Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2212/06.4TBMAI.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
DEFESA DO CONSUMIDOR
CADUCIDADE
DIRECTIVA COMUNITÁRIA
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 19
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :

I.Os prazos de caducidade previstos no art. 917º do Cód. Civil para a acção de anulação de venda de coisa defeituosa aplicam-se aos demais meios de reacção do comprador contra aquela venda: reparação/substituição da coisa, redução do preço, resolução do contrato ou indemnização.
II. Prevendo a Directiva Comunitária nº 1999/44/CE de 25-05-1999, que os meios de defesa do comprador–consumidor de coisa defeituosa ali previstos: reparação/substituição da coisa, redução do preço e rescisão, não possam caducar antes de decorridos dois anos da entrega da coisa em causa, não respeitou tal norma o Decreto-Lei nº 67/2003 de 8/4 que declarando proceder à transposição da Directiva, manteve o prazo de seis meses para a caducidade daqueles direitos que já constava quer da lei de Defesa do Consumidor – Lei nº 24/96 de 31/7 - quer do art. 917º do Cód. Civil.
III.As Directivas Comunitárias têm aplicação directa no ordem jurídica interna – mesmo entre particulares, ou seja, têm efeito horizontal -, mesmo que não transpostas ou transpostas em termos que as violem, desde que haja decorrido o prazo para a sua transposição e sejam suficientemente claras e precisas, se mostrem incondicionais e não estejam dependentes da adopção de ulteriores medidas complementares por parte dos Estados Membros.


Decisão Texto Integral:

Revista nº 2212/06.4TBMAI.P1.S1.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA instaurou, no Tribunal Judicial da comarca da Maia, acção declarativa de condenação com processo comum ordinário, contra as sociedades comerciais BB - COMÉRCIO AUTOMÓVEL, LDA, e CC MOTOR DE PORTUGAL, LDA, pedindo a condenação solidária das duas rés a pagarem-lhe a quantia de 34.677,89€, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência da venda, pela 1.ª ré, enquanto concessionária da 2.ª ré, de um veículo, da marca CC, com um defeito de fabrico ao nível da embraiagem, que lhe causava frequentes avarias e afectava o seu normal funcionamento, acrescida de juros de mora, a contar de 15-03-2006, em relação à indemnização por danos patrimoniais, e a contar da data da citação quanto à indemnização por danos não patrimoniais.
As duas rés contestaram por excepção e por impugnação.
A BB alegou, por excepção, a caducidade da acção, pelo decurso do prazo previsto nos arts. 5.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 09-04, 12.º, n.º 3, da Lei n.º 24/96, de 31-07, e 917.º do Código Civil; e por impugnação, descreve uma diferente versão das causas das avarias do veículo, as quais atribui, não a erro de fabrico, mas a uso excessivo e inadequado da embraiagem.
A CC alegou, por excepção, a sua ilegitimidade passiva e a caducidade da acção; e por impugnação, alegou que, nas várias inspecções feitas ao veículo, nenhum defeito de fabrico foi detectado, admitindo os técnicos que as avarias fossem resultantes da inadaptação da autora ao veículo e, designadamente, da utilização em demasia da embraiagem. Ambas concluindo pela improcedência da acção e a consequente absolvição do pedido.
A autora respondeu à matéria das excepções.
No despacho saneador, foi apreciada e julgada procedente a excepção dilatória da ilegitimidade da ré CC MOTOR DE PORTUGAL, LDA, que foi absolvida da instância (fls. 175-177). E foi remetido para a sentença o conhecimento da excepção peremptória da caducidade da acção (fls. 177).
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou procedente a excepção da caducidade da acção e absolveu do pedido a ré BB - COMÉRCIO AUTOMÓVEL, LDA.
Desta decisão foi interposto recurso de apelação pela autora, tendo na Relação do Porto a apelação sido julgada improcedente.
