Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B764
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
QUESTÃO PREJUDICIAL
MUNICÍPIO
OBRA DE ARTE
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CONTRATO ADMINISTRATIVO
CONTRATO DE ARQUITECTURA
IMEDIATA UTILIDADE PÚBLICA
CONTRATO DE DIREITO PRIVADO
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PRÉ-CONTRATUAL
NULIDADE DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ200703290007647
Data do Acordão: 03/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. A fase declarativa dos embargos de executado, estruturalmente extrínseca à acção executiva, configura-se como contra-acção tendente a obstar, por via de impugnação ou de excepção, aos efeitos normais do título executivo.
2. A admissão de factos por acordo por falta de impugnação pressupõe a possibilidade de apresentação de articulado de resposta, não bastando para o efeito a faculdade de exercício do contraditório a que se reporta o artigo 3º, nº 4, do Código de Processo Civil.
3. Porque meramente instrumental face à realização da utilidade pública, não é administrativo - mas de direito privado - o contrato de prestação de serviço, celebrado entre um município e uma sociedade de direito privado, cujo objecto mediato é o fornecimento de projectos de obras de arte tendentes à sua futura implantação no espaço municipal.
4. A verificação da inexistência ou da invalidade do procedimento administrativo pré-contratual concernente ao referido contrato é cognoscível nos embargos de executado em tema de questão administrativa prejudicial.
5. A omissão do procedimento administrativo prévio à celebração, pelo presidente da câmara, em representação desta, do referido contrato de prestação de serviço, contra o disposto em normas imperativas de direito administrativo, implica a sua nulidade.
6. Não funciona a excepção peremptória imprópria do abuso do direito na invocação pelo município, nos embargos de executado, da violação pelo seu presidente da câmara de regras de procedimento, orçamentais e financeiras, também consciencializada pelo representante da embargada.*

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
Empresa-A intentou, no dia 7 de Novembro de 2002, contra o Município de Vila Nova de Famalicão, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, a fim de haver dele € 327 209,88 e juros vincendos, com base em documentos particulares relativos a contratos de aquisição de projectos de escultura.
O executado deduziu embargos de executado no dia 2 de Dezembro de 2002, invocando a nulidade dos contratos por falta de cabimento ou dotação orçamental para a despesa e de forma escrita da autorização desta, a ilegitimidade do Presidente da Câmara para a assunção e autorização da mesma por a competência para o efeito se inscrever na Câmara, a omissão de entrega de projectos e a inexistência de venda dos direitos de autor.
Na contestação, a embargada afirmou ter cumprido os contratos com a entrega dos projectos, a caducidade do direito de denúncia, a sua não afectação pelos vícios invocados pela embargante, a não aplicabilidade da alínea i) do nº 1 do artigo 133º do Código do Procedimento Administrativo, serem irrecorríveis, por não definitivos, os actos internos do procedimento administrativo pré-contratual, a não afectação pela exigibilidade da obrigação de pagamento do preço pela circunstância de não terem sido vendidos os direitos de autor e a violação do princípio da boa-fé por virtude de o embargante pôr em causa os contratos outorgados pelo seu presidente.
O embargante reclamou com êxito parcial da base instrutória e, realizada a audiência de discussão julgamento, e apresentadas as alegações de direito, foi proferida sentença, no dia 18 de Abril de 2005, por via da qual os embargos foram julgados procedentes e declarada a extinção da execução.
Apelou a embargada e a Relação, por acórdão proferido no dia 28 de Setembro de 2006, negou provimento ao recurso.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- a invocação pelo recorrido de ilegalidades procedimentais pré-contratuais por si próprio cometidas, através do Presidente da Câmara, constitui manifesto abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, pelo que deve considerar-se inadmissível;
- deve considerar-se não escrita a resposta ao ponto cinco da base instrutória;
- o tribunal da primeira instância é incompetente em razão da matéria para conhecer da validade dos actos administrativos do Presidente da Câmara no procedimento administrativo precedente à celebração dos contratos em causa, por não ser uma questão prejudicial, mas principal e, por isso, não abrangida pela extensão da competência;
- entre a execução e a oposição não pode haver prejudicialidade, porque naquela não há questão a julgar, do que decorre a sua mera extinção resultante da oposição e não sentença de mérito;
- os contratos em causa - de direito privado - não estão afectados pela nulidade de algum acto administrativo procedimental prévio porque a lei não prevê esse efeito quanto aos mesmos, nem o estão autonomamente por não ofenderem qualquer disposição legal;
- O artigo 185º do Código do Procedimento Administrativo não é aplicável a contratos de direito privado e, se o fosse, não estavam preenchidos os respectivos pressupostos, por não haver sentença anulatória ou declaração de nulidade proferidas no foro administrativo;
- não se verificando os pressupostos de repercussão de invalidade previstos para os contratos administrativos, por maioria de razão se não poderia admitir tal quanto a meros contratos de direito privado;
- fosse por via prejudicial ou principal, não poderia ser admitida a impugnação dos actos procedimentais, mesmo na jurisdição administrativa, dada a sua extemporaneidade - Decreto-Lei nº 134/98, de 15 de Maio;
- não podendo a recorrida, por esgotamento do prazo, impugnar o procedimento administrativo no foro administrativo, não pode fazê-lo como meio de defesa no âmbito da jurisdição comum, sob pena de se pôr em causa a estabilidade subjacente ao regime especial previsto naquele diploma;
- os artigos 26º, nº 1 e 41º, nºs 4 e 5, do Decreto-Lei nº 341/83, de 21 de Julho, 14º, alínea a), da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, e 16º e 18º do Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho, aplicam-se aos actos administrativos, mas não nos contratos.

