Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A4036
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
BENFEITORIAS
POSSE
DETENÇÃO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
Nº do Documento: SJ200702060040366
Data do Acordão: 02/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - O direito à indemnização por benfeitorias previsto no art.º 1273.º do CC, tem como pressuposto essencial, a existência de uma posse que cede perante o melhor direito que alguém detenha sobre a coisa reivindicada.
II - Quando a lei, no preceito referido em I fala em posse, está a querer dizer posse verdadeira e própria, posse em nome próprio, e não simples detenção.
III - A circunstância de a autora ter estado convencida que seria a dona do imóvel é totalmente inócua para a existência do animus possidendi (elemento subjectivo do instituto); esse convencimento, por si só, a nada conduz, nem comporta nenhuma consequência jurídica no âmbito da posse.
IV - Em matéria de indemnização por benfeitorias só tem cabimento pretensão com base em enriquecimento sem causa relativamente a benfeitorias úteis que não possam ser levantadas sem detrimento da coisa.
V - Em face dos art.ºs 216º, nº 3, e 1273º, nº 2, parte final, é indispensável alegar, como fundamento da indemnização por benfeitorias necessárias e benfeitorias úteis, quais as obras correspondentes a cada uma das espécies, e ainda, quanto às necessárias, que elas se destinaram a evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa, e, quanto às úteis, que a valorizaram, que o levantamento a deterioraria e qual o respectivo custo e valor actual.
VI - Os factos materiais que permitem ao juiz concluir sobre a verificação dos indicados fundamentos são constitutivos do direito do autor, integrando-se na causa de pedir; daí que recaia sobre ele, autor, o ónus da prova respectivo (art.º 342º, nº 1).
VII - Verificando-se que a autora não descreveu nem caracterizou os trabalhos realizados de molde a propiciar a sua qualificação jurídica em termos seguros como benfeitorias úteis e (ou) necessárias e que também nada de concludente alegou na petição em ordem à demonstração de que o levantamento das úteis, a verificar-se, determinaria a deterioração do prédio, o julgador encontrava-se impedido de dar como verificados tais factos com base numa suposta notoriedade que, é manifesto, não ocorre, por não se verificar quanto a eles o requisito exigido pelo art.º 514º, nº 1, do CPC, que é o de serem do conhecimento geral.
VIII - Resultando dos factos provados que a autora solicitou à Câmara Municipal o reembolso das despesas que ia suportando com as obras levadas a cabo no prédio ajuizado e que a autarquia, por estar empenhada, no interesse do concelho, na instalação duma Escola, tomou a decisão de o fazer provisoriamente no prédio da ré enquanto decorriam as negociações para a aquisição doutro terreno, subsidiando, como efectivamente subsidiou, as obras realizadas com aquela finalidade, é inviável retirar a ilação de que a ré obteve uma vantagem económica à custa do património da autora.
IX - Se houve empobrecimento de alguém, no sentido visado pelos art.ºs 473º e 479º do CC, seguramente que não foi da autora; e quanto ao enriquecimento da ré não se mostra sequer objectivamente possível a sua determinação e concretização por falta de elementos precisos a respeito da natureza das obras.
X - Faltando os requisitos do empobrecimento e do enriquecimento fica patente que, caindo pela base o terceiro requisito que importaria demonstrar - ausência de causa justificativa - se torna desnecessário, por inútil, o conhecimento dessa faceta da questão ajuizada. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - O CENTRO SOCIAL DE ...., IPSS, com sede no lugar da Igreja, freguesia de ..., comarca de Barcelos, propôs uma acção ordinária contra a FÁBRICA DA IGREJA PAROQUIAL DE ...., com sede no mesmo lugar e freguesia, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a importância de 300.000 € a título de indemnização pelas benfeitorias necessárias e úteis que realizou num imóvel pertencente à ré.
A acção, contestada, foi declarada parcialmente procedente por sentença de 9.6.06, que condenou a ré a pagar à autora uma indemnização no valor de 142.520 €.
Inconformada, a ré recorreu directamente para este Supremo Tribunal, nos termos do art.º 725º, nº 1, do CPC, e, concluindo as suas alegações, sustentou a revogação da sentença e a sua absolvição do pedido, indicando como disposições legais violadas os art.ºs 473º, 474º e 1287º do Código Civil, 659º, nº 3, 668º, nº 1, c) e 673º do Código de Processo Civil.
A autora contra alegou, defendendo a confirmação do julgado.
