Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
188/15.6JACBR.C1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PROCEDÊNCIA PARCIAL
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Sumário :
I- Embora fosse razoavelmente elevada a quantidade de MDMA que o arguido possuía na primeira vez que foi objeto de busca domiciliária, pois correspondia ao equivalente para 1449 doses diárias e, numa segunda vez, ao equivalente para 88 dose diárias, e elevado o grau de pureza do produto, que vendeu durante pelo menos 3 meses conjuntamente com outros três tipos de estupefacientes (MDEA, psilocibina e canábis), a pena de 5 anos e 6 meses de prisão aplicada pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º do DL n.º 15/93, de 22-01, é algo excessiva e desproporcional em razão das exigências de prevenção geral e especial.
II - Não existindo um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não é de decretar a suspensão da execução da pena de 4 anos e 9 meses de prisão que ora lhe foi fixada.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 188/15.6JACBR.C1.S1


Recurso Penal


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.


I - Relatório


1. Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo Central Criminal de ... (J... .), sob acusação do Ministério Público, foram submetidos a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, os arguidos AA e BB, devidamente identificados nos autos, imputando-se àquele arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 Janeiro, por referência às tabelas I-C, II-A e II-B anexas e, ao arguido BB, a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 21.º e 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C do mesmo diploma.


2. Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Coletivo, por acórdão proferido a 18 de julho de 2023, decidiu condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21.º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência às tabelas I-C, II-A e II-B anexas, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, e o arguido BB, como autor material, na forma consumada um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º e 25.º, al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C do mesmo diploma, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, sujeito a regime de prova, com acompanhamento pela DGRSP.


3. Inconformado com o douto acórdão, dele interpôs recurso o arguido AA, para o Tribunal da Relação de Coimbra, concluindo a motivação do modo seguinte (transcrição):


“1- O Douto Acórdão condenou o arguido, ora recorrente, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21º n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 5 anos e seis meses de prisão efetiva.


2- O presente recurso incide sobre a qualificação jurídica e sobre a escolha e medida da pena e suas consequências jurídicas, que o arguido considera terem sido incorrectamente aplicados.


3- Pois que o arguido considera que, tendo em consideração a matéria de facto provada, e não se tendo demonstrado que o arguido tivesse cedido estupefacientes e tenho ainda em conta a forma de atuação do arguido aliado à sua toxicodependência, que estamos perante uma situação de pequeno tráfico completamente distinta da do grande tráfico, razão pela qual a atuação do arguido deveria ter sido enquadrada no previsto no artigo 25.º do DL 15/93 de 22/01.


4- O art.º 21.º do DL n.º 15/93 define o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual se punem diversas atividades ilícitas, cada uma delas com virtualidade bastante para integrar o elemento objetivo do crime enquanto o art.º 25º, para o qual o recorrente apela, refere-se ao tráfico de menor gravidade, fundamentado na diminuição considerável da ilicitude do facto revelada pela valoração em conjunto dos diversos fatores, alguns deles enumerados na norma, a título exemplificativo (meios utilizados, modalidade e circunstâncias da ação, qualidade e quantidade das plantas, substâncias ou preparados).


5- A tipificação do art.25.º, do DL 15/93, parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21.º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar” “ Frase citada em vários Acórdãos, pensa-se que retirada do Ac STJ de 15/12/99- Proc 912/99.


6- Tal como consta do Acórdão STJ – Processo 127/09.3PEFUN.S1:“Diríamos, em suma, que o agente do crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, deverá estar nas circunstâncias seguidamente enunciadas, tendencialmente cumulativas: i) A actividade de tráfico é exercida por contacto directo do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet); j) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto; k) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado; l) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas. m) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos; n) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes; o) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita; p) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.”


7- Ora no caso em concerto verificam-se cumulativamente todos os requisitos para aplicação do artigo 25 do DL 17/93 e não do artigo 21.º


8- O crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo Artº 21º nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos e o artigo 25, da mesma Lei cuja aplicação se defende nos presentes autos é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.


9- Entende o arguido, com o devido respeito, que a pena de prisão que efetivamente lhe foi aplicada é excessiva.


10- A determinação da medida da pena, dentro da moldura penal definida na lei, deve ter em consideração a culpa do agente e as exigências de prevenção, geral e especial - Artºs 40º, nºs 1 e 2 e 71º nºs 1 e 2, ambos do C. Penal.


11- Sabido que, por um lado, a culpa funcionará como pressuposto da punição e como limite máximo e inultrapassável da pena – “nulla poena sine culpa -, por outro lado, as exigências de prevenção intervêm decisivamente na determinação do quantum da pena concretamente a aplicar ao agente, visando-se com a prevenção geral, enquanto finalidade primordial da pena, a tutela da confiança da comunidade na validade e vigência da norma infringida, enquanto que a prevenção especial assume relevância ao nível da ressocialização do agente.


12- Nessa determinação a efetuar dentro dos limites da moldura abstrata estabelecida para o crime em apreço, o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando se destina a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena, - ex vi do disposto no Artº 71º, nº 2 do Código Penal.


13- E por toda a matéria considerada provada e não provada entende o arguido que lhe foi aplicada uma pena demasiado gravosa, tendo-o penalizado duramente, apesar de ter sido demonstrado que os factos ocorreram num momento da vida do arguido, há seis anos atrás, quando era consumidor, tendo entretanto modificado a sua vida, afastando-se do consumo e encontrando emprego.


14- Considera, pois, assim, o recorrente que o douto acórdão violou por erro de interpretação e aplicação o preceito legal estatuído no artigo 71.º do Código Penal, que não pode nem deve ser ignorado.


15- Sempre o quantum concreto da pena a aplicar ao arguido deverá entender às necessidades de prevenção, à sua culpa e à proteção de bens jurídicos mas não esquecendo a sua reintegração na sociedade, art.º 40.º n.º 1 CP.


16- O facto de o arguido ser consumidor à data da prática dos factos diminui consideravelmente a ilicitude no caso em concreto.


17- Dada toda a factualidade provada, com a alterações requeridas e até independentemente destas alterações vire, a não ser deferidas, hipótese que mera cautela de patrocínio se coloca, não parece que seja com a condenação aplicada de pena sem qualquer possibilidade de sua suspensão que se reabilitará o recorrente.


18-Considerando as descritas circunstâncias de atuação do arguido, concretamente, o facto do o grau de ilicitude ser pequeno, pois, a detenção dos produtos foi explicada pelo arguido, não foram demonstrados quaisquer proventos, os meios usados eram rudimentares e o recorrente fazia a aquisição para consumo e ainda a integração familiar, laboral e social do arguido na comunidade, afigura-se, com o devido respeito, adequada a redução da pena de prisão aplicada, fixando-se, consequentemente, numa pena não superior ao meio da pena, prevista para o crime p.e p pelo artigo 25 do Decreto- Lei 15/93.


19-Mas ainda que assim não se entenda, e seja considerada a prática do crime p.e p pelo artigo 21 do referida Dec-Lei, deveria nos termos e com os fundamentos supra-expostos ser fixada, consequentemente, no seu limite mínimo.