Respondeu o recorrido, em síntese de alegação:
- o actual Presidente da Câmara tinha a obrigação de denunciar as irregularidades em obediência ao princípio da legalidade, e de evitar o prejuízo do interesse público da autarquia – artigos 266º, nºs 1 e 2, da Constituição e 4º, nº 2, alíneas a) e b), da Lei nº 29/87, de 30 de Junho;
- a matéria alegada nos artigos 44º a 47º da contestação dos embargos constitui mera impugnação motivada, pelo que não há fundamento para se considerar não escrita;
- como o tribunal da ordem judicial é competente para a execução, também o é para decidir sobre os vícios do respectivo procedimento pré-contratual, por influírem no juízo de validade da obrigação exequenda,
- se o acto com base no qual a Administração contrata é anulado ou declarado nulo com fundamento em violação de regras de direito administrativo, forçoso é que determine a nulidade do contrato dependente subsequente;
- não é aplicável na espécie o Decreto-Lei nº 134/98, de 15 de Maio, porque só o é aos actos administrativos relativos à formação dos contratos de direito público, antes se aplicando o regime jurídico da realização de despesas públicas com a locação e aquisição de bens e serviços.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:

1 No dia 8 de Agosto de 2001, AA, na qualidade de Presidente da Câmara de Vila Nova de Famalicão, e o representante da embargada assinaram o escrito inserto a folhas 10 a 13 onde se inscreveu o seguinte: ”Projecto Arte Pública - Criação de um Parque/museu de arte contemporânea (escultura / ao ar livre) - Contrato entre a: a) Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão e b) Galeria Quadrado Azul, do Porto tendo em vista dotar os jardins e os parques da cidade de V.N. de Famalicão de um parque ­museu de Arte contemporânea - esculturas ao ar livre. Na sequência dos estudos efectuados, nomeadamente, pela Comissão nomeada pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal em 18 de Março de 1999, integrada pelo arqto BB, Dr. CC e Dr. DD, com o objectivo de promover, - através da arte pública - a requalificação urbana e a valorização artística da cidade, e tendo em conta o relatório elaborado por aquela comissão, que dá conta dos contactos estabelecidos, com vários escultores, os quais visitaram a cidade, e das conclusões a que chegaram sobretudo das carências artísticas, nomeadamente no domínio da arte pública, detectadas na cidade, bem como das propostas formuladas pela Galeria Quadrado Azul, dando conta que ela representa e trabalha com um grupo de escultores dos mais qualificados e representativos da arte contemporânea (ver curriculus anexos e catálogos de exposições por eles efectuados). Assim, ao abrigo do disposto na alínea d), n° 1 do art. 88º do Decreto Lei n° 197/99, de 8 de Janeiro, a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, representada pelo seu Presidente AA e a Empresa-A, com o n° de contribuinte 501821783, representada por EE, residente na Rua Miguel Bombarda, ..., ...., Porto celebram entre si o presente contrato o qual fica submetido às seguintes cláusulas: 1.a) A Empresa-A compromete-se a convidar e a entregar à Câmara Municipal o projecto de escultura dos artistas FF, GG, HH, II e JJ, para os locais da cidade constantes da planta desta, que em tempo lhes foi apresentado (ver anexa). b) Mais se compromete a vender os direitos de autor dos referidos projectos à Câmara Municipal. c) Os contratos serão celebrados em função e à medida em que os respectivos projectos foram apresentados à Câmara Municipal. d) Acordam as duas entidades em organizar, de acordo aliás com a proposta formulada no relatório da Comissão, um Simposium de Escultura, o qual decorrerá nos moldes definidos no relatório atrás referido e logo que as peças estejam implantadas. Para tanto, a Galeria Quadrado Azul compromete-se a garantir a presença em V.N. de Famalicão dos escultores autores dos projectos das obras. 2.a) A Câmara Municipal compromete-se a executar as obras necessárias à execução e implantação daquelas peças escultóricas, respeitando os respectivos projectos. b) Mais se compromete a celebrar com a Empresa-A os respectivos contratos de aquisição dos direitos de autor, logo e à medida que os projectos sejam entregues. c) O custo de cada projecto escultórico é sempre igual para cada um dos artistas, sendo 10.000.000$00 para cada um deles. Assim, e tendo em conta que o escultor FF fez a entrega do seu projecto de escultura, a Câmara Municipal pagará à Galeria Quadrado Azul, por este projecto os referidos 10.000.000$00, sendo 10% na celebração do presente contrato e o remanescente em três prestações, trimestrais, a contar da assinatura deste contrato.”

2. Eles declararam ainda, que “tendo em conta que a escultora GG fez a entrega do seu projecto de escultura, a Câmara Municipal pagará à Galeria Quadrado Azul, por este projecto, os referidos 10 000 000$, sendo 10% a vencer na data celebração do presente contrato e o remanescente em três prestações trimestrais, a contar da data da assinatura deste contrato, e as três restantes, em 6 de Novembro de 2001, 8 de Fevereiro de 2002 e 8 de Maio de 2002, respectivamente;

3. No dia 29 de Novembro de 2001, AA, na qualidade de Presidente da Câmara de Vila Nova de Famalicão, e o representante da embargada assinaram o escrito que constitui o documento inserto a folhas 14 e 15 junto aos autos que corresponde, no clausulado, ao que consta do ponto 1., supra, com a alteração do nome do escultor que faz a entrega, no caso, II.

