Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01S2172
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MÁRIO TORRES
Descritores: ESTADO ESTRANGEIRO
IMUNIDADE JURISDICIONAL
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE DESPEDIMENTO
Nº do Documento: SJ200211130021724
Data do Acordão: 11/13/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 10085/00
Data: 03/07/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: DL 48295 DE 1961/04/18.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1984/05/11 IN BMJ N337 PAG305.
ACÓRDÃO STJ DE 1997/02/04 IN BMJ N464 PAG473.
ACÓRDÃO T REL LISBOA DE 1989/07/12 IN CJ ANOXIV TIV PAG178.
ACÓRDÃO T REL PORTO PROC8356 DE 2000/02/23.
ACÓRDÃO T REL PORTO DE 1981/01/05 IN CJ ANOVI TI PAG183.
ACÓRDÃO STJ DE 1991/01/30 IN BMJ N403 PAG267.
Sumário : I - A regra consuetudinária de direito internacional segundo a qual os Estados estrangeiros gozam de imunidade de jurisdição local quanto às causas em que poderiam ser réus não foi revogada pela Constituição da República Portuguesa de 1976, uma vez que, na sua formulação mais recente, essa regra não contraria nenhum dos preceitos fundamentais da Constituição.

II - Essa formulação conforme ao sistema constitucional português é a concepção restrita da regra da imunidade de jurisdição, que a restringe aos actos praticados jure imperii, excluindo dessa imunidade os actos praticados jure gestionis; isto é, a imunidade não abrange os actos praticados pelo Estado estrangeiro tal como o poderiam ter sido por um particular, mas apenas os que manifestam a sua soberania.

III - Quer a extensão da aludida regra, quer os critérios de diferenciação entres estes tipos de actividade, não têm contornos precisos e evoluem de acordo com a prática, designadamente jurisprudencial, dos diversos Estados que integram a comunidade internacional.

IV - Relativamente aos litígios laborais, designadamente acções fundadas em despedimento ilícito, essa prática não tem reconhecido a imunidade do Estado estrangeiro quando o trabalhador exerce funções subalternas, e não funções de direcção na organização do serviço público do réu ou funções de autoridade ou de representação

V - Não beneficia de imunidade de jurisdição o Estado estrangeiro contra o qual foi intentada acção de impugnação de despedimento, por empregada doméstica, que exercia a sua actividade, consistente essencialmente em tarefas de limpeza e de confecção de refeições, na residência do respectivo Embaixador, sendo essa relação laboral regulada pelo direito português em termos idênticos ao vulgar contrato de trabalho para prestação de serviços domésticos celebrado com qualquer particular.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório:

A, intentou, em 27 de Janeiro de 1999, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, contra o Estado de Israel, representado pelo respectivo Embaixador em Lisboa, "acção declarativa de condenação, com processo comum e sob a forma sumária, emergente de contrato individual de trabalho", pedindo se declarasse ilícito o seu despedimento e se condenasse o réu a pagar-lhe a quantia de 2019749$00, acrescida de juros de mora (cfr. petição corrigida a fls. 33 a 40).

Alegou, para tanto, em síntese, que: (i) foi admitida ao serviço do réu, em 18 de Fevereiro de 1990, pela sua Embaixada em Lisboa, como empregada doméstica, para exercer a sua actividade na residência do respectivo Embaixador; (ii) tais funções consistiam, além do mais, na confecção de refeições para o Embaixador e seus convidados, sendo que, quando o número de convidados era elevado (mais de 10), era contratado pessoal auxiliar e uma cozinheira, mas, de qualquer modo, os trabalhos eram executados sob a sua responsabilidade e orientação; (iii) o serviço por si prestado foi sempre muito apreciado e elogiado pelos Embaixadores que antecederam o actual titular; (iv) em 1 de Junho de 1998, telefonaram-lhe dos serviços da Embaixada a informá-la de que o Embaixador não estava satisfeito com os serviços por si prestados e que estava despedida.

Foi proferido despacho (fls. 46) determinando a notificação do réu para informar se aceitava submeter-se à jurisdição portuguesa.

O réu respondeu através da sua Embaixada em Lisboa e via Ministério dos Negócios Estrangeiros, conforme consta de fls. 49, lembrando que à Embaixada era assegurada imunidade jurisdicional pela Convenção de Viena sobre relações diplomáticas e a requerer um prazo de 60 dias para análise da questão, o que foi deferido (despacho de fls. 52).

Decorrido esse prazo sem que o réu tivesse dito algo de novo nos autos, foi proferido despacho a ordenar a sua citação para contestar e "esclarecer se renuncia à imunidade jurisdicional, advertindo que se nada disser se considera renunciada" (despacho de fls. 52 verso).

Através do documento junto a fls. 73 dos autos, a Embaixada de Israel informou o tribunal, que "( ...) de acordo com instruções recebidas de Jerusalém (...) é forçada a fazer uso da sua imunidade diplomática jurisdicional".

Foi ordenada a citação do réu, para contestar, o que não fez, pelo que, decorrido o prazo da contestação, foi proferida sentença que, nos termos do preceituado no artigo 86.°, n.° 2, do Código do Processo do Trabalho, condenou o réu no pedido, "sem custas" (fls. 89).