Mais uma vez inconformada, veio a autora interpor a presente revista, tendo nas suas alegações formulado conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritas e das quais se deduz que aquela, para conhecer neste recurso, levanta as seguintes questões:
a) A indemnização decorrente de venda de coisa defeituosa, não estando prevista quer na Directiva nº 1999/44/CE quer no Decreto-Lei nº 67/2003 de 8/4, apenas está prevista na Lei de Defesa do Consumidor e, por isso, não tem prazo curto, pelo que está sujeita apenas ao prazo geral do art. 309º do Cód. Civil ?
b) De qualquer maneira, o prazo de prescrição previsto no Decreto-Lei nº 67/2003 é inaplicável por violar a referida directiva comunitária ?
c) Caso o tribunal tenha dúvidas sobre a interpretação da Directiva em causa deve ser submetido ao Tribunal de Justiça da União Europeia que sobre a mesma se pronuncie, nos termos do art. 234º do Tratado de Roma ?
d) O Decreto-Lei nº 84/2008 de 21/05 tem natureza interpretativa do Decreto-Lei nº 67/2003 ?

A recorrida BB contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, aqui aplicável porquanto está em causa acção instaurada antes de 1 de Janeiro de 2008 e por força do disposto no n.º 1 do art. 11.º do citado Decreto-Lei n.º 303/2007, o regime introduzido por este diploma legal não se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, que ocorreu em 1 de Janeiro de 2008 (art. 12.º do mesmo decreto-lei ) -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor da conclusões dos recorrentes.
Já vimos acima as concretas questões levantadas pela recorrente como objecto deste recurso.
Mas antes de mais, há que especificar a matéria de facto apurada pelas instâncias e que é a seguinte:
1. Em 11 de Novembro de 2004, a ré BB e a autora declararam verbalmente ajustar entre si que a primeira vendia à segunda, pelo preço de 33.000,00 €, o veículo automóvel de marca CC, modelo .......-......-.... - CD, ano de 2004, a gasóleo, com o exterior de cor cinza titânio, com a matrícula ..............., tendo a segunda declarado aceitar esta compra [al. A) dos factos assentes].
2. O identificado veículo encontra-se registado em nome da autora, através de inscrição datada de 9 de Dezembro de 2004, com o n.º 4370 [al. B) dos factos assentes].
3. A ré BB, à data de 11 de Novembro de 2004, era concessionária da CC MOTOR PORTUGAL [al. C) dos factos assentes].
4. No dia 28 de Janeiro de 2005 a autora accionou o seguro de viagem da CC e o identificado [veículo] foi levado para o concessionário da CC em Vila Real [al. D) dos factos assentes].
5. No dia 14 de Fevereiro de 2005 a autora dirigiu-se à BB, na Maia, onde foi atendida por DD director do serviço de "pós-vendas" da marca [al. E) dos factos assentes].
6. A autora propôs à BB um teste dinâmico à viatura, pela BB ou pela CC, durante duas ou três semanas, para perfazer mais 3.000 - 4.000 km [al. F) dos factos assentes].
7. Durante esse mesmo período, a ré distribuiria à autora um outro [veículo] Mazda 6, com as mesmas características, para verificar se o problema era da deficiente condução da autora [al. G) dos factos assentes].
8. Mas a BB não aceitou esta solução [al. H) dos factos assentes].
9. Com a data de 16 de Setembro de 2003 a CC emitiu um documento denominado "Guia de Reparação", cuja cópia consta de fls. 111 e 112, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido [al. I) dos factos assentes].
10. A autora decidiu manter o contrato mencionado em 1) [al. J) dos factos assentes].
11. Alguns dias decorridos sobre a data de 11 de Novembro de 2004, a autora verificou que do veículo emergia um cheiro a borracha queimada [resposta ao n.º 1 da b.i.].
12. O veículo tinha dificuldades no engate das velocidades [resposta ao n.º 3 da b.i.].
13. De imediato a autora levou o carro à BB, onde foi prometido ver o que se passava [resposta ao n.º 4 da b.i.].
14. No dia 28 de Janeiro de 2005 o carro dos autos teve uma avaria, ficando imobilizado [resposta ao n.º 6 da b.i.].
15. Exalando o mesmo cheiro de borracha queimada, agora mais intenso [resposta ao n.º 7 da b.i.].
16. O transporte do identificado veículo para o concessionário da CC mencionado em 4) efectuou-se contra a vontade da autora, que pretendia que o mesmo fosse levado para a Maia [resposta ao n.º 9 da b.i.].
