Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A2485
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
VALOR DA CAUSA
HIPOTECA
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
NULIDADE DO CONTRATO
NULIDADE ABSOLUTA
NULIDADE RELATIVA
CAPACIDADE JURÍDICA
SOCIEDADE COMERCIAL
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
DELIBERAÇÃO SOCIAL
ASSEMBLEIA GERAL
Nº do Documento: SJ200310280024851
Data do Acordão: 10/28/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 1645/02
Data: 02/12/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório.
No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, "A, S.A." moveu a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra "B, S.A.", pedindo a condenação do R. a ver declarado nulo o negócio de constituição de hipoteca celebrado entre as partes em 9/6/98, assim como pede o cancelamento do respectivo registo bem como dos posteriores existentes a favor do R..
Alega em fundamento que, em 19/6/95, em escritura pública, outorgada no 5º Cartório Notarial do Porto, a Autora declarou constituir uma hipoteca sobre um prédio seu, para garantir um crédito do R. sobre a sociedade "C, S.A." até ao limite de 82.878.577$00 e respectivos juros moratórios, hipoteca essa registada a favor do R..
Como a sociedade "C, S.A." não pagou a dívida ao R., este instaurou acção executiva contra o A. com vista ao pagamento da dívida garantida, execução essa a correr termos na Vara Mista de Braga, sob o nº. 2401/99, e que se encontra na fase da venda judicial.
É que a Autora é totalmente estranha à obrigação garantida pela hipoteca, não tendo qualquer interesse próprio que a ligasse a tal obrigação, fazendo a referida concessão por exclusiva iniciativa e interesse pessoal do seu administrador ao tempo, o qual apesar de ter levado o assunto a deliberação da assembleia geral, não indicou, na respectiva acta, o motivo ou causa justificativa que levam à constituição da aludida hipoteca.
Assim, tal contrato de concessão de hipoteca é nulo por contrário ao princípio da especialidade do fim que norteia a actividade das sociedades e também porque contrário ao objecto da sociedade.

Na sua contestação, além de ter suscitado a questão da incompetência territorial do Tribunal, já decidida definitivamente, alega que o negócio em causa foi objecto de discussão e deliberação em assembleia geral da A., tendo sido aprovada por unanimidade dos sócios, a concessão da garantia por se entender que isso tinha interesse para a sociedade.
Sendo aos sócios que compete decidir sobre o interesse da sociedade, é claro que está assente a existência de tal interesse e por isso satisfeita a exigência do nº. 3 (parte final) do art. 6º do C.S.C..
Por outro lado, alega o R. que, em 5/1/1998 instaurou execução com vista ao pagamento da dívida da sociedade "C, S.A.", execução essa pendente e na qual figura como executada além de outros, a aqui A., logo alegando ser credor hipotecário, sendo certo que, citada a Autora, ali executada, em 1998, não deduziu qualquer oposição por embargos ou por qualquer outra forma, nem se opôs à penhora do prédio sua propriedade que fora dado de hipoteca, penhora essa que se efectivou e se mostra registada, pelo que ficou precludido o direito da A. de arguir vícios e nulidades à hipoteca alvo dessa execução.
De qualquer modo, não se estaria perante um caso de nulidade, mas, de anulabilidade, pelo que há muito estaria sanado o referido vício, se existisse.
Mas, mesmo a entender-se tratar-se da nulidade, sempre a sua invocação por via desta acção traduziria um manifesto abuso de direito, como resultaria da factualidade alegada em fundamento.
Finalmente, pelas razões de facto que alega, haveria, na verdade, justificado interesse da A. na prestação de garantia (cfr. artigos 160º a 183º e seg.), além de que a Autora e a sociedade garantida, juntamente com outros, fazia parte do mesmo grupo de empresas conhecido por "Grupo D", pelo que seria sempre válida a concessão da garantia em causa (cfr. artigo 141º, na sequência do que se alegou nos artigos antecedentes e 162º da p. inicial).

Suscitada oficiosamente a questão do valor da causa, que se fixou em 82.878.577$40 contra os 3.000.001$00 oferecidos pelo A., proferiu-se despacho saneador, no qual se conheceu da excepção dilatória inominada suscitada na contestação (preclusão do direito de invocar a nulidade, por não ter sido suscitada em embargos), a qual foi julgada procedente e em consequência o R. absolvido da instância.
Inconformada apelou a Autora para o Tribunal da Relação de Guimarães, que confirmou a decisão da primeira instância.
Novamente inconformada, recorre a Autora, agora de revista e para este S.T.J., recurso que veio a ser qualificado como AGRAVO.

