Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B3596
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DE LOCADOR
CAPITAL SOCIAL
Nº do Documento: SJ200611160035967
Data do Acordão: 11/16/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. A entrada da 1ª ré, accionista única, no capital social da 2ª foi realizada em espécie, através de activos constituídos por um conjunto de elementos patrimoniais afectos ao exercício da sua actividade imobiliária, compreendendo designadamente a transmissão para a nova sociedade da propriedade do imóvel aludido sob o n° l dos factos dados como assentes -cfr. escritura do contrato de sociedade.
Segundo o art. 47° do Regime do Arrendamento Urbano, o arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano.
É conferida prioridade ao titular do direito de preferência de, em igualdade de condições, se fazer substituir ao adquirente na compra e venda ou na dação em cumprimento.
O direito de preferência só existe nos casos taxativamente previstos neste normativo legal, ou seja, na venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado.
2. Não assiste direito de preferência ao inquilino de um prédio urbano quando a propriedade desse prédio foi transmitida como activo na entrada do capital social em sociedade comercial, por esse negócio jurídico não consubstanciar contrato de compra e venda nem dação em cumprimento.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório


Empresa-A, intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra

- Empresa-B; e
- Empresa-C, pedindo que se lhe reconheça o direito de preferência na transmissão de determinado prédio urbano, mediante o pagamento do preço de 2.336.391,00 €, prédio esse de que, em parte, era arrendatária e que foi vendido sem que o projecto de venda e as respectivas cláusulas lhe tenham sido comunicadas.

Contestaram as rés, alegando, sinteticamente, que a 2ª ré foi constituída por domínio total inicial, pertencendo a totalidade do seu capital à 1ª ré, sendo a entrada no capital social realizada através de activos constituídos por um conjunto de elementos patrimoniais afectos ao exercício da actividade imobiliária da 1ª ré, incluindo a posição em vários contratos de arrendamento, compreendendo ainda a transmissão da propriedade de bens imóveis, nomeadamente daquele que o autor pretende que lhe seja reconhecido o direito de preferência.
Mas a entrada em espécie efectuada pela 1ª ré no capital social da 2ª não consubstancia um contrato de compra e venda, pelo que o direito de preferência relativamente a essa transmissão não é legalmente reconhecido.
De qualquer modo, porque o prédio não estava constituído em propriedade horizontal o direito só poderia abranger a parte do prédio arrendada e nunca a totalidade, além de que, não tendo o local arrendado autonomia física e jurídica, o direito de preferência não poderia ser exercido.


Logo no despacho saneador conheceu-se da questão de fundo e julgou-se acção improcedente, com a absolvição das rés do pedido.

Inconformada com o assim decidido apelou a autora, mas sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação de Guimarães confirmou o saneador/sentença recorrido.

De novo irresignada, recorre para o Supremo Tribunal de Justiça, continuando a defender que foi realizado um verdadeiro contrato de compra e venda e que, como arrendatária do prédio, lhe assiste o direito de preferência.

Contra-alegaram as rés sustentando que a transmissão do direito de propriedade sobre imóveis, a título de realização de entrada em espécie no capital de sociedades comerciais, não tem a natureza de contrato de compra e venda e, por isso, defende a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, com que remata as suas alegações, o inconformismo da recorrente radica no seguinte:

1- O negócio jurídico em causa operou a transmissão do direito de propriedade sobre imóveis, pelo valor da totalidade do capital social, como entrada social da sócia única, no acto de constituição da sociedade, que, sem dúvida, constitui o preço, na dupla vertente material e funcional, como, aliás foi retratado na matéria de facto fixada nos autos;

2- Nesse acto, não havia acções, pelo que, como contrapartida da citada transmissão, foi pago o preço correspondente ao valor da totalidade do capital social, sendo a entrega das acções apenas o modo de pagamento do preço;

3- Deste modo, o negócio jurídico sub specie é duplo e geminado, de sociedade e de compra e venda, tendo a transmitente e sócia única recebido da sociedade, como contrapartida, o valor pecuniário correspondente ao da totalidade do capital social, que constitui o preço estipulado;

4- Existindo uma compra e venda, existe o peticionado direito de preferência da A. inquilina, ora recorrente- artigo 47.° do Regime de Arrendamento Urbano;

5- O negócio celebrado sob o título de constituição de sociedade, ajuizado, não cumpriu os requisitos legais plasmados no artigo 488.° do Código das Sociedades Comerciais, pelo que do acto em causa apenas subsiste o negócio de compra e venda relativo à transmissão do arrendado;

6- Ao contrário do sustentado no acórdão em recurso, a recorrente não adquire a qualidade de sócia, apenas faculta à 1ª. Ré o montante pecuniário correspondente à sua entrada - artigo 25.° do Código das Sociedades Comerciais;

7- Decidindo em contrário, o acórdão sob recurso violou o citado preceito legal e, ainda, os artigos 20.°, alínea a), 25.º a 30.°, 179.°, 202.° a 208.°, 277.°, 285.° e 488.°, do Código das Sociedades Comerciais, e 983.°, 984.°, 796.°, 797.° e 874.°, do Código Civil.


