Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1279
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: FALÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO LABORAL
HIPOTECA VOLUNTÁRIA
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Nº do Documento: SJ200706050012791
Data do Acordão: 06/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : - Os créditos laborais que gozem de privilégio imobiliário especial fundado no art. 377.º-1-b) do Código do Trabalho preferem ao crédito garantido por hipoteca voluntária constituída e registada anteriormente à entrada em vigor daquela norma.
- Não está ferida de inconstitucionalidade a norma do al. b) do n.º 1 do art. 377º do Código do Trabalho na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário especial nela conferido - sobre os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade - aos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, gerados após a entrada em vigor da referida norma, prefere à hipoteca voluntária, independentemente da data de constituição e registo desta.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - Por sentença de 21-12-05, foi declarada a falência de “Á.. P... R... & F..., Lda.” e abriu-se concurso de credores.
Fixou-se a data de falência em 26-09-05.
O processo deu entrada no Tribunal Judicial da Covilhã, como processo especial de recuperação de empresa no dia 19 de Dezembro de 2003.
Reclamaram créditos, entre outros, o Centro Distrital de Segurança Social, a Fazenda Nacional, o banco “B..., S.A.” e, por dívidas laborais, cinquenta e quatro trabalhadores.
O crédito reclamado pela “B..., S.A.”, no montante de € 35 039,14, foi garantido por hipoteca voluntária registada na Conservatória do Registo Predial da Covilhã na ficha n.º 01360, pela apresentação 13/15122000.
Os contratos de trabalho cessaram em Setembro de 2005, por decisão do liquidatário judicial.
Todos os créditos reclamados foram reconhecidos, gozando o do Banco “B...” da referida garantia hipotecária e os dos trabalhadores de privilégio imobiliário especial sobre os imóveis da falida em que prestaram a sua actividade.
Foram, então, graduados para serem pagos pelo produto da venda dos bens imóveis, nos termos seguintes:
1. o crédito destinado ao pagamento ao gestor judicial;
2. os créditos dos trabalhadores;
3. os créditos hipotecários de acordo com a prioridade do registo;
4. os restantes créditos, como comuns.

Apelaram os credores CDSS e “B..., S.A.”, mas a Relação manteve a graduação efectuada na sentença.

A “B..., S.A.” pede ainda revista para insistir na graduação do seu crédito hipotecário com preferência sobre os créditos reclamados pelos trabalhadores da falida que hajam de ser pagos pelo produto do mesmo imóvel.