Tudo visto, cumpre decidir.
II - Factos a considerar:
1 - Por sentença transitada em julgado e proferida na acção de simples apreciação negativa nº 64/99 que correu os seus termos no 2° Juízo Cível da comarca de Barcelos, intentada pela autora contra a ré, foi a autora condenada a reconhecer o direito de propriedade da ré sobre o prédio urbano composto de rés do chão e andar, com várias divisões interiores, com a área de 1.000 m2 e logradouro de 2.000 m2, actualmente inscrito na matriz urbana da freguesia de ... sob o artigo 217º em nome da ré e descrito na CRP como fazendo parte do referido no nº 132 de .... e inscrito em nome da ré.
2 - A autora ocupa nove compartimentos no imóvel.
3 - Em 1989, quando o imóvel era ocupado pela Igreja para a catequese, por um Jardim de Infância que recolhia cerca de 40 crianças e pelas actividades associativas da autora, a Câmara Municipal de Barcelos, com o empenhamento da Associação Portuguesa de Desenvolvimento Rural, projectou instalar na freguesia de ... uma Casa-Escola Agrícola.
4 - No início do ano de 1989 a autora foi interpelada pela Câmara Municipal de Barcelos acerca da possibilidade de vir a ser instalada naquele imóvel uma Escola Agrícola.
5 - Por forma a garantir que a referida escola seria instalada em benefício da Freguesia e que as actividades por si desenvolvidas teriam um espaço destinado ao seu funcionamento, foram efectuados pedidos de atribuição de subsídios camarários e foi pedida a colaboração na medida das possibilidades aos associados para a ampliação das instalações existentes em 440 m2.
6 - A Câmara Municipal de Barcelos atribuiu subsídios em dinheiro à Associação Centro Social de ...., e entregou ainda cimento, areia, ferro, mosaicos, tinta, tijolos e outros materiais para a execução das obras referentes à instalação, no edifício referido em 1), da "Casa-Escola Agrícola".
7 - Os associados contribuíram no pagamento de despesas que foram surgindo no decorrer das obras de empreitada e com mão de obra gratuita ou a custo reduzido.
8 - A autora ordenou a pavimentação de todo o interior do edifício primitivo por esta área se encontrar em mau estado de conservação, a pintura de toda a fachada exterior, a instalação de um novo sistema eléctrico em todo o edifício e de canalizações para possibilitar o abastecimento de água potável.
9 - Colocou portas novas em todo o edifício em substituição de portas avariadas e instalou material sanitário nas casas de banho do edifício.
10 - O que sucedeu por a autora estar convicta de que estava a beneficiar um bem próprio.
11 - Tais obras realizadas no imóvel foram orientadas e conduzidas por elementos da autora.
12 - A autora solicitou à Câmara Municipal de Barcelos o reembolso das despesas que ia suportando com tais obras.
13 - Os pagamentos devidos a trabalhadores e fornecedores eram feitos com subsídios que a Câmara Municipal de Barcelos atribuiu à autora, expressamente para esse efeito.
14 - O valor patrimonial das obras realizadas no edifício é de € 80.000, à data em que foram executadas, ao qual corresponde actualmente o valor de € 142.520.
15 - AA, 1º. presidente da A., serviu de mediador nas negociações e nas diligências que se seguiram ao facto referido em 3., com vista à instalação, que veio a fazer-se, da Casa-Escola Agrícola em .....
16 - A Câmara Municipal de Barcelos encetou negociações com a Igreja, através da sede Arquidiocesana, no sentido de adquirir, por compra, terrenos da Quinta do ..., onde se acha construído o imóvel, seleccionou tais terrenos e avaliou-os para efeitos de estabelecer o seu preço.
17 - Enquanto aquelas diligências decorriam a Câmara Municipal de Barcelos decidiu instalar provisoriamente a "Casa-Escola Agrícola", que passou a denominar-se "Casa-Escola Agrícola do ....", no edifício referido em 1).
18 - Com vista à instalação da "Casa-Escola Agrícola", a Câmara Municipal subsidiou obras de adaptação e de ampliação do edifício em causa, quer no topo norte, quer no seu topo sul.
19 - As obras levadas a cabo no edifício referido em 1) tiveram por objectivo permitir que, para além da instalação e funcionamento da "Casa-Escola Agrícola, continuasse a haver espaços para as outras actividades que nele se vinham desenvolvendo, para o que foi ampliado o topo norte, dotando-o de mais uma sala no rés-do-chão e outra no 1º andar.
