Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
839/11.1TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: DIVÓRCIO
PARTILHA
Data do Acordão: 03/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / NEGÓCIO JURÍDICO (NULIDADE) - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / REGIME DE BENS.
Doutrina:
- Esperança Mealha, Acordos Conjugais Para Partilha de Bens Comuns, 110.
- Guilherme de Oliveira, RLJ, 129.º Ano, 287.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 286.º, 410.º, N.º1, 1730.º, N.º1.
Sumário :
É nulo, por violação do n.º1 do artigo 1730.º do Código Civil, o contrato-promessa de partilha subsequente a divórcio em que se estipulou que o bem comum será adjudicado à ex-cônjuge, tendo o ex-marido já recebido “o valor de tornas que lhe é devido”, sem se precisar o valor destas e daquele.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - Nas Varas de Competência Mista de Vila Nova de Gaia, com distribuição à 2.ª, AA intentou contra:

BB;

A presente ação declarativa, em processo ordinário.

Alegou, em síntese, que:

Por ocasião do divórcio entre ambos, celebrou com o réu o contrato-promessa de partilhas, que junta;

Comprometeu-se ele, neste, a outorgar procuração a favor dela, em ordem a ser realizada a escritura pública, de modo a ser-lhe adjudicada (a ela) a fração autónoma que a ambos pertencia;

Não emitiu a procuração.

Pediu, em conformidade:

A declaração da execução específica do contrato-promessa de partilha com a adjudicação a ela, autora, da fração;

A condenação do réu a pagar-lhe uma sanção pecuniária, no valor de € 15,00, por cada dia transcorrido desde a citação e até ao trânsito em julgado da sentença que substitua a declaração negocial do réu.

Contestou o réu.

Excecionou a nulidade do contrato-promessa de partilha por haver atribuído aos cônjuges prestações manifestamente desproporcionadas (a autora ficou com bens no valor de € 110.000,00 e o réu com bens no valor de € 30.000,00);

Atribuiu à autora a responsabilidade pelo incumprimento do contrato-promessa de partilhas, porquanto o pagamento de tornas que ele, réu, declarou, no contrato, haver recebido, seria concretizado com a adjudicação do saldo de uma conta bancária titulada pelo casal e a autora, sem conhecimento dele, levantou e fez sua a quantia depositada.

Em reconvenção e na parte que agora importa, pediu:

Que se julgue provada a exceção da nulidade do contrato, com absolvição dele do pedido.

A autora respondeu, mantendo, no essencial, a versão apresentada na petição inicial.

II – A ação prosseguiu e, na devida oportunidade, foi proferida sentença, cuja parte decisória é do seguinte teor:

 “ (…) julgo a presente acção procedente por provada e improcedente a excepção que lhe foi oposta e, em consequência, suprindo a manifestação de vontade do Réu, declaro transmitida para a Autora, pelo valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros), a propriedade do prédio urbano melhor identificado na al. d) dos factos provados e no documento de fls. 176, correspondente à fracção autónoma designada pela letra “P” do prédio urbano descrito sob o n.º 00000000000 da Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia de Mafamude, sem prejuízo dos ónus ou encargos que sobre a mesma eventualmente impendam”.

III – Apelou o réu e o Tribunal da Relação do Porto, com um voto de vencida, decidiu:

“Delibera-se, pelo exposto, em alterar a sentença recorrida e consequentemente:

a) Na procedência da excepção da nulidade, julga-se improcedente o pedido de execução específica do contrato-promessa de partilha e absolve-se o réu deste pedido:

b) No mais, mantêm-se a sentença recorrida, excepto no que vai decidido quanto a custas.”

A propósito, elaborou a Relação o seguinte sumário:

“1 - A nulidade da partilha entre os cônjuges por violação da regra da metade pressupõe que se conheçam os bens e dívidas que compõem os respectivos quinhões.

2 - Não permitindo as estipulações da partilha determinar a composição de ambos os quinhões, ou de um deles, designadamente por um dos cônjuges declarar, em escrito assinado por ambos, que recebeu tornas cujo valor não foi quantificado, fica prejudicada a apreciação do seu equilíbrio, tornando a partilha nula por fraude à lei.”

IV – Pede revista a autora, concluindo as alegações do seguinte modo:

1 - O presente recurso vem interposto do douto Acórdão de fls .... , que deliberou alterar a sentença recorrida e, em consequência julgar improcedente o pedido de execução especifica do contrato promessa de partilha devido à procedência da excepção de nulidade do contrato.

