Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1782/14.8TBLRA-A.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: ARRESTO
CRÉDITO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONVENÇÃO DE HAIA
Data do Acordão: 04/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / CONFLITO DE LEIS / NORMAS DE CONFLITOS / LEI REGULADORA DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCEDIMENTOS CAUTELARES - PROCESSO DE EXECUÇÃO.
Doutrina:
- Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 13ª ed., p. 94.
- Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, 3ª Ed. (1977), p. 68.
- Lebre de Freitas, “Acção Executiva” Depois da Reforma da Reforma, 5.ª Ed., p. 115.
- Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, pp. 124/125.
- Paula Costa e Silva, A Reforma da Acção Executiva, 3ª Ed., p. 22.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 42.º, N.º2, 2.ª PARTE, 1211.º, N.º2.
CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 375.º, 391.º, N.º2, 615.º, N.º1, ALS. B), C) E D), 2.ª PARTE, 666.º, N.º1, 679.º, 773.º, 774.º, 777.º, N.º3.
REGULAMENTO (CE) Nº 44/2001: - ARTIGO 31.º
Sumário :
I - Como emanação do princípio da territorialidade da execução, cada Estado possui o monopólio das medidas coactivas efectuadas no seu território.

II - Enquanto realidades jurídicas destituídas de substrato real, os direitos a uma prestação não têm um lugar em que se situem, podendo, quando muito e quanto aos mesmos, falar-se em local do respectivo cumprimento.

III - Na ausência de atendível pacto atributivo de jurisdição/competência e face ao exarado em I, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para decretar o arresto de crédito de que uma empresa portuguesa seja, na qualidade de empreiteira, titular sobre uma outra empresa sedeada em Israel e dona da obra, aí, construída.

IV - A notificação da empresa israelita devedora, pressuposta em III, também não poderia ser levada a efeito mediante a aplicação da “Convenção de Haia, de 15.11.65, Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil ou Comercial”.
Decisão Texto Integral:

Proc. nº 1782/14.8TBLRA-A.C1.S1[1]

              (Rel. 209)

                              Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 - “AA, Lda” interpõe o presente recurso de revista do acórdão da Relação de Coimbra, de 16.09.14, que, confirmando a decisão recorrida, julgou internacionalmente incompetentes os tribunais portugueses - incluindo, pois, o tribunal demandado (4º Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial da comarca de Leiria) - para o decretamento do peticionado arresto sobre dois créditos de que a requerida “BB, Unipessoal, Lda” é, alegadamente, titular sobre duas sociedades ...itas, respeitantes ao pagamento, por estas, de parte do preço ajustado no âmbito de contratos de empreitada (construção de obras) celebrados entre a mencionada requerida e tais empresas, identificadas como “CC, com o nº de registo …, com sede em ..., ..., ..., em ..., e “DD LTD, com o nº de registo ..., com sede em ..., ..., em ..., sendo certo que a recorrente detém a qualidade de subempreiteira nos sobreditos contratos de empreitada.

       Visando a revogação do acórdão recorrido, a recorrente culminou as respectivas alegações com a formulação das seguintes conclusões:


/

1ª - Vem o presente recurso interposto do d. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou a decisão de incompetência internacional dos tribunais portugueses para decretar o arresto de créditos da requerida sobre entidades com sede em ..., aplicando-se ao caso as disposições relativas à admissão do recurso previstas dos arts. 370º, nº 2 parte final, 629º, nº 2, al. a) e 671º, nº 2, ai a) e nº 3, 1ª parte, todos do CPC, por estar em causa recurso com fundamento na violação das regras de competência internacional;

2ª - Confirmando a decisão da 1ª instância, embora parcialmente divergente quanto à fundamentação, o d. acórdão recorrido entendeu que, a competência internacional dos tribunais para o decretamento de arrestos deve ser resolvida com recurso às regras da competência internacional na acção executiva; e ainda que, estando em causa o arresto ou a penhora de direitos, o local do cumprimento da prestação devida ao executado é o factor determinante de atribuição da competência internacional;