Para tanto, vêm formuladas as seguintes conclusões:
1. A constituição e registo da garantia hipotecária de que goza o crédito do recorrente datam do início de 2001 – muito antes da entrada em vigor do actual Código do Trabalho, da constituição dos actuais créditos salariais dos trabalhadores da Falida, e mesmo dos demais créditos hipotecários, constituídos ou concedidos com referência ao mesmo bem imóvel.
2. O actual Código do Trabalho, ao atribuir o privilégio imobiliário especial a que alude a al. b) do n° 1 do seu art. 377°, visou expressamente por cobro, de alguma forma, à vasta polémica doutrinária e jurisprudencial que se vinha arrastando a propósito da prevalência relativa, da eficácia perante terceiros com direitos reais de garantia conflituantes, e da própria licitude constitucional, do privilégio creditório imobiliário, geral, que era atribuído aos créditos dos trabalhadores, nos anteriores quadros legais (Leis n° 17/86 e n° 96/2001).
3. Trata-se de uma alteração/clarificação legal – que origina uma fase transitória entre dois quadros legais – o que obriga a que os concretos interesses conflituantes das partes directamente afectadas pelas normas jurídicas pertinentes sejam necessariamente acautelados pela fonte de Direito que é a jurisprudência, ou seja, por via da interpretação e da integração da Lei que terá de ser feita pelos Tribunais .
4. O entendimento das instâncias sobre a aplicação, ao caso concreto, das regras ínsitas no art. 12° do Código Civil, não é o correcto, porque contraria – em prejuízo e ofensa da certeza e da segurança jurídicas, subjacentes ao principio da confiança, que merece consagração constitucional, e é defendido na lei civil, como um dos pilares essenciais do nosso ordenamento jurídico – os interesses de terceiros, necessariamente conflituantes com os dos titulares do dito privilégio creditório imobiliário.
5. Cumprindo chamar aqui à colação os princípios gerais contidos nos artigos 12°, nos. 1 e 2, l.ª parte, 9°, n° 1, e 10°, n° 3, do Código Civil, para fazer a melhor justiça ao caso concreto – em salvaguarda das regras essenciais da não retroactividade das leis, da ponderação e salvaguarda da unidade do sistema jurídico, e da análise das circunstâncias em que a lei a aplicar foi elaborada e das condições específicas do tempo em que é aplicada.
6. Vinha sendo entendimento da nossa jurisprudência dominante dos últimos anos que a hipoteca prevalece, em sede de graduação de créditos, sobre os vários privilégios creditórios imobiliários gerais, estatuídos em legislação avulsa.
7. E isto quer por via do disposto no art. 749° do Código Civil, como em função de um juízo de inconstitucionalidade sobre a interpretação contrária das várias normas avulsas instituidoras dos privilégios creditórios de que beneficiam, nomeadamente, créditos da Segurança Social, e da Fazenda Nacional, assente na constatação da violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, consagrado no art. 2° da CR..
8. Tais juízos de inconstitucionalidade assentam na justa consideração, aqui também aplicável, de que entendimento contrário constituiria inadmissível lesão da certeza e segurança jurídicas com que o credor hipotecário deverá legitimamente contar para a concessão de crédito que faça a terceiros – em função dos princípios gerais de direito e das regras do registo.
9. A não ser assim, o apoio creditício de médio-longo prazo, associado à constituição de garantias hipotecárias, geralmente concedido por instituições bancárias a particulares e empresas – no exercício de uma actividade própria lucrativa, mas socialmente útil, estruturante da economia, e potenciadora da criação de postos de trabalho – passaria a contar com uma álea de risco, e potencial sacrifício pecuniário, que é incompatível com a certeza do direito, e com o princípio da confiança que deve tutelar as relações jurídicas estabelecidas entre credor e devedor .
10. É esse mesmo princípio da confiança que, no caso “sub judice”, resulta ainda mais ostensivamente ofendido, em fazendo carreira o entendimento que está subjacente às decisões das instâncias.
11. Deve aplicar-se à situação dos autos o n° 1 e a primeira parte do n° 2 do art. 12° do Código Civil – pois a instituição do novo privilégio creditório imobiliário especial (o instituído pelo art. 377° do Código do Trabalho) só vale para o futuro,
12. Pois estamos perante um caso em que a lei nova “dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos” – motivo pelo qual, se dúvidas houvesse, sempre se terá de entender que a norma “só visa os factos novos”.
I 13. Se é certo que o art. 377° do Código do Trabalho tem aplicação imediata – a interpretação e integração daquela norma terá que fazer-se, relativamente ao caso concreto, por forma a que fiquem “ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”, o que se presume como vontade do legislador (art. 12º, n.° 1, do Código Civil).
14. Neste caso concreto, esses efeitos a ressalvar são a confiança, a certeza e segurança jurídicas – materializadas na estabilidade do quadro normativo existente - com que contava o credor hipotecário no momento em que contratou com a falida, para concessão de créditos a esta, e nesse quadro normativo pré-existente não estava estatuído qualquer privilégio creditório imobiliário especial, que pudesse onerar, no presente ou no futuro então previsível, o imóvel dado em garantia do crédito a conceder.
15. Logo, o disposto no art. 377° do Código do Trabalho não pode ser interpretado por forma a fazer prevalecer o privilégio creditório aí previsto sobre garantia real de hipoteca, constituída e registada em data muito anterior ao início de vigência dessa mesma norma.
16. De resto, a interpretação e integração de todas as normas do nosso ordenamento jurídico atinentes à tipificação dos diversos tipos de garantias especiais das obrigações terá sempre de ser feita – por definição - em concreta ponderação dos interesses e direitos que estão em causa em cada situação da vida,
17. Pois cada garantia real – como garantia especial das obrigações de uma determinada pessoa jurídica, em favor de um concreto credor, consequentemente em desfavor dos demais – encontrará sempre e necessariamente a sua caracterização e eficácia últimas numa lógica de graduação desse mesmo crédito.
18. Não pode assim ser legitima qualquer interpretação do disposto no art. 377° do Código do Trabalho que possa objectivamente conferir eficácia retroactiva a essa disposição – como acontecerá em fazendo-se prevalecer o privilégio creditório imobiliário especial em causa sobre garantia real de hipoteca constituída e registada antes da entrada em vigor daquela norma,
19. Pois essa interpretação – para além de contrária ao disposto, sobre a aplicação das leis no tempo, no art. 12° do Código Civil – sempre estará ferida de inconstitucionalidade, por ofensa ao princípio da confiança e da certeza e segurança jurídicas, plasmados no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
20. Por todo o exposto, é patente a violação dos arts. 9°, 12°, 686°, n.° 1, 749°, n.° 1, e 751°, todos do Código Civil,
21. E isto por via de uma errada interpretação – ferida de inconstitucionalidade, por ofensa aos princípios ínsitos no art. 2° da Constituição da República - do disposto no art. 377° do Código do Trabalho.