17. Assim, a autora teve de voltar ao Porto, a fim de levantar um carro de substituição, e com ele seguir para Mirandela [resposta ao n.º 10 da b.i.].
18. Privando-a do almoço e das reuniões marcadas na Câmara Municipal de Mirandela, onde apenas chegou ao final da tarde [resposta ao n.º 11 da b.i.].
19. No dia 14 de Fevereiro de 2005 a autora dirigiu-se à BB, na Maia, onde foi atendida pelo referido DD [resposta ao n.º 12 da b.i.].
20. A autora tinha carta há cerca de 42 anos e pelas suas mãos passaram vários veículos, a saber: "Volkswagen Carocha", "Austin 1100", "Citroen GS - Carrinha", "Citroen BX 16", "Fiat 600", "Peugeot 1 06", "Peugeot 206", "Peugeot 307", "Mitsubishi Carisma", nunca tendo tido qualquer problema com os mesmos [resposta ao n.º 13 da b.i.].
21. O último carro antes do CC foi o "Mitsubishi Carisma", comprado à ré BB, e com o qual a autora circulou mais de três anos sem mudar a embraiagem original, percorrendo 50.000 km sem qualquer problema [resposta ao n.º 14 da b.i.].
22. No dia 28 de Fevereiro de 2005, provinda de Mirandela, a autora voltou a notar na viagem o cheiro a borracha queimada exalado do carro [resposta ao n.º 16 da b.i.].
23. A autora encontrou um senhor com um carro igual ao seu e pediu-lhe para que se sentasse no CC 6 em causa e sentisse o cheiro [resposta ao n.º 17 da b.i.].
24. Tendo ele confirmado o cheiro a borracha queimada exalada do carro [resposta ao n.º 18 da b.i.].
25. 0 CC voltou à BB nesse mesmo dia [resposta ao n.º 19 da b.i.].
26. Em 1 de Março de 2005 a autora levantou o CC 6 da BB, onde lhe comunicaram terem lavado o motor e que já não cheirava a queimado [resposta ao n.º 20 da b.i.].
27. A autora pediu a um mecânico para examinar o CC 6, tendo este experimentado o carro e dito à autora que havia uma anomalia no funcionamento da embraiagem [resposta ao n.º 21 da b.i.].
28. Os problemas de embraiagem do referido veículo surgem no decurso de viagem de meio percurso, em vias rápidas e auto-estradas [resposta ao n.º 22 da b.i.].
29. Onde foi feita a maior parte da quilometragem do veículo [resposta ao n.º 23 da b.i.].
30. A ré BB submeteu a autora a um exame de condução [resposta ao n.º 24 da b.i.].
31. Um engenheiro mecânico, a pedido da autora, assistiu na BB à desmontagem da embraiagem [resposta ao n.º 25 da b.i.].
32. Depois de verificar as peças que se encontravam desmontadas (disco, presa e rolamentos de embraiagem) e com o volante do motor visível, os mencionados componentes apresentavam um forte aquecimento e consequente desgaste prematuro [resposta ao n.º 26 da b.i.].
33. Nessa altura o carro carecia de novo jogo de embraiagem [resposta ao n.º 27 da b.i.].
34. Mas como a BB queria que a autora pagasse metade, o que esta não aceitou, não procederam à sua substituição [resposta ao n.º 28 da b.i.].
35. Uma vez que a ré não aceitou a reparação e/ou substituição do veículo, a autora, atentas as alterações no seu ritmo de vida que a situação provocava, perdeu o interesse na manutenção do mesmo veículo [resposta ao n.º 29 da b.i.].
36. E na consequente prestação da ré [resposta ao n.º 30 da b.i.].
37. Tendo optado por vender o mesmo e comprado outro veículo [resposta ao n.º 31 da b.i.].
38. A autora expediu para a CC na Alemanha, Inglaterra e Japão, uma carta cuja cópia se encontra a fls. 15 e 17, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido [resposta ao n.º 32 da b.i.].