O representante do Ministério Público junto do Tribunal do Trabalho de Lisboa, invocando o disposto no artigo 3.°, n.° 1, alíneas a) e f), da Lei n.° 60/98, de 27 de Agosto (Estatuto do Ministério Público), agravou desta decisão para a Relação de Lisboa (fls. 90 a 96), que, por acórdão de 7 de Março de 2001, processo n.º 10 085/00 (fls. 114 a 122 - entretanto publicado em Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, 2001, tomo II, pág. 142), concedeu provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida, declarou a imunidade de jurisdição do réu e a incompetência absoluta do tribunal, absolvendo o réu da instância.

Para tanto, desenvolveu a seguinte fundamentação:

"A autora pretende a condenação do Estado de Israel, pelo seu despedimento sem justa causa.

Invoca para tanto, como lei violada, a lei nacional portuguesa - artigos 29.°, n.° 3, e 30.° do Decreto-Lei n.° 235/92, de 24 de Outubro, e artigos 3.°, n.º 1, e 12.°, n.° 1, alínea a), do Regime Jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.° 64-A/89, de 27 de Fevereiro.

Alegou que foi admitida ao serviço do réu, pela sua Embaixada em Lisboa, como empregada doméstica, em 18 de Fevereiro de 1990; a sua actividade profissional era exercida na residência do Embaixador, em Lisboa; as funções exercidas consistiam na limpeza e arrumo da casa, lavagem e tratamento de roupas, passar a ferro, cozinhar e quaisquer outras relativas à vida doméstica; confeccionava habitualmente os almoços para o Embaixador e seus convidados, e, de vez em quando, também preparava os jantares; somente quando o número de convidados era elevado (mais de dez) é que o Embaixador contratava uma cozinheira e pessoal auxiliar, mas, de qualquer modo, os trabalhos eram executados sob a responsabilidade e orientação da autora; no dia 1 de Junho de 1998, telefonaram dos serviços da Embaixada, que o Senhor Embaixador não estava satisfeito com os serviços por ela prestados, por motivo da sua falta de disponibilidade, pelo que estava despedida.

Decorre, assim, dos próprios termos da acção, que o trabalho da autora era prestado a título permanente na residência do Embaixador, como empregada doméstica, mediante um contrato de trabalho subordinado.

O caso dos autos é similar ao decidido no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Maio de 1984, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 337, pág. 305 e seguintes, que analisou largamente as questões jurídicas que se colocam relativamente à imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros e o alcance dessa imunidade - se deve ser plena, ou seja, sem restrições, ou se deve ser restrita, ou seja, apenas com aplicação aos actos jus imperii, excepcionando os actos jus gestionis.

Tendo em conta o interesse doutrinal do referido acórdão, passa a transcrever-se, em larga medida, o que nele foi expendido:

«Fica então por determinar se a Constituição da República revogou o costume internacional sobre imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros e, no caso negativo, se a acção pode ser submetida à jurisdição portuguesa, já que o artigo 14.º, alínea a), do Código de

Processo do Trabalho de 1962 (reproduzido no artigo 66.º, alínea a), da Lei n.º 82/77), e os artigos 65.°, alíneas a) e d), e 65.º-A do Código de Processo Civil atribuem competência exclusiva aos tribunais portugueses para conhecimento das questões emergentes de relação de trabalho subordinado.

2. Não existe tratado ou convenção vinculativo para o Estado Português a regular a matéria em causa.

Há, por isso, que encarar a questão perante a universalmente aceita regra consuetudinária de direito internacional segundo a qual, em face da independência recíproca dos Estados e de harmonia com o antigo princípio par in parem non habet jurisdictionem os Estados estrangeiros gozam da imunidade de jurisdição local quanto às causas em que poderiam ser réus.

Convém desde já assentar em que essa regra não foi atingida por qualquer preceito constitucional português. Os artigos 17.º, 18.º, 19.°, n.º 1, 51.º e 52.º da Constituição da República, assegurando, além do mais, o direito fundamental ao trabalho, encontram-se naturalmente formulados numa perspectiva de direito interno. Não podem, só por si, basear a conclusão de que esse direito é aplicável em quaisquer casos de relações de trabalho estabelecidas por outros Estados com cidadãos portugueses residentes em Portugal.

O mesmo é de dizer do actual artigo 20.º, n.º 2, ao assegurar a defesa de direitos perante os tribunais portugueses, preceito que de igual modo pressupõe a jurisdição desses tribunais quanto à matéria controvertida e aos respectivos titulares.

Por seu lado, o actual artigo 293.º, ressalvando o direito anterior à Constituição, apenas exceptua aquele que seja contrário a ela ou aos princípios nela consignados. O que força, em última análise, a reverter ao ponto prévio da aplicabilidade da lei interna portuguesa a cada relação jurídica em função do seu conteúdo e dos seus titulares.

Todos esses preceitos têm de ser conjugados com o artigo 8.º, n.º 1, da mesma Constituição, de harmonia com o qual as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.

O mencionado princípio de direito internacional sobre imunidade de jurisdição tem, por esta via, assegurada a sua recepção automática no direito interno português desde que, por um lado, continue vivo no consenso e na prática internacionais e, por outro lado, na sua formulação mais recente não seja contrário a nenhum dos seus preceitos fundamentais.