Respondeu apenas o credor reconhecido e graduado AA, reclamante/trabalhador.

2. - A questão que se coloca é, no essencial, como a define a Recorrente, a de saber se o privilégio imobiliário especial de que gozam os trabalhadores da falida, fundado no art. 377º do Código do Trabalho, prevalece sobre hipoteca voluntária constituída e registada anteriormente à entrada em vigor daquela disposição legal.

3. - Os factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso constam já do relatório esta peça.

Dão-se aqui por reproduzidos.

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Na decisão impugnada, confirmando a da 1ª Instância, considerou-se que:
Os créditos dos trabalhadores, gozam do privilégio imobiliário especial criado pelo art. 377º-1-b) do Código do Trabalho;
As normas desse art. 377º são de aplicação imediata; e,
Por isso, afectam as hipotecas anteriormente constituídas e registadas, com preferência sobre as respectivas garantias.

A Recorrente, diversamente, vem sustentar que as normas daquele art. 377º, embora de aplicação imediata, só dispõem para o futuro, devendo ser “ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”, no caso os da hipoteca anteriormente constituída na vigência de um quadro normativo que não previa o privilégio creditório, sob pena de se conferir eficácia retroactiva à lei, então ferida de inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da confiança e da certeza e segurança jurídicas.

Não se questiona que, reportando-se a situação falimentar a Setembro de 2005, data em que se venceram os créditos laborais reclamados e reconhecidos, e a sentença que a decretou a 21 de Dezembro desse ano, há muito vigorava o Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27/8, bem como a Lei Regulamentar n. 35/2004, de 29/7.

O art. 377º do referido diploma cujo n.º 1, al. b) estabelece que “Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam (…) de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade”, créditos que, segundo o a al. b) do seu n.º 2 são graduados antes dos créditos referidos no art. 748º do C. Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à Segurança Social.
O art. 751º C. Civil, por sua vez, estabelece que “Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que as garantias sejam anteriores”.

Como do art. 686º-1 C. Civil e do transcrito art. 751º resulta a garantia real e preferência de pagamento do crédito que a hipoteca confere só cede perante privilégio especial ou idêntica garantia com prioridade de registo.

Diferentemente dos privilégios gerais, que são só mobiliários e se constituem apenas no momento da apreensão dos bens, que não pressupõem uma relação entre o crédito e a coisa e não são oponíveis a direitos reais, que se lhes não encontram especificamente afectos, os privilégios especiais, que os imobiliários são sempre, baseando-se numa relação entre o crédito e a coisa que o garante, constituem-se no momento da formação do crédito garantido e são direitos reais de garantia oponíveis a outros direitos reais (cfr. arts. 749º, 750º, 751º e 735º-3 C. Civ.).

4. 2. - Embora o não afirme expressamente, na medida em que defende a aplicabilidade no art. 377º C.T. apenas para futuro, nos termos do n.º 1 do art. 12º C. C., ressalvando os efeitos produzidos pelos factos que a lei vem regular, a Recorrente parece sustentar que o privilégio imobiliário só poderá ser oposto a hipotecas constituídas após a entrada em vigor daquele primeiro preceito.

Aquele n.º 1 do art. 12º estatui que “A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”, sendo que no n.º 2, 2ª parte se estabelece que “quando (a lei) dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo do factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor”.