39. Em 18 de Julho de 2005 a autora procedeu à venda do identificado veículo, pelo preço de 22.250, 00 € [resposta ao n.º 33 da b.i.].
40. Em 15 de Junho de 2005, a autora comprou o veículo 00000000, modelo Acord 00000000 Executive, pelo preço de 36.500 € [resposta ao n.º 34 da b.i.].
41. Após a venda do identificado Mazda 6 pela autora, e no concessionário da CC, em Castelo Branco, foi substituída gratuitamente a embraiagem ao comprador do carro [resposta ao n.º 35 da b.i.].
42. A autora chegou a ter o Mazda 6 guardado na garagem, com aversão de o conduzir [resposta ao n.º 36 da b.i.].
43. Não foi a ré BB que procedeu à substituição da embraiagem [resposta ao n.º 38 da b.i.].
44. Os técnicos da ré procederam a várias verificações técnicas ao referido veículo e emitiram a opinião de que o cheiro do qual a autora reclamava provinha do excessivo uso, e abuso, da embraiagem [resposta ao n.º 39 da b.i.].
45. Os técnicos da ré emitiram a opinião de que, ao arrancar na primeira velocidade, a autora imprimia demasiada rotação ao motor com a embraiagem engrenada (ponto de embraiagem) [resposta ao n.º 41 da b.i.].
46. Os técnicos da ré emitiram a opinião de que a autora mostrava alguns sinais de difícil adaptação ao veículo [resposta ao n.º 43 da b.i.].
47. 0 número de chassis do veículo da autora é o 00000000[resposta ao n.º 46 da b.i.].
48. O veículo da autora é de produção posterior a 15 de Maio de 2003 [resposta ao n.º 47 da b.i.].
49. Veículo esse que a autora utilizou e usufruiu durante cerca de 8 meses [resposta ao n.º 48 da b.i.].
50. A autora vendeu o veículo em causa nos autos com uma quilometragem não inferior a 7.600 km e não superior a 8.350 km [resposta ao n.º 49 da b.i.].
51. A circular "Guia de Reparação" data de Setembro de 2003 [resposta ao n.º 50 da b.i.].
52. O carro da autora é de uma série a que já não se aplica a guia de reparação referida em 9) e 51) [resposta ao n.º 52 da b.i.].
53. A embraiagem original foi substituída [resposta ao n.º 53 da b.i.].
54. 0 técnico apontado pela autora, Sr. Eng. EE, que assistiu a uma inspecção nas instalações da BB, no dia 17 de Maio de 2005, declarou então não ser possível verificar qualquer defeito por observação, mas colocando a hipótese de se estar perante uma deficiência na bomba da embraiagem [resposta ao n.º 54 da b.i.].

Vejamos agora cada uma das concretas questões acima referidas como objecto deste recurso.

a) Nesta primeira questão defende a recorrente que a presente acção de indemnização por venda de coisa defeituosa, não estando prevista quer na Directiva nº 1999/44/CE quer no Decreto-Lei nº 67/2003 8/4, apenas está regulada na Lei de Defesa do Consumidor onde não consta qualquer prazo curto de prescrição ou de caducidade, aplicando-se, assim, neste caso o prazo geral do art. 309º do Cód. Civil.
Vejamos.
Antes da publicação da Lei de Defesa do Consumidor – Lei nº 29/81 de 22/08, depois substituída pela Lei nº 24/96 de 31/07 – a venda de coisa defeituosa estava apenas prevista nas normas incluídas no capítulo do Código Civil que regula em geral o contrato de compra e venda, nomeadamente na sua secção VI que tem como epígrafe “ venda de coisa defeituosa”.
O legislador entendeu que a protecção que essas normas davam à generalidade dos cidadão era insuficiente para os compradores que revestissem a natureza de consumidores e, por isso, fez publicar a referida Lei nº 29/81 que veio em defesa dessa classe de cidadãos, embora em termos muito incipientes.
Já na Lei nº 24/96 o legislador foi mais longe na protecção dos direitos dos consumidores, nomeadamente, no seu art. 12º onde regulou o direito de defesa dos consumidores perante o vendedor no tocante à compra de bens defeituosos.