4. No dia 29 de Novembro 2001, AA, na qualidade de Presidente da Câmara de Vila Nova de Famalicão, e o representante da embargada assinaram o escrito inserto a folhas 16 e 17, correspondente ao que consta do ponto 1., com a alteração do nome do escultor que faz a entrega, no caso, HH.

5. No dia 29 de Novembro de 2001, AA, na qualidade de Presidente da Câmara de Vila Nova de Famalicão, e o representante da embargada assinaram o escrito inserto a folhas 18 e 19, correspondente no clausulado ao que consta do ponto 1, com a alteração do nome do escultor que faz a entrega, no caso JJ.

6. A embargante não entregou à embargada nenhuma das prestações pecuniárias mencionadas nos escritos referidos supra, e esta não vendeu àquela os direitos de autor relativos aos projectos referidos sob 1 a 5.

7. Não estava inscrita no orçamento do embargante para 2001 dotação específica para as despesas referidas sob 1 a 5, e, para autorização das despesas ali referidas, o então Presidente da Câmara Municipal do embargante limitou-se a assinar os escritos acima referidos.

8. A embargada entregou à embargante simples esboços, imagens, esquissos ou ante-projectos das obras em causa, que não permitem executar as obras de arte mencionadas naqueles escritos sem a sua concretização pelos seus autores e sem a sua participação no respectivo processo de execução.

9. As partes contratantes nos cinco escritos referidos tinham como objectivo subtrair a despesa que deles resultaria à aprovação da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, mediante a sua dispersão e consequente redução do valor de cada um deles.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se o convencionado que a recorrente deu à execução está ou não afectado de nulidade.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente e pelo recorrido, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguintes sub-questões:
- lei adjectiva aplicável à execução e à oposição;
- estrutura dos embargos de executado;
- eficácia ou ineficácia da factualidade mencionada sob II 9?
- natureza jurídica dos contratos que servem de base à execução;
- a invalidade do procedimento pré-contratual é ou não cognoscível na oposição?
- existência ou não de procedimento administrativo pré-contratual;
- regime legal de competência dos órgãos autárquicos e de realização de despesas com a aquisição de serviços;
- estão ou não os mencionados contratos afectados de nulidade?
- agiu o recorrente na oposição com abuso do direito?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela determinação da lei adjectiva aplicável na execução e na oposição que lhe foi deduzida.
Como a acção executiva a que foi deduzida a oposição em causa foi instaurada no dia 7 de Novembro de 2002, a ambas são aplicáveis as pertinentes normas adjectivas constantes do Código de Processo Civil Revisto, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997 (artigos 16º e 26º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Tendo em linha de conta a referida data de instauração da acção executiva, não lhe é aplicável o novo regime decorrente da reforma que entrou em vigor no dia 15 de Setembro de 2003, devendo aplicar-se-lhe o anterior (artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março).
Estamos, por isso, ainda perante o então designado procedimento de embargos de executado, a que se reportam os artigos 812º a 819º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à actual.

2.
Atentemos agora na estrutura dos embargos de executado.
Estamos na espécie perante uma acção executiva para pagamento de quantia certa baseada em título executivo consubstanciado em cinco documentos particulares simples envolventes de declarações negociais convergentes produzidas pelos representantes de duas pessoas colectivas, uma pública, o executado, e outra privada, uma sociedade por quotas de capitais privados, a exequente.
Os referidos documentos, dados à execução como títulos executivos, enquadram-se em uma das espécies legalmente previstas, ou seja, os documentos particulares assinados pelo devedor que importem a constituição de obrigações pecuniárias de montante determinado ou determinável por simples cálculo aritmético (artigo 46º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil).
A fase declarativa dos embargos de executado, estruturalmente extrínseca à acção executiva, configura-se como contra-execução destinada à declaração da sua extinção, sob o fundamento da inexistência da obrigação exequenda ou da inexistência ou ineficácia do título executivo.
Assim, os fundamentos dos embargos de executado podem ser de natureza substantiva, relativos à própria obrigação exequenda, ou de natureza processual, concernentes à inexistência ou inexequibilidade de título executivo (artigo 813º, proémio, e alínea a), e 815º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Na sua dinâmica, são uma fase eventual da acção executiva, tendente a obstar ao resultado da execução por via da afectação negativa dos efeitos normais do título executivo, em que o executado pode invocar, com a maior amplitude, factos de impugnação e ou de excepção.