Conclusões.
Apresentadas tempestivas alegações, formulou a recorrente as seguintes conclusões, que se juntam por fotocópia.

CONCLUSÕES:
1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação que negou provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão da primeira Instância.
2. Começa o Acórdão recorrido por entender, quanto à fixação do valor da causa, que é de aplicar o critério plasmado no artigo 310º do Código de Processo Civil, considerando que o valor da causa deve aferir-se pelo valor garantido pela hipoteca que ora se impugna, esquecendo que no caso dos autos o que está em discussão é a validade ou invalidade de uma hipoteca constituída sobre um imóvel, tendo sido, aliás, este o critério utilizado para aferir da competência do tribunal.
3. Na mesma ordem de ideais, o critério utilizado para a fixação do valor, deveria ter sido o valor da coisa, uma vez que, a não ser assim, isso levaria à aplicação de uma injustificada dualidade de critérios.
4. O tribunal não pode, sob pena de contradição de fundamentos, aplicar o critério da coisa para determinar competência do tribunal e, depois, postergar tal critério para efeitos de determinar o valor da causa.
5. Conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.06.1991 (in BMJ, 408, pág. 473) "para a acção, o valor da coisa é o real ou o patrimonial, embora a determinar por meio do rendimento colectável dos prédios inscritos na matriz", ou seja, o valor fixado deveria ter sido o de € 7.143,18, aplicando o critério do valor da coisa.
6. A outra questão objecto do recurso é a questão da validade do negócio jurídico de constituição de hipoteca celebrada por escritura pública outorgada em 19.06.95, no 5º Cartório Notarial do Porto.
7. Em tal acto, E, Presidente do Conselho de Administração da sociedade Recorrente, constituiu, em nome e em representação desta, uma hipoteca sobre o prédio de sua propriedade a favor do banco Recorrido.
8. Tal hipoteca destinou-se a reforçar a garantia das responsabilidades emergentes de um contrato de mútuo e hipoteca e respectivo reforço celebrado entre a sociedade "C, S.A." e o Banco Recorrido.
9. A Recorrente, no momento da celebração do negócio e ainda hoje, é totalmente estranha à obrigação que a "C, S.A." contraiu perante o Banco Recorrido e não tinha, nem tem, nenhum interesse próprio que a ligasse a tal obrigação, tendo tal concessão sido feita somente por iniciativa e, supõe-se, interesse pessoal do Administrador da Recorrente na altura.
10. A Recorrente, ao momento da celebração do negócio, obrigava-se somente com a assinatura do único Administrador que fazia parte do Conselho de Administração e tal Administrador veio a abandonar as funções que exercia na sociedade Recorrente, em 1 de Junho de 2001.
11. Não foi justificado, por qualquer modo, o interesse da Recorrente na concessão de tal garantia, pelo que o referido negócio de constituição de hipoteca é nulo por contrário ao princípio da especialidade do fim que norteia a actividade das sociedades em geral e é nulo por ser contrário ao objecto da sociedade.
12. É verdade que a Recorrente não deduziu qualquer oposição à execução intentada pelo Banco Recorrido, todavia, contrariamente ao que vem decidido no Acórdão e na sentença de que ora se recorre, isso não impede que a Recorrente não possa intentar a presente acção de nulidade.
13. Segundo LEBRE DE FREITAS (in A acção executiva, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, págs. 163 e segs.) "constituindo a petição duma acção declarativa e não contestação de uma acção executiva, a propositura dos embargos de executado não representa a observância de qualquer dos ónus cominatórios (ónus da contestação, ónus da impugnação especificada) a cargo do réu na acção declarativa: nem a omissão de embargar produz a situação de revelia nem a omissão de impugnação dum facto constitutivo da causa de pedir da execução produz qualquer efeito probatório (...)" .
14. A Recorrente, para fazer valer a sua pretensão de ver declarada a nulidade de um negócio, tinha sempre que intentar uma acção declarativa - o que nos presentes autos de que se recorre - uma vez que, ainda que tivesse invocado a nulidade do contrato em embargos de executado, a decisão a proferir sobre estes teria sempre efeitos limitados ao processo de execução.