20- Dispõe, o Artº 40º, nº 1 do C. Penal, o seguinte: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”


21- Neste sentido, importa considerar a relevância que estas finalidades assumem no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão:


Atendendo a que, por um lado, a prevenção geral positiva visa a “proteção de bens jurídicos”, procurando manter e reforçar a crença da comunidade na validade da norma e a confiança dos cidadãos nas instituições jurídico penais, restabelecendo a paz jurídica comunitária abalada pelo crime, por outro lado, a prevenção especial positiva, na sua incontornável missão ressocializadora, procura assegurar a reintegração social do delinquente, cumprindo assim uma finalidade reeducativa e pedagógica.


22- Importa, assim, ter presente o disposto no Artº 50º, nº 1 do C. Penal:


“O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.”


23- Provou-se, com realce para o juízo de prognose favorável relativamente a este recorrente, ser pessoa bem inserida social e familiarmente, contando com o apoio da família no seu projeto de vida em liberdade.


24- Para além do atual controlo da problemática aditiva, o recorrente, reúne recursos familiares e sociais capazes de funcionar como elementos estruturantes do seu processo de ressocialização, criando condições para o cumprimento de uma medida de execução na comunidade.


25- Erigindo ao ordenamento jurídico-penal e constitucional a ressocialização como um direito do cidadão e um dever do Estado, nada justifica que em vista dos pressupostos apurados, esta lhe seja negada, tanto mais sendo a pena de prisão a última ratio da política criminal.


26- Em face dos factos provados, do relatório social e demais circunstâncias que esse Venerando Tribunal entenda considerar relevantes, concluindo-se por um juízo de prognose favorável, crê-se adequada a suspensão da execução da pena do recorrente, mediante regime de prova e com imposição de regras de conduta.


27- Dispõe o art.º 50°, n.º 1, do C. Penal: "O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".


28- A suspensão da execução da pena deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime.


29- Caso assim não se entenda, seria sempre de considerar a aplicação ao arguido o regime de permanência na sua habitação previsto no artigo 43.º n.º 1 alínea b) do CP, por quanto permitiria que ao arguido a inserção familiar sem deixar de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.


30- A douta decisão decorrida violou assim as disposições legais e princípios jurídico-penais todos constantes dos artigos 30,40, 43, 43 n.º 1 b) 50 e 71 todos do Código Penal, os artigos 21 n.º1 e 25 do Decreto-lei 15/93 de 22.01 e ainda o art.13 da Constituição da República Portuguesa.


Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, deve o caso concreto ser subsumido ao art.25.º do Dl 15/93 de 22.1, - tráfico de menor gravidade - com alteração da moldura penal e consequentemente com a aplicação de uma pena entre o limite mínimo e a metade da moldura penal, suspensa na sua execução ao aqui arguido recorrente ou ainda caso assim não se entenda, aplicando-se o regime de permanência na habitação ao arguido.


Ou caso assim não se entenda, deve ser aplicada uma pena próxima dos limites mínimos previstos no art.21.º n.º 1 do DL 15/93 de 22/01 e suspensa na sua execução ao aqui recorrente, por se verificarem, os pressupostos necessários para tal, assim se fazendo a será feita a sã, serena e costumada Justiça!”.


4. O Ministério Público, no Juízo Central Criminal de ..., respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência e consequente confirmação do acórdão condenatório recorrido, concluindo nos termos seguintes (transcrição):


“1- À factualidade assente foi dado correcto enquadramento jurídico-penal.


2- Tendo presente as finalidades da punição, a culpa do agente e as exigências de prevenção, sem haver deixado de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depunham a favor ou contra aquele, o Tribunal determinou, com critério, a pena concreta aplicada ao arguido/recorrente.


3- Essa pena de cinco (5) anos e seis (6) meses de prisão mostra-se ajustada à gravidade dos factos em ponderação e a uma personalidade que evidencia propensão para o crime, total indiferença pelas regras jurídicas que disciplinam a vida em sociedade e por elevados bens jurídicos merecedores da tutela do direito penal.


4- No que concerne ao crime de tráfico de estupefacientes, são necessárias particulares cautelas na opção pela suspensão da execução das penas de prisão impostas, ditadas sobretudo por razões pertinentes às finalidades da punição, mormente para assegurar que a comunidade não veja a suspensão como um sintoma de impunidade da conduta.


5- Sendo certo que, se é pacífico que a socialização do arguido deve ser uma preocupação sempre presente na decisão de suspensão da execução da pena de prisão, ela não é o objectivo primeiro nessa delicada tarefa, pois há limites inultrapassáveis que importa observar: a socialização não pode sobrelevar a prevenção.


5- O douto acórdão recorrido não interpretou deficientemente qualquer preceito legal e, designadamente, o preceituado nos artigos 21.º e 25.º a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e nos artigos 40º, 71º e 50.º, do Código Penal.”


5. Por decisão sumária de 11 de dezembro de 2023, proferida ao abrigo do disposto no art.417.º, n.º 6, alínea a), do Código de Processo Penal, a Ex.ma Desembargadora relatora no Tribunal da Relação de Coimbra, decidiu, face ao disposto no artigo 432.º, n.ºs 1, alínea c), e n.º 2, do mesmo Código, declarar a incompetência do Tribunal da Relação para conhecer do presente recurso e competente o Supremo Tribunal de Justiça, determinando a remessa dos autos a este Tribunal.


6. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, neste Supremo Tribunal, emitiu parecer no sentido do não provimento do acórdão recorrido.


7. Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, o recorrente nada disse.


8. Colhidos os vistos, cumpre decidir.


Fundamentação


9. A matéria relevante, relativa ao recorrente, que resultou do acórdão proferido em 1.ª instância é a seguinte (transcrição parcial):


Factos provados:


NUIPC 188/15.6JACBR:


1. O arguido AA, desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Novembro de 2016, dedicou-se à venda de produtos estupefacientes, designadamente de MDMA, canábis, MDEA e psilocibina adquirindo tais produtos para revenda a terceiros, em zonas não concretamente apuradas, com o intuito de auferir vantagem pecuniária.


2. No dia 29 de Novembro de 2016, pelas 10h00, o arguido detinha na sua residência, sita na Rua ..., ..., ...:


- Num quarto onde o arguido se encontrava, deitado na cama:


- em cima da mesa-de-cabeceira, um telemóvel da marca HUAWEI, modelo ALE-L21, Dual SIM;


-no interior de uma das gavetas da mesa-de-cabeceira, um papel A5, manuscrito, com diversas anotações, nomeadamente nomes, moradas e valores de Hotéis em... – Bélgica;


- no mesmo local, uma folha A4 quadriculada com anotações manuscritas, nomeadamente “Bilhete 1” entre outros e uma etiqueta de mala de uma viagem de avião, da companhia IBERIA, em nome de AA, tendo como destino ..., com as inscrições “IB....... ... ..... .RU 15 JAN” e “To OPO ....62”.


- No piso superior, no primeiro andar, no quarto do arguido:


- debaixo da cama, um boião, em plástico de cor preta, contendo no seu interior uma colher em metal, um copo em plástico transparente e um saco transparente, fechado com uma mola da roupa de cor azul, contendo MDEA e 281,400 (L) gramas de MDMA/ Ecstasy, com 51,5% grau de pureza.