Aí se prevêem as faculdades colocadas ao dispor do consumidor-comprador de reparação da coisa, de exigir a sua substituição, de redução do preço ou de resolução do contrato – nº 1 do citado art. 12º.
Também aí se previu, mas como meio de defesa do vendedor, a necessidade de os defeitos serem denunciados no prazo de 30 dias ou de um ano – conforme se trate de bem móvel ou de bem imóvel -, após o conhecimento do vício correspondente, e de dever a correspectiva acção ser proposta no prazo de seis meses contados da denúncia referida, tudo sob pena de caducidade – números 2 e 3 do citado art. 12º.
Também o seu nº 4 alargou a protecção do consumidor facultando-lhe a possibilidade de reagir perante a venda de coisa defeituosa através de uma acção de indemnização, sujeita aos mesmos prazos de caducidade.
Tudo isto constava da Lei nº 24/96 na sua versão primitiva.
Mas antes da existência destas normas - e mesmo após a sua introdução para os casos de venda de coisa defeituosa em que não esteja em causa como comprador um consumidor –, já havia, como dissemos, as normas do Código Civil.
Assim, o art. 913º deste código manda aplicar à venda de coisa defeituosa o disposto na secção anterior, onde se regula a venda de coisas oneradas, fazendo ressalva das regras privativas constantes dos seus arts. 914º a 922º.
Nas regras do Cód. Civil aplicáveis à venda de coisa defeituosa, prevê-se, no art. 917º, a caducidade da acção de anulação por erro findos os prazos de denúncia do vício previstos no art. 916º ou decorrido o prazo de seis meses após essa denúncia.
Estes prazos de caducidade, estando apenas previstos na lei directamente para a acção de anulação, é pacificamente aceite como sendo aplicáveis às demais formas legais de reacção do comprador perante a venda de coisa defeituosa – reparação ou substituição da coisa, redução do preço, resolução ou indemnização - por interpretação extensiva destas disposições.
Com efeito, tal como referem os Professores A. Varela e P. de Lima, no seu Código Civil , anotado, IV vol., pág. 213 da 4ª edição, parece que foi essa a intenção do legislador. “Além de não se justificar que fique dependente do prazo longo de vinte anos a extinção daqueles direitos em casos de simples erro ( prazo ainda sujeito, como prescricional, a interrupções ou suspensões ), seria incompreensível a desarmonia com o disposto no nº 4 do art. 921º. Na verdade, garantido pelo vendedor o bom funcionamento da coisa vendida, o direito de obter a reparação ou de substituição extinguir-se-ia em curto prazo. Não havendo garantia, o direito de obter a mesma reparação ou substituição, agora com base no art. 914º, estaria sujeito ao prazo longo de prescrição, incoerência que não pode aceitar-se.”
Igual entendimento tem o Prof. João Calvão da Silva , in Compra e Venda de Coisas Defeituosa, Conformidade e Segurança, pág. 77 da 4ª ed., onde se transcreve extensa jurisprudência nesse mesmo sentido, nomeadamente deste Supremo Tribunal, citando-se, como exemplo, o acórdão de 18/02/2003, no processo 03B45.
É esta a regulamentação a que o caso dos autos estaria submetido se não estivesse em causa a compra de uma coisa por consumidor, ou não houvesse regulamentação especial para este sector da actividade económica.
Quer as instâncias quer as partes aceitam que está aqui em causa uma compra efectuada por um consumidor, tal como os citados diplomas legais o definem, pelo inútil se torna o exame dessa situação, aceitando-se essa conclusão.
Já vimos o que o art. 12º da Lei 24/96 estipulava na sua versão primitiva.
Mas antes da ocorrência dos factos aqui submetidos a juízo foi publicada a Directiva Comunitária nº 1999/44/CE de 25 de Maio de 1999 que, no seu considerando (1), prescreve que a Comunidade deve contribuir para a realização de um nível elevado de defesa dos consumidores.
E consta do considerando (17) daquela Directiva que se deve encurtar o prazo durante o qual o vendedor é responsável por qualquer falta de conformidade existente no momento da entrega dos bens, podendo os Estados Membros prever a limitação do prazo durante o qual os consumidores podem exercer os seus direitos, desde que não expire nos dois anos seguintes ao momento da entrega.