3ª - Mais, considerou-se no d. acórdão ora recorrido que in casu o local de cumprimento da prestação é ... e que, por esse motivo, os Tribunais portugueses não têm competência internacional para decretar o arresto aqui requerido;

4ª - Ora, salvo o devido respeito, o d. acórdão enferma de nulidade desde logo quanto ao referido pressuposto de facto relativo ao referido local do cumprimento, pois que para além de não estarem minimamente especificados os fundamentos que justificam a decisão, a determinação do local do cumprimento em ... consubstancia excesso de pronúncia, vício que aqui se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no art. 615º, nº 1, als. b), c) e d) do CPC ex vi do art. 666º do CPC;

5ª - Com efeito, do d. acórdão recorrido não se vislumbram quaisquer fundamentos de facto que possam justificar o entendimento expendido pelo Tribunal a quo de que o lugar do cumprimento era em ...;

6ª - Nem tampouco se pode extrair da matéria de facto assente pela 1ª instância - que aliás não foi objecto de recurso - nem de qualquer elemento constante dos autos, que os direitos de créditos cujo arresto se peticiona devessem ser pagos naquele Estado;

7ª - Ademais, é expressamente alegado pela recorrente tanto no Requerimento inicial de arresto como no Recurso de Apelação (vide conclusão 9ª) que o lugar do cumprimento das obrigações devidas pelas entidades israelitas e cujo arresto aqui se peticiona é o lugar do domicílio do credor, ou seja, Portugal;

8ª - Sendo este o entendimento que resulta da aplicação do disposto no art. 774º do Código Civil que, na falta de outros elementos, deve ser supletivamente aplicado;

9ª - No presente caso, o Tribunal a quo não dispõe de quaisquer elementos que lhe permitam determinar o lugar do cumprimento seja em ...- como fez -, porque tal não foi alegado nem resulta dos elementos constantes dos autos;

10ª - Assim, a decisão recorrida sobre a fixação da competência internacional dos Tribunais portugueses assenta num pressuposto de facto que não está devidamente demonstrado nem pode ser ficcionado pelo Tribunal, o que aqui é ainda mais relevante porquanto estamos perante um procedimento cautelar de arresto de natureza urgente cuja finalidade é acautelar e conservar a garantia patrimonial dos créditos;

11ª - O crédito da requerente sobre a requerida ascende a mais de 634.861,31 €, estando já reconhecido que existe fundado receio da perda do seu crédito pela inexistência de bens da requerida; estando ainda assente que esta tem vindo a desenvolver a sua actividade predominantemente no estrangeiro, designadamente em ..., pelo que o arresto dos seus créditos sobre as entidades estrangeiras para quem esta tem vindo a executar trabalhos afigura-se ser o único meio de garantia patrimonial dos seus credores nacionais que, sendo recusado, abre caminho para legitimar a falta de cumprimento das obrigações da requerida em Portugal ao mesmo tempo que se lhe permitiria continuar a sua actividade e a ser detentora de bens de que espécie fossem no estrangeiro;

12ª - A decisão relativa à determinação do local do cumprimento da prestação devida à requerida e cujo arresto está aqui em causa - que o d. Acórdão recorrido indica ser em ... -, enferma de nulidade quer por não especificar os fundamentos de facto que justificam a determinação desse lugar do cumprimento, fixando esse lugar de cumprimento de forma discricionária e infundamentada, quer por exceder os poderes de cognição do Tribunal, nos termos aplicáveis do disposto no art. 615º, n9 1, ais. b), c) e d) do CPC ex vi art. 666º do CPC;

13ª - E, consequentemente é nula a decisão sobre a incompetência internacional dos Tribunais portugueses que assenta naquele erróneo pressuposto de facto, nulidade que aqui se invoca e que deverá ser reconhecida e declarada, determinando-se que, face aos elementos constantes dos autos, o local do cumprimento das obrigações de que a requerida é credora é Portugal, nos termos do disposto no art. 774º do Código Civil, e em consequência, seja reconhecida a competência internacional dos Tribunais portugueses para o decretamento do arresto dos créditos já identificados nos autos, com os fundamentos já indicados no d. acórdão recorrido;