- No mesmo piso, num outro quarto, debaixo da cama, 7,341 (L) gramas de canábis (folhas/sumidades), com grau de pureza de 3,8%, suficiente para a 5 doses diárias.


- Ainda nesse quarto, no interior de uma das gavetas da mesa-de-cabeceira um telemóvel, em mau estado de conservação, da marca ALCATEL One Touch, modelo 7041X, com o IMEI .............04 e um cartão SIM da YORN com o ICCID n.º ..........01.


5- O MDMA supracitado era suficiente para 1449 doses diárias.


6- No dia 07 de Fevereiro de 2017, pelas 11h00, o arguido AA detinha na sua residência, sita na Rua ..., ..., ...:


- na cozinha: em cima de um guarda-fatos e no interior e um pequeno baú azul: um saco contendo no seu interior MDMA, com 9,808 (L) gramas, com grau de pureza de 83%, correspondente a 81 doses diárias e quarenta pequenos sacos herméticos para acondicionamento de produto estupefaciente com resíduos de canábis; em cima de um guarda-fatos existente na cozinha, no interior de um pote metálico: 155 Euros em notas do BCE; na primeira prateleira do aparador, dentro de uma caixa de tabaco marca Camel, um pedaço de canábis/resina (haxixe), com 0,896 (L) gramas, com grau de pureza de 1%, quantidade inferior a uma dose diária; na prateleira do meio do referido aparador, dentro de uma caixa de sapatos: um embrulho de prata, contendo no seu interior 3,111 (L) gramas de psilocibina (cogumelos mágicos) e uma lata hermética, contendo quatro pedaços de canábis/resina (haxixe), com 0,360 (L) gramas, com um grau de pureza de 0,9%, que correspondia a menos de uma dose diária


- no seu quarto, dentro da 1.ª gaveta da mesinha de cabeceira do lado esquerdo: um embrulho de prata, contendo no seu interior 0,046 (L) gramas de MDMA;


- no outro quarto, dentro da 1.ª gaveta da mesinha de cabeceira, do lado esquerdo: um saco plástico preto, contendo no seu interior 22,591 (L) gramas de canábis (folhas/sumidades), com grau de pureza de 0,9%, correspondente a 4 doses diárias.


7- As aludidas substâncias estupefacientes destinavam-se à venda a terceiros consumidores e revendedores, constituindo o valor monetário apreendido produto da sua actividade ilícita.


8- O arguido conhecia as características estupefacientes dos aludidos produtos e destinava-os à venda.


9- O arguido não exercia qualquer actividade profissional nem tinha outras fontes de rendimento lícitas conhecidas.


10- O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de deter, transportar, distribuir e vender, a terceiros, por preço superior ao da sua aquisição com obtenção de lucro, as aludidas substâncias, bem conhecendo as suas características, natureza e efeitos e ainda assim adquiriu-as, deteve-as, cedeu-as e vendeu-a a terceiros, bem sabendo que não estava autorizado a fazê-lo, assim logrando obter proveito económico.


11- Apesar de saber que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se absteve de a levar a cabo.


NUIPC 13/15.8...:


(…)


Mais se apurou em relação à situação pessoal dos arguidos:


19. AA é fruto de uma relação de namoro dos pais, que não chegaram a organizar a vida em comum. A ligação do arguido com pai e familiares paternos, não existiu ao longo da sua vida. A mãe estabeleceu mais tarde um relacionamento afetivo e de vivencia em comum, com o pai da sua irmã (uterina), na atualidade com 19 anos de idade, mas, entretanto, terminado.


20. O arguido descreve o seu crescimento com ligação privilegiada à avó materna, com a qual praticamente sempre viveu.


21. A formação escolar do arguido iniciou-se em idade convencional, tendo integrado estabelecimentos de ensino do seu meio social de origem e concluído o 9 º ano de escolaridade com fraca motivação.


22. O arguido iniciou em idade jovem (15 anos), consumos de drogas ditas leves, com escalada de consumo para outras substâncias tidos em contextos recreativos. Na fase de consumos não teve intervenção terapêutica dirigida para o seu problema, que refere ter superado em 2017, após ter registado uma fase marcada pelas dificuldades de acatar a norma e orientação familiar.


23. No decurso de crescimento, com o apoio e reparo familiar, refere que foi compreendendo a importância de se desvincular de consumos de substâncias aditivas.


24. Desde jovem que começou a trabalhar, por conta própria, ganhando à peça, na feitura de brinquedos para cães a partir de raízes de torga extraídas na região. Esta atividade foi encarada como transitória e substituída, desde 2020 por atividade na construção civil e em carpintaria, com contratos de trabalho regulares e onde experienciou outros contextos laborais/relacionais com pares de diferentes idades.


25. O arguido reside numa habitação/vivenda (rés do chão e primeiro andar) construída pela avó materna. Do agregado do arguido faz parte a avó materna, 73 anos, reformada. No primeiro andar vive a mãe do arguido, empregada de limpeza, 52 anos e a irmã de 19 anos de idade, auxiliar de serviços de saúde. A habitação detém boas condições e cuidados.


26. Os elementos familiares com quem o arguido coabita, têm uma convivência regular e sentimento de entreajuda entre si e são pessoas socialmente respeitadas no seu meio.


27. Há mais de um ano que o arguido passou a trabalhar na empresa V........, empresa de montagem de REDES de energia de Alta e de Baixa Tensão. Nesta última atividade o arguido, está frequentemente deslocado, durante a semana de trabalho, mas, expressa motivação pelo exercício das funções, ambiente de trabalho e compensação económica (recebe cerca de 1300 euros mensalmente).


(…)


44. O arguido AA tem averbado no seu CRC as seguintes condenações:


1. No processo sumario nr.º 159/14.0... do Tribunal Judicial de …, por decisão proferida em 2.06.2014, transitada em julgado em 2.07.2014, foi condenado pela pratica em 15.05.2014 de um crime de furto qualificado, p.p. pelo art.º 203, n.º 1 e 204, n.º 2, al. e) do CP, na pena de 8 meses de prisão substituída por 240 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade. Tal pena foi declarada extinta em 12.01.2015.


2. No processo comum singular nr.º 479/13.0..., do Juizo de Competência Generica de …, por decisão proferida em 10.10.2018, transitada em julgado em 9.11.2018, foi condenado pela pratica em 9.09.2013 de um crime de furto qualificado, p.p. pelo art.º 203, n.º 1 e 204, n.º 2, al. e) do CP, na pena de 28 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. Tal pena foi declarada extinta em 9.03.2021.


(…).”.


*


10. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 1 e de 24-3-1999 2 e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103).


São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar 3, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.


Face às conclusões da motivação do recorrente AA as questões a decidir são as seguintes:


- Da qualificação jurídica dos factos;


- Da medida da pena; e


- Da substituição da pena de prisão.