Já no seu articulado a Directiva, no seu art. 3º, nº 2, prevê que em caso de falta de conformidade, o comprador tem direito à reparação ou substituição do bem em causa, à redução adequada do preço ou à rescisão do contrato.
E o seu art. 5º, nº 1 prescreve que o vendedor é responsável, nos termos do art. 3º quando a falta de conformidade se manifestar no prazo de dois anos a contar da entrega do bem. E acrescenta que se a legislação da algum Estado Membro previr que o exercício desses direitos esteja sujeito a prazo de caducidade, esse prazo não poderá ser inferior a dois anos a contar da data da entrega.
Finalmente, o seu art. 8º, nº 1 estipula que o exercício dos direitos resultantes da mesma não prejudica o exercício de outros direitos que o consumidor possa invocar ao abrigo de outras disposições nacionais relativamente à responsabilidade contratual ou extracontratual. E o seu nº 2 acrescenta que os Estados Membros podem adoptar ou manter, no domínio regido pela Directiva, disposições mais estritas, compatíveis com o Tratado, com o objectivo de garantir um nível mais elevado de protecção do consumidor.
Esta Directiva tinha o prazo para ser transposta até 1 de Janeiro de 2002 – art. 11º da mesma Directiva.
Porém, o Estado Português apenas procedeu à sua transposição pelo Decreto-Lei nº 67/2003 de 8/4.
Segundo este diploma legal, foram eliminado os prazos de denúncia e de propositura da acção que estavam previstos nos números 2 e 3 do art. 12º da citada Lei nº 24/96 e fê-los incluir no seu art. 5º, mantendo a mesma duração no que toca ao prazo para a propositura da acção de seis meses – cfr. art. 13º do Decreto-Lei nº 67/2003.
Quer o texto da Directiva quer o teor literal do Decreto-Lei nº 67/2003 apenas se referem ao exercício dos direitos ou faculdades colocadas ao dispor do consumidor perante o vendedor de coisa defeituosa de reparação ou substituição da coisa, de redução adequada do preço ou de resolução.
Porém, tal como já referimos acima para a extensão da aplicabilidade do disposto no art. 917º do Cód. Civil, às demais faculdades legais ao dispor do comprador de coisa defeituosa, ali textualmente não previstas, também aqui a aplicabilidade dos prazos de denúncia e de propositura da acção previstos literalmente apenas para os meios de impugnação da venda de coisa defeituosa referidos no art. 4º do Decreto-Lei nº 67/2003 e no art. 3º da Directiva, se deve estender ao outro meio de reacção, previsto legalmente em termos gerais, de indemnização, sob pena de incoerência do sistema legal, ou seja, ao abrigo dos elementos racional e sistemático de interpretação da lei previstos no art. 9º, nºs 1 e 3.
Desta forma, por força do disposto no art. 5º, nº 4 do Decreto-Lei nº 67/2003, a presente acção estaria caducada por ter sido proposta mais de seis meses após a denúncia dos defeitos.
Assim, a questão de saber se a presente acção está submetida às regras deste último diploma, e às regras da Directiva 1999/44/CE tem de ser respondida de forma positiva.
Contendo estes diplomas prazos de caducidade, têm estes de ser aqui aplicados, pelo que não há lugar à aplicação da regra geral do art. 309º do Cód. Civil no sentido de que presente acção pode ser livremente proposta até se verificar o prazo geral de prescrição de vinte anos ali previsto.
Improcede, desta forma, este fundamento do recurso.
Porém, tendo aqueles dois diplomas prazos diversos, saber qual deles é aqui aplicável será objecto da decisão da questão seguinte.

b) Nesta segunda questão a recorrente defende que o prazo de caducidade previsto no Decreto-Lei nº 67/2003 é inaplicável à presente acção por tal violar a Directiva nº 1999/44/CE.
Efectivamente, tendo o Decreto-Lei nº 67/2003 por finalidade expressa no seu preâmbulo a transposição para o ordenamento jurídico português da referida Directiva, o texto do mesmo viola o conteúdo desta, como já afirmamos.