Isto impõe considerar antes de mais, embora muito sumariamente, em que termos aquele princípio actualmente se define e afirma.

3. A imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros continua a ser considerada como princípio fundamental em direito internacional.

Posta de lado a concepção absoluta dessa imunidade, de há muito vem sendo admitida a distinção entre acta jure imperii e acta jure gestionis, para, restritivamente, só quanto aos primeiros a imunidade ser admitida como salvaguarda da soberania e igualdade dos Estados nas suas relações internacionais. A imunidade relativa encontra a sua justificação no facto de os actos praticados jure gestionis revestirem carácter privado, colocando o Estado estrangeiro ao nível de um particular, sendo portanto estranhos ao exercício da soberania.

Esta concepção restrita da imunidade anda estreitamente associada ao desenvolvimento e importância que de há anos vêm revestindo as operações comerciais entre os Estados, efectuadas por organismos muitas vezes de natureza estatal, e que não se vê razão para subtrair à jurisdição do Estado local.

A tal ponto essa actividade marca a imunidade restrita, que se chega, nesta perspectiva, a distinguir entre actos de soberania e actos de comércio, compreendidos estes no seu sentido mais amplo (cfr. Jacob Dolinger, em Revista Forense, Janeiro a Março de 1982, pág. 72).

Num seu desenvolvimento, admite-se geralmente na prática internacional negar a imunidade também quando se trate de acções relativas a bens imóveis ou a acções sucessórias em que, a título privado, sejam partes representantes diplomáticos.

Reconhece-se, porém, que estes representantes beneficiam da isenção de jurisdição civil nos litígios sobre o exercício de uma profissão liberal para além das funções oficiais que lhes competem. Esta isenção está tão radicada na prática internacional que, ao negá-la, o artigo 31.º da Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas - aprovada para adesão entre nós pelo Decreto-Lei n.º 48295, de 27 de Março de 1968 - é apontada por Malintoppi, não como uma simples codificação do costume actualmente em vigor, mas sim como uma forma de desenvolvimento progressivo do direito internacional em base convencional (em Enciclopédia del Diritto, volume XII, pág. 594). Esse preceito da Convenção, ao não reconhecer a imunidade de jurisdição civil e administrativa nas acções referentes a qualquer actividade profissional ou comercial exercida pelo agente diplomático no Estado acreditador fora das suas funções oficiais, revela como traços salientes:

a) A sua não conformidade com a apontada regra consuetudinária de isenção, que assim continua a afirmar-se na prática internacional dos Estados não signatários;

b) A sua restrição aos actos profissionais ou comerciais estranhos às funções oficiais, e que, portanto, constituam por natureza objecto de relações de direito privado.

4. Mas para além destes aspectos convencionados, aliás em si mesmos de fronteiras algo imprecisas, e restritos à actuação dos próprios agentes diplomáticos, subsistem as maiores incertezas sobre o exacto domínio da referida regra consuetudinária de imunidade de jurisdição, inclusive quanto aos actos que traduzam uma relação directa com os Estados.

O critério geral fornecido pela adopção da categoria dos actos jure gestionis, subtraídos àquela regra, continua a prestar-se a doutrina hesitante e a jurisprudência em plena fase evolutiva.

É o que decorre de trabalhos recentes sobre a matéria, tais como no direito espanhol o de Angel Chueca Sancho (na Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, 65 (1982), pág. 113 e seguintes), onde é apontada a incerteza da jurisprudência, mantendo nuns casos o critério absoluto, para noutros admitir a imunidade restrita; o de R. Higgins (na Netherlands International Law Review, volume XXXIX (1982)), onde para determinação dos actos sujeitos à imunidade se refere vir-se apontando como decisivo, mais do que o fim visado, a natureza do próprio acto; e o de Leo J. Bouchez (no Netherlands Yearbook of lnternational Law, vol. X (1979), pág. 3 e seguintes), onde se nota que, havendo numerosos Estados onde o comércio com o estrangeiro constitui monopólio estatal, as actividades comerciais, industriais e financeiras tendem a ficar compreendidas na actividade soberana, pelo que os tratados de comércio com o estrangeiro que contenham cláusulas de submissão à jurisdição local são tidos apenas como concessão unilateral excepcional, não se prestando, por isso, a generalizações.

É então forçoso reconhecer que a prática internacional nesta matéria de imunidade dos Estados estrangeiros perante as jurisdições nacionais varia de país para país, e não se conseguiu até agora na doutrina e na jurisprudência de cada um deles uma delimitação clara dos actos sujeitos a essas jurisdições.

Daí também que se tenha como especialmente importante a prática judicial de cada Estado para solução dos casos ocorrentes.

5. Quanto propriamente à imunidade jurisdicional do ... no exterior, não é admitida geralmente pela doutrina quando no território de outro Estado proceda como se fosse particular, tomando-se assim subditus temporarius, como acontece com a implantação de uma agência de negócios no estrangeiro.

O direito à imunidade é considerado irrenunciável, por inconstitucional, e qualquer sentença declarativa, constitutiva, condenatória, mandamental ou executiva proferida contra o ... em inobservância dessa imunidade é ineficaz e não poderia ser homologada pelo Supremo Tribunal Federal (neste sentido Pontes de Miranda, Comentário ao Código de Processo Civil, tomo II (1973), págs. 179 e 181).