20 - Com o mesmo objectivo, foi igualmente ampliado o topo sul, ampliando-se a cozinha ao nível do 1º piso e uma sala ao nível do 2º Piso.
A questão de direito que está colocada no recurso é a de saber se estão reunidos todos os pressupostos da acção de restituição por enriquecimento sem causa, instituto para o qual a norma substantiva em que a sentença se fundou para decretar a procedência do pedido directamente remete.
Essa norma é a do art.º 1273º do Código Civil, que dispõe o seguinte:
1. Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela.
2. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.
O direito a que o preceito se refere, como observam Pires de Lima/Antunes Varela no CCAnotado, III, 43, "só pode ser exercido quando o proprietário reivindica triunfantemente a coisa, sendo como que um contradireito relativamente à pretensão reivindicatória". E resulta claramente do texto legal que pressuposto essencial do direito à indemnização por benfeitorias é a existência de uma posse que cede perante o melhor direito que alguém detenha sobre a coisa. O STJ já por diversas vezes o afirmou, como se pode ver nos seus acórdãos de 16.6.87 (Pº nº 74.978), 20.6.00 (Pº 432/00) e 28.5.02 (Pº 01B1466). Ora, segundo a sentença, a autora na presente acção "deverá ser encarada como possuidora do prédio" (fls 450), fundamentalmente
por resultar da decisão proferida na acção já julgada (facto nº 1) que ela se tinha como titular do direito de propriedade sobre o imóvel ajuizado em 1989, ano em que aderiu ao projecto da Câmara Municipal de Barcelos no sentido de ali ser instalada uma escola agrícola. Não parece, contudo, que as coisas possam ser vistas deste modo. Na verdade, quando a lei, no preceito em análise, fala em posse, está a querer dizer, como é evidente, posse verdadeira e própria, posse em nome próprio, e não simples detenção; posse, portanto, integrada por corpus e animus possidendi, isto é, por actos materiais praticados com a intenção correspondente ao conteúdo de certo e determinado direito real (art.º 1251º do CC). Acontece que olhando com atenção para os factos coligidos não se vê um único do qual possa retirar-se a existência do animus possidendi (elemento subjectivo do instituto); e é totalmente inócua a circunstância de a autora ter estado convencida, em dado momento, que seria a dona do imóvel; contrariamente ao que na sentença se refere, esse convencimento, por si só, a nada conduz, nem comporta nenhuma consequência jurídica no âmbito da posse. No caso presente mais nítida se torna a completa irrelevância de tal estado subjectivo quando se verifica que na acção anteriormente julgada entre as mesmas partes ficou em definitivo estabelecido que a ré adquiriu originariamente por usucapião o imóvel alegadamente possuído pela autora. Assentando a usucapião, justamente,
na posse do direito de propriedade pelo tempo que a lei reputa necessário para o efeito (na pior das hipóteses, vinte anos - art.º 1296º), claro está que a única posse aqui atendível é a da ré: a da autora, simplesmente, não existe, negada que foi pela decisão anteriormente proferida e já transitada em julgado, na qual se dá por assente que a posse da ré - pública, pacífica e de boa fé - teve início em 1976 e durou sem interrupção até ao momento presente (cfr. fls 509/510).
Considerou-se ainda na sentença, por outro lado, que pelo menos alguns dos trabalhos realizados no prédio constituem benfeitorias necessárias, já que com eles se visou obstar à deterioração do prédio: tal o caso da pavimentação do interior do edifício e da substituição das portas avariadas por portas novas; os restantes trabalhos, escreveu-se (fls 451), "por se não ter ficado a saber se foram determinados pelas obras de ampliação do edifício ou se se tratou de substituição de materiais já deteriorados, levam-se à conta de benfeitorias úteis, já que deles resulta um aumento do valor objectivo do edifício"; e, rematando este ponto, afirma depois o julgador: "como resulta da natureza das obras referidas, sem necessidade de mais descrições ou aprofundamentos, é notório que não podem ser levantadas sem detrimento (sério) do edifício, pelo que elas ficam pertencendo à ré".
Não podemos, novamente, acompanhar o raciocínio e a conclusão da sentença.