15. Conforme decidido no Acórdão do STJ, de 14.03.2000 (in Sumários, 39º, pág. 11): "Os embargos de executado são estruturalmente uma contra acção declarativa destinada a destruir os efeitos do título e da acção executiva e fundamentam-se em vícios que, afectando a execução, conduzem à extinção desta, total ou parcialmente, sem efeitos preclusivos, com o inerente caso julgado, quanto à invocação noutro processo de excepções não deduzidas que não respeitem à configuração da relação processual executiva" (sublinhado nosso).
16. Acresce que a declaração de nulidade pode ser invocada a todo o tempo, por qualquer interessado e é insanável mediante confirmação - artigo 286º do C. Civil, ou seja, a entender-se como se entendeu na decisão ora recorrida, isso significaria que a nulidade seria sanada e sanável em virtude da mera omissão de deduzir embargos em processo executivo.
17. Conforme ensina ANSELMO DE CASTRO (in A acção executiva singular, comum e especial, Coimbra, Coimbra Editora, 1977, pág. 304), "A acção executiva existe para realizar o direito, com tanto se bastando, e não para o declarar; logo, também esse fim não pode ser assinado à oposição, nem impor-se ao executado o ónus de a deduzir. A oposição está instituída, na e para a execução, tão-só para os fins que a lei lhe fixa, quando o executado a queira deduzir, de suspender ou anular a execução, e não para que em todo o caso seja tornado ou fique certo o direito do credor. Não há, pois, que fazer da falta voluntária de oposição do executado caso à parte".
18. A douta decisão de primeira Instância, confirmada pelo Acórdão de que ora se recorre parte do princípio que o único efeito da declaração de nulidade do negócio seria a impossibilidade de fazer valer o direito do credor em acção executiva: como se diz nessa decisão "a questão da validade ou invalidade do negócio de constituição de hipoteca é intrínseca à execução movida pelo aqui réu à aqui autora", argumento que não colhe.
19. Sendo declarado nulo um negócio, em concreto o aqui se aprecia, quaisquer outros interessados nessa nulidade poderá beneficiar dela, designadamente outros credores. A declaração de nulidade tem efeitos erga omnes.
20. Ou seja, os efeitos da declaração de nulidade não se restringem à inadmissibilidade da acção executiva. São bem mais vastos, pelo que não tem qualquer sentido dizer que a discussão da validade ou invalidade de tal negócio equivale à discussão da validade do título executivo em que se baseou aquela execução.
21. Não podemos partir da ideia de que a omissão de dedução de embargos tem como efeito tornar o negócio jurídico válido, isto é, equivaleria a sanar o negócio, não mais podendo o vício de que padece voltar a ser levantado.
22. Por outro lado, tendo a sentença proferida em processo executivo meros efeitos de caso julgado formal (vide LEBRE DE FREITAS, op. cit., pág. 292), os efeitos da decisão de embargos estarão sempre limitados ao próprio processo.
23. Finalmente, o Acórdão da Relação de que ora se recorre termina com a observação de que a situação em apreço, a admitir-se a violação do princípio da especialidade configuraria um caso de anulabilidade, sem fundamentar minimamente tal entendimento.
24. Não está aqui em causa o saber se a deliberação é válida ou não, mas sim saber se o negócio que consistiu na prestação de uma garantia a outra entidade, por parte da Recorrente, está viciado.
25. Sustenta JÚLIO ELVAS PINHEIRO (in "O justificado interesse próprio do garante: sobre o art. 6º, nº. 3, do Código das Sociedades Comerciais", Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1997, pág. 504) "pese embora a abstenção de um efeito jurídico expresso no preceito em estudo (o mencionado artigo 6º, nº. 3 do CSC), o legislador continua genericamente a olhar sob suspeição a prestação de garantias por sociedades a dívidas de terceiras entidades, para além dos casos específicos, já considerados, da aquisição de acções próprias e do negócio de administradores com a sociedade".
26. Deste modo, parece claro que a observação em jeito de conclusão inserida no aresto de que ora se recorre é, salvo o devido respeito, precipitada e incorrecta.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso e, assim, se fazer JUSTIÇA!