14ª - Sem prejuízo do supra exposto, sempre se reitera que nos termos do disposto no art. 62ª al., a) do CPC conjugado com o art. 78º, nº 1, aI. a) do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para decidir o arresto aqui requerido, uma vez que são os tribunais portugueses competentes para decidir a acção principal de que aquele depende;

15ª - Pelo que, terá que se concluir que da conjugação das sobreditas disposições legais, resulta evidente a competência dos Tribunais portugueses para o arresto aqui em causa, devendo o intérprete presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, conforme determina o art, 9º, n9 3 do Código Civil;

16ª - Por outro lado, estabelece ainda o art. 62º, ai. c) do C.P.C. que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro e desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real;

17ª - No caso sub judice, a conexão com ... é residual quando confrontada com a apreciação do direito da requerente no seu todo, já que se refere exclusivamente ao facto de ali estarem sedeadas as entidades devedoras dos créditos cujo arresto se requer, enquanto a conexão com a ordem jurídica portuguesa é manifesta, resultando de elementos ponderosos, nomeadamente, requerente e requerida têm sede em Portugal; está em causa, a final, o pagamento de um crédito devido à requerente que deve ser efectuado em Portugal; à luz da lei portuguesa, o local do cumprimento dos créditos da requerida cujo arresto é pedido, poderá ser exigido em Portugal, lugar do domicílio do credor;

18ª - Acresce que é ainda manifesta a dificuldade da propositura destas acções no estrangeiro - no caso em ...-, uma vez que a conexão com este Estado diz respeito exclusivamente ao lugar da sede das entidades devedoras dos créditos cujo arresto se pede, e porque estando em causa um procedimento cautelar requerido na dependência de uma causa principal, necessário seria que subsistisse na acção principal algum critério de conexão com o Estado de ..., o que não se vislumbra;

19ª - Desta relação de dependência entre a acção cautelar e a acção principal e do facto de dentro da própria acção cautelar, nos termos em que foi requerida, existirem diferentes critérios de atribuição de competência, resulta assim a manifesta dificuldade para a requerente na propositura da acção no estrangeiro, prevista na alínea c) do art, 62º do CPC;

20ª - Pelo que também por via do art. 62º, aI. c) do CPC, se conclui pela atribuição de competência internacional aos Tribunais portugueses para a apreciação e decretamento do arresto requerido;

21ª - Por outro lado, pese embora ao arresto devam ser aplicadas as disposições relativas à penhora, é manifesto que, ao contrário do processo executivo, o arresto tem uma fase declaratória que consiste na decisão judicial de decretamento do arresto, anterior à fase da execução dessa decisão;

22ª - Assim, em matéria de competência internacional, cabia apenas ao Tribunal a quo apurar se existe alguma norma aplicável que lhe permita notificar validamente um devedor sedeado em ..., isto é, em termos que devam ser reconhecidos por esse Estado, sendo certo que existe e é a Convenção da Haia relativa à citação e à notificação no estrangeiro dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial, de 15 de Novembro de 1965, ratificada pelo Estado Português através do Decreto-Lei n.º 210/71, de 18 de Maio, publicado em Diário da República em 18.05.1971 e aplicável nos termos do art. 8º, nº2 da C.R.P;

23ª - A referida convenção internacional, de que também ... é Estado contratante, destina-se precisamente a assegurar a possibilidade de efectuar citações e notificações no estrangeiro, aplicando-se especificamente à notificação de actos judiciais em matéria civil e comercial;

24ª - Aliás, o entendimento jurisprudencial dominante nas relações entre Estados Membros da União Europeia é de que o arresto de créditos pode ser decretado e ordenada a sua notificação ao devedor nos termos aplicáveis à penhora, aplicando-se o Regulamento Comunitário relativo à citação e notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial;