B- Face ao teor das conclusões formuladas, delimitativas do âmbito do recurso, a questão controvertida a decidir reconduz-se, no essencial, a determinar qual a natureza jurídica que reveste a realização de entrada em espécie no capital de sociedades comerciais

III. Fundamentação

A- Os factos

Foram dados como provados no acórdão recorrido os seguintes factos:

1. A A. é arrendatária de parte do imóvel, do prédio urbano, composto de cinco edifícios, sito em Braga, na Rua Monsenhor Airosa ...., com frente para a Avenida Imaculada Conceição, sem número de policia, parte na freguesia de S. José de S. Lázaro e parte na freguesia de Cividade, Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga, sob o número oitenta e cinco, freguesia de Cividade, tem também o número seiscentos e nove, S. José de S. Lázaro, registado a seu favor pelas inscrições G-um e G-dois, e inscrito na respectiva matriz sob os artigos 590º e 897º, da freguesia de S. José de S. Lázaro, cada um com o valor patrimonial de €1.231,37 (Mil, duzentos e trinta e um euros e trinta e sete cêntimos), e sob os artigos 360º, 474º e 524º da freguesia de Cividade, com o valor patrimonial de € 5.595,74 (Cinco mil, quinhentos e noventa e cinco euros e setenta e quatro cêntimos), € 290.898,93 (Duzentos e noventa mil, oitocentos e noventa e oito euros e noventa e três cêntimos) e € 359.134,49 (Trezentos e cinquenta e nove mil, cento e trinta e quatro euros e quarenta e nove cêntimos), a que é atribuído o valor de € 2.336.391,00 (Dois milhões, trezentos e trinta e seis mil, trezentos e noventa e um euros).

2. Por escritura pública celebrada no dia 26 de Dezembro de 1996, e alterada no dia 11 de Marco de 1999, no Primeiro Cartório Notarial do Porto, a 1ª Ré deu de arrendamento á A., e esta tomou de arrendamento, a área de 7.401 m2 (Sete mil, quatrocentos e um metros quadrados), sendo a área descoberta de 5.756 m2 (Cinco mil, setecentos e cinquenta e seis metros quadrados), e a área coberta de 1.675 (Mil, seiscentos e seis metros quadrados), do prédio sito na Avenida Imaculada da Conceição, identificado em 1.

3. A renda mensal acordada foi de 2.000.000$00 (Dois milhões de escudos), e, posteriormente devido a alteração ao arrendamento, passou a ser de 2.334.000$00 (Dois milhões, trezentos e trinta e quatro mil escudos), a contar do 7°. Ano de vigência do contrato, actualmente de € 12.072,69 (Doze mil, setenta e dois euros e sessenta e nove cêntimos).

4. O arrendamento destina-se a comercialização de produtos alimentares e de consumo.

5. No dia 15 de Junho de 2004, a A. recebeu uma carta da 2ª Ré a solicitar o pagamento da renda relativa ao locado identificado no nº 3 em seu nome e em que declarou ser a actual proprietária do imóvel.

6. Nessa carta informou que o direito de propriedade se transmitiu por escritura pública, outorgada em 29 de Janeiro de 2004. e que a natureza da transmissão foi a da realização em espécie do respectivo capital social.

7. Por escritura de constituição de sociedade, realizada em 29/01/2004, no 4.° Cartório Notarial de Lisboa, a 1ª Ré, Empresa-B., constituiu uma sociedade anónima com o nome "Empresa-C.", e a entrada na sociedade foi realizada em espécie mediante a entrada de activos constituídos por um conjunto de elementos patrimoniais afectos ao exercício da actividade imobiliária da sociedade, incluindo a posição em vários contratos de arrendamento ou outras formas de cedência de exploração que transferiu para esta, entre os quais o direito de propriedade do prédio descrito sob o nº1, pelo preço de € 2.336.391,00 (Dois milhões, trezentos e trinta e seis mil, trezentos e noventa e um euros).

8. O referido prédio não está submetido ao regime de propriedade horizontal.

9. E incluiu a área objecto do arrendamento.

10. O teor do depósito de fls. 23 e 24.


B- O direito

1.1- A 1ª ré, Empresa-B, promoveu a criação de outra sociedade anónima, Empresa-C, de que ficou a ser a única accionista.
Estamos perante o tipo de sociedades em relação de grupo e de domínio total inicial, porquanto uma delas detém 100% do capital da outra, logo integralmente subscrito pela accionista única.
Neste tipo de sociedade, previsto no art. 488º C.S.Comerciais, uma delas tem o domínio das sociedades que integram o grupo.