3.
Vejamos agora a eficácia ou ineficácia da factualidade mencionada sob II 9.
A recorrente suscitou a questão de dever ou não considerar-se a ineficácia da factualidade mencionada sob II 9, resultante da resposta a quesito quinto da base instrutória.
Pretende que se declare, no recurso de revista, não escrita a resposta àquele quesito por virtude de inserir factualidade de sentido contrário à admitida por acordo.
Esta questão integrou o objecto do recurso de apelação e a Relação entendeu que o referido quesito assentava em factos controvertidos alegados pelo embargante que não contrariavam outros factos admitidos por acordo.
A Relação referiu improceder a pretensão da recorrente, mesmo que se qualificasse o que ela afirmou como matéria de excepção e dever funcionar a cominação à luz dos artigos 3º, nº 4, 490º, nº 2 e 505º e apesar do que se prescreve no artigo 817º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
As afirmações de facto que a recorrente pretende admitidas por acordo, constantes no texto da contestação dos embargos, sob o argumento de não terem sido impugnadas, consistem, por um lado, em ter confiado que o presidente da câmara cumpria os procedimentos e formas legalmente estabelecidas para o desempenho das suas competências.
E, por outro, não ter tido domínio ou cognoscibilidade dos procedimentos decisórios internos ocorridos nos serviços municipais, ignorar alguma ilegalidade procedimental cometida e ter agido na convicção da inexistência de qualquer irregularidade.
A admissão de factos por acordo das partes constitui um meio de prova plena estabelecida por via de lei adjectiva (artigos 490º, nº 2, 659º, nº 3, 646º, nº 4, do Código de Processo Civil).
Por isso, embora a questão de saber se determinada factualidade está ou não admitida por acordo das partes envolva matéria de facto, pode este Tribunal sindicá-la por virtude da excepção prevista no nº 2 do artigo 729º e na parte final do nº 2 do artigo 722º, ambos do Código de Processo Civil).
É que estamos perante uma situação em que a lei adjectiva fixa a força de prova plena da omissão de impugnação de determinados factos, razão pela qual lhe é aplicável o segmento normativo de excepção a que se reportam a primeira e a última parte do nº 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil.
Ora, expressa a lei, por um lado, deverem ter-se por não escritas as respostas do tribunal sobre factos plenamente provados, além do mais, por acordo das partes (artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil).
E, por outro, considerarem-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, só serem susceptíveis de prova documental escrita ou não puderem ser objecto de confissão relevante (artigo 490º, nº 2, do Código de Processo Civil).
E, finalmente, que a falta de impugnação dos novos factos alegados na réplica pelo autor tem o efeito previsto no nº 2 do artigo 490º do Código de Processo Civil (artigo 505º do Código de Processo Civil).
A dinâmica processual dos embargos de executado, espécie de contra-acção, no confronto com a acção executiva, só comporta dois articulados – petição inicial e contestação (artigo 817º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Em consequência, não dispunha o recorrido de articulado para implementar a resposta à mencionada factualidade invocada pela recorrente na contestação dos embargos de executado.
Mas a lei de processo civil, na parte geral, expressa que às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência preliminar ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final (artigo 3.º, nº 4, do Código de Processo Civil).
A admissão de factos por acordo por virtude da falta da respectiva impugnação, a que se reportam os artigos 490º, nº 2 e 505º do Código de Processo Civil, que se traduz em meio de prova dos factos não impugnados, pela sua relevância no quadro da resolução dos litígios, pressupõe a possibilidade de apresentação de articulado de resposta (artigo 9º, nº 3, do Código Civil).
Assim, no caso vertente, independentemente da questão de saber se a factualidade em causa deve ser qualificada como defesa por excepção ou por impugnação, como o recorrido não dispunha de articulado em que pudesse impugnar os factos articulados pela recorrente no instrumento de contestação, queda inaplicável o disposto nos artigos 490º, nº 2 e 505º do Código de Processo Civil.
Com efeito, o artigo 3º, nº 4, do Código de Processo Civil reporta-se, em termos gerais, à faculdade de exercício do contraditório relativamente aos factos afirmados no último articulado, por via do seu registo na acta, sem que o seu não exercício comporte, dado o seu escopo finalístico, o efeito de constituição de prova plena.
Assim, os referidos factos articulados pela recorrente na contestação de embargos, independentemente de se traduzirem em defesa por excepção peremptória ou por impugnação, não estão admitidos por acordo.
Por isso, a resposta ao quesito quinto da base instrutória, transcrita sob II 9 não contraria factos com essa característica nem infringe o disposto no artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil e, consequentemente, inexiste fundamento legal para que se declare a sua ineficácia.

4.
Atentemos agora na natureza jurídica dos contratos que servem de base à execução.
Os contratos são acordos por via dos quais as partes regulamentam determinados interesses, a que a lei confere efeitos jurídicos, designadamente de criação, modificação ou de extinção de relações jurídicas obrigacionais ou de outra natureza.
Não se confinam, porém, ao direito civil lato sensu, ao direito laboral, ao direito societário, ou ao direito comercial, certo que também são envolvidos pelo direito administrativo.
As instâncias qualificaram os factos constitutivos da obrigação pecuniária exequenda como contratos de prestação de serviço de direito privado e de promessa de compra e venda dos direitos de autor relativos aos projectos, previstos nos artigos 410º, nº 1 e 1154º a 1156º do Código Civil.
A lei descreve o contrato de prestação de serviço genérico como sendo aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (artigo 1154º do Código Civil).
São-lhe aplicáveis, a título subsidiário, com as necessárias adaptações, as regras do contrato de mandato (artigo 1156º do Código Civil).
A recorrente, pela sua própria natureza, não pode prestar qualquer serviço manual ou intelectual, e é este que constitui o objecto mediato dos referidos contratos de prestação de serviços.
Naturalmente, por isso, é que ela outorgou nos contratos em análise na qualidade de representante dos reais prestadores do serviço neles identificado, certo que, através do seu representante, expressou que trabalhava com eles e os representava.
A lei administrativa, por um lado, caracteriza o contrato administrativo como sendo o acordo de vontades pela qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa (artigo 178º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo - CPA).
E, por outro, em jeito de concretização, expressa, além do mais que aqui não releva, serem contratos administrativos os de prestação de serviço para fins de imediata utilidade pública (artigo 178º, nº 2, alínea h), do CPA)
Ora, os contratos que estão em causa no recurso têm por objecto mediato a actividade de elaboração de projectos de obras de arquitectura a implementar em determinados locais do espaço territorial do Município de Vila Nova de Famalicão.
Conforme decorre do artigo 178º, nº 2, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo, a natureza dos contratos de prestação de serviço de natureza administrativa decorre de o seu fim ser a imediata utilidade pública.
A imediata utilidade pública dos contratos de prestação de serviço decorre de da sua execução derivar a satisfação de determinadas necessidades colectivas, ou seja, quando a comunidade beneficie directamente dos serviços prestados (Ac.do STA, de 3.5.2000, “Diário da República, 9 de Dezembro de 2002, Apêndice, Supremo Tribunal Administrativo, vol. II, páginas 3 903 a 3 909).
Como o objecto mediato dos contratos em causa é a mera feitura e entrega de projectos de arquitectura a implementar no espaço territorial do recorrido, meramente instrumentais dessa implementação, a conclusão é no sentido de que o seu fim imediato não é a utilidade pública.
Em consequência, inexiste fundamento de facto e ou de direito para se alterar a qualificação dos contratos em análise como sendo de direito privado, empreendida pelas instâncias.