Antes de mais, importa notar que a lei nova, o art. 377º do C.T., não introduziu qualquer modificação ao instituto da hipoteca e seus efeitos.
Na verdade, deixou completamente intocados os preceitos do C. Civil que regulam as preferências de pagamento de que goza o credor hipotecário e a sua posição relativamente aos privilégios imobiliários especiais, nomeadamente os já convocados arts. 686º e 751º.
O art. 377º limitou-se a criar um privilégio imobiliário especial, que substituiu ao preexistente privilégio imobiliário geral que, para os mesmos créditos, vigorava ao abrigo da Leis n.º 17/86, de 14/6 e n.º 96/2001, de 20/8 (art. 4º-1 deste último diploma).

Consequentemente, a lei nova não veio regular quaisquer efeitos jurídicos da hipoteca já produzidos. A garantia existente manteve-se embora, em abstracto, tivesse ficado enfraquecida com a transformação operada pela lei do privilégio geral previsto ao tempo da constituição da hipoteca em privilégio especial.
E disse-se apenas em abstracto, desde logo porque não era uniforme o entendimento sobre o enquadramento deste privilégio imobiliário geral, surgindo nas decisões judiciais, ora (maioritariamente) submetido à aplicação do art. 749º C. Civil, ora ao regime do art. 751º, como, sem discussão, resulta agora do C. Trabalho.

Ora, como escreveu o Prof. BAPTISTA MACHADO “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, pg. 18, “a lei nova relativa ao conteúdo (ou efeitos) duma relação jurídica só não abstrai dos factos que a essa relação deram origem quando define ou modela intrinsecamente esse conteúdo em função de tais factos, isto é, quando os efeitos ou consequências jurídicas que ela determina são o produto da valoração legal de tais factos e variam consoante essa valoração, de tal modo que se possa dizer que a aplicação da lei nova aos efeitos duma relação constituída com base num facto representaria uma nova valoração desse facto passado e, consequentemente, teria carácter retroactivo”.

Sem dúvida que as normas do art. 377º se referem aos efeitos da cessação os contratos de trabalho subsistentes à data da falência, ao conteúdo daquela relação jurídica, existentes ou não ao tempo da constituição da hipoteca, mas, justamente porque prescindem de qualquer definição do seu conteúdo, operando nova valoração determinante de variação desses efeitos, deverá entender-se que abstraem dos factos (as concretas relações laborais) que lhes deram origem.
Porque indiferente o facto que deu origem ao crédito laboral, desde que resultante da violação ou cessação do respectivo contrato, a lei que criou o privilégio é imediatamente aplicável, desinteressando saber como e quando se formou o direito de que crédito beneficiário é efeito, pois que este é apenas um efeito indirecto.
Aplicável será, assim, o n.º 2 do art. 12º

Pronunciando-se concretamente sobre a questão, o mesmo Professor, na obra citada (pgs. 27/28), referindo-se aos privilégios creditórios, subscreve o entendimento segundo o qual as leis a eles relativas “quer estabeleçam novos privilégios, quer suprimam os anteriormente existentes, são sempre de aplicação imediata”, incluindo-se no grupo de normas que, novamente nas suas palavras, «não definem, rigorosamente, o conteúdo (os efeitos) verdadeiro e próprio da relação ou situação jurídica constituída com base nesses factos, mas tão-somente determinam consequências laterais ou extrínsecas dessa relação jurídica, isto é, consequências que apenas incidem sobre o todo de efectivação dos direitos das partes. Essas normas, como não afectam esses direitos em si mesmos, como não podem envolver o não reconhecimento duma situação jurídica anteriormente constituída nem, muito menos, implicar uma nova valoração dos factos passados – e como, por outro lado, visam estabelecer a boa ordem da sociedade civil e reflectem, por isso mesmo, interesses gerais da comunidade – são de aplicação imediata».

No mesmo sentido foi o ac. deste Supremo de 29/5/80 (BMJ 297º-278) citado e com o apoio de P. DE LIMA e A. VARELA no “Código Civil, Anotado”, I, 4ª ed., 62).

A norma do art. 377º-1-b) aplica-se, então, de futuro, mas com eficácia imediata – abrangendo, nessa medida, efeitos actuais de factos passados - , ou seja, aos créditos gerados pela violação ou cessação de contratos de trabalho subsistentes à data da sua entrada em vigor.

4. 3. 1. - Afirma a Recorrente que o entendimento que se deixou proposto não é legítimo, pois que confere eficácia retroactiva ao disposto no art. 377º C. Trabalho e padece de inconstitucionalidade.