Nas contra-alegações defende o recorrido a confirmação do acórdão sob censura.

Os Factos.

É a seguinte a matéria de facto assente e considerada pelas instâncias:
1º- Em escritura pública outorgada em 19/06/95 no Quinto Cartório Notarial do Porto, a aqui autora declarou que em reforço da garantia das responsabilidades emergentes do contrato mútuo e hipoteca nesse acto referidos e do reforço nesse acto celebrado entre a sociedade "C, S.A." e o aqui réu, suas renovações e substituições, até à sua integral liquidação, até ao limite global de oitenta e dois milhões oitocentos e setenta e oito mil quinhentos e setenta e sete escudos e quarenta centavos e juros remuneratórios, à taxa referida, elevável em caso de incumprimento à taxa de juro publicitada pelo aqui réu para as operações activas a cento e oitenta dias, então a dezoito por cento ao ano, acrescida de quatro por cento, a título de cláusula penal, e demais encargos legais, incluindo as despesas judiciais e extrajudiciais, que para simples efeito de registo se fixam em três milhões trezentos e quinze mil cento e quarenta e três escudos sobre o valor do empréstimo, constituía a favor do aqui réu hipoteca sobre o prédio urbano composto por rés do chão, primeiro andar e sótão, sito na Rua Dr. Rocha Peixoto, números ..., freguesia de Cividade, Concelho de Braga, descrito na C.R.P. de Braga sob o nº. 00074, tendo o aqui réu declarado ali aceitar a constituição de tal hipoteca;
2º- Mostra-se inscrita definitivamente no registo predial, relativamente ao imóvel descrito na C.R.P. de Braga sob o nº. 00074, freguesia da Cividade, pela apresentação 56/260695 (inscrição C2), hipoteca voluntária a favor do aqui réu (constituída pela aqui autora, para garantia de empréstimo no valor de 49.128.577$40, ao juro anual de 18%, acrescido de 4% em caso de mora, no montante máximo de 83.518.581$60);
3º- O aqui réu instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa com processo ordinário contra "C, S.A." e contra a aqui autora (assim como contra outros), execução essa que com o nº. 14/1998 corre os seus termos no 3º Juízo Cível da Comarca de Braga, no valor de 106.066.471$00 (acrescida de juros sobre o montante de 98.255.558$00 à taxa de 15% ao ano desde a interposição da acção e até efectivo e integral pagamento), alegando para tanto ser dono e legítimo portador de livrança no valor de 98.255.558$00, vencida em 19/06/97 e subscrita pela "C, S.A." (avalizada pelos restantes co-executados, com excepção da aqui autora), livrança essa que não foi paga quando apresentada a pagamento na data do vencimento, sendo devidos juros no valor de 7.510.493$00, sobre os quais incide o respectivo imposto de selo;
4º- Alega ainda o aqui réu no requerimento executivo referido no anterior facto que em 19/06/95, e através de escritura pública, a aqui autora (ali sexta executada) declarou que em reforço da garantia das responsabilidades emergentes de contrato de mútuo e hipoteca e do seu reforço celebrado entre o aqui réu e a sociedade "C, S.A.", suas renovações e substituições, até à sua integral liquidação e até ao limite global de 82.878.577$40 e juros remuneratórios, constituía hipoteca a favor do aqui réu sobre o prédio urbano composto por rés do chão, primeiro andar e sótão, sito na Rua Dr. Rocha Peixoto, números ..., freguesia de Cividade, concelho de Braga, descrito na C.R.P. de Braga sob o nº. 00074, hipoteca essa que o aqui réu aceitou, mais alegando estar tal hipoteca registada definitivamente;
5º- A aqui autora foi pessoalmente citada para a execução referida nos anteriores números em 16/07/97, não tendo deduzido oposição;
6º- Na referida execução foi ordenada e realizada a penhora do imóvel referido nos anteriores números (penhora notificada à aqui autora), sendo ordenado o cumprimento do disposto no art. 864º do C.P.C..