11. Apreciando


11.1. Previamente ao conhecimento do objeto do recurso, impõe-se fazer uma breve consideração sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça para o conhecimento do recurso, na medida em que o arguido dirigiu o recurso ao Tribunal da Relação de Coimbra, mas a Ex.ma Juíza Desembargadora, por decisão sumária de 11 de dezembro de 2023, determinou a sua remessa ao Supremo Tribunal de Justiça por o considerar competente para o conhecimento do recurso interposto pelo arguido, nos termos do art.432.º, n.ºs 1, al. c) e 2 do Código de Processo Penal, uma vez que a pena única aplicada foi em medida superior a cinco anos de prisão, visando o recurso exclusivamente o reexame da matéria de direito.


O direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal, tendo passado a constar expressamente, na 4.ª revisão constitucional (1997), do art.32.º, n.º 1, da Constituição da República, com o aditamento do inciso «incluindo o recurso».


O que esta norma constitucional não consagra é a garantia de um duplo grau de recurso ou de um triplo grau de jurisdição, em relação a quaisquer decisões condenatórias.


O atual Código de Processo Penal, na sua versão originária, estabelecendo como pedra de toque para a determinação da competência do tribunal de recurso a natureza do tribunal recorrido, atribuía a competência ao Tribunal da Relação para conhecer das decisões de tribunais singulares e a competência ao Supremo Tribunal de Justiça para conhecer das decisões de conhecer das decisões dos tribunais coletivos e do júri.


Perante as críticas desta solução legislativa, no que respeita ao recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça para conhecer das decisões de conhecer das decisões dos tribunais coletivos e do júri, na medida em que eliminaria a garantia de recurso relativamente à reapreciação da matéria de facto por um tribunal de recurso, foram introduzidas alterações no regime dos recursos pela Lei n.º 59/98 de 25 de agosto e pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, estabeleceram-se novas vias de recurso para a Relação e para o STJ.


A Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, alterou o texto da alínea c), n.º1, do art.432.º do C.P.P. e aditou-lhe n.º2.


O art.432.º do Código de Processo Penal, que estabelece taxativamente os casos em que tem lugar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, passou a estabelecer, designadamente:


«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:


(…)


c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;


(…)


2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º.».


A revisão do Código Penal de 2007, em função do estabelecido no n.º 2 do artigo 432.º do CPP, evidencia claramente a obrigatoriedade do recurso per saltum, desde que o recorrente tenha em vista a reapreciação de pena aplicada em medida superior a 5 anos de prisão e vise exclusivamente a reapreciação da matéria de direito.


A Relação passou a só ter competência para o conhecimento do recurso de pena aplicada em medida superior a 5 anos de prisão se o recorrente, ao provocar a reapreciação do caso penal, quiser abranger a própria matéria de facto.


A Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, aditou, entretanto, no final da alínea c), n.º1, do art.432.º do C.P.P., a redação «…ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», ampliando os fundamentos do recurso per saltum, dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo de 1.ª instância com a alegação de existência de erro-vícios e/ou nulidade insanável da decisão.


No caso em apreciação, o objeto do recurso é um acórdão condenatório, proferido por um tribunal coletivo, em que foi aplicada ao recorrente uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão – e a essa dimensão se deve atender para definir a competência material –, pelo que, estando em equação uma deliberação final de um tribunal coletivo, visando o recurso apenas o reexame de matéria de direito (circunscrita à qualificação jurídica e à escolha e medida da pena de prisão), cabe efetivamente ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer do recurso.


Conclui-se assim que, neste caso, o recurso interposto pelo arguido é direto, per saltum, sendo o Supremo Tribunal de Justiça o competente para o conhecer, nos termos do art.432.º, n.ºs 1, alínea c) e 2, do Código de Processo Penal.


11.2. Da qualificação jurídica dos factos


A primeira questão colocada pelo recorrente e de que cumpre decidir, é se os factos provados integram a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.25.º do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro e, não o crime do art.21.º, n.º1 do mesmo Diploma, pelo qual o ora recorrente foi condenado.


No entender do recorrente o Tribunal a quo errou na qualificação jurídica, tendo em conta, no essencial dois argumentos: (i), não está demonstrado que o arguido tivesse cedido estupefacientes - o que se coaduna com os apontamentos e bilhete de transporte igualmente apreendidos, pois tal como o arguido explicou foi contratado para efetuar o transporte dos estupefacientes e não lhe tendo sido pago esse “serviço” recolheu os produtos para consumir, pois era toxicodependente; (ii) o grau de ilicitude é pequeno pois não foram demonstrados quaisquer proventos, os meios usados eram rudimentares e verificam-se, cumulativamente, todos os requisitos enunciados no acórdão do S.T.J. proferido no proc. n.º127/09.3PEFUN.S1, necessários à aplicação do art..25.º do DL n.º 15/93, pois o grau de ilicitude da sua conduta é pequeno.


Vejamos se tem razão o recorrente.


O art.21º, n.º 1, do DL nº15/93, estatui «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer titulo receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art.40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.».


Por sua vez, o art.25.º do DL. n.º 15/93, sobre a epígrafe “tráfico de menor gravidade”, dispõe o seguinte: «Se nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de :


a) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;


b) Prisão até dois anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.».


O art.21.º, n.º 1, do DL 15/93, é o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, pressupondo, desde logo pelos elevados limites da moldura penal aplicável, a prática de atos de significativo relevo, ou seja, uma ilicitude de assinalável dimensão, embora não tão assinalável como nas situações previstas no art.24.º do mesmo diploma.


Já o regime do tráfico de menor gravidade fundamenta-se na “diminuição considerável da ilicitude do facto”, revelada pela valoração conjunta dos diversos fatores que se apuraram na situação global dada como provada pelo Tribunal.


Na Nota Justificativa da Proposta de Lei enviada à Assembleia da República, que deu lugar ao atual regime jurídico aplicável ao tráfico de estupefacientes reconheceu-se que o «tráfico de quantidades diminutas» do DL n.º 430/83, não oferecia a maleabilidade necessária, justificando-se por isso a sua revisão « em termos que permitam ao julgador distinguir os casos de tráfico importante ou significativo do tráfico menor (…), havendo, portanto, que deixar uma válvula de segurança para que situações efetivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que, ao invés, se force ou use indevidamente uma atenuante especial.».


Logo após a entrada em vigor do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, e durante algum tempo, a jurisprudência fez uma interpretação algo restritiva do seu art.25.º, quase o esvaziando, ao remeter para o art.21.º a generalidade das situações de tráfico de estupefacientes.


Posteriormente, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, nomeadamente do STJ, convergiu no sentido de que « a integração do tráfico de menor gravidade do art.25.º não pressupõe necessariamente uma ilicitude diminuta», pois que resulta, designadamente da moldura prevista na sua al. a), a ilicitude pode ser considerável; deve é situar-se em nível acentuadamente inferior à pressuposta pela incriminação do tipo geral do art.21.º, já que « a medida justa da punição não tem resposta adequada dentro da moldura penal geral.».4


Por outras palavras, «os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de considerável diminuição de ilicitude”.». 5


Neste espírito, a jurisprudência vem alargando o campo de aplicação do art.25.º, do DL n.º 15/93, aos “retalhistas de rua” e pequenos detentores, sem ligações a quaisquer redes e que desprovidos de quaisquer organizações ou de meios logísticos, e sem acesso a grandes ou avultadas quantidades de estupefacientes.6


Tanto a quantidade do estupefaciente traficada, como a sua natureza ou o seu grau de pureza, influenciam decisivamente na aferição da gravidade do tráfico permitindo diferenciar entre os grandes (artigos 21.º, 22.º e 24.º do DL n.º 15/93) e os pequenos traficantes (art.25.º do DL n.º 15/93).