Como é sabido, a Constituição da República não acolheu, como princípio, a irretroactividade das leis em geral, reservando a proibição de retroactividade apenas às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias; às leis criminais, quanto a penas e medidas de segurança; e, às fiscais, quanto à obrigação de pagamento de impostos (arts. 18º-3, 29º-1 e 4 e 103º-3).

A aplicação do n.º 2, 2ª parte, do art. 12º, norma que, tal como a do seu n.º 1, estabelece um princípio sobre aplicação das leis no tempo, não representa uma verdadeira retroactividade, pois que, uma tal «retroactividade de grau mínimo», inerente ao facto de se estar perante uma situação jurídica com “conteúdo susceptível de ir repercutindo efeitos ao longo do tempo, (…) resulta justamente da circunstância de se não reconhecer eficácia, de futuro, à SJ ou à cláusula negocial preexistente, apesar de nenhuma objecção ser feita, por parte da LN, aos efeitos do tipo daqueles que elas produzem” (A. e ob. cit., pg.52).
Estar-se-á perante norma retrospectiva, ou, insiste-se, perante um caso da também denominada «retroactividade inautêntica». De norma que “prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data”, mas já não para situações anteriores (ac. TC. n.º 38/2004, de 14/01/004, DR, II, n.º 73, 6041).

Como se escreveu no citado acórdão do Tribunal Constitucional, uma lei retrospectiva não levanta o problema da retroactividade da lei.
O que ela pode suscitar é uma questão de eventual violação do princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no art. 2º C.R..

Continuando a seguir de perto aquele Acórdão e a jurisprudência que nele se convoca, também aqui se afirma que a violação daquele princípio só resulta violado quando ocorra «uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos», sendo que a “«ideia geral de inadmissibilidade» deverá ser aferida pelo recurso a dois critérios:
a) afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica que, razoavelmente, os destinatários das normas não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos liberdades e garantias, no n.º 2 do art. 18º da Constituição).
Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária”.
Referindo ainda a jurisprudência do TC, faz-se notar que o princípio da confiança não pode haver-se por intoleravelmente ofendido quando “a confiança (do cidadão) no reconhecimento da situação jurídica ou das suas consequências se revele materialmente “injustificada”, sempre que a situação jurídica “não era clara ou inequívoca”, de tal modo que o cidadão poderia e deveria contar com a eventualidade do seu posterior esclarecimento num ou noutro sentido, ou, de uma maneira geral, quando razões imperiosas de interesse público – e, nomeadamente, nas palavras de Gomes Canotilho, a adopção de medidas positivas de conformação social – se sobrepõem visivelmente à tutela dos valores de segurança e de certeza jurídicas”.

Consequentemente, apenas uma retroactividade intolerável, aferida pelo critério descrito, violará o princípio da confiança e segurança jurídica que fundamenta a desaplicação, por inconstitucionalidade, do art. 377º do Código do Trabalho, como arguido pela Recorrente.

4. 3. 2. - O princípio da confiança, implicando a protecção de um mínimo de certeza e segurança nos direitos dos cidadãos e nas expectativas jurídicas que lhes foram criadas resultará violado e deverá actuar quando, face à liberdade “constitutiva e conformadora” do legislador, a mudança operada pela lei nova vá “implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações (…). Como reverso, resulta que, sempre que as expectativas não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo enfraquecidas que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique sacrifício incomportável (cfr. ac. n.º 365/91, DR, 2ª Série, de 27 de Agosto de 1991), ou se não perspectivem como consistentes, não se justifica a cabida protecção em nome do primado do Estado de direito democrático”.

4. 3. 3. - Aqui chegados, e à luz dos enunciados critérios, é altura de responder à questão, agora de saber: - por um lado, se a Recorrente podia formar uma legítima expectativa quer da manutenção da modalidade de privilégio imobiliário (geral) estabelecido pelas Leis n.ºs 17/86 e 96/2001 quer na interpretação dessas normas no sentido (apesar de maioritariamente acolhido) de que a hipoteca voluntária preferiria ao privilégio imobiliário geral; por outro lado, se, havendo tal expectativa, a mesma é desfavoravelmente afectada de forma inadmissível, intolerável, injustificada ou excessivamente onerosa pelo art. 377º C. T..