Como este Supremo Tribunal já decidiu (Ac. de 3.4.84, BMJ 336º - 420), em matéria de indemnização por benfeitorias só tem cabimento pretensão com base em enriquecimento sem causa relativamente a benfeitorias úteis que não possam ser levantadas sem detrimento da coisa; e em face dos art.ºs 216º, nº 3, e 1273º, nº 2, parte final, é indispensável alegar, como fundamento da indemnização por benfeitorias necessárias e benfeitorias úteis, quais as obras correspondentes a cada uma das espécies, e ainda, quanto às necessárias, que elas se destinaram a evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa, e, quanto às úteis, que a valorizaram, que o levanta mento a deterioraria e quais o respectivo custo e o actual valor. Ora, é claro que os factos materiais que permitem ao juiz concluir sobre a verificação dos indicados fundamentos são constitutivos do direito do autor, integrando-se na causa de pedir; daí que recaia sobre ele, autor, o ónus da prova respectivo (art.º 342º, nº 1). No caso presente, verifica-se que a autora não descreveu nem caracterizou os trabalhos realizados de molde a propiciar a sua qualificação jurídica em termos seguros como benfeitorias úteis e (ou) necessárias; e também nada de concludente alegou na petição em ordem à demonstração de que o levantamento das úteis, a verificar-se, determinaria a deterioração do prédio. Como assim, o julgador encontrava-se impedido de dar como verificados tais factos com base numa suposta notoriedade que, é manifesto, não ocorre, por não se verificar quanto a eles o requisito exigido pelo art.º 514º, nº 1, do CPC, que é o de serem do conhecimento geral.
Independentemente do exposto (que, diga-se, por si só é já decisivo) a pretensão da recorrida não deveria ter sido declarada procedente visto que os requisitos do enriquecimento sem causa - art.º 473º do CC - não estão demonstrados.
Não está demonstrado, desde logo, o empobrecimento da autora; mais precisamente, e no rigor das coisas, não está provado um enriquecimento da ré à custa, a expensas de um empobrecimento da autora; a ré não se enriqueceu (no sentido de que não obteve uma vantagem económica) com bens jurídicos pertencentes à autora, já que esta não efectuou em seu benefício qualquer atribuição patrimonial. Efectivamente, resulta com nitidez dos factos descritos sob os números 3, 5, 6, 12, 13, 15, 16, 17 e 18 que as obras levadas a cabo no prédio ajuizado, pertencente à autora, foram por assim dizer patrocinadas em exclusivo pela Câmara Municipal de Barcelos; e foi esta autarquia que, por estar empenhada, no interesse do concelho, na instalação duma Escola Agrícola na freguesia de ...., tomou a decisão de o fazer provisoriamente no prédio da ré enquanto decorriam as negociações para a aquisição doutro terreno, subsidiando, como efectivamente subsidiou, as obras realizadas com aquela finalidade (os subsídios assumiram a forma de entregas de dinheiro, entregas de materiais de construção de variada natureza e pagamentos a trabalhadores e fornecedores com subsídios expressamente atribuídos para tal efeito; provou-se, mesmo, que a autora solicitou à Câmara Municipal o reembolso das despesas que ia suportando com as obras - cfr. facto nº 12). Perante isto, afigura-se incorrecta a conclusão extraída na sentença de que os subsídios, "entrando na esfera jurídica da autora, passaram a constituir bens e dinheiros seus, isto é, passaram a integrar o seu património" (fls 450). Não é exacto. Do conjunto dos factos apurados é de todo em todo inviável retirar a ilação de que a ré obteve uma vantagem económica à custa do património da autora. Se houve empobrecimento de alguém, no sentido visado pelos art.ºs 473º e 479º do CC, seguramente que não foi da autora. E quanto ao enriquecimento da ré não se mostra sequer objectivamente possível a sua determinação e concretização por falta de elementos precisos a respeito da natureza das obras, como atrás se referiu (sua qualificação como benfeitorias necessárias e úteis e susceptibilidade do levantamento destas sem detrimento da coisa). Faltando os requisitos do empobrecimento e do enriquecimento fica patente que, caindo pela base o terceiro requisito que importaria demonstrar - ausência de causa justificativa - se torna desnecessário, por inútil, o conhecimento dessa faceta da questão ajuizada.
III. Com os fundamentos expostos concede-se a revista, revoga-se a sentença recorrida e absolve-se a ré do pedido.
Custas pela autora, aqui e na 1ª instância, sem prejuízo da isenção de que beneficia.



Lisboa, 6 de Fevereiro de 2007

Nuno Cameira
Sousa Leite
Salreta Pereira