Considerando que é relativamente fácil o enquadramento do crime de tráfico agravado, pois a lei enumera taxativamente as diversas circunstâncias que considera qualificativas, mas que é matéria pouco elaborada pela jurisprudência a exemplificação do que deverá ser o tráfico de menor gravidade, cujo tipo criminal é sempre apresentado de um modo teórico e, depois, casuisticamente determinado, com as inevitáveis discrepâncias de tribunal para tribunal, o STJ, no seu acórdão de 23 de Novembro de 2011 - que o recorrente AA invoca -, enumera as seguintes circunstâncias, tendencialmente cumulativas, para que o agente possa ser condenado pelo crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro: (i) a atividade de tráfico é exercida por contacto direto do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet); (ii) as quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto; (iii) o período de duração da atividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado; (iv) as operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas; (v) os meios de transporte empregues na dita atividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos; (vi) os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes; (vii) - a atividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita; (viii) ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.24.º do DL 15/93.7


Critérios, como este, ajudam a guiar a jurisprudência para alguma objetividade de critérios e para que, em casos semelhantes, as consequências jurídicas venham a ser as mesmas, mas não devem ser entendidos como critérios normativos.


Importante é que na avaliação global da situação de facto não poderá deixar de se considerar a regra da proporcionalidade na apreciação dos fatores relevantes, como a quantidade e a qualidade dos estupefacientes comercializados, os lucros obtidos, o modo de vida, a afetação ou não de parte dos lucros ao financiamento do consumo próprio de estupefacientes, a duração e intensidade da atividade desenvolvida, o número de consumidores contactados e o posicionamento do agente na rede de distribuição dos estupefacientes.8


Assente que o juízo a emitir sobre a menor gravidade do tráfico deve ser um juízo global e abrangente sobre a conduta delitiva do agente, em que o desvalor da ação é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental do tráfico de estupefacientes previsto no art.21.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, vejamos se, no caso concreto, o tráfico levado a cabo pelo arguido pode ser considerado como de menor gravidade.


A fundamentação de direito do acórdão recorrido não é particularmente abundante a respeito do enquadramento do crime de tráfico de estupefaciente pelo qual o arguido vinha acusado e foi condenado.


Na verdade, após tecer breves considerações acerca do tipo penal e bem jurídico protegido, conclui: “Analisando os factos provados, cujo conteúdo se dá por reproduzido, desde logo se verifica que o seu comportamento se reconduz ao disposto no art.º 21.º, do DL 13/93, tendo o arguido actuado com dolo directo e com a consciência da ilicitude e punibilidade criminais de tais comportamentos.”.


Embora já na determinação da medida da pena, acrescenta-se na decisão recorrida, no respeitante ao grau da ilicitude, que “…em relação ao arguido AA releva a grande quantidade de produto estupefaciente que detinha na sua posse, sendo que só em MDMA detinha, numa primeira vez o equivalente para 1449 doses diárias e numa segunda vez para 88 dose diárias, sendo que o grau de pureza era elevado. Além disso detinha uma grande variedade de produto estupefacientes, assim com objectos relacionados com a venda. A sua actuação denota uma organização nessa venda com objectos relacionados com a mesma como sendo o caderno A5 com nomes de Hotéis na Bélgica e os bilhetes de avião.”.


Efetivamente, o desvalor da ação do arguido, que se retira do quadro global da factualidade dada como provada não é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental do tráfico de estupefacientes previsto no art.21.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, ou seja, não se reveste


de uma ilicitude consideravelmente diminuída, embora se conceda que o grau de ilicitude dentro do tipo fundamental se situa na parte média/inferior.


Senão vejamos.


Ao contrário do alegado pelo recorrente/arguido AA está demonstrado que o mesmo, desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde novembro de 2016 até 7 de fevereiro de 2017, ou seja, durante cerca de três meses, dedicou-se à venda de MDMA, MDEA, psilocibina e canábis.


Embora não se tenham apurado as quantias vendidas nesse período e as vantagens pecuniárias auferidas, apurou-se que no dia 29 de novembro de 2016, detinha na sua residência, com destino à venda a terceiros consumidores e revendedores, a significativa quantidade de 281,400 gramas de MDMA, com 51,5% de grau de pureza, suficiente para 1449 doses diárias, bem como uma pequena quantidade de canábis em folhas/sumidades (7,341 gramas) com 3,8% de grau de pureza, suficiente para 5 doses diárias e MDEA em quantidade residual e que, no dia 7 de fevereiro de 2017, detinha na mesma residência, com destino à venda a terceiros consumidores e revendedores, a quantidade de 9,808 gramas de MDMA, com grau de pureza de 83%, correspondente a 81 doses diárias, a que acresce, num embrulho de prata, a pequena quantidade de 0,046 gramas do mesmo produto, bem como 3,111 gramas de psilocibina e pequenas quantidades de canábis/resina (0,896 gramas, com grau de pureza de 1% , insuficiente para uma dose diária e 0,360 gramas, com um grau de pureza de 0,9%, insuficiente para uma dose diária) e 22,591 gramas de canábis/folhas sumidades, com um grau de pureza de 0,9%, correspondente a 4 doses diárias.


Detinha, ainda, quarenta pequenos sacos herméticos para acondicionamento de produto estupefaciente com resíduos de canábis.


O arguido não exercia qualquer atividade profissional, nem tinha outras fontes de rendimento, tendo-lhe sido apreendida durante a busca domiciliária, no dia 7 de fevereiro de 2017, a quantia de € 155,00 em notas do BCE.


Estão em causa quatro tipos de estupefacientes: canábis, MDMA, psilocibina e MDEA.


O tráfico de canábis não tem o carácter menosprezável do ponto de vista criminal que frequentemente se pretende atribuir-lhe. A ideia que atualmente se quer generalizada de que o consumo de cannabis não tem efeitos perniciosos nem gera dependência, não tem fundamento científico. Neste sentido, consigna-se no «Relatório Europeu sobre Drogas – 2020», do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA)», que “a canábis tem hoje um peso significativo nas admissões a tratamento de toxicodependência”.


A canábis gera apetências gradativamente mais exigentes, sendo frequentemente referida por consumidores de estupefacientes, como uma fase de acesso ou de iniciação a estupefacientes mais perniciosas para a saúde, continuando a ser a droga ilícita mais utilizada na Europa.9


Também o estupefaciente MDMA, substância estimulante com propriedades alucinogénias - vulgarmente conhecido pelo termo “ecstasy” e usada frequentemente como droga recreativa , é causa de dependência, embora não física. O que não significa que não existam riscos para a saúde física pois, como refere o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, do SNS, “Existem diversos estudos que revelam a possibilidade de existência de danos cerebrais irreversíveis como uma das consequências do consumo de ecstasy.”.10


O MDEA é um composto idêntico ao MDMA e com efeitos semelhantes a este produto.