5.
Vejamos agora a questão de saber se a invocada invalidade do procedimento pré-contratual é ou não cognoscível na oposição.
A recorrente entende no sentido negativo, sob o argumento de a competência para o efeito se inscrever nos tribunais da ordem administrativa e não se tratar de questão principal, ou seja, não prejudicial, e a Relação decidiu no sentido contrário.
O objecto dos embargos de executado é susceptível de abranger quaisquer factos que afectem a eficácia normal do título executivo ou a própria obrigação exequenda nas suas vertentes de existência ou de validade.
Em consequência, podem os embargos de executado abranger quaisquer questões, sejam de natureza adjectiva ou substantiva, que ao embargante, na posição de réu, pudesse invocar no processo declarativo como meio de defesa (artigo 815º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Assim, tendo em conta o disposto no aludido artigo, não tem qualquer fundamento a alegação da recorrente, para justificar o seu entendimento de não verificação da prejudicialidade, no sentido de que no processo executivo não pode haver questões a julgar, porque isso só assim é na fase executiva propriamente dita da acção.
No processo declarativo, incluindo a fase declarativa dos embargos à execução, a regra é no sentido de que o tribunal competente para a acção também o é para os incidentes que nela o réu suscite como meio defesa (artigo 96º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Mas se o conhecimento do objecto da acção depender da decisão de uma questão da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, pode o juiz o suspender o processo antes da decisão até que o tribunal competente se pronuncie (artigo 97º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Trata-se, neste caso, de questões prejudiciais, conexas com outras questões, ou seja aquelas cuja decisão é necessária para a decisão das últimas, o mesmo é dizer, que constituam um pressuposto necessário da decisão de mérito.
Há pontos de convergência nos mencionados normativos, na medida em que as questões prejudiciais a que se reporta o segundo são em regra incidentais, sendo aplicável um ou outro consoante elas se reportem a matéria da competência do tribunal respectivo ou de tribunal criminal ou da ordem administrativa.
Confrontado com a necessidade de decisão de alguma questão prejudicial de natureza criminal ou administrativa para poder conhecer do objecto do processo, a seu prudente arbítrio, ou seja, discricionariamente, pode o juiz suspender os termos da causa até que o tribunal criminal ou o tribunal da ordem administrativa decida, ou não a suspender e decidir ele próprio, com a consequência da limitação dos efeitos do caso julgado ao processo em causa.
O recorrido invocou, na petição de embargos de executado, a invalidade dos contratos por inobservância do concernente formalismo processual de natureza administrativa e a consequente inexistência da obrigação exequenda.
A questão principal que se discute nos embargos de executado é, pois, a relevância executiva dos documentos particulares dados à execução enquanto reveladores da causa de pedir consubstanciada na obrigação exequenda.
A título de oposição à execução temos a questão da observância ou não do formalismo relativo ao procedimento administrativo prévio à celebração do contrato constitutivo da obrigação exequenda em causa e da validade ou não de algum acto administrativo praticado.
A decisão desta questão, de direito administrativo, ainda que seja para decidir que ela não existe, é necessária para decidir sobre a validade da obrigação exequenda e da eficácia executiva dos documentos dados à execução que a corporizam.
Estamos, por isso, na perspectiva das instâncias, abstraindo daquilo que no ponto seguinte se referirá, perante uma questão prejudicial de direito administrativo, da qual as instâncias podiam conhecer à luz do que se prescreve no artigo 97º, nº 1, do Código de Processo Civil, não obstante a mesma se não inscrever na sua competência jurisdicional normal em razão da matéria.