Está do mesmo modo ínsito nesta posição o próprio conceito de actos jure gestionis com todas as incertezas a que continua a prestar-se.

De notar também o desequilíbrio existente no direito ... e apontado pela doutrina, entre a situação dos Estados estrangeiros perante os tribunais brasileiros e a posição do ... perante as jurisdições desses Estados. É que, enquanto o artigo 125.º, II, da Constituição ... dá competência aos juízes federais para julgarem causas entre um Estado estrangeiro e pessoas domiciliadas ou residentes no ... , no que respeita à submissão do ... à jurisdição estrangeira não é admissível, como atrás ficou dito, a renúncia à imunidade, ficando apenas aberta a faculdade de submissão à arbitragem no exterior (G. J. Dolinger, na Revista Forense, citada, pág. 79). O que uma vez mais coloca em primeiro plano caracterizar os actos subtraídos àquela imunidade, sem menores incertezas do que as já apontadas na prática internacional.

6. Essas incertezas encontram-se também, e em elevado grau, no campo das relações de trabalho entre cidadãos do Estado local e o Estado ou organismos do Estado estrangeiro nele representado.

Neste domínio é, porém, mais vincada a tendência para o reconhecimento da imunidade.

Não é que se adira ao princípio da imunidade absoluta. Diferentemente, submete-se à jurisdição do Estado local o conhecimento de obrigações contratuais de trabalho, mas exceptuando-se os actos de nomeação, designação ou demissão.

Em diversos casos presentes a tribunais italianos, o acto de demissão de pessoa posta em Itália ao serviço de Estado estrangeiro foi considerado subtraído à jurisdição desses tribunais, quer porque o empregado de um Estado é por definição um empregado público, quer porque se trata de actividade integrada nos fins públicos soberanos do Estado empregador. Mais genericamente ainda, em relação a pessoas contratadas para prestar serviço em Embaixadas estrangeiras, tem a jurisprudência italiana julgado, ao mais alto nível, que essa actividade, ou melhor, essa relação não reveste natureza privada (veja-se Sompong Sucharitkul, em Recueil des Cours, da Academia de Direito Internacional da Haia, tomo 149 (1976), págs. 130 e 131).

A mesma orientação segue, de um modo geral, a mais recente jurisprudência espanhola do Tribunal Supremo e do Tribunal Central do Trabalho, especificamente sobre casos de despedimento de funcionários administrativos espanhóis ao serviço de organismos estaduais ou de representações diplomáticas ou consulares estrangeiras (cfr. Chueca Sancho, local citado, págs. 137 a 146).

Não poderá partir-se destes exemplos para concluir por uma prática internacional de que eles seriam simples aplicações ou confirmações. Mas pode seguramente afirmar-se que:

a) O princípio da imunidade restrita não é, ou não é ainda, universalmente aceite em termos muito amplos e definidos;

b) A aplicação que dele se faz em matéria de relações de trabalho está longe de, em geral, admitir a submissão destas, como tal, à jurisdição do Estado onde o trabalho foi prestado.

A dificuldade de orientação aumenta, pelo menos no sentido ampliativo do âmbito da jurisdição local, quando se tenha presente que, como expressivamente se consignou no artigo 38.º, alínea a), do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, o costume internacional só é de observar quando traduza uma prática geral aceita como juridicamente obrigatória.

7. É precisamente com as dúvidas apontadas sobre o seu conteúdo e sobre a sua marcha evolutiva que a regra consuetudinária de imunidade de jurisdição deve, por força do citado artigo 8.º, n.º 1, da Constituição da República, ser aplicada na ordem jurídica portuguesa com a devida segurança.

Entre nós, desde longe a doutrina a tem admitido na forma restrita, com o reconhecimento da não isenção dos Estados nas acções relativas a bens imóveis e ao forum hereditatis, ou quando, expressa ou tacitamente, a ela renunciam (neste sentido Machado Vilela, em Tratado Elementar Teórico e Prático de Direito Internacional Privado, vol. II, págs. 143 e 144).

Por outro lado, e como se disse, a jurisprudência reveste aqui uma particular importância, por representar a forma de aceitação do mencionado princípio na ordem jurídica nacional.

Nesta perspectiva, assinala-se que este Supremo Tribunal já teve ocasião de pronunciar-se sobre a matéria, afirmando a imunidade de jurisdição com um amplo alcance, quanto à generalidade das causas em que poderiam ser réus Estados estrangeiros, ainda que como pessoas de direito privado.

Apenas exceptua, tal como aquela doutrina, os casos de renúncia, expressa ou tácita, e as acções sobre imóveis ou relativas ao forum hereditatis (acórdão de 27 de Fevereiro de 1962, em Boletim do Ministério da Justiça, n.º 114, pág. 447).

Esta jurisprudência sobre isenção da jurisdição local havia antes sido afirmada no acórdão de 14 de Dezembro de 1923, confirmativo do acórdão da Relação de Lisboa, de 9 de Junho de 1922, quanto a penhora em navios pertencentes a outro Estado, ainda que se dediquem ao comércio (em Gazeta da Relação de Lisboa, ano 38.º, n.º 6, pág. 86 e seguintes).