25ª - Verifica-se, assim, um efectivo paralelismo entre o âmbito daquele Regulamento (CE) e a sobredita Convenção Internacional da Haia, já que ambos têm exactamente o mesmo âmbito de aplicação objectivo: a citação e notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial;

26ª - Não existe, pois, qualquer impedimento ao decretamento do arresto dos créditos identificados, tendo os Tribunais portugueses efectiva competência internacional para o decretar, através da notificação dos devedores com sede em ... nos termos aplicáveis da Convenção Internacional da Haia relativa à citação e à notificação no estrangeiro dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial, de 15 de Novembro de 1965;

27ª - Ao concluir pela incompetência absoluta internacional dos tribunais portugueses, o d. Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 59º; 62º, als. a) e c); 78º, n9 1, al. a); 391º, nº 2, e 773º, todos do CPC; no art. 8º da C.R.P. e bem assim, nas cláusulas 2ª, 3ª, 5ª da Convenção da Haia relativa à citação e à notificação no estrangeiro dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial, de 15 de Novembro de 1965;

28ª - Pelo que, deve tal decisão ser revogada e substituída por outra que reconheça a competência internacional dos tribunais portugueses para o decretamento do arresto dos créditos da requerida/recorrida sobre as sociedades ...itas identificadas nos autos, ordenando esse arresto nos termos do art. 773º do C.P.C, conjugados com as cláusulas 2ª, 3ª, 5ª da Convenção da Haia relativa à citação e à notificação no estrangeiro dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial, de 15 de Novembro de 1965.

      Termos em que deve o presente recurso de revista ser admitido e julgado totalmente procedente, reconhecendo-se as nulidades invocadas, devendo, por consequência e independentemente da declaração das referidas nulidades, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que declare a competência internacional dos Tribunais portugueses para decretar o arresto dos créditos da requerida identificados no Requerimento Inicial, com o que se fará a costumada e muito necessária JUSTIÇA!

       Não constam dos autos contra-alegações.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                      *

2 - No requerimento inicial do impetrado arresto, alegou, entre o mais, a requerente:

--- 1 - A requerente é uma sociedade que se dedica à indústria de construção civil;

--- 2 - Por seu lado, a requerida dedica-se, entre outras, à actividade de construção civil e obras públicas;

--- 3 - No âmbito das suas sobreditas actividades profissionais, em 28.03.12, requerente e requerida acordaram que aquela executaria por conta desta uma parte da obra de construção, designadamente revestimentos e acabamentos de um edifício sito na Rua …, …, …, ..., destinado a unidade industrial da empresa …. Ltd, com sede em …, …, ..., com o nº de identificação fiscal …, cuja construção havia sido por esta adjudicada à requerida, tudo conforme consta do contrato escrito denominado de empreitada, junto como Doc. 1 e em que o cliente final é, abreviadamente, identificado como MD;

--- 4 - A requerida é, ainda, titular de dois créditos relativos ao pagamento de parte do preço ajustado no âmbito de contratos de empreitada de construção civil que celebrou com:

--- A - CC, com sede em ..., ..., ..., em ...; e

--- B - “DD LTD, com sede em …, 17, ... - ....

                                                      *

3 - À semelhança do que foi entendido no acórdão recorrido, também aqui prescindiremos de enunciar os demais factos que a decisão apelada teve por provados, uma vez que se evidencia que os mesmos foram, aí, considerados na perspectiva do decretamento do arresto incidente sobre os bens da requerida localizados em Portugal, relevando, pois, relativamente a outros objectos da pretensão de arresto de bens da devedora, uma vez que consubstanciam a base fáctica - aqui, igualmente, dada por verificada - do alegado justo receio e da probabilidade séria da existência do crédito pretendido acautelar.