6.
Atentemos agora na sub-questão de saber da existência ou não de procedimento administrativo pré-contratual.
O tribunal da primeira instância considerou a nulidade do procedimento administrativo prévio por violação insanável de regras de competência e de forma, e a Relação considerou a nulidade do acto de autorização da despesa concretizado na adjudicação e na celebração dos contratos.
A recorrente impugna a solução de se considerar a existência de vícios de procedimento relevantes, seja porque a lei não prevê essa relevância, seja por eles não se comunicam aos contratos em causa, seja porque não foram suscitados tempestivamente no foro judicial ou administrativo.
Alegados os vícios do concernente procedimento pré-contratual com influência no juízo de validade da obrigação exequenda, logo se desenvolveu no processo, por um lado, a divergência sobre a recorribilidade do acto administrativo final por dever ser qualificado de destacável, e sobre se aos contratos em causa, de direito privado, é ou não aplicável o artigo 185º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo.
E, por outro, se ao referido procedimento pré-contratual é aplicável o regime previsto no Decreto-Lei nº 134/98, de 15 de Maio, ou o regime de realização de despesas públicas com locação e aquisição de bens e serviços previsto no Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho, e se o mesmo era ou não nulo por falta de forma, nos termos do artigo 122º do Código do Procedimento Administrativo.
Finalmente discutiu-se se teria ou não caducado o direito de impugnação dos mencionados actos de procedimento por a mesma não ter sido formulada tempestivamente no foro judicial ou administrativo.
Toda esta problemática se desenvolveu essencialmente em torno do disposto no nº 1 do artigo 185º do Código do Procedimento Administrativo, segundo o qual, os contratos administrativos são nulos ou anuláveis quando forem nulos ou anuláveis os actos administrativos dos quais haja dependido a sua celebração.
A jurisprudência do foro administrativo tem vindo a entender, por um lado, serem regidos pelo direito administrativo os actos unilaterais por via dos quais a Administração Pública forma a vontade de contratar e decide a adjudicação, independentemente dessa contratação ser essencialmente de direito público ou de direito privado.
E, por outro, que constitui acto administrativo – e não declaração pré-contratual de direito privado – o acto conclusivo de concurso público mediante o qual a Administração decide adjudicar ou não adjudicar o contrato, ainda que este seja regido pelo direito privado.
Os referidos actos procedimentais contratuais, pela sua estrutura e finalidade, assumem autonomia em relação aos contratos celebrados na sua sequência.
Todavia, os factos provados disponíveis não revelam que tenha havido, no caso vertente, algum procedimento pré-contratual instrumental relativamente à celebração dos contratos de prestação de serviço em causa, designadamente algum acto de adjudicação, que, por definição legal, se consubstancia no acto administrativo pelo qual a entidade competente para autorizar a despesa escolhe uma proposta.
Assim, ao invés do que foi entendido no acórdão recorrido, a intervenção do Presidente da Câmara do Município recorrido na celebração dos contratos em causa, pela sua própria configuração, não pode ser juridicamente qualificada como acto procedimental de autorização de despesa concretizado no binómio adjudicação e celebração.
Com efeito, sem forçar a realidade das coisas não se pode considerar ser o acto administrativo impugnável o do presidente da câmara consubstanciado na outorga dos contratos.
Na realidade, os factos provados apenas revelam a existência das declarações negociais integrantes dos mencionados contratos de direito privado, sem suporte a montante em qualquer procedimento administrativo pré-contratual.
Decorrentemente, não ocorre no caso vertente qualquer acto administrativo de adjudicação ou actividade administrativa que lhe seja instrumental susceptível de ser impugnada, seja nos tribunais da ordem administrativa, seja nos tribunais da ordem judicial.
Por isso, a conclusão é no sentido de que inexiste, na espécie, algo que permita a impugnação afirmada ou negada no processo, pelo que prejudicada fica a análise das questões a propósito suscitadas no recurso (artigos 660º, nº 2, 713º, nº 2 e 726º do Código de Processo Civil).
A validade dos contratos cujos documentos de consubstanciação foram dados à execução deve ser analisada, como é natural, no confronto com as normas de direito público que se deixaram enunciadas.

7.
Vejamos agora o regime legal de competência dos órgãos autárquicos e de realização de despesas com a aquisição de serviços e de orçamento.
A Relação considerou ter o Presidente da Câmara que outorgou nos contratos actuado sem poderes e exorbitando da sua competência no que concerne à autorização das despesas, e que não havia cabimento de verba.
O quadro de competências e o regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios consta na Lei nº 169/99, de 18 de Setembro (artigo 1º).
Os órgãos representativos dos municípios são a assembleia municipal, órgão deliberativo, e a câmara municipal, composta por um presidente e vereadores (artigo 2º, nº 2, 41º e 56º, nº 1).
Compete à câmara municipal, no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços e no da gestão corrente, além do mais que aqui não releva, deliberar sobre a locação e aquisição de bens móveis e serviços, nos termos da lei (artigo 64º, nº 1, alínea d)).
Compete, por seu turno, ao seu presidente, em tanto quanto releva no caso vertente, por um lado, representar o município em juízo ou fora dele e executar as deliberações da câmara municipal (artigo 68º, nº 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil).
E, por outro, aprovar a aquisição de bens e serviços, cuja autorização de despesa lhe caiba nos termos da lei, autorizar a realização de despesas orçamentadas até ao limite estipulado por lei ou por delegação da câmara municipal, com excepção das referidas no nº 2 do artigo 54º, e autorizar o pagamento das despesas realizadas nas condições legais (artigo 68º, nº 1, alíneas f), g) e h)).
As despesas a que se reporta a excepção do nº 2 do artigo 54º deste diploma, cuja autorização compete ao presidente da assembleia municipal, são as orçamentadas relativas a senhas de presença, ajudas de custo e subsídios de transporte atribuídos aos membros da assembleia municipal e de despesas relativas às aquisições de bens e serviços correntes, necessários ao funcionamento e representação do órgão autárquico, informando o presidente para que este proceda aos respectivos procedimentos administrativos.
Por seu turno, compete à câmara municipal no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços e no da gestão corrente, deliberar sobre a locação e aquisição de bens móveis e serviços, nos termos da lei, competência que pode delegar no seu presidente (artigos 64º, nº 1, alínea d), e 65º, nº 1).
São nulas as deliberações de qualquer órgão do município que determinem ou autorizem a realização de despesas não permitidas por lei (artigo 95º, nº 2, alínea a)).
No caso vertente, o então representante do recorrido outorgou nos mencionados contratos a título de representação da câmara municipal, sem deliberação desta, à margem de delegação de competência.