Funda a Recorrente as expectativas que considera frustradas no já aludido “entendimento da nossa jurisprudência dos últimos anos que a hipoteca prevalece, em sede de graduação de créditos, sobre os vários privilégios imobiliários gerais, estatuídos em legislação avulsa”.

Como se adiantou já, grande parte da jurisprudência vinha decidindo no sentido indicado, mas, como também já aludido, muitas decisões, quer das Instâncias, quer do Supremo Tribunal de Justiça, se pronunciavam em sentido contrário. Entre estas últimas e as mais recentes podem ver-se, por exemplo, os acórdãos de 03/04/2001, 25/6/2002, 27/6/2002 (voto de vencido) e 14/12/2006, i n Sumários, CJ-X-135 e ITIJ [procs. 02B1809 e 06A1984].

Assim, a resposta à indagação sobre o concurso do duplo pressuposto que enforma o critério de violação do princípio da confiança e da certeza e segurança tem de ser negativa.

Não pode, na verdade, desde logo, face ao controvertido entendimento sobre o enquadramento do anterior privilégio imobiliário geral na previsão do art. 749º ou do art. 751º, sustentar-se que a Recorrente, enquanto credora hipotecária, pudesse e devesse confiar no reconhecimento da qualidade credora com preferência de pagamento sobre os créditos laborais em causa, antes – perante a natureza controvertida da questão, nomeadamente em sede de constitucionalidade – pudesse e devesse “contar com a eventualidade do seu posterior esclarecimento num ou noutro sentido” dadas as razões de interesse público, mesmo a nível dos direitos fundamentais que vinham sendo invocadas. O risco já existia desde a Lei de 86, bem anterior à constituição da hipoteca.
Mas, mais que isso, e seguramente, não pode afirmar-se que, mesmo que tais legítimas expectativas se perfilhassem, as mesmas teriam resultado injustificada, arbitrária e intoleravelmente arredadas, perante a salvaguarda do direito à retribuição salarial - direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e, como tal, direito constitucionalmente protegido a considerar prevalente sobre um direito de conteúdo e natureza exclusivamente patrimonial -, a que se alude no art. 59º-1-a) e 3 CR, este último número concretizando mesmo que “os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei”.

4. 4. - A questão da restrição à tutela da confiança do credor hipotecário na prioridade da satisfação do seu crédito encontrar justificação constitucionalmente adequada na circunstância de o direito dos trabalhadores à remuneração e á indemnização por despedimento se configurar como expressão de um direito fundamental, susceptível de legitimar a compressão do direito concedido pela garantia hipotecária foi já apreciada pelo T. Constitucional.

Mereceu, então, a decisão de conformidade à Constituição da “norma constante da al. b) do n.º 1 do art. 12º da Lei n.º 17/86, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil” – ac. n.º 498/2003, de 22/10/03, DR , II, 03/01/004, pg. 40.

Porque o ali decidido e respectiva fundamentação valem, até por maioria de razão, para a situação ajuizada, transcrevem-se, por inteiramente pertinentes e transponíveis, os seguintes excertos:

“(…) O princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança que decorrem do princípio do Estado de direito democrático constante do art. 2º da Constituição da República credenciam a prevalência registral (…). Do outro lado, porém, encontra-se um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, o direito à retribuição do trabalho, que visa «garantir uma existência condigna», conforme preceitua o art. 59º,n.º 1, al. a) da Constituição, e que o Tribunal Constitucional já considerou como direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (…).
O caso dos autos coloca-nos assim perante uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito”.

Ponderadas as exigências do princípio da proporcionalidade, perante a natureza dos direitos conflituantes, concluiu-se “dever entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional”.

4. 5. - Concordantemente com o entendimento adoptado nos doutos arestos que se seguiram, também aqui se conclui que não está ferida de inconstitucionalidade a norma do al. b) do n.º 1 do art. 377º do Código do Trabalho na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário especial nela conferido - sobre os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade - aos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, gerados após a entrada em vigor da referida norma, prefere à hipoteca voluntária, independentemente da data de constituição e registo desta.

Assim, improcedem as conclusões da Recorrente e, com elas, o recurso.

5. – Decisão.

Pelo exposto, decide-se:
- Negar a revista;
- Confirmar o acórdão impugnado; e,
- Condenar a Recorrente (Banco) nas custas.


Lisboa, 5 de Junho de 2007

Alves Velho (Relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias