto aos lugares de garagem e à cobertura, mantendo-se os I. mandatários em contacto, no sentido de ultrapassarem essas mesmas questões.

Neste momento foi dito pela Mmª Juíza que dada a natureza das divergências – lugares de garagem, que já estarão, há décadas, a ser utilizados, e uso da cobertura – certamente que será possível alcançar-se a almejada constituição de propriedade horizontal.

Mais disse que no dia de hoje deu entrada em juízo o assento de óbito da R. VVV, pelo que importará ordenar a suspensão da instância”.

O Mmº Juiz da 1ª instância, ao julgar deserta a instância por inércia dos Autores, parece não ter levado em consideração as circunstâncias particulares a que aludimos. Perante as circunstâncias concretas do processo, designadamente toda a actividade processual pretérita e a possibilidade de um acordo sobre o objecto da lide, cabia-lhe, em nome do princípio da cooperação e da correspondente lealdade processual, ouvir os Autores sobre a razão da omissão do acto a praticar e adverti-       -los[12] para as consequências que podiam decorrer da sua inércia em impulsionar o processo, uma vez que nunca antes o haviam sido.

Como dissemos de início, o acórdão recorrido não encontrou razões para concluir pela violação do princípio da cooperação, por banda do tribunal da 1ª instância.

É outro, contudo, o nosso entendimento. A inobservância do dever de consulta (e também do dever de prevenção), nos moldes que ficaram descritos, integra violação do princípio da cooperação e constitui irregularidade com impacto e influência na decisão proferida[13], impondo-se, por conseguinte, a anulação da decisão da 1ª instância.


*


III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, no provimento da revista, revoga-se o acórdão recorrido e anula-se a decisão da 1ª instância.

                                                           *

Sem custas.

                                                           *

  LISBOA, 22 de Maio de 2018

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Salreta Pereira

___________________
[1] Relator:     Henrique Araújo
  Adjuntos:  Maria Olinda Garcia
                      Salreta Pereira
[2] Aplicável ao caso (acção declarativa) por força do artigo 5º, n.º 1, da Lei 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o Código de Processo Civil.
[3] Cfr. Paulo Ramos de Faria, “O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa”, Revista Julgar on line, 2015, páginas 5 e 6.
[4] Com a mesma redacção do antigo artigo 266º do CPC.
[5] “Introdução ao Processo Civil”, 2000, páginas 56/57.
[6] “Fundamentos do Princípio da cooperação no direito processual civil português”, 2010, página 16, citado por Maria Coelho Torres Galindo, na Dissertação de Mestrado “Princípio da Cooperação: Dever de Consulta e a Proibição das Decisões-Surpresa”, página 50, Coimbra 2014, em www.estudogeral.sib.uc.pt.
[7] Em que foi relator o Ex.º Desembargador João Diogo Rodrigues.
[8] Cfr. blog do IPPC, Fevereiro de 2015, Jurisprudência 75.
[9] Obra e local citados, página 19.
[10] Que consiste no dever de alertar as partes quanto ao risco ou consequência do não afastamento de determinada irregularidade processual.
[11] Nomeadamente pela Mmª Juíza que era titular dos autos na data em que se realizou a tentativa de conciliação.
[12] Paulo Ramos de Faria, ob. cit., página 17, advoga que, quando falte a advertência prévia ao decurso do prazo de deserção – melhor, quando falte a advertência com uma confortável antecedência sobre o termo final do prazo de deserção –, a decisão do tribunal ainda se possa qualificar de “decisão-surpresa”.
[13] Cf. Artigo 195º, n.º 1, segunda parte, do CPC.