                                                        *

4 - Face ao teor das conclusões formuladas pela recorrente e não havendo lugar a qualquer conhecimento oficioso, as questões por si suscitadas e que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso resumem-se a saber se:

                                                     /

 I - O acórdão recorrido enferma da nulidade prevista nas als. b), c) e d), 2ª parte, do nº1 do art. 615º do CPC[2], “ex vi” da conjugação do preceituado nos arts. 666º, nº1 e 679º; e se

II - Os tribunais portugueses - incluindo, pois, o demandado pela requerente do arresto - são internacionalmente competentes para o decretamento duma providência cautelar de arresto cujo objecto - os bens do devedor, na terminologia do nº1 do art. 391º - é constituído por créditos desse devedor com a sobredita proveniência, ou seja, “existentes” no Estado de ... e em que, por seu turno, figuram como devedoras sociedades israelitas.

       Apreciando:

                                                   *

5 - Nos termos dos citados arts. 615º, nº1, als. b), c) e d), 2ª parte, 666º, nº1 e 679º, o acórdão da Relação é nulo quando… não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (b), os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (c), e, finalmente, os seus autores conheçam de questão de que não deviam tomar conhecimento (d), 2ª parte).

      A recorrente pretende que o acórdão recorrido enferma de tais nulidades, uma vez que, aí, se tomou conhecimento, indevidamente e sem qualquer fundamentação, da problemática respeitante ao lugar de cumprimento da prestação a cargo das devedoras israelitas, o que nunca fora suscitado nos autos.

      A recorrente não tem razão: a sobredita problemática não consubstancia qualquer questão abrangida pela delimitação dos poderes de conhecimento do julgador, antes correspondendo apenas a uma vertente do seu percurso argumentativo, na abordagem e decisão da única questão que lhe fora colocada para resolver: a de saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o decretamento do impetrado arresto dos créditos que a recorrida detém sobre as duas mencionadas sociedades israelitas.

       Ao que acresce que não se mostra minimamente fundamentada a arguição da nulidade prevista na mencionada al. c), tendo, por outro lado, sido invocada fundamentação para o entendimento de que o lugar do cumprimento da prestação emergente de tais créditos se situa no Estado de ..., porquanto - invocou-se - se trata de “dívidas de sociedades ...itas” (Cfr. fls.332).

      Trata-se de fundamentação exígua, mas, como é sabido, só a ausência total de fundamentação - e não a sua deficiência, mediocridade ou inadequação - é dotada de idoneidade para consubstanciar a nulidade em causa, a qual, por isso, não ocorre.

      Improcedendo, pois, as correspondentes conclusões formuladas pela recorrente.

                                                        *

6 - I - A questão enunciada em II de 4 supra apresenta alguma complexidade, constituindo, bem vistas as coisas, o cerne da presente revista, não podendo omitir-se a referência ao carácter exaustivo e bem documentado com que a mesma foi abordada e tratada, nas impugnadas decisões das instâncias.

      A mesma contende com o denominado princípio da territorialidade da execução, nos termos do qual cada Estado possui o monopólio das medidas coactivas efectuadas no seu território.

      Em sintonia, já em 1998, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa[3] sustentou que: “A competência executiva internacional dos tribunais portugueses pressupõe uma conexão relevante da acção executiva com a ordem jurídica portuguesa, porque os tribunais nacionais não podem (nem devem) ser competentes para toda e qualquer execução. A necessidade desta conexão é uma consequência do princípio da territorialidade ao qual estão submetidas as medidas através das quais se obtém a realização coactiva da prestação exequenda…Por este motivo, o factor de conexão relevante para a aferição da competência executiva internacional dos tribunais portugueses não pode deixar de ser a circunstância de as medidas necessárias à realização coactiva da prestação poderem ocorrer em território português”.

      Aparentando ser do mesmo entendimento o Prof. Anselmo de Castro[4], o qual, perante a redacção, então, vigente da al. d) do art. 65º do CPC - introduzida pelo DL nº 44129, de 28.12.61 - teve por “preferível a solução de restringir a competência internacional dos tribunais portugueses para as execuções baseadas em sentença aos casos em que os bens a executar se encontrem em Portugal” e aplicar, “como princípio geral para as execuções baseadas noutro título, a norma estabelecida no nº3 do art. 94º: em resumo, reconhecer competência internacional aos tribunais portugueses sempre e só quando a execução deva correr sobre bens sitos em Portugal”. Acrescentando o mesmo autor que “já ALBERTO DOS REIS implicitamente o reconhecia, ao afirmar que o problema da competência internacional na acção executiva se confinava aos casos em que os actos executivos tenham que ser praticados em Portugal”.

      Outro não parecendo ser o entendimento do Cons. Amâncio Ferreira[5], quando sustenta que “No âmbito das Convenções de Bruxelas e de Lugano e do Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22.12.00, os tribunais portugueses só têm competência internacional em matéria de execução de decisões, ante o estatuído no art. 16º, nº5, daquelas e 22º, nº5, deste, se forem os do lugar da execução, ou seja, se em território português se situarem os bens a apreender, por só aqui ser possível «o recurso à força, à coacção ou ao desapossamento de bens móveis ou imóveis em vista da execução material das decisões dos actos»”.

                                                      /

II - No caso dos autos, confrontamo-nos com um pedido de decretamento de arresto de dois créditos que se alega serem detidos pela, aí, requerida sobre duas sociedades sedeadas em ..., emergindo aqueles do não pagamento à, aí, requerente e, ora, recorrente, de parte do preço que lhe será devido pela requerida, na qualidade de empreiteira de obras (construção de edifícios localizados em ...) pertencentes às mencionadas sociedades israelitas e que a requerente levou a cabo, em regime de subempreitada, nos termos documentados nos autos (Cfr. fls. 27 a 32).

       Nos termos do disposto no art. 391º, nº2, “O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado” na respectiva secção.

       Assim, confrontando-nos, no caso, com um pedido de arresto de direitos de crédito, somos remetidos para o preceituado no art. 773º, o qual, subordinado à epígrafe “Penhora de direitos”, e entre o mais, dispõe que:

--- “A penhora de créditos consiste na notificação do devedor, feita com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta, de que o crédito fica à ordem do agente de execução” (1);

--- “Cumpre ao devedor declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução” (2);

--- “ Não podendo ser efectuadas no acto da notificação, as declarações referidas no número anterior são prestadas por escrito ao agente de execução, no prazo de 10 dias” (3);

--- “Se o devedor nada disser, entende-se que ele reconhece a existência da obrigação, nos termos da indicação do crédito à penhora” (4);

--- “Se faltar conscientemente à verdade, o devedor incorre na responsabilidade do litigante de má fé” (5);

--- “O exequente, o executado e os credores reclamantes podem requerer ao juiz a prática, ou a autorização para a prática, dos actos que se afigurem indispensáveis à conservação do direito de crédito penhorado” (6);

--- …”(7).

       Por seu turno, estatui o art. 777º, nº3 que, “Não sendo cumprida a obrigação, pode o exequente ou o adquirente exigir, nos próprios autos de execução, a prestação, servindo de título executivo a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efectuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito”.

       E, no art. 375º, confere-se garantia penal às providências cautelares (entre as quais o arresto), dispondo-se que “Incorre na pena do crime de desobediência qualificada” (Cfr. art. 348º do CPen.) “todo aquele que infrinja a providência cautelar decretada, sem prejuízo das medidas adequadas à sua execução coerciva”.

                                                    /

III - Na argumentação da recorrente, detectam-se dois lapsos ou confusões com transcendente repercussão na abordagem jurídica da questão suscitada nos autos e que vem prendendo a nossa atenção.

       Em primeiro lugar, as devedoras dos créditos arrestandos são as sociedades israelitas donas das obras edificadas e não a, ora, recorrida, sendo esta a respectiva credora e não a, ora, recorrente.