Do contrato de sociedade devem constar, além do mais, a quota de capital e a natureza da entrada de cada sócio e, se essa entrada consistir em bens diferentes de dinheiro, a descrição e especificação dos respectivos valores -art. 9º, nº 1, als. g) e h) C.S.Comerciais.
As entradas em espécie, bens diferentes de dinheiro, são obrigatoriamente efectuadas no momento da celebração da escritura do contrato de sociedade -art. 26º C.S.Comerciais- e devem ser objecto de um relatório elaborado por um revisor oficial de contas, que os descreverá, identificará, avaliará e declarará se os valores atingem ou não o valor nominal da parte, quota ou acções atribuídas aos sócios -art. 28º, nºs 1 e 3 C.S.Comerciais.
Tem-se, assim, em vista garantir a existência de bens com os quais se vão realizar as entradas do capital social, ou seja, a realização efectiva do capital da sociedade, e de que o seu valor seja, pelo menos, igual ao valor nominal da participação atribuída a cada sócio nesse capital (das acções, na sociedade anónima).

A entrada da 1ª ré, accionista única, no capital social da 2ª foi realizada em espécie, através de activos constituídos por um conjunto de elementos patrimoniais afectos ao exercício da sua actividade imobiliária, compreendendo designadamente a transmissão para a nova sociedade da propriedade do imóvel aludido sob o nº 1 dos factos dados como assentes -cfr. escritura do contrato de sociedade.
Segundo o art. 47º do Regime do Arrendamento Urbano (aqui aplicável), o arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano.
É conferida prioridade ao titular do direito de preferência de, em igualdade de condições, se fazer substituir ao adquirente na compra e venda ou na dação em cumprimento.
O direito de preferência só existe nos casos taxativamente previstos neste normativo legal, ou seja, na venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado.

Sustenta a recorrente que, na situação vertente, ocorreu um contrato de compra e venda.
Segundo o estatuído no art. 874º C.Civil, Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.
É da essência deste contrato a transmissão do direito de propriedade ou de outro direito, mediante o pagamento de um preço. Há aqui uma correspectividade de duas prestações: o direito de propriedade ou de outro direito, por um lado; e o preço, em dinheiro, pelo outro.
No caso em análise, a propriedade do prédio onde se integra o arrendado foi transferido para a 2ª ré como realização da entrada no capital social, realização em espécie. A transmissão da propriedade não teve como correspectivo o pagamento de qualquer quantia em dinheiro. O vínculo de reciprocidade, sinalagma, não se estabeleceu entre o direito de propriedade daquele prédio e o preço, mas entre esse direito de propriedade e a participação no capital social.
Falta aqui um requisito essencial para que se possa classificar este negócio jurídico como contrato de compra e venda.

Ainda que a recorrente o não invoque na situação concreta, poder-se-á questionar se este contrato será susceptível de configurar uma dação em cumprimento, sabido que o direito de preferência também funciona nestes casos.
A dação em cumprimento vem referida no art. 837º C.Civil e aí se preconiza que A prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento.
A dação em cumprimento, datio in solutum, consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o objectivo de extinguir de imediato a obrigação. Com refere Antunes Varela (1), essencial à dação é que haja uma prestação diferente da que for devida; e que essa prestação tenha por fim extinguir imediatamente a obrigação. A prestação que o devedor realiza não coincide com aquela a que estava vinculado e, por isso, só produz a sua exoneração em conformidade com o estipulado no nº 1 do art. 762º C.Civil se o credor der o seu acordo à realização de prestação diferente.

Volvendo à situação dos autos, temos que a entrada da 1ª ré para realização do capital social da 2ª foi logo estabelecida, no contrato de constituição de sociedade, em espécie e concretamente, para além de outros activos, o constituído pelo prédio onde se localiza o arrendado.
A ré satisfez a prestação a que se vinculara, não tendo substituído a prestação originária por qualquer outra diferente.

Uma vez que o prédio foi objecto de um contrato, que não de venda nem dação em cumprimento, não existe direito de preferência.

Não assiste, portanto, direito de preferência ao inquilino de um prédio urbano quando a propriedade desse prédio foi transmitida como activo na entrada do capital social em sociedade comercial, por esse negócio jurídico não consubstanciar contrato de compra e venda nem dação em cumprimento.


1.2- Defende ainda a recorrente que o negócio de constituição da sociedade é inválido por a 1º ré não ter sido inicialmente a titular única das acções representativas do capital social da sociedade constituenda.
Esta questão foi suscitada apenas no recurso interposto para a Relação, o que levou a que a mesma não fosse considerada.
E assim teria que ser efectivamente.
Os recursos visam a impugnação da decisão recorrida através do reexame do que nela se tiver apreciado, e não o conhecimento de questões novas. Por isso, está vedado ao tribunal de recurso conhecer de questões que não foram colocadas e apreciadas pelo tribunal recorrido, excepto se essas questões novas forem de conhecimento oficioso e, mesmo assim, desde que não haja violação das regras previstas nos arts. 272º e segs. C.Pr.Civil sobre alteração do pedido e causa de pedir.

A questão da invalidade do negócio de constituição da sociedade só no recurso para a Relação foi colocada. Mas esta não é uma questão de que se deva conhecer oficiosamente. Depois, ela acarretaria uma alteração do fundamento imediato da acção.
Daí que, como bem se decidiu no acórdão recorrido, dela se não possa conhecer.


IV. Decisão

Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 16 de Novembro de 2006
Alberto Sobrinho
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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(1) in Das Obrigações em Geral, II, pág. 136.