2 - O contrato-promessa celebrado, só poderia ser posto em causa por qualquer uma das circunstâncias referidas na lei civil, nomeadamente por simulação, falta de consciência da declaração, erro na declaração, sobre os motivos, sobre o objecto, coação, dolo, incapacidade, a que se referem os artigos 240.º, 244.º, 246.º, 251.º, 252.º, 253.º e 257.º , todos do Código Civil.

3 - A recorrida apesar de ter alegado factos susceptíveis de pôr em causa a validade do contrato promessa, não logrou provar em juízo tais factos, veja-se a esse respeito a resposta negativa dada aos quesitos 7.º, 8.º e 13. º da base instrutória, assim, como a resposta dada ao quesito 10.º a que se respondeu provado apenas que o réu declarou no contrato referido em A) que tinha recebido tornas, dai que o Tribunal a quo tenha concluído e bem, pela não verificação da violação da regra da metade, prevista no artigo 1730.º do Cód. Civil.

4 - Os valores dos bens materiais, dependem a cada momento, de factores imprevisíveis, mas que não podem levar à invalidação dos respectivos negócios, sob pena de gerar o caos no mundo negocial, pondo seriamente em causa o princípio da estabilidade e segurança jurídicas "rebus sic stantibus e pacta sunt servanda", que são valores primordiais de qualquer ordenamento jurídico.

5 - Se o recorrido declarou ter recebido tornas a título de igualação, essa declaração torna-se numa confissão extra-judicial, a qual só poderá ser impugnada, mediante alegação de erro ou vicio, a qual até foi alegada em sede de incumprimento do contrato, mas cujo pedido não foi admitido.

6 - O Tribunal não pode substituir-se à vontade das partes exarada no contrato promessa de partilha nos autos, e agir como um "polícia" que pretende a todo o custo saber as tornas a que cada um dos cônjuges tem ou não direito, quando os próprios não viram necessidade disso no momento da celebração do contrato.

7 - No caso dos autos não se verifica qualquer fraude à lei que possa acarretar a nulidade do contrato promessa de partilhas, porquanto o negócio jurídico celebrado é válido, não violou a chamada regra da metade, como o próprio Acórdão recorrido reconhece, nem a recorrida logrou provar qualquer vicio da vontade que possa colocar em causa a validade do contrato e das declarações ai apostas.

8 - O douto Acórdão recorrido, ao julgar improcedente o pedido de execução especifica do contrato promessa de partilha, violou expressamente as disposições constantes dos artigos. 286.º, 290.º, 294.º, 342º, n. ° 1, 830.° e 1730.º, n.° 1 do Código Civil.

9 - Como tal deverá ser substituída por douto Acórdão que o revogue, na parte em que julga improcedente o pedido de execução específica do contrato promessa de partilha, em consequência, confirme o teor da decisão de 1.ª instância.

Contra-alegou o réu, batendo-se pela improcedência do recurso. E, em ampliação do objeto deste, para o caso de colherem os argumentos da contraparte, pelo julgamento de procedência dos “fundamentos em que o ora recorrido decaiu, julgando-se a acção improcedente.”

 V – Face às conclusões das alegações, as questões a resolver consistem em saber se:

Se deve ter o contrato-promessa como válido por não violar o disposto no artigo 1730.º, n.º1 do Código Civil;

Deverá, em consequência, ser, em execução específica do mesmo, suprida a vontade da ré.

 No caso de procedência dos argumentos da recorrente, haverá ainda que considerar a pretendida ampliação do objeto do recurso.

VI – Após alteração pela Relação, vem provada a seguinte matéria de facto:

a) De documento designado como “CONTRATO-PROMESSA DE PARTILHA”, outorgado em 25.02.2005, em que intervêm como primeiro contraente o ora réu e como segunda contraente a ora autora, foi pelos outorgantes declarado que nessa data foi decretado o divórcio do casam e que existe um bem pertencente ao mesmo; declaram ainda que o bem comum do casal a partilhas por escritura pública é a fracção autónoma designada pela letra “P”, correspondente a uma habitação com o n.º00 no primeiro andar, com entrada pelo n.º00 do prédio urbano sito na Rua ................., em Mafamude, Vila Nova de Gaia, descrita na Conservatória sob o n.º000000; declaram ainda que todos os demais bens são próprios ou serão adjudicados por acordo a cada um dos contraentes e encontram-se já em poder do respectivo titular ou futuro adjudicatário, designadamente os veículos automóveis Opel Corsa 00-00-00, que fica a pertencer à segunda contraente, e o veículo automóvel 00-00-00 (rasurado manualmente para 00) que fica a pertencer ao primeiro outorgante; declaram ainda que pelo referido contrato os contraentes prometes proceder à partilha do bem imóvel adjudicando-o à segunda contraente, tendo o primeiro já recebido o valor de tornas que lhe é devido, declarando o primeiro contraente que outorgará uma procuração a favor da requerente concedendo-lhe poderes para proceder à partilha nos termos indicados, celebrando-se a escritura após o pagamento da dívida hipotecária ao Montepio Geral; declaram por último que a segunda contraente tomou já posse exclusiva do imóvel que lhe vai ser adjudicado e que quaisquer alterações ao contratado só serão validades se convencionadas por escrito, com menção de cada cláusula eliminada.

b) No âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 00da 1ª Conservatória de Registo Civil de Vila Nova de Gaia, em que eram requerentes BB e AA, foi decretado, em 25.02.2005, o divórcio de autora e réu, declarando-se em acta de conferência que são homologados os acordos relativos à prestação de alimentos entre os cônjuges e à atribuição da casa de morada de família, relacionando o casal o imóvel aludido em A) como verba única da relação de bens comuns, com o indicado valor de € 40.000,00.

c) De documento designado como “Acordo” assinado por autora e réu, consta como teor que os subscritores acordam livremente que se divorciaram por mútuo consentimento e que no acordo quanto a alimentos ficou estipulado que o requerente marido paga, a título de alimentos, à requerente mulher, a quantia mensal de quinhentos euros; acordam que a requerente mulher fica obrigada a suportar, com tal quantia, os alimentos do filho dos requerentes, com excepção dos livros escolares, que serão pagos pelo pai; para além do mencionado o requerente suportará ainda os encargos do veículo Opel Corsa pertencente à requerente mulher, a Contribuição autárquica do imóvel sito na Rua ........, n.º00, 00 andar, 00, Mafamude, Vila Nova de Gaia, bem como a prestação bancária a pagar ao Montepio Geral relativa ao mesmo imóvel.

d) Sob o n.º00000000000-0 da 2ª Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia de Mafamude, encontra-se descrito o prédio urbano correspondente a habitação no 0º andar 00, com a área de 54m2, encontrando-se a aquisição registada desde 16.06.1988 em nome de autora e réu, por o terem adquirido a ........ Lda, encontrando-se registada por apresentação datada de 16.06.1988, a constituição de uma hipoteca voluntária sobre a fracção, a favor da Caixa Económica Montepio Geral, com fundamento em empréstimo e destinada a assegurar um montante máximo de PTE 5.969.328$00.

e) Corre termos sob o n.º3620/09.4TBVNG do 2º juízo cível deste tribunal um processo de inventário em que é requerente BB e requerida AA, que deu entrada em 02.04.2009 por requerimento inicial apresentado pelo ora réu, com o teor constante de fls. 178 a 180, apresentando ainda o aqui réu resposta a uma oposição da autora, tendo a resposta o teor de fls. 181 a 187, pugnando o aqui réu pela natureza nula do contrato-promessa que aqui se discute.

f) Na sequência de notificação efectuada à aqui autora em sede de processo de inventário para vir justificar qual o montante em dinheiro entregue ao aqui réu para pagamento de tornas, a autora apresentou a justificação constante de fls. 153, cujos demais termos aqui se dão por reproduzidos.

g) No ano de 2005, o imóvel referido em a) e d) tinha um valor não superior a € 40.000,00.

h) O veículo automóvel 00 mencionado em a), valia, à data da sua aquisição em Março de 2004, cerca de € 35.000,00.

i) O veículo automóvel 00 mencionado em a), valia, à data da sua aquisição em Janeiro de 2003, cerca de 13.000,00.

j) Entre os bens comuns aludidos em a), sem especificação, incluía-se o recheio da casa de habitação do casal.

j1) Alguns dos móveis que constituíam o recheio da casa de habitação do casal ficaram na posse da autora.

k) À data referida em a) o casal era titular do saldo de € 25.000,00 mais juros numa conta a prazo n.º000000000000000 MG Poupança TOP no Montepio Geral.

l) A aplicação em questão apenas se vencia em Dezembro de 2005, estando então a render juros.

m) O réu declarou no contrato referido em a) que tinha recebido as tornas.

n) No início de Dezembro de 2005 a autora, sem conhecimento ou autorização do réu, procedeu ao levantamento da totalidade do montante depositado na conta aludida em k).

o) E recusou sempre entregar tal quantia ao réu.

p) A conta aludida em k) foi aberta na constância do matrimónio.