Fundamentação.
Como se vê das alegações são três as questões suscitadas no agravo.
A primeira refere-se ao valor da causa, que a 1ª instância fixou no valor da garantia hipotecária - 82.878.577$40 - o que foi confirmado pela Relação e que a recorrente pretende seja fixada em 3.000.001$00, valor atribuído à acção na petição inicial.
A segunda tem a ver com a excepção dilatória inominada invocada pelo R. na sua contestação e consiste em saber se, pelo facto de a Autora não ter deduzido embargos à execução contra si movida pelo aqui R., com base na garantia hipotecária aqui em causa, se encontra precludido o direito de agora, em acção autónoma, peticionar a anulação do negócio em causa.
A terceira consiste em saber se estamos perante uma eventual anulabilidade, já sanada, como refere o Tribunal recorrido e defende o R., ou perante uma verdadeira nulidade, invocável a todo o tempo.

1ª Questão.
Valor da causa.
Quanto a este ponto pensamos que decidiu bem o acórdão recorrido ao confirmar o valor fixado pela 1ª instância em 82.878.577$40, por ser esse o valor estipulado pelas partes para o negócio em causa (art. 310º, nº. 1, do C.P.C.).
De resto, se fosse de aplicar o nº. 2 da citada disposição legal, e, por isso de recorrer às regras gerais do art. 306º, chegaríamos à mesma conclusão.
De facto, tratando-se de um direito real de garantia - reforço de hipoteca - o valor da acção corresponderia ao benefício que se pretende alcançar com o pedido deduzido, ou seja a desoneração de uma garantia com o valor de 82.878.577$40.
É, pois, de confirmar, nesta parte, o decidido pelo acórdão aqui sob censura.

2ª Questão.
Quanto à excepção dilatória (preclusão do direito de vir agora suscitar a questão da nulidade do negócio constitutivo da hipoteca, quando na acção executiva, não se embargou nem deduziu qualquer oposição à penhora do prédio hipotecado).
É correcta a doutrina exposta na decisão de 1ª instância sobre o assunto e que foi inteiramente acolhida pela Relação, só que, dela não pode concluir-se, como concluíram as instâncias, pela procedência da excepção.
De facto, e resumindo, é certo que os embargos de executado não constituem a contestação da acção executiva, antes se configurando como petição inicial de uma acção declarativa.
Como tal, observa Lebre de Freitas (A Acção Executiva - 2ª ed. - 158) "... a propositura dos embargos de executado não representa a observância de qualquer dos ónus cominatórios (ónus de contestação, ónus de impugnação especificada) a cargo do Réu na acção declarativa: nem a omissão de embargar produz a situação de revelia nem a omissão de impugnação dum facto constitutivo da causa de pedir da execução produz qualquer efeito probatório ... .
Mas, na medida em que os embargos de executado são o meio de oposição à execução idóneo à alegação dos factos que em processo declarativo, constituem matéria de excepção, o termo do prazo para a sua dedução faz precludir o direito de os invocar no processo executivo ...".
Portanto, a inobservância do ónus de excepcionar por via de embargos, não acarreta qualquer cominação mas tão só a preclusão de um direito processual cujo exercício seria ou podia ser vantajoso, por isso que, como conclui o antes citado, não estando o efeito preclusivo coberto pelo caso julgado emergente da sentença, como acontece na acção declarativa (na execução não há caso julgado), "nada impede a invocação duma excepção não deduzida (que não respeite à configuração da relação processual executiva) em outro processo".
Ora, não obstante a adesão das instâncias à doutrina exposta, entenderam que a nulidade do negócio constitutivo da hipoteca respeita à configuração da relação processual executiva, pois a questão da validade ou invalidade do negócio em causa (constituição da hipoteca) é intrínseca à execução daí que se trata de questão respeitante à relação processual criada entre as aqui partes, na referida acção executiva.
Salvo o devido respeito, não nos parece correcta tal interpretação.
Não estamos perante pressupostos processuais da execução, genéricos ou específicos.
O que pensamos é que a questão da validade do negócio jurídico formalizado, na escritura de hipoteca, que constitui o título executivo, não é uma questão que respeita à relação processual executiva. É, sim, uma questão de mérito extrínseca à execução. O que está em causa é a existência ou inexistência do próprio direito incorporado no título, questão essa que não afecta directamente a acção executiva, já que nesta, a apresentação do título faz presumir a existência do direito que se executa.
É certo que tal questão de mérito podia ser suscitada no âmbito do processo de embargos, mas, não o tendo sido, apenas ficou precludido o direito de a invocar no processo executivo, decorrido que seja o prazo concedido para o efeito. Porém, pelas razões atrás expostas, nada impede que a questão da nulidade do negócio seja discutida nesta acção.
Não há que confundir o princípio da eventualidade ou da preclusão com o conceito de caso julgado material. O decurso do prazo processual peremptório apenas faz precludir o direito de praticar o acto dentro do processo, enquanto o caso julgado material produz efeitos fora dele.
Aliás, no caso concreto não interessa tratar da questão dos efeitos do caso julgado no âmbito dos embargos, pela simples razão de que não havia embargos.
No caso, apenas está em causa o fenómeno da preclusão e, como ele só produz efeitos dentro do processo, o facto de a Autora não ter deduzido embargos de executado não a impedia de instaurar esta acção discutindo a validade da garantia que prestou a favor de terceira sociedade e por via da qual está a ser executada. cfr. Lebre de Freitas - Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. II - Coimbra Editora, 2002, pág. 173/191, além da obra já citada.
Veja-se também Carlos Oliveira Soares - O caso julgado na Acção Executiva - in Revista da Fac. de Direito da U.N.L., ano IV - nº. 7 - 2003 - pág. 241 e seg.).
Chegamos assim, quanto a este ponto a solução diversa daquela a que chegaram as instâncias, pelo que, por esta via a acção deveria prosseguir, o que afinal irá depender do que se decidir quanto à terceira questão suscitada no recurso.