      Em segundo lugar e por via do que acaba de ser acentuado, o impetrado arresto não se reporta a uma relação jurídica plurilocalizada e que vincule dois Estados Membros da União Europeia (UE), antes contendendo com os ordenamentos jurídicos dum Estado Membro da UE (Portugal) e doutro que não tem tal qualidade (...).

       O que, desde logo, impõe que, dado o não preenchimento daquela 1ª hipótese, a situação configurada não possa ser regulada pelo art. 31º do mencionado Regulamento (CE) nº 44/2001. Não podendo, por outro lado, ser dada ao estipulado na cláusula 4ª, nº3 do documentado contrato de empreitada a relevância que a recorrente lhe empresta, porquanto tal cláusula diz apenas respeito ao contrato de subempreitada celebrado entre a recorrente e a recorrida e não aos contratos de empreitada celebrados entre a recorrida e as referidas sociedades israelitas, contratos estes donde emergem e a que dizem respeito os dois arrestandos créditos da recorrida.

      Daí que o controvertido local de pagamento de tais créditos não possa ser determinado com recurso ao estipulado em tal cláusula, a qual apenas dispõe quanto aos créditos de que a recorrente seja titular sobre a recorrida e emergentes do contrato em que a mesma se insere.

                                                      /

IV - Impõe-se, no entanto, perante o que ficou expendido, determinar qual o local de pagamento, ou seja, do cumprimento da prestação pecuniária a cargo de cada uma das sociedades israelitas devedoras da recorrida.

      Na realidade, o objecto dos impetrados arrestos aqui em causa é constituído pelo direito à sobredita prestação, sendo certo que, como sustenta Paula Costa e Silva[6], “enquanto realidades jurídicas destituídas de substrato real, os direitos a uma prestação não têm um lugar em que se situem”, podendo, quando muito e quanto aos mesmos, falar-se em local do respectivo cumprimento e não fazendo sentido impor uma competência exclusiva dos tribunais portugueses, excludente da competência de tribunais estrangeiros, quando a execução deva recair, não sobre coisas, mas sobre direitos a uma prestação.[7]

      Pois bem, não obstante os autos não facultarem todos os correspondentes elementos imprescindíveis, tudo indica que, em termos de normas de conflitos e não havendo notícia, nos autos, de qualquer estipulação das partes quanto à determinação da lei competente, seria de aplicar à disciplina legal da questão em apreço a lei substantiva israelita (estão em causa duas sociedades israelitas devedoras, sedeadas em ..., sendo plausível que os contratos de empreitada donde emergem os créditos arrestandos tenham sido celebrados em ... - Cfr. art. 42º, nº2, 2ª parte, do CC), sendo, pois, razoável admitir que, aí, se situe o local de cumprimento das sobreditas prestações, por decorrência da coincidente localização dos edifícios construídos.

      Mas, mesmo que se hipotize a aplicação da lei substantiva portuguesa, o local de cumprimento das sobreditas prestações não poderia deixar de situar-se no território israelita, atenta aquela localização, em conjugação com o preceituado no art. 1211º, nº2 do CC. Não podendo, pois, ter qualquer aplicação ao caso o preceituado no art. 774º deste mesmo Cod., como pretende a recorrente, uma vez que a fonte dos créditos arrestandos é constituída pela obrigação especial de pagamento do preço das empreitadas, por parte das sociedades israelitas (donas das obras) à recorrida (sua empreiteira), sem que possa, em tal quadro, assumir qualquer relevância jurídica o “domicílio” da recorrente ao tempo de tal pagamento.