Concretamente no campo das relações de trabalho, a 3.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se repetidamente, e sempre no sentido da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros aos quais, com base em contrato de trabalho, seja pedido por trabalhadores portugueses e em tribunais portugueses o pagamento de salários.

Assim julgaram os acórdãos de 14 de Março de 1961 (em Apêndice ao Diário do Governo, n.º 98, de 3 de Maio de 1962), e de 23 e 30 de Maio, 14 e 20 de Junho e 11 de Julho do mesmo ano (em Apêndice ao Diário do Governo, n.º 175, de 11 de Julho também de 1962).

Se esta tem sido nos tribunais portugueses a aplicação do sempre mencionado princípio de direito internacional, a conclusão a extrair é a de que ela não se mostra divergente da formulação actual desse princípio e, mais do que isso, coincide com o entendimento que dele vem sendo largamente adoptado no âmbito das relações de trabalho.

Interessa também ter presente que não existe no direito interno português disposição vinculativa como a do artigo 5.º, n.º 1, da Convenção Europeia de 1972 sobre a imunidade dos Estados, segundo a qual a imunidade de jurisdição não pode ser invocada quanto a contratos de trabalho celebrados entre o Estado e uma pessoa singular, se o trabalho for prestado no território do Estado do foro.»

Ultimamente, como refere o recorrente, tem havido uma evolução no sentido da imunidade restrita, sendo disso exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Fevereiro de 1997, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 464, pág. 473, que a dado passo refere:

«Entre nós, Machado Vilela defendeu a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros para a generalidade das causas, em que estes poderiam ser réus ainda que como sujeitos de direito privado (obra citada, pág. 143), ao passo que Barbosa de Magalhães já entendeu que tal regra só valia relativamente aos actos de soberania (obra citada, pág. 220); por sua vez, a jurisprudência, maioritária de longe, tem sufragado a orientação de Machado Vilela (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Fevereiro de 1962, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 114, pág. 447, e os acórdãos das Relações citadas no acórdão recorrido), mas já o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Maio de 1984 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 337, pág. 305) nos parece ter adoptado a orientação segundo a qual a apontada regra se não aplica às relações de direito privado dos Estados estrangeiros, aos seus actos de gestão privada (cfr., sobretudo, págs. 308 e 313 do citado Boletim do Ministério da Justiça, n.º 337). No estrangeiro, ao que parece, predomina, ao menos nos tempos mais recentes, a corrente segundo a qual a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro só vale na sua concepção relativa, ou seja, quanto aos actos de soberania, aos actos de gestão pública. Henri Batiffol e Paul Lagarde (Droit Internacional Privé, 6.ª edição, 1976, tomo II, págs. 440 e 441) dão notícia de que a jurisprudência francesa vem adoptando a concepção restrita da dita regra da imunidade de jurisdição, não a aplicando quando o Estado estrangeiro se comportou como qualquer pessoa privada teria feito e não como praticando um acto de poder público ou agindo no interesse de um serviço público. E também Carreau Dominique (Droit International, 1991, pág. 361), citado pelo recorrente, entende que, hoje em dia, se adopta a concepção restrita da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros.

A nossa opinião é também de que a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros deve ter um âmbito restrito, isto é, limitado apenas aos actos jure imperii, de gestão pública. É que, se tal regra da imunidade de jurisdição radica no princípio da igualdade e autonomia dos Estados soberanos, isto é, no facto de exercerem funções de soberania, lógico é que essa imunidade só exista quando os Estados exercem funções de soberania e não quando actuam como particulares, despidos do jus imperii.

E à mesma conclusão parece levarem-nos os preâmbulos das duas Convenções acima referidas, quando nelas se afirma que a finalidade dos privilégios e imunidades não é beneficiar indivíduos, mas a de garantir o eficaz desempenho das funções das missões diplomáticas, em seu carácter de representantes dos Estados, ou, no caso da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, a de assegurar o eficaz desempenho das funções dos postos consulares, em nome dos seus respectivos Estados, o que nos dá a ideia de a imunidade de jurisdição só abranger os actos de gestão pública.»

No caso dos autos, atendendo à natureza das funções - essencialmente de limpeza e confecção de refeições - não pode dizer-se, que, por si próprias, essas funções estejam integradas na «gestão pública» do réu, já que a autora não exercia um poder público, ao serviço do réu.

Ainda assim, a autora integrava-se na prestação de serviços de apoio, necessários para o funcionamento regular da missão diplomática do réu em Portugal, porquanto entre as funções, que a autora desempenhava, compreendia-se a confecção de refeições para o Senhor Embaixador e seus convidados e, quando o número de convidados era elevado (mais de 10), era contratado pessoal auxiliar e uma cozinheira, mas de qualquer modo os trabalhos eram executados sob a responsabilidade e orientação da autora.

Ou seja, o trabalho da autora era necessário para o regular e normal funcionamento de serviços, próprios da missão da Embaixada de Israel em Lisboa, na residência do Embaixador, integrandose tais serviços, como apoio necessário, da prossecução e desempenho do direito soberano do jus legationis do réu.

Daí que o recorrente tenha razão em referir que o contrato da autora se insere «na prossecução dos (...) fins públicos e soberanos (do réu) e não (para) qualquer serviço a título privado na residência do Senhor Embaixador».