Aquele diploma comunitário, tal como já acima referimos, visou dar um elevado grau de protecção aos consumidores perante a venda de bens defeituosos, tendo proibido os Estados Membros de fixarem prazos de caducidade de propositura de acções de reacção perante a referida venda de bens defeituosos ou com falta de conformidade com o pretendido, inferiores a dois anos contados da entrega dos bens em causa – art. 5º, nº 1 da citada Directiva.
Inexplicavelmente, o legislador do Decreto-Lei 67/2003 manteve esse prazo em seis meses que já vinha da Lei de Defesa do Consumidor e do art. 917º do Cód. Civil.
Desta forma, há que saber se se pode aplicar directamente a Directiva em causa, de forma a afastar a regulamentação do citado decreto-lei de transposição.
O douto acórdão recorrido referiu que a jurisprudência portuguesa tem sido unânime no sentido de que as directivas comunitárias, antes de transpostas para a ordem jurídica portuguesa apenas podem ser invocadas contra o Estado – efeito directo vertical -, mas não podem ser invocadas contra outros particulares – efeito directo horizontal.
Porém tal referência carece de exactidão ou de actualidade.
A nossa jurisprudência era nesse sentido, mas já há algum tempo que deixou de haver essa uniformidade.
Com efeito, no seguimento da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 27-11-2007 ( 07A3954 ) - referido no acórdão recorrido como exemplo de entendimento no sentido da inaplicabilidade horizontal das directivas comunitárias -, entendeu que estas contendo normas claras e precisas, incondicionais e não estando dependentes da adopção de ulteriores medidas complementares por parte dos Estados Membros, são directamente aplicáveis mesmo no seu efeito horizontal, ou seja, mesmo entre os particulares.
E de novo no acórdão deste Tribunal de 28-10-2008, proferido no recurso 3095/08, foi adoptado igual entendimento.
Desta forma, contendo a referida directiva norma precisa, clara, incondicional e não carecida da adopção de medidas complementares por parte do Estado Português para a sua aplicação, entrou em vigor na ordem portuguesa expirado que foi o prazo para o Estado Português proceder à sua transposição.
E é o que resulta do princípio do primado do direito comunitário sobre o direito interno, tal como é defendido por Alessandra da Silveira, in “Princípios de Direito da União Europeia”, Quid Iuris, pág. 115 e segs.
Também assim defendem os professores Vital Moreira e Gomes Canotilho, in “Constituição da República Portuguesa”, anotada, 2007, 1º vol., pág. 263/264: “ trata-se aqui de explicitar uma das consequências jurídicas ( porventura a mais importante ) da adesão a uma organização dessa natureza, a saber, a submissão directa e imediata às normas dela emanadas ( regulamentos, directivas ), nos termos dos respectivos tratados constitutivos… A fórmula adoptada pela Constituição – vigoram directamente na ordem interna – não deixa dúvidas que as normas emitidas por organizações internacionais dotadas de poderes “legislativos” – seja qual for a sua natureza jurídica – vigoram na ordem jurídica interna, como normas “legislativas” internacionais, vinculando imediatamente o Estado e os cidadãos, independentemente de qualquer acto de mediação, seja aprovação ou ratificação por qualquer órgão do Estado, seja publicação no jornal oficial…”
Tal conclusão decorre do disposto no art. 249º do Tratado da Comunidade e do disposto no nº 3 do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, tal como vem sendo afirmado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades, citando como exemplo o acórdão proferido em 10-04-84, no caso Von Colson, no processo nº 14/83.
Por outro lado, tendo a directiva sido objecto de transposição e tendo o diploma de transposição violado aquela, a interpretação deste tem de ser efectuada de forma a harmonizá-lo com a doutrina daquela directiva.
Assim, ensina o Prof. Fausto de Quadros, no seu “Direito da União Europeia”, Almedina, págs. 489 490, onde refere: a transposição das directivas da União Europeia mesmo que errada ou insuficiente, “tem de ser interpretada pelos órgãos nacionais de interpretação e aplicação do Direito, em sentido conforme com a directiva que se pretende transpor”. E acrescenta a seguir: “Isto significa que o particular tem o direito de exigir, perante os órgãos estaduais competentes, a aplicação da directiva, não no sentido que a esta for dado pelo acto de transposição, mas no sentido que, de facto, resulte da letra e do espírito da directiva”.