3ª Questão.
Nulidade do negócio constitutivo da hipoteca.
Decidiu o acórdão recorrido que, mesmo a entender-se ter ocorrido violação flagrante do princípio da especialidade, como vem invocado, tal não configuraria uma situação de nulidade absoluta submetida ao regime do art. 286º do C.C.. É que as nulidades previstas no C.S.C. são apenas as referidas no art. 56º.
Portanto, a violação do aludido princípio, a existir, determinaria apenas a anulabilidade, vício que estaria já sanado pelo decurso do tempo e falta da respectiva arguição no prazo legal.
Salvo o devido respeito, não parece que a questão possa ser assim equacionada. Senão vejamos:
Dispõe o nº. 1 do art. 6º do C.S.C. que "A capacidade da Sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular", e, por sua vez, determina o nº. 3 que "considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo."
Ora, como resulta inequivocamente da lei (veja-se a própria epígrafe do preceito - CAPACIDADE -) estamos em pleno domínio da capacidade de gozo da sociedade, que, como resulta do nº. 1 do preceito abrange os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim (cfr. também art. 160º do C.C.), daí que, considerando-se contrário ao fim social a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades (sejam entes colectivos ou pessoas singulares), tal significa que tais actos, salvaguardadas as excepções previstas na parte final do nº. 3, estão fora da capacidade jurídica das sociedades, faltando-lhes, em absoluto o direito de se obrigarem nas referidas condições, além de que, estaremos, então, perante a prática de actos proibidos por lei de carácter imperativo.