      Aqui chegados, não podemos deixar de aderir ao acórdão recorrido, quando, no mesmo e entre o mais, se expende: “…o problema do alcance executivo de um direito, como caso especial, acresce ao problema geral da competência internacional para a acção executiva, em função do elemento coactivo necessariamente envolvido em toda a adjectivação executiva (elemento coactivo que sai substancialmente amplificado na tutela cautelar mediante arresto). Com efeito, é logo na tutela executiva geral, fora de um quadro convencional que expressamente se lhe refira, que é difícil ultrapassar a dimensão nacional (chamemos assim à dimensão que expressa uma forte ligação da adjectivação executiva ao exercício concreto da soberania de um Estado) necessariamente convocada pelo elemento coactivo envolvido na adjectivação executiva, no sentido em que esta pressupõe, na falta de cumprimento voluntário da obrigação, a realização coactiva da prestação, envolvendo necessariamente, no que expressa a verdadeira essência dos chamados actos de execução, a possibilidade prática (efectiva) dessa realização coactiva. Expressa este factor condicionante da competência internacional uma intensificação da ligação à soberania de um Estado da tutela jurisdicional, correspondendo a um elemento de relevância do Direito Internacional Público na questão da competência internacional. Ora, esta sobrevalorização da dimensão coactiva (rectius, o poder de condicionar o comportamento de entidades actuantes num determinado Estado, compelindo-as a actuar de determinada forma), envolvida pela tutela executiva, aparece-nos igualmente presente, por total identidade de razão, na tutela cautelar mediante um procedimento cautelar de arresto (…) É com este sentido que aqui afirmamos a incompetência internacional dos tribunais portugueses para o decretamento de um arresto referido a um direito (do qual seja titular o requerido nesse arresto) que implique a efectivação de uma prestação cujo local de cumprimento se situe num outro Estado, aqui no Estado de .... Para esse acto de arresto - para obtenção do efeito que se expressa entre nós por via da penhora de um direito - serão competentes os tribunais desse Estado, no sentido em que são esses órgãos jurisdicionais que podem obrigar - designadamente associando consequências desvaliosas ao não acatamento de uma injunção comportamental - as duas sociedades israelitas indicadas a realizar à sociedade ora requerente e aqui apelante as prestações devidas à requerida”.

       Na realidade, e como se ponderou, a tutela cautelar do decretado arresto, para além de poder implicar uma intimação por parte de um Estado a um ente jurídico pertencente a outro Estado, com o inerente desrespeito e ofensa da soberania deste último, em violação da regra mais elementar do correspondente Direito Internacional Público, poderia, ainda, nos termos que se deixaram mencionados, vir a determinar - para além da imposição prevista no art. 777º, nº3 - a responsabilização criminal ou condenação como litigante de má fé do mesmo ente jurídico, por parte daquele primeiro Estado, com idêntica e inadmissível violação da soberania do último.

                                                         /

V - Finalizando, observar-se-á que, perante o expendido, não tem qualquer sentido a aplicação, “in casu”, da “Convenção de Haia, de 15.11.65, Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil ou Comercial”, como sustenta a recorrente: como decorre de quanto ficou exposto, o que está, aqui, em causa não pode ser considerado uma simples citação ou notificação, traduzindo uma realidade jurídica muito mais complexa, para além de que - como se observa no acórdão recorrido - a aplicação da Convenção pressupõe a prévia determinação e atribuição da correspondente competência ao tribunal que a aplica.

       Improcedendo, assim, as remanescentes conclusões formuladas pela recorrente.

                                                     *

7 - Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista.

     Custas pela recorrente.

                                                    /

                                       Lx       21/    04 /  2015  

Fernandes do Vale (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida    

____________________
[1]  Relator: Fernandes do Vale (02/15)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Ana Paula Boularot
   Cons. Pinto de Almeida
[2]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.
[3] In “Acção Executiva Singular”, pags. 124/125.
[4]  In “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, 3ª Ed. (1977), pags. 68.
[5]  In “Curso de Processo de Execução”, 13ª ed., pags. 94.
[6]  In “A Reforma da Acção Executiva”, 3ª Ed., pags. 22.
[7]  Em sentido que se nos afigura coincidente, Prof. Lebre de Freitas, na sua “Acção ExecutivaDepois da Reforma da Reforma, 5ª Ed., pags. 115.