Deve, assim, concluir-se que o contrato e as funções desempenhadas pela autora também não se situam na actividade privada do réu.

Na verdade, tal contrato não se insere em qualquer actividade profissional ou comercial ou de direito privado, exercida pelo réu como qualquer particular.

Aliás, se tivesse sido demandado o Embaixador, este estaria coberto pela imunidade diplomática, nos termos do artigo 31.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, feita em Viena a 18 de Abril de 1961, aprovada por adesão de Portugal - Decreto-Lei n. 48295, de 27 de Março de 1968.

Por maioria de razão, se justificará a imunidade do réu (Estado de Israel), já que o referido contrato, celebrado com a autora, não se insere no domínio da actividade meramente privada do réu, mas no âmbito do desempenho regular (embora de apoio) do seu direito soberano - jus legationis.

Tendo em conta que o réu não renunciou à imunidade de jurisdição, tendo, a fls. 73 dos autos, declarado que queria fazer uso da sua imunidade diplomática jurisdicional, devia o Tribunal recorrido conhecer previamente dessa excepção, o que não fez, condenando o réu (de preceito) no pedido.

Como se refere no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Maio de 1984 (já citado), «a imunidade de jurisdição não significa de modo algum isenção de responsabilidade legal. Só que esta responsabilidade terá de ser discutida por outra via»."

Deste acórdão interpôs a autora recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, que foi admitido como agravo (despacho de fls. 128), terminando as respectivas alegações (fls. 137 a 144) com a formulação das seguintes conclusões:

"1 - Tem-se verificado uma evolução da doutrina e jurisprudência no sentido da imunidade restrita, apenas se aplicando a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros quando estes pratiquem actos de gestão pública;

O Tribunal também partilha desta opinião, pois que, radicando a regra da imunidade de jurisdição no princípio da igualdade e autonomia dos Estados soberanos, só se justifica que tenha aplicação quando os Estados exercem efectivamente funções de soberania, e não quando actuam como particulares, despidos do jus imperii.

2 - Para avaliar se é de aplicar ou não no caso concreto a imunidade de jurisdição, revela-se essencial a distinção entre actos de soberania e actos de gestão privada, tendo sido avançados pela doutrina vários critérios para o fazer.

Não podemos concordar com a qualificação feita no douto acórdão recorrido, pois que não usou de um critério rigoroso para integrar as funções da autora:

Apesar de admitir que estas não se inseriam em qualquer gestão pública por parte do réu, também não as considerou integradas na sua actividade privada, atribuindo-lhes uma categoria intermédia de actos ainda «de apoio» ao desempenho das funções de soberania do réu, em termos de estarem sujeitos à imunidade absoluta de jurisdição.

Parece-nos claro, e nesse sentido apontam os critérios avançados pela doutrina, que os serviços da autora, como simples empregada doméstica, exercidos a título privado na residência particular do Senhor Embaixador, não integram qualquer realização de uma função pública do Estado réu, sendo actos que estarão submetidos às regras de direito privado.

3 - Ao determinar a absolvição do réu da instância, o Tribunal violou as disposições sobre competência internacional previstas no nosso processo civil, nomeadamente os artigos 61.º e 65.º, ferindo ainda, por errada aplicação, os artigos 101.º, 105.º e 494.º, alínea a), todos do Código de Processo Civil.

4 - Tal violação consubstancia um atentado aos direitos constitucionais da autora, atingindo o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, pois que deixa destituídos de defesa os seus direitos, negando-lhe o recurso aos Tribunais portugueses.

Pelo exposto:

Deve ser dado provimento ao recurso, julgando-se o Tribunal português internacionalmente competente para julgar a acção, mantendo-se a decisão proferida em 1.ª instância."

Contra-alegou o Ministério Público (fls. 146 a 148), concluindo que o acórdão não violou qualquer norma ou princípio do direito interno português ou de tratado ou convenção internacional válidos na ordem interna portuguesa.

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Fundamentação

A extensa transcrição da fundamentação do acórdão recorrido, a que se procedeu no precedente relatório, evidenciou que ele se baseou, essencialmente, na doutrina expendida no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Maio de 1984. Neste acórdão enunciou-se, em termos cuja correcção se mantém, que a regra consuetudinária de direito internacional segundo a qual os Estados estrangeiros gozam de imunidade de jurisdição local quanto às causas em que poderiam ser réus não foi revogada pela Constituição da República Portuguesa de 1976, uma vez que, na sua formulação mais recente, essa regra não contraria nenhum dos preceitos fundamentais da Constituição. Essa formulação conforme ao sistema constitucional português é a concepção restrita da regra da imunidade de jurisdição, que a restringe aos actos praticados jure imperii, excluindo dessa imunidade os actos praticados jure gestionis. Quer a extensão da aludida regra, quer os critérios de diferenciação entres estes tipos de actividade, não têm contornos precisos e evoluem de acordo com a prática, designadamente jurisprudencial, dos diversos Estados que integram a comunidade internacional. Ora, neste domínio, o entendimento que actualmente se pode considerar dominante apresenta assinaláveis avanços relativamente às concepções preponderantes ao tempo em que, há mais de 18 anos, foi proferido o citado acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, em que o acórdão recorrido se estribou, ao que acresce que - adiante-se deste já - a aplicação que desses critérios foi feita por este acórdão ao caso dos autos não se afigura como a mais acertada.