VII -

O n.º1 do artigo 1730.º do Código Civil dispõe que:

Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.

Em anotação a este artigo, escreveram Pires de Lima e A. Varela:

“Quando, por conseguinte, no artigo 1730.º se prescreve que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista fixar a quota parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução e partilha do património comum…”

No ato de partilha subsequente à dissolução, há-de, pois, imperativamente, atribuir-se a cada um dos cônjuges metade do ativo e metade do passivo.

Não tolera a lei atribuição diferente.

A redação da primeira parte do n.º1 mostra claramente que a lei se preocupou em que cada um dos cônjuges participe forçosamente por metade (Cfr-se Pires de Lima e A. Varela, ob. e loc. citados, início do ponto 4.º), de sorte que se deve entender que a censura legal incide não só nos casos em que se violou essa regra da metade, como naqueles em que do contrato não constam elementos que permitam ajuizar sobre a observação desta.[1]

No contrato-promessa que autor e ré celebraram e que está junto a folhas 9 e seguintes, referiram que “existe um bem comum pertencente ao casal” que será adjudicado à “Segunda Contraente, tendo o Primeiro Contraente recebido já o valor de tornas que lhe é devido.”

Está aqui um comprometimento de partilha em que não se pode determinar se cada um dos ex-cônjuges iria participar ou não participar por metade no ativo da comunhão. À contraente foi adjudicado o imóvel contante desta, mas não se sabe se o autor, de tornas, recebeu metade do valor dele. A expressão “valor de tornas que lhe é devido”, não permite qualquer conclusão sobre a igualização da partilha.

VIII – Por força do n.º1 do artigo 410.º ao contrato-promessa são aplicáveis as disposições relativas ao contrato-prometido, com ressalvas que aqui não importam.

É, pois, aquele nulo se este o for.

O mencionado n.º1 do artigo 1730.º, não só retira da disponibilidade das partes o conteúdo do acordo de partilhas no que respeita à não igualização, como fere de nulidade a sua violação.

Nem outra coisa se pode retirar da expressão “sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.”

A terminologia do Código Civil é clara e categórica, no sentido da classificação das invalidades do ato jurídico, levada a cabo, mormente, nos artigos 285.º e seguintes. Onde se lê “nulidade” não suporta a lei outra interpretação que não seja a de que, efetivamente, de nulidade se trata.

A nulidade – diz o artigo 286.º - pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal. Existindo, pois, no processo, factualidade suficiente, o tribunal, independentemente da posição das partes, deve declarar a nulidade e decidir a causa em conformidade.

Não há qualquer intromissão, mas antes o cumprimento do que a lei lhe impõe.

É de manter o decidido no acórdão recorrido, ficando prejudicado o conhecimento da ampliação do objeto do recurso.

IX – Face ao exposto, nega-se a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 5 de Março de 2013

João Bernardo (Relator)

Oliveira Vasconcelos

Álvaro Rodrigues

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[1] Na RLJ, 129.º Ano, 287, Guilherme de Oliveira refere ser válido o contrato-promessa de partilha em que se prevê “que um cônjuge fique com todos os bens comuns, embora tenha de dar tornas ao outro no valor de metade daquele património”.
Justifica, dizendo que “…não se viola o artigo 1730.º, porque a previsão das tornas, no valor de metade do património comum, reconhece e  satisfaz o direito que cada cônjuge tem a metade do valor dos bens comuns.”
E escreve, em nota de pé de página, que:
“… pelo contrário, a promessa de partilha não precisa de ser proibida porque o artigo 1730.º vigia a utilização que os cônjuges façam dela, e considera-a nula nos casos em que o acordo desvirtua o propósito lícito da divisão por metade do património comum.”
Não só o caso ali pensado é diferente do nosso, por prever tornas no valor de metade do património comum, como cremos poder inferir das demais palavras deste Ilustre Professor que a nulidade alcança os acordos cujos termos não revelam que tenha sido observada a igualização imposta por aquele preceito.
 Veja-se também a este propósito, Esperança Mealha, Acordos Conjugais Para Partilha de Bens Comuns, 110.