A psilocibina (cogumelos mágicos) é uma substância com caráter psicoativo e alucinógeno, com riscos evidentes também para a saúde dos consumidores.


O quadro global dos factos apurados, em que o arguido vendeu quatro tipos de produtos estupefacientes, e detinha uma quantidade significativa de MDMA, com elevado grau de pureza, nas duas vezes em que foi objeto de busca domiciliária, não permite configurar o mesmo como um “retalhista de rua”, mas sim como um pequeno abastecedor que, como o próprio admite face aos documentos apreendidos e referidos no ponto n.º 2 dos factos provados, se deslocou a um outro país para adquirir e importar as quantidades de MDMA que lhe foram apreendidas.


Deste modo, mantém-se a condenação do arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.21.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 janeiro, improcedendo, consequentemente, esta primeira questão.


11.3. Da medida da pena


O recorrente sustenta, seguidamente e em termos muito sucintos, que pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.25.º do DL n.º 15/93, deverá ser-lhe fixada uma pena não superior ao meio da moldura penal, face ao disposto nos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2 e 71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Pena, pois o grau de ilicitude dos factos é pequeno, os meios usados são rudimentares, não realizou proventos, adquiriu os estupefacientes para seu consumo, mostra-se integrado familiar, laboral e socialmente na comunidade, e decorreram seis anos desde a prática dos factos, tendo entretanto modificado a sua vida, uma vez que se afastou do consumo de estupefacientes e encontrou emprego.


Caso assim não se entenda, e se enquadre a sua conduta no crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. art.21.º do DL n.º 15/93, então, pelos mesmos fundamentos supra expostos, entende o recorrente que a pena deverá ser-lhe fixada no seu limite mínimo.


Vejamos.


Afastado que se mostra o preenchimento pelo arguido/recorrente do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.25.º do DL n.º 15/93, importa relembrar que o art.21.º, n.º 1 do mesmo Diploma, prevê uma moldura penal abstrata de 4 a 12 anos de prisão, para quem preenche o tipo fundamental do tráfico de estupefacientes.


O Código Penal, que traça o sistema punitivo geral, estabelece no seu art.71.º, n.ºs 1 e 2, como critério de determinação da medida da pena, que esta é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele.


Em termos muito sucintos, a culpa traduz um juízo de censura, ou desaprovação, que é suscetível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta.


Traduz um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas.


O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete para a realização in casu das finalidades da pena, que de acordo com o art.40.º, n.º1, do Código Penal, são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.


O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.


Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).


A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico-penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.


Já a reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.


É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial.


Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção, pelo que a culpa é o limite inultrapassável de quaisquer considerações preventivas, fornecendo o limite máximo da pena.


Os fatores previstos no artigo 71º, do Código Penal, que relevam para a determinação da medida da pena, quer pela via da culpa, quer pela da prevenção, podem dividir-se, na lição de Figueiredo Dias11, em: “Fatores relativos à execução do facto;“Fatores relativos à personalidade do agente” e, em “Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”.


Como expende Maria João Antunes, podem ser agrupados nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. 12


11.3.1. Feitas estas considerações de âmbito geral, retomemos o caso concreto.


O acórdão recorrido, depois de verter os princípios que respeitam à determinação da medida da pena, consignou em concreto e com relevo para a determinação da medida da pena (transcrição parcial):


“Ponderando os factores relevantes para a determinação da medida concreta da pena, tem de se considerar o grau de ilicitude da conduta que é medio, bem como a sua actuação dolosa, na medida em que bem conheciam os arguidos as características estupefacientes dos produtos que detinham e que não tinha qualquer autorização para a deter.


São grandes as exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de criminalidade, na medida em que, é pelo facto de haver quem venda/ceda/proporcione que vai aumentando o número de consumidores. Por outro lado este tipo de comportamento e designadamente o consumo, leva à prática de outro tipo de crimes, contra as pessoas e o património.


Impõe-se, pois, fazer sentir-se a validade das normas violadas.


Relativamente a cada um dos arguidos importa ter em conta vários elementos de determinação da medida da pena que os diferenciam, ara além do próprio tipo legal em causa.


Assim, em relação ao arguido AA releva a grande quantidade de produto estupefaciente que detinha na sua posse, sendo que só em MDMA detinha, numa primeira vez o equivalente para 1449 doses diárias e numa segunda vez para 88 dose diárias, sendo que o grau de pureza era elevado.


Além disso detinha uma grande variedade de produto estupefacientes, assim com objectos relacionados com a venda. A sua actuação denota uma organização nessa venda com objectos relacionados com a mesma como sendo o caderno A5 com nomes de Hoteis na Bélgica e os bilhetes de avião.


O arguido tem condenações posteriores aos factos por crimes de furto qualificado, os quais andam as mais das vezes associadas ao crime de consumo e trafico de estupefacientes.


Aquando dos factos o arguido encontrava-se desempregado, era consumidor de produtos estupefacientes, e por via disso, continuou a contactar com o mundo da droga, quer ao nível do consumo, quer da venda, bem ciente da gravidade da conduta e das consequências penais da posse de tais produtos.


Impõe-se, que a pena o faço sentir a gravidade dos factos e a necessidade de abandono do consumo, pelas consequências nefastas que causa.


No que às exigências de prevenção especial são muito elevadas.


O arguido iniciou, ainda na adolescência, um percurso de toxicodependência.


É certo que importa ter em consideração o período já decorrido desde a prática dos factos, e que o arguido actualmente diz estar livre de consumos e ter trabalho certo, no entanto tal não é suficiente para afastar a gravidade da sua conduta.


Tem apoio familiar, sendo que a sua atitude evidencia uma personalidade desconforme com o direito.


O arguido denota uma personalidade claramente delituosa, que se impõe precaver.


Assim, o Tribunal colectivo deliberou aplicar ao arguido a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.”.


11.3.2. Acompanhamos, no essencial, a lógica argumentativa da decisão.


No entanto, afigura-se-nos que, no respeita aos “fatores relativos à execução do facto”, o grau de ilicitude do crime de tráfico de estupefacientes situa-se um pouco abaixo da média, dentro do tipo fundamental do tráfico.


Efetivamente, embora fosse razoavelmente elevada a quantidade de MDMA que o arguido possuía na primeira vez que foi objeto de busca domiciliária, pois correspondia ao equivalente para 1449 doses diárias e, numa segunda vez, ao equivalente para 88 dose diárias, e elevado o grau de pureza do produto, que vendeu durante pelo menos 3 meses conjuntamente com outros três tipos de estupefacientes (MDEA, psilocibina e canábis), a qualidade dos estupefacientes que detinha e vendeu, não é tão nociva para a saúde dos consumidores como são a heroína, a cocaína e outros derivados destes produtos estupefacientes.


No que respeita à execução do crime, se é correta a alegação de que os meios utilizados no tráfico dos estupefacientes não são particularmente sofisticados, ainda assim, a sua atuação denota já uma organização, como se anota no acórdão recorrido.


Quanto à gravidade das consequências do crime, não pode deixar de considerar-se razoavelmente elevada, tendo em conta a natureza dos produtos estupefacientes que entraram no circuito comercial de venda e as quantidades não despiciendas de produtos que só não entraram nesse circuito porque foram apreendidas ao arguido nos dias 29/11/2016 e 7/2/2017.


Tendo o arguido/recorrente atuado, nos termos descritos, durante cerca de 3 meses, com o intuito de auferir vantagem pecuniária, à custa da saúde dos terceiros consumidores, impõe-se concluir que agiu não só com dolo direto, mas intenso.


A motivação que o determinou a essa conduta foi obtenção de rendimentos, sendo mesmo essa atividade ilícita a sua única fonte de rendimentos á data dos factos.


Nos «Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto», que integram a alínea e), n.º2 do art.71.º do Código Penal, anotamos que o arguido tem já antecedentes criminais, tendo sido condenado, por dois crimes de furto qualificado, um por decisão de 2-6-2014 (factos de 15-5-2014) e, outro, por decisão de 10-10-2018 (factos de 9-9-2013), respetivamente, numa pena de 8 meses de prisão substituída por 240 horas de trabalho a favor da comunidade e numa pena de 28 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, ambas já declaradas extintas.


Tem, pois, o arguido, uma condenação por furto qualificado posterior aos factos - e não, como se refere no acórdão recorrido, “condenações posteriores aos factos por crimes de furto qualificado”.


Para além do arguido ter praticado os factos ora em causa, relativos ao tráfico de estupefacientes, após ter sido condenado pela prática de um dos dois crimes de furto qualificado, assim demonstrando alguma insensibilidade à penas não detentivas, também a sua detenção em 29 de novembro de 2016 e subsequente sujeição a interrogatório judicial não lhe serviu de advertência para mudar de comportamento, pois sujeito a nova busca domiciliária no dia 7 de fevereiro de 2017, continuava o arguido a deter produtos estupefacientes, que vendeu a terceiros durante aquele período.


Os factos ora em apreciação não surgem, pois, na vida do arguido AA como um episódio ocasional e isolado, no contexto de uma vida de resto fiel ao direito.


Iniciou o consumo de drogas aos 15 anos, e não teve intervenção terapêutica dirigida ao seu problema, “que refere ter superado em 2017, após ter registado uma fase marcada pelas dificuldades de acatar a norma e orientação familiar.” (ponto n.º 22 da factualidade dada como provada).


No período de cerca de 3 meses em causa, o arguido não exercia qualquer atividade profissional - como bem anota o acórdão recorrido.


Positivamente, anotamos que desde 2020 vem prestando atividades laborais regulares, auferindo atualmente e há mais de 1 ano uma retribuição mensal de €1300,00 (pontos n.ºs e 24 e 27 da factualidade provada).


Como realça a decisão recorrida, importa ainda ter em consideração o período já decorrido desde a prática dos factos.


Por fim, no que respeita aos “fatores relativos à personalidade do agente”, importa considerar que o arguido tem modestas habilitações literárias.


Vive num agregado familiar constituído pela sua mãe, uma irmã e a avó materna, sendo os elementos familiares com quem vive pessoas socialmente respeitadas no seu meio.


O crescimento do arguido em ligação privilegiada à sua avó materna, com quem praticamente sempre viveu (ponto n.º 20 da factualidade provada) e os hábitos de trabalho desde jovem, não o impediram, porém, de praticar factos ilícitos, demonstrando alguma dificuldade em acatar as normas de direito penal e alguma insensibilidade em ser influenciado pela pena, como se retira da circunstância de tendo sido condenado em 2-6-2014, no proc. n.º 159/14.0..., do Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital, pela prática de um crime de furto qualificado, praticou os factos ora em causa nos anos de 2016 e 2017.


Conjugando a personalidade do arguido, com o quadro das circunstâncias em que atuou, entendemos que são prementes as exigências de prevenção especial de socialização.


Muito elevadas são as exigências de prevenção geral no crime de tráfico de estupefacientes, pela forte ressonância negativa na consciência social das atividades que os consubstanciam, pelo que se justifica reforçar a ideia da validade dos bens jurídicos inerentes à norma violada.


Perante estes elementos objetivos relevantes para a culpa e para a prevenção, entendemos que a culpa do arguido, na prática dos factos durante os cerca de três meses em causa, é razoavelmente elevada.


Conjugando os fatores supra descritos e a personalidade do arguido AA, que deles se retira, com realce para o grau de ilicitude do crime de tráfico de estupefacientes que no caso se situa um pouco abaixo da média dentro do tipo fundamental do tráfico, entendemos que a pena de 5 anos e 6 meses de prisão é algo excessiva e desproporcional em razão das exigências de prevenção geral e especial.


Por mais adequada às finalidades da punição e aos critérios legais de proporcionalidade na determinação da medida da pena, sem ultrapassar a culpa, fixamos em 4 anos e 9 meses de prisão a pena a aplicar ao arguido AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro.


11.4. Da substituição da pena de prisão


Seguidamente, defende o recorrente que optando o Supremo Tribunal de Justiça pela convolação do crime de tráfico de estupefacientes do art.21.º do DL n.º 15/93, para um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.25.º, do mesmo Diploma, deverá a pena de prisão que lhe for aplicada ser suspensa na sua execução, nos termos do art.50.º do Código Penal, por se verificarem os respetivos pressupostos e, assim não se entendendo, deverá o arguido/recorrente beneficiar do regime de permanência na habitação previsto no art.43.º, n.º1, alínea b) do Código Penal.


Mantendo-se a condenação do arguido/recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. art.21.º do DL n.º 15/93, então deverá a pena aplicada, próxima dos limites mínimos da moldura penal, ser-lhe suspensa na execução, por se verificarem os respetivos pressupostos.


Para suspensão da execução da pena realça o recorrente as circunstâncias de ser pessoa bem inserida social e familiarmente, contando com o apoio da família no seu projeto de vida em liberdade, para além do atual controlo da problemática aditiva.


Vejamos se assim é.


A suspensão de execução da prisão é uma pena de substituição da prisão, cujos pressupostos vêm enunciados no art.50.º, n.º1 do Código Penal, nos seguintes termos: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.».


O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos.


O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.


No juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida (inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas, bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir).


A prognose exige a valoração conjunta de todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, pois a finalidade político-criminal visada com o instituto da suspensão da pena é o afastamento da prática pelo arguido, no futuro, de novos crimes.13


São finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e especial, não de compensação da culpa, que justificam e impõem a preferência por uma pena de substituição e sua efetiva aplicação.


O tribunal, quando aplicar pena de prisão não superior a 5 anos deve suspender a sua execução sempre que, reportando-se ao momento da decisão, possa fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, juízo este não necessariamente assente numa certeza, bastando uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização, em liberdade, do arguido.


No entanto, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada, mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização), se a ela se opuserem as finalidades da punição (art.50.º, n.º 1 e 40.º , n.º1 do Código Penal), nomeadamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que « só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto…».14


Importa aqui realçar, como também é salientado no douto acórdão recorrido, que os Tribunais Superiores, designadamente o STJ, vem reiteradamente afirmando que não se verificando circunstâncias excecionais não deve suspender-se a execução da pena de prisão aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes por a tanto se oporem as expetativas comunitárias da validade da norma violada.15


No presente caso, tendo em conta que o arguido/recorrente AA foi condenado numa pena inferior a 5 anos de prisão, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão encontra-se verificado.


No que respeita ao pressuposto material de aplicação desta pena de substituição, importa notar que é pessoa modesta, se mostra integrado familiarmente e com ligação privilegiada à sua avó materna que é socialmente respeitada, e tem hábitos de trabalho desde jovem.


Tais circunstâncias, porém, não foram suficientes para o impedirem da prática de crimes.


Efetivamente, o arguido tem já passado criminal, por prática de dois crimes contra o património. Embora estes crimes não sejam da mesma natureza do que ora está em apreciação, não pode deixar de realçar-se que os factos que integram o crime de tráfico de estupefacientes foram praticados já após a condenação do arguido pela prática de um dos crimes de furto qualificado, de onde se pode concluir que não foi sensível à pena não detentiva que lhe foi aplicada.


Nem sequer foi sensível à sua detenção em 29 de novembro de 2016 e sujeição a interrogatório judicial, para mudança de comportamento, pois sujeito a nova busca domiciliária no dia 7 de fevereiro de 2017, continuava o arguido a deter produtos estupefacientes, que vendeu a terceiros durante o período entre estas datas.


Como conduta posterior aos factos e relevando também para o conhecimento da personalidade do arguido, anotamos a ausência de confissão integral e aberta dos factos e de arrependimento, circunstâncias através das quais poderia demonstrar que previsivelmente não voltaria a praticar no futuro novos crimes.


A personalidade do arguido, que já não é jovem (nasceu a ...-...-1992), tem-se, pois, revelado algo refratária ao respeito às regras do direito.


O Tribunal deu como provado que o arguido “refere” que superou o consumo de produtos estupefacientes, apesar de não ter tido intervenção terapêutica dirigida a este seu problema, o que não é o mesmo que dar como provado que superou os seus problemas de adição a produtos estupefacientes.


A prognose sobre o comportamento do arguido à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização não é ainda positiva, mas negativa.


As exigências de prevenção geral, pelas razões atrás referidas são muito elevadas, pois o tráfico de estupefacientes é o tipo de crime que causa forte alarme e sentimentos de insegurança na comunidade.


Numa situação de tráfico de estupefacientes, como esta, entendemos que o sentimento jurídico da comunidade na validade e na força de vigência da norma jurídico-penal violada pelo arguido, ficaria afetado pela substituição, da pena de prisão por suspensão de execução da pena de prisão, mesmo que sujeita a condições.


Em suma, não existindo um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido/recorrente, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, entende este Supremo Tribunal não decretar a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido.


Uma última palavra se impõe, agora a propósito do regime de permanência na habitação, prevista no art.43.º , n.º1 , alínea b) do Código Penal, uma vez que o ora recorrente dele pretenderia beneficiar se o crime pelo qual fora condenado em 1.ª instância tivesse sido convolado para um crime de tráfico de menor gravidade, o que não veio a ocorrer.


O art.43.º do Código Penal, estabelece, além do mais, o seguinte:


«1- Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:


b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º; ».


A situação processual do arguido apenas pode integrar o disposto no art.80.º, n.º1 do Código Penal, na medida em que aí se dispõe que «A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.».


A única das medidas processuais a que alude o art.80.º, n.º1, do Código Penal, a que o arguido foi sujeito, neste processo, foi a de detenção entre o dia 29 de novembro de 2016 e o dia seguinte, uma vez que tendo sido sujeito a interrogatório judicial no dia 30 de novembro de 2016, foi libertado, com sujeição a TIR, obrigação de apresentações periódicas diárias e proibição de se ausentar do país.


O desconto do período de detenção sofrido pelo arguido na pena de 4 anos e 9 meses de prisão efetiva aplicada ao arguido, está longe de permitir o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, uma vez que o remanescente da pena é bem superior a 2 anos de prisão.


Improcede, deste modo, esta questão.


III - Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, alterando-se o acórdão recorrido na parte em que fixou a medida da pena, condena-se o mesmo arguido, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 janeiro, da pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão efetiva.


Sem tributação.


*


(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).


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Lisboa, 29 de fevereiro de 2024


Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro Relator)


Vasques Osório (Juiz Conselheiro Adjunto)


Albertina Pereira (Juíza Conselheira Adjunta)

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1. Cf. BMJ n.º 458º , pág. 98.↩︎

2. Cf. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.↩︎

3. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.↩︎

4. Cf. acórdão do S.T.J., de 15 de Fevereiro de 1999, proc. n.º 912/99.↩︎

5. Cf. acórdão do S.T.J., de 13 de abril de 2005, in C.J. n.º 184.º, pág. 173.↩︎

6. Cf. entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 13 de Fevereiro de 2003 ( C.J., n.º 166, pág. 191), de 29 de Novembro de 2005 ( C.J., n.º 187, pág. 219), de 30 de Março de 2006 ( proc. n.º 06P771, in www.dgsi.pt), de 15 de Fevereiro de 2007 ( C.J., n.º 198, pág. 191) e de 30 de Abril de 2008 ( proc. n.º 08P1416, in www.dgsi.pt).↩︎

7. Cf. proc. n.º 127/09.3PEFUN.S1, relatado por Santos Carvalho, com um voto de vencido de Rodrigues da Costa por entender que «…não compete ao aplicador do direito fixar, de uma forma tendencialmente geral e abstracta, circunstâncias, elementos, pressupostos ou actuações-padrão em que se deve concretizar uma determinada conduta típica, ou melhor dizendo, um determinado tipo de ilicitude. É essa uma tarefa regulamentadora que não pode confundir-se com a elaboração jurisprudencial. Acresce que, no caso, a pretexto de uma concretização, ainda que não exaustiva, dos elementos consubstanciadores da ilicitude consideravelmente diminuída postulada pelo art.25.º do DL 15/93, de 22/01, se utilizam com frequência outros conceitos indeterminados, que acrescem aos da própria lei, quando se pretendia concretizá-los.»- in www.dgsi.pt/stj.↩︎

8. Cf. neste sentido, os acórdãos do S.T.J. de 19-11-2008, proc. n.º 08P3454, de 12-12-2018, proc. n.º 394/17.9T8PTM.S1 e de 5-5-2022, proc. n.º 41/20.1PJCSC.L1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎

9. «Relatório Europeu sobre Drogas 2023: Destaques», do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA)↩︎

10. Cf. www.sidac.pt.↩︎

11. Cfr. “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime”, Editorial Notícias, pág. 245 a 255.↩︎

12. Cf. “ Consequências Jurídicas do Crime”, Lições para os alunos da FDC, Coimbra, 2010-2011.↩︎

13. Cfr., na doutrina, Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português , as Consequências do Crime”, pág. 337 e ss, e Prof. Jescheck, “Tratado de Derecho Penal”, vol. I, Bosch, 1981, págs. 1154 e 1155.↩︎

14. “Direito Penal Português , as Consequências do Crime”, pág. 344.↩︎

15. Cf. entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 11.10.2012, in “Coletânea de Jurisprudência”, tomo III, pág. 194, e de 10-10-2018, no proc. n.º 5/16.0GAAMT.S1, in www.dgsi.pt.↩︎