Não se ignora que a jurisprudência nacional tem-se mostrado, neste domínio, particularmente oscilante, entre uma concepção mais dilatada do alcance da regra da imunidade de jurisdição (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Fevereiro de 1997, processo n.º 809/96-A, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 464, pág. 473; do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Julho de 1989, processo n.º 4918, na Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, 1989, tomo IV, pág. 178, de 4 de Maio de 1994, processo n.º 704/92, de 23 de Fevereiro de 2000, processo n.º 8356; e do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de Janeiro de 1981, processo n.º 15 139, na Colectânea de Jurisprudência, ano VI, 1981, tomo I, pág. 183) e uma concepção mais restrita, como a do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30 de Maio de 1990, processo n.º 6319, confirmado pelo acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Janeiro de 1991, processo n. 2927, no Boletim do Ministério da Justiça, n. 403, pág. 267, que ambos decidiram serem os tribunais de trabalho portugueses internacionalmente competentes para conhecer de acção de impugnação de despedimento intentada por empregada doméstica do 1.º Secretário da Embaixada da França em Lisboa. É esta última a concepção que se reputa mais correcta e mais conforme ao estádio actual da prática e da jurisprudência internacionais.

As sessões regulares do Instituto de Direito Internacional vêm, desde há vários anos, salientado que deve ser, em via de regra, afastada a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro quanto estejam em causa relações reguladas pelo direito privado (civil e comercial), o que inclui, além do mais (transacções comerciais, contratos para fornecimento de serviços, empréstimos e obrigações financeiras, titularidade, posse e uso de propriedade, protecção da propriedade industrial e intelectual, acções in rem relativas a navios e cargas, etc.), "contracts of employment and contracts for professional services to which a foreign State (or its agent) is a party" (cfr. artigo III, d), do Projecto de Resolução relativo à Imunidade de Jurisdição dos Estados, apreciado na sessão plenária de Santiago de Compostela, em 1989, publicado no Annuaire de l’Institut de Droit International, vol. 63, tomo II, pág. 83-120; artigo II, c), da Resolução adoptada na sessão de Basileia, em 1991, publicada no Tableau des Résolutions Adoptées (1957-1991), Instituto de Direito Internacional, Paris, 1992, págs. 220-231).

Essa linha de orientação, que se funda na própria razão de ser da imunidade em causa, tem sido evidenciada pelas análises comparadas das diversas jurisprudências nacionais (cfr. Guido Fernando Silva Soares, "As imunidades de jurisdição na justiça trabalhista brasileira", Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 88, 1993, págs. 519-552; Jean Salmon, "Immunités et actes de la fonction", Annuaire Français de Droit International, vol. XXXVIII, 1992, págs. 314-357; e Didier Nedjar, "Tendances actuelles du droit international des immunités des États", Journal du Droit International, ano 124.º, n.º 1, Janeiro-Março 1997, págs. 59-102).

O tema foi recentemente objecto de desenvolvida monografia (Isabelle Pingel-Lenuzza, Les Immunités des États en Droit International, Éditions Bruylant / Éditions de L’Université de Bruxelles, Bruxelas, 1997), que, a propósito do não reconhecimento de imunidade de jurisdição em litígios laborais, refere que "a prática tende a admitir (...) que o Estado não beneficia da imunidade nos litígios que o opõem a uma pessoa privada com a qual concluiu um contrato de trabalho". Trata-se de regra aplicável em numerosos Estados de common law, quer por expressamente prevista na lei (Reino Unido, Austrália), quer por ter sido consagrada pela jurisprudência (Estados Unidos da América do Norte, Filipinas), bem como em Estados de civil law, como a Áustria, a Bélgica, a Argentina, a Holanda, como o demonstram as numerosas decisões jurisprudenciais citadas nessa obra. A autora adverte, porém, que esta regra tem sido aplicada com "nuances", revelando o exame das jurisprudências nacionais que se a imunidade é geralmente recusada ao Estado estrangeiro nos casos em que o litígio respeita a um trabalhador que exerce funções subalternas, ela já lhe é frequentemente concedida quando a pessoa em causa ocupa funções mais elevadas. A justificação desta orientação assenta no reconhecimento de que só os contratos de trabalho celebrados com pessoal de grau elevado é que é verdadeiramente susceptível de estar relacionado com o exercício do poder público (jus imperii) e de beneficiar, a este título, da imunidade (obra citada, págs. 355 e 356).