O regime da realização de despesas públicas com aquisição de bens móveis e serviços e de contratação pública concernente consta no Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho, e é aplicável, além do mais, às autarquias locais (artigos 1º e 2º, alínea d)).
As entidades públicas e privadas, na formação e execução dos contratos, devem observar as regras e princípios previstos, designadamente os princípios da legalidade e prossecução do interesse público, da transparência e da publicidade, da igualdade, da concorrência, da imparcialidade, da proporcionalidade, da boa fé, da estabilidade e da responsabilidade (artigos 7º a 15º).
No que concerne à realização da despesa vigora o princípio da unidade, o que se traduz em dever ser considerada a do custo total da locação ou da aquisição de bens ou serviços, e na proibição do seu fraccionamento com a intenção de a subtrair ao respectivo regime legal (artigo 16º).
A competência para autorização de despesas no âmbito das autarquias locais inscreve-se nos presidentes de câmara até ao montante de € 149 639,36 e nas câmaras municipais sem qualquer limite (artigos 18º, nº 1).
A referida competência de autorização de despesas pelas câmaras pode ser delegada nos seus presidentes até ao montante de € 748 196,80 (29º, nº 2).
A contratação relativa à locação e aquisição de bens e serviços deve ser precedida de procedimento de concurso público, concurso limitado por prévia qualificação, concurso limitado sem apresentação de candidaturas, negociação com ou sem publicação prévia de anúncio, com consulta prévia ou ajuste directo (artigo 78º, nº 1).
O ajuste directo não implica a consulta a vários locadores ou fornecedores de bens ou serviços, mas só é legalmente admitido quando o valor do contrato seja igual ou inferior a € 4 987,97, ou a natureza dos serviços a prestar, nomeadamente no caso de serviços de carácter intelectual e de serviços financeiros, não permitir a definição das especificações do contrato necessárias à sua adjudicação de acordo com as regras aplicáveis aos restantes procedimentos, desde que o contrato não ultrapasse o valor de € 997 595, 78 (artigos 81º, nº 3 e 191º).
A escolha prévia do tipo de procedimento deve ser fundamentada, cabendo à entidade competente para autorizar a respectiva despesa, e a adjudicação traduz-se no acto administrativo por via do qual aquela entidade escolhe uma proposta (artigos 54º e 79º, nº 1).

No que concerne ao plano e relatório de actividades, ao orçamento e à conta de gerência, tendo em conta as normas de direito transitório, rege o Decreto-Lei nº 341/83, de 21 de Julho.
A regra é no sentido de que nenhuma despesa poderá ser assumida, autorizada e paga sem que, para além de legal, esteja inscrita em orçamento a dotação adequada e nela tenha cabimento (26º, nº 1).
Os responsáveis autárquicos que tenham violado restrições orçamentais poderão ser obrigados à restituição das importâncias indevidamente despendidas (artigo 41º, nº 2).
A violação da regra do artigo 26º só pode ser relevada em circunstâncias excepcionais invocadas pelos responsáveis e detalhadamente constantes no acórdão do Tribunal de Contas (41º, nº 4).
Os titulares dos órgãos autárquicos abrangidos pelo número anterior e os agentes das autarquias locais são responsáveis civil e criminalmente pela falta de cumprimento das disposições do presente diploma, nos termos da lei (artigo 41º, nº 5).
Acresce que os titulares de cargos políticos, a quem, por dever do seu cargo, incumba dar cumprimento a normas de execução orçamental e conscientemente as viole, contraindo encargos não permitidos por lei, serão punidos com a pena de prisão até um ano (artigo 14º, alínea a), da Lei nº 34/87, de 16 de Julho).

8.
Atentemos agora sobre se os contratos em causa estão ou não afectados de nulidade.
Os órgãos e os agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei, devendo actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266º, nº 2, da Constituição).
Assim, não só no que concerne aos actos e contratos administrativos como também nos actos e contratos de direito privado, deve a Administração Pública actuar de harmonia com os mencionados princípios.
Conforme acima já se referiu, obrigatoriedade de respeito pelos órgãos autárquicos, no plano da contratação relativa à aquisição de bens e de serviços, dos mencionados princípios, também está consignada na lei ordinária (artigos 7º a 15º do Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho).
Ora, no caso vertente, estamos perante cinco contratos de prestação de serviço essencialmente regidos pelo direito privado, em que outorgaram, a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, representada pelo seu Presidente, e a recorrente, representada pelo respectivo gerente.
Celebrados no mesmo dia, entre as mesmas partes, essencialmente com o mesmo conteúdo declarativo de aquisição e pagamento de projectos de escultura, apenas estão diferenciados por via da singularidade do autor de cada um dos mencionados projectos, inscrevendo cada um a mesma contrapartida pecuniária correspondente a € 49 879, 78.
Na outorga dos referidos contratos de prestação de serviços, vinculando o recorrido através do órgão colegial Câmara Municipal, agiu o seu Presidente em quadro de ilegalidade.
Omitiu-se ilegalmente o procedimento administrativo pré-contratual legalmente previsto e, consequentemente, o respectivo acto administrativo de adjudicação.
Contra o disposto na lei, a pluralidade de instrumentos contratuais visou subtrair a despesa contratualizada à aprovação da câmara municipal, sob o alheamento de não haver inscrição orçamental nem cabimento quanto ao respectivo montante nem prévia deliberação camarária expressa quanto à respectiva autorização.
A celebração dos referidos contratos ocorreu, pois, sem que fosse cumprido o que a lei imperativamente estabelecia como seu pressuposto necessário, pelo que ela ocorreu em contrário do que prescrevia a lei administrativa e financeira imperativa.
Ora, expressa a lei serem nulos os negócios jurídicos contrários à lei de carácter imperativo (artigo 280º, nº 1 e 294º do Código Civil).
A conclusão é, por isso, tal como se concluiu no acórdão recorrido, embora sob motivação diversa, no sentido da nulidade dos referidos contratos de prestação de serviço, com a consequência de não serem susceptíveis de produzir o efeito de constituição de alguma obrigação exequenda pressuposto da formação do título executivo a que se reporta o artigo 46º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