Daí que a violação da regra genérica contida na primeira parte do nº. 3 do dispositivo em análise gere nulidade e não simples anulabilidade (como seria o caso, se estivéssemos perante a falta de capacidade de exercício), uma vez que se trata de falta de capacidade jurídica ou de gozo de direitos, como se infere do art. 294º do C.C. (cfr. Mota Pinto - Teoria Geral - 3ª ed. - pág. 245).
E compreende-se que a sanção seja a nulidade dado os interesses em presença que passam pela defesa do interesse da sociedade enquanto tal, do interesse dos seus sócios e do interesse dos credores sociais, designadamente contra os actos lesivos dos próprios sócios ou da respectiva administração ou gerência.
Refira-se a propósito que é diferente a situação prevista no nº. 4, já que a prática de actos contrários aos estatutos ou a deliberações sociais não afecta a capacidade de gozo da sociedade. Aqui estamos perante a prática de actos "ultra vires", ali perante a falta absoluta de capacidade jurídica. (cfr. Osório de Castro - Da Prestação de Garantias por Sociedades a Dívidas de outra Sociedade - Rev. Ordem dos Adv., ano 56 - Agosto).
Vê-se assim que, diferentemente do que se decidiu no acórdão recorrido e do difundido pelo R., não há que chamar à colação o art. 56º do C.S.C. visto que não está em causa a anulação de deliberação que autorizou a concessão da garantia.
Tal deliberação não pode derrogar a proibição legal que resulta da 1ª parte do nº. 3 do art. 6º do C.S.C., de modo que é irrelevante para o caso concreto.
O que aqui interessa considerar não é a deliberação mas a prática do acto contrário à lei, a falta de direito para se obrigar daquela forma por falta de capacidade jurídica.
Como se viu, a regra geral contida na 1ª parte do nº. 3 do art. 6º, cede perante as excepções previstas na parte final do preceito, isto é, no caso de existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou de se tratar de sociedades em relação de domínio ou de grupo. Em tais hipóteses a sociedade possuirá plena capacidade de gozo para a prestação da garantia.
Por conseguinte, a verificação dessas situações excepcionais aparecem como condição de validade das garantias prestadas e por isso têm de ser provadas pelo beneficiário da garantia que dela se quiser prevalecer.
Alega o banco R. que está já plenamente demonstrada a existência de interesse próprio da sociedade A. na prestação da garantia, visto que tal foi expressamente deliberado pela assembleia geral e por unanimidade de todos os sócios, sendo a estes que compete, soberanamente, definir o que seja o interesse da sociedade - não lhe assiste razão.
O interesse próprio da sociedade para o efeito em questão, tem de ser objectivamente apreciado e resultará das circunstâncias concretas que, em cada caso enquadram ou determinam a concessão da garantia e há-de traduzir-se na obtenção de uma qualquer vantagem para a sociedade ainda que eventualmente de forma indirecta.
Não pode, por isso, ser soberanamente decidido em assembleia geral, ainda que por unanimidade, sob penal de esvaziamento do nº. 3 do art. 6º e porque, a ser assim, cairíamos no absurdo de ser, afinal, o incapaz a decidir da sua capacidade de gozo.
Daí que, no caso concreto, não seja relevante a deliberação social no referido sentido, visto que se ignoram completamente as razões objectivas que estiveram na base dessa deliberação.

(sobre o assunto tratado cof:
João Labareda - Nota sobre a Prestação de Garantias por Sociedades Comerciais a Dívidas de outras entidades - publicado na obra - Direito Societário Português - Algumas Garantias - Quid Juris? - Lisboa 1998 - 167 e seg., e
Júlio Elvas Pinheiro no estudo - O Justificado Interesse Próprio do Garante: Sobre o Art. 6º, nº. 3 do C.S.C. - publicado na Rev. da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pág. 485 e segs.).
Concluímos, assim, pela nulidade do negócio celebrado em contravenção ao disposto na 1ª parte do nº. 3 do art. 6º do C.S.C., nulidade que, como todas as outras, pode ser arguida a todo o tempo e é do conhecimento oficioso do Tribunal.
No caso concreto, porém, não dispõem ainda os autos de todos os elementos que permitam conhecer do mérito, em conformidade com a posição assumida.
Na verdade, como se vê da contestação o R. alegou todo um conjunto de factos no sentido de demonstrar que, caso a Autora tivesse o direito que se arroga, o seu exercício sempre seria abusivo. Por outro lado, alegou também factualidade tendente a demonstrar que existiu interesse próprio da A. na prestação da garantia em causa, bem como no sentido de demonstrar a existência da relação de domínio ou de grupo entre as empresas garante e garantida, sendo certo que tal factualidade se encontra controvertida.
Assim sendo, há que produzir prova sobre a factualidade alegada que for relevante para se decidir da validade ou invalidade do negócio em lide.
Devem, pois, os autos prosseguir os seus normais termos até ao julgamento.

Decisão:
Termos em que, acordam neste S.T.J. em dar parcial provimento ao agravo e em consequência, revogar o acórdão recorrido na parte em que julgou procedente a excepção dilatória apreciada, que se julga improcedente, bem como na parte em que considerou ser de anulabilidade o vício consistente na violação da primeira parte do nº. 3 do art. 6º do C.S.C., confirmando-o, porém, na parte em que fixou o valor da acção em 82.878.577$40 ou 413.396,60 €.
Custas pela recorrente e recorrido na proporção de 1/5 para a primeira e 4/5 para o segundo.

Lisboa, 28 de Outubro de 2003
Moreira Alves,
Alves Velho,
Moreira Camilo.