É esta, também, a opinião defendida pelo Prof. João Calvão da Silva, in Venda de Bens de Consumo, pág. 95 e 96 da 3ª ed.
Como resulta dos factos provados que a presente acção foi proposta cerca oito meses após o encerramento das diligências da ré para reparar o veículo e menos de dezoito meses após a entrega do veículo pela ré à autora, não decorrera, na data da propositura da acção, o prazo de caducidade mínimo admitido pela referida directiva – dois anos - e, por isso, procede, desta forma, este fundamento do recurso e com ele fica prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas pela recorrente.
Com efeito, a pretendida questão sobre a necessidade de reenviar para o Tribunal de Justiça da Comunidade a interpretação da referida norma comunitária, ao abrigo do disposto no art. 234º do Tratado da União Europeia apenas se justifica se o juiz nacional tiver dúvidas sobre a interpretação da norma comunitária, o que não é o caso dos autos, pois no presente litígio a interpretação da citada Directiva não se nos afigura levantar dúvidas, como acima melhor concluímos.
Por outro lado, tendo sido decidido que o Decreto-Lei nº 67/2003 carecia de uma interpretação correctiva, inútil se torna fazer essa interpretação como legal ( norma interpretativa ), através do Decreto-Lei nº 84/08 de 21/05 que veio alterar aquele Decreto-lei 67/2003, dando-lhe a redacção que decorria daquela directiva, tal como a entendemos acima.
Desta forma, será de revogar a decisão que julgou caducado o direito da autora, havendo que condenar a ré BB no pedido tal como o mesmo foi definido na sentença de 1ª instância, sem oposição válida das partes.
No entanto, tendo a recorrente autora formulado um pedido de danos patrimoniais, outro de danos não patrimoniais, e, ainda, um pedido de juros de mora sobre aqueles, a contar de 15-03-2006, no tocante ao primeiro pedido e a contar da data da citação no tocante aos danos não patrimoniais, a sentença de 1ª instância fixou os danos patrimoniais e os não patrimoniais, mas não se pronunciou sobre os juros devidos, certamente por tal ter ficado prejudicado pela decisão de caducidade que veio a tomar.
Desta forma, há aqui que apreciar o pedido de juros, nos termos do nº 2 do art. 715º do Cód. de Proc. Civil, aplicável por força do disposto do art. 726º do mesmo diploma legal.
Ora, tendo em conta que a indemnização dos danos patrimoniais não tendo prazo certo e não tendo a recorrente provado a interpelação extrajudicial da recorrida, os juros de mora serão devidos a contar da citação daquela ré, de acordo com o disposto no art. 805º do Cód. Civil.
Já a indemnização referente aos danos não patrimoniais, tendo em conta a sua iliquidez e a circunstância de o seu cálculo haver sido actualizado à data da sentença de 1ª instância – cfr. fls. 500 -, nos termos daquele art. 805º e do Acórdão do STJ de 9-05-2002 de Uniformização de Jurisprudência publicado no DR I série A, nº 146 de 27-06-2002, os juros de mora apenas se vencerão a contar da data daquela sentença.

Pelo exposto, concede-se a revista pedida e, por isso, se revoga o acórdão recorrido, declarando-se que a presente acção não está caduca, julgando-se consequentemente procedente parcialmente o pedido da autora e condenando-se a ré BB no pagamento àquela da importância de € dezoito mil setecentos e cinquenta euros (18.750,00=14.250,00+4.500,00 ), acrescida juros de mora à taxa legal, contados da data da citação daquela ré, no tocante aos € 14.4500,00 e a partir da data da sentença de 1ª instância sobre a verba parcelar de € 4.500,00.
No mais peticionado, vai a ré BB absolvida.
Custas nas instâncias e na revista por autora e ré BB na proporção do decaímento.


Lisboa, 12 de Janeiro de 2010

João Camilo ( Relator )
Fonseca Ramos
Cardoso de Albuquerque