Particularmente significativo é o caso sobre que recaiu o acórdão de 10 de Novembro de 1998 da Secção Social da Cour de Cassation francesa, publicado em Recueil Dalloz, 1999, págs. 157-158. Tratava-se de uma acção de impugnação de despedimento de uma enfermeira / secretária médica da Embaixada dos Estados Unidos da América em Paris, cujas funções consistiam em prestar assistência médica aos empregados, americanos e não americanos, da Embaixada e dos organismos anexos, assim como ao pessoal militar (primeiros socorros, cuidados diversos, relações com os médicos e os hospitais, organização de evacuações sanitárias, assistência médica a visitantes importantes), assegurar o secretariado médico (traduções médicas, relatórios médicos, informações) e assegurar a esterilização e a manutenção dos instrumentos cirúrgicos e de tratamentos médicos. A Cour d’Appel de Versalhes havia decidido reconhecer a imunidade de jurisdição por entender que a autora exercia as suas funções em benefício do pessoal civil e militar americano e não americano colocado em Paris e dos visitantes da Embaixada, "no interesse do serviço público organizado pelos Estados Unidos da América em benefício dos seus agentes, dos seus nacionais e dos cidadãos estrangeiros colocados sob a sua autoridade ou responsabilidade". Diversamente, a Cour de Cassation, revogando o acórdão recorrido, afastou a imunidade de jurisdição por considerar que as funções da autora "não lhe conferiam nenhuma responsabilidade particular no exercício do serviço público diplomático, pelo que o seu despedimento constituiu um acto de gestão" (acta de jure gestionis). Anotando este acórdão, Michel Menjucq (local citado, págs. 158 e 159) assinala que ele corresponde ao entendimento jurisprudencial corrente de que o domínio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros não abrange os actos por eles praticados tal como o poderiam ter sido por um particular, mas apenas os que manifestam a sua soberania. Para a distinção releva a natureza da actividade: a imunidade funciona relativamente a actos de poder público, revelado por um critério formal como a existência num contrato de uma cláusula exorbitante do direito comum, ou relativamente a actos praticados no interesse de um serviço público. Ao invés, o Estado estrangeiro não pode beneficiar da imunidade quanto a um acto qualificado como de gestão (jus gestionis), porque então ele intervém como um qualquer particular. Nessa anotação também se salienta a importância da entidade que é demandada: se for o Estado estrangeiro, cuja imunidade tem por finalidade respeitar o exercício da sua soberania, a imunidade é sempre relativa e depende da natureza da actividade em causa; se, pelo contrário, for demandado um determinado agente diplomático, cuja imunidade, nos termos da Convenção de Viena de 18 de Abril de 1961, tende a proteger a sua pessoa por modo a que possa exercer livremente a sua missão, essa imunidade já será absoluta, cobrindo todos os seus actos. Concluindo a anotação, o respectivo autor sintetiza a actual orientação jurisprudencial francesa na matéria afirmando que "unicamente as pessoas que tenham uma função de direcção agem no interesse do serviço público estrangeiro e podem ver ser-lhes oposta a imunidade do Estado estrangeiro, que pratica um acto de soberania ao demiti-las"; pelo contrário, "as pessoas que apenas têm uma função subalterna no serviço público, não implicando qualquer responsabilidade de direcção do serviço, não são consideradas (...) como actuando no interesse do serviço público; consequentemente, a acção judicial por elas intentada não pode ser entravada pela imunidade do Estado estrangeiro, pois este intervém, ao despedi-las, como um simples empregador privado, praticando um acto de gestão".

Estas considerações, iluminando a concepção actual do princípio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, conduzem à procedência do presente recurso, com revogação do acórdão recorrido.

Recorde-se que a acção foi proposta contra o Estado de Israel, e não contra a pessoa do seu Embaixador, e, como se viu, relativamente aos Estados estrangeiros, a imunidade de jurisdição é sempre relativa, dependendo da natureza da actividade desenvolvida pelo autor.

No presente caso, as funções exercidas pela autora são obviamente de carácter subalterno, não lhe podendo, manifestamente, ser reconhecida qualquer posição de direcção na organização do serviço público do réu ou de desempenho de funções de autoridade ou de representação. O acórdão recorrido, após reconhecer que as funções exercidas pela autora, essencialmente de limpeza e de confecção de refeições, não podem ser consideradas integradas na "gestão pública" do réu, acabou por considerar que, ainda assim, a autora prestava serviços de apoio, necessários para o funcionamento regular da missão diplomática do réu em Portugal, porquanto entre essas funções se compreendia a confecção de refeições para o Embaixador e seus convidados, ou seja, o trabalho da autora era necessário para o regular e normal funcionamento de serviços próprios da missão da Embaixada, integrando-se tais serviços como apoio necessário da prossecução e desempenho do direito soberano do jus legationis do réu.

Não se pode subscrever este entendimento, que, pela sua latitude, acabaria por abranger todo o pessoal necessário ao funcionamento regular de qualquer representação diplomática, independentemente do nível de relevância e de responsabilidade das funções exercidas. A natureza das actividades a que há que atender são as que integram as funções do trabalhador em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer outro trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular. No caso, a resposta é negativa. A relação de trabalho subordinado estabelecida entre a autora e o réu é regida pelo direito português em termos idênticos ao vulgar contrato de trabalho para prestação de serviços domésticos (limpeza e confecção de refeições) celebrado com qualquer particular.

Assim, e sem necessidade de considerações complementares, impõe-se o provimento do recurso, mantendo-se a condenação do réu proferida na 1.ª instância, com condenação em custas a cargo do mesmo réu, pois, como bem se assinalou na alegação do Ministério Público para o Tribunal da Relação, a isenção de custas do Estado apenas respeita ao Estado Português.

3. Decisão

Em face do exposto, acordam em conceder provimento ao presente recurso, revogando o acórdão recorrido, para ficar a subsistir a decisão da 1.ª instância, com custas pelo réu.

Lisboa, 13 de Novembro de 2002.

Mário José de Araújo Torres,

António Manuel Pereira,

José António Mesquita.