9.
Vejamos agora se o recorrente agiu na oposição com abuso do direito ao invocar a nulidade dos contratos de prestação de serviço dados à execução.
Mas o recorrido também alegou dever funcionar a seu favor o abuso do direito da recorrente ao accioná-lo apesar de ter contribuído para a celebração ilegal dos contratos pelo seu representante, sob a motivação de tal excepção ser de oficioso conhecimento.
A sua pretensão não tem, porém, apoio legal, pela simples razão de que essa questão não integra o objecto do recurso de revista, interposto por quem, obviamente, nas conclusões de alegação, não suscitou o seu conhecimento (artigos 680º, nº 1, 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A recorrente, por seu turno, baseia a excepção peremptória imprópria do abuso do direito na circunstância de as ilegalidades cometidas pelo seu representante serem cometidas por ele próprio, e de, não obstante, as invocar no seu confronto para obstar ao cumprimento dos contratos em causa.
Expressa a lei ser ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334º do Código Civil).
Reporta-se, pois, este artigo à existência de um direito substantivo que é exercido com manifesto excesso em relação aos limites decorrentes do seu fim social ou económico, da boa fé ou dos bons costumes.
O fim económico e social de um direito traduz-se, essencialmente, na satisfação do interesse do respectivo titular no âmbito dos limites legalmente previstos.
Agir de boa fé, por seu turno, envolve, além do mais, no quadro das relações jurídicas, a actuação honesta e conscienciosa, isto é, numa linha de correcção e probidade, não procedendo de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável tolera.
Finalmente, os bons costumes são, grosso modo, o conjunto de regras de comportamento relacional acolhidas pelo direito, variáveis no tempo e, por isso, mutáveis, conforme as concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade.
Traduz-se, pois, o instituto do abuso do direito em excepção peremptória imprópria de direito adjectivo, o seu funcionamento não depende de consciencialização pelo sujeito, e constitui um limite ao exercício de direitos.
E ocorre quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica.
Certo é que os municípios respondem civilmente perante terceiros por ofensa dos seus direitos resultante de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos no exercício das suas funções (artigos 96º, nº 1, da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, e 501º do Código Civil).
Trata-se da chamada responsabilidade civil funcional. Mas a situação em análise não se enquadra nessa figura, certo que do que se trata é da realização de um direito de crédito por via coerciva (artigo 4º, nº 3, do Código de Processo Civil).
No âmbito da pessoa colectiva de direito público, que é o município, as diversas funções são legalmente atribuídas a uma pluralidade de órgãos diferenciados segundo determinada parcela de competência, num quadro de acentuada vertente do direito público, dado o interesse público envolvente.
Perante o referido quadro legal, embora o município deva cumprir as suas obrigações perante terceiros contraídas pelos titulares dos seus órgãos no exercício das funções, não o podem fazer contra aquilo que a lei prescreve, certo que estão sujeitos a determinado regime orçamental, que lhe impõe restrições.
Por isso, a excepção peremptória imprópria do abuso do direito assume em relação às pessoas colectivas de direito público a particularidade que decorre do regime legal financeiro a que estão sujeitas, dada a envolvência do interesse público que lhe incumbe realizar.
Ora, no caso vertente, a motivação invocada pelo recorrido para não proceder ao pagamento da quantia exequenda assenta em ilegalidade de contratação, para a qual, conforme resulta de II 9, também recorrente, através do seu representante, concorreu.
A conclusão não pode, por isso, deixar de ser no sentido de que o recorrido, ao deduzir embargos de executado, nos termos em que o fez, não agiu com abuso do direito, designadamente na modalidade de venire contra factum proprium.
10.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie, decorrente dos factos provados e da lei.
À oposição à execução em causa são aplicáveis as normas do Código de Processo Civil anteriores às do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março.
A fase declarativa dos embargos de executado, estruturalmente extrínseca à acção executiva, configura-se como contra-acção, tendente a obstar aos efeitos normais do título executivo, por via de impugnação e ou de excepção.
A factualidade mencionada sob II 9 não está afectada de ineficácia, por não contrariar outra que estivesse assente por acordo das partes.
Não são administrativos os contratos que constituem a causa de pedir na acção executiva em causa, integrando-se na espécie de prestação de serviço, regidos essencialmente pelas pertinentes normas de direito privado.
A verificação da existência de procedimento pré-contratual e, no caso afirmativo, da sua validade ou invalidade, é cognoscível no quadro dos embargos de executado em tema de questão prejudicial.
Os factos provados são insusceptíveis de revelar, na espécie, a existência de algum procedimento administrativo pré-contratual relativo aos contratos de prestação de serviço em que se baseou a acção executiva, pelo que prejudicada ficou a análise da consequência jurídica do vício de nulidade ou de anulabilidade que lhe foi assacado.
Mas os referidos contratos estão afectados de nulidade por terem sido celebrados com preterição do cumprimento de normas de direito público imperativas.
O recorrido não agiu com abuso do direito ao deduzir oposição à execução contra ele instaurada pela recorrente.
A decisão que julgou os embargos de executado procedentes deve, por isso, manter-se.
Improcede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 2 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.


Lisboa, 29 de Março de 2007.

Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís