Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18905/19.3T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO IN ITINERE
COMBOIO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/29/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA POR MAIORIA.
Sumário :

I– A lei permite o atravessamento de linha férrea em caso de justificada necessidade e cumpridas todas as regras de segurança impostas pelas circunstâncias do caso em concreto.


II– Constitui justificada necessidade a recuperação de telemóvel caído acidentalmente à linha férrea.


III– A descida da plataforma de embarque à linha férrea, para a recuperação de telemóvel, está condicionada aos tempos de passagem de comboios no respectivo local, à sinalização sonora da sua aproximação e à sua audição por parte do sinistrado, cujo ónus da prova cabe à entidade responsável.


IV– A falta de alegação e prova da factualidade referida no ponto III., afasta a culpa grave ou lata do sinistrado - negligência grosseira - na ocorrência do acidente de trabalho in itinere

Decisão Texto Integral:

Proc. n.o 18905/19.3T8LSB.L1.S1


Origem: Tribunal Relação Lisboa


Revista excecional


Relator Conselheiro Domingos Morais


Adjuntos Concelheiro Mário Morgado


Conselheiro Júlio Gomes


Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.Relatório


1. - AA, BB e CC, as duas últimas filhas do sinistrado e representadas por sua mãe, DD, intentaram acção especial, emergente de acidente de trabalho contra


Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A., alegando, em resumo, que no dia 16.09.2019, quando se deslocava do seu local de trabalho em direção à sua residência, o trabalhador, que exercia funções não especializadas a favor de “MDB Gestão de Resíduos, Lda.”, no âmbito de um contrato de trabalho entre ambos celebrado, mediante a remuneração anual de €11.030,92, sofreu um acidente mortal, que consistiu em ter sido atropelado por um comboio. A referida sociedade tinha transferido a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho para Ré seguradora.


Terminaram, pedindo a condenação da Ré nos seguintes pagamentos:


I – À Autora, AA:


a) A pensão anual, atualizável, no montante de 3 309,28 €, com início em ...-...-2019, sendo o seu valor atualizado para 3 332,44 €, a partir de ...-...-2020;


b) Metade do subsídio por morte, no montante de 2 876,02 €;


c) 1 638,84 € de despesas de funeral;


II – à Autora, BB:


a) A pensão anual e temporária, atualizável, no montante de € 2 206,18, com início a ...-...-2019, sendo o seu valor atualizado para € 2 215,40, a partir de ...-...-2020;


b) O subsídio por morte, no montante de 1 438,01 € (metade do valor da metade que cabe aos filhos);


III- à Autora, EE:


a) A pensão anual e temporária, atualizável, no montante de 2 206,18 €, com início a ...-...-2019, sendo o seu valor atualizado para 2 215,40 €, a partir de ...-...-2020;


b) O subsídio por morte, no montante de 1 438,01 € (metade do valor da metade que cabe aos filhos).


IV - Juros de mora, vencidos e vincendos, sobre aquelas prestações, à taxa anual legal, desde a data do respetivo vencimento e até integral pagamento.


2. – Citada, a Ré contestou, alegando que o acidente descrito nos autos se mostra descaracterizado, uma vez que ocorreu, única e exclusivamente, por negligencia grosseira do Sinistrado que saltou para a linha do comboio para a apanhar o telemóvel pessoal que aí caíra.


3. - As Autoras responderam, negando a alegada negligência grosseira por parte do Sinistrado, uma vez que o mesmo só saltou para a linha com o objetivo de recuperar um telemóvel, antes que viesse a ser destruído com a passagem de um comboio, sendo certo que tal telemóvel era de valor elevado e que lhe tinha sido oferecido pela sua companheira.


4. – Na 1.a instância foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:


Face ao exposto julga-se a ação procedente e, consequentemente, condena-se a Ré a pagar:


I – À Autora AA:


a) A pensão anual de € 3.309,28 (três mil trezentos nove euros e vinte e oito cêntimos) desde o dia ... de ... de 2019, acrescida das devidas atualizações, anuais, até a Beneficiária perfazer a idade de reforma e no montante de € 4.414,37 (quatro mil quatrocentos e catorze euros e trinta e sete cêntimos). A partir daquela idade ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho b) o subsídio por morte, no montante de 2 876,02 (dois mil oitocentos e setenta e seis euros e dois cêntimos;


Quantias estas acrescidas de juros de mora à taxa e anual de 4%, desde o dia ... de ... de 2019 até integral pagamento.


c) A quantia de € 1.638,84 (mil seiscentos e trinta e oito euros e oitenta e quatro cêntimos) de despesas de funeral, acrescida de juros de mora à taxa e anual de 4%, desde a citação da Ré até integral pagamento.


II – À Autora BB:


a) Uma pensão anual no montante de €2.206,18 (dois mil duzentos e seis euros e dezoito cêntimos) com as legais atualizações, até perfazerem os 18 anos; entre os 18 e os 22 anos, enquanto frequentarem o ensino secundário ou curso equiparado; e entre os 18 e os 25 anos, enquanto frequentarem curso de nível superior ou equiparado. b) o subsídio por morte, no montante de € 1.438,01 (mil quatrocentos e trinta e oito euros e um cêntimo).


Quantias estas acrescidas de juros de mora à taxa e anual de 4%, desde o dia ... de ... de 2019 até integral pagamento.


III - À Autora EE:


a) uma pensão anual no montante de €2.206,18 (dois mil duzentos e seis euros e dezoito cêntimos) com as legais atualizações, até perfazerem os 18 anos; entre os 18 e os 22 anos, enquanto frequentarem o ensino secundário ou curso equiparado; e entre os 18 e os 25 anos, enquanto frequentarem curso de nível superior ou equiparado. b) o subsídio por morte, no montante de € 1.438,01 (mil quatrocentos e trinta e oito euros e um cêntimo).


Quantias estas acrescidas de juros de mora à taxa e anual de 4%, desde o dia ... de ... de 2019 até integral pagamento.


5. – A Ré apelou e o Tribunal da Relação acordou:


“Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.”.


6. – A Ré interpôs recurso de revista excepcional nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 672.o n.o 1, alíneas a) e b), do CPC.


7. - Por acórdão da Formação de 19 de outubro de 2022, in www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu admitir a revista excepcional, por se verificar o condicionalismo previsto no artigo 672.o, no. 1, a), do CPC.


8. – Nas conclusões da revista excepcional, a Ré alegou, em síntese:


O comportamento do sinistrado constituiu um claro desvio ao percurso normal de regresso a casa, pelo que, o sinistro não podia ter sido considerado acidente de trabalho in itinere. E sendo um acidente de trabalho, ainda que in itinere, a conduta do sinistrado claramente descaracteriza o mesmo como acidente de trabalho, não só por representar um desvio, como pela gravidade da mesma, já que “O acto do sinistrado não constituiu uma simples imprudência, uma mera negligência, uma distracção ou um acto aceitável, mas um comportamento temerário em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência e bom senso”.


As Instâncias subsumiram o Direito aos factos, verteram quer na Sentença quer no Acórdão argumentos que só eram possíveis com recurso à ficção – cf. conclusões 10.a a 26.a.


9. - As Autoras contra-alegaram, dizendo, em síntese:


Sintetizando as conclusões, verificamos que fundamenta o recurso em duas questões que considera controvertidas, a saber:


a) O desvio do percurso habitual, descaracterizador de acidente in itinere, e


b) Ter havido negligência grosseira na conduta do sinistrado, descaracterizadora do acidente como de trabalho.


Quanto à primeira (a)), afirmamos que foi aceite por acordo e ficou como matéria assente, que o acidente foi in itinere e de trabalho, não podendo os tribunais superiores conhecer matéria nova apenas invocada em alegações recursivas.


Quanto à segunda (b)), compulsados os autos constatamos que as decisões proferidas, em primeira e segunda instâncias, não nos merecem qualquer censura.


10. - O M. Público não emitiu parecer, por patrocínio das Autoras.


11. - Cumprido o disposto no artigo 657.o, n.o 2, ex vi do artigo 679.o, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.


II. - Fundamentação de facto


1. – A decisão sobre a matéria de facto é a seguinte:


1. FF sofreu um acidente, cerca das 17:30 horas, no dia .../.../2019, em ... (A)


2. Quando o mesmo trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização da entidade Empregadora MDB Gestão de Resíduos, Lda., como categoria profissional de trabalhador não especializado. (B)


3. O acidente consistiu em o Sinistrado ter sido atropelado por um comboio, na estação de ..., em ..., ao tentar recuperar o seu telemóvel que tinha caído para a linha de caminho de ferro. C)


4. E ocorreu na deslocação do Sinistrado do local de trabalho para a sua residência, no percurso e no período habituais. (D)


5. O Sinistrado prestava o seu trabalho, de segunda a sexta-feira, entre as 08,00h e as 17,00h. (E)


6. O local de trabalho do Sinistrado era na Av. ... Henrique, ..., ..., ... (F)


7. E o mesmo residia na ..., 5, 3 Ft. – .... (G)


8. O Sinistrado deslocava-se a pé do local de trabalho para a estação de comboios de ... e nesta estação apanhava o comboio com destino a ..., saindo na estação da ..., seguindo, depois, a pé para a sua residência. (H)


9. Habitualmente, o Sinistrado apanhava o comboio das 17,21h ou, se perdesse este, o das 17,34h, na estação de .... (I)


10. O Sinistrado faleceu no dia .../.../2019, em consequência das lesões traumáticas resultantes daquele atropelamento. (J)


11. Na data do acidente, o Sinistrado vivia em união de facto com a 1aAutora, AA, há mais de dois anos. (K)


12. O Sinistrado era o pai da 2a e da 3a Autoras, BB e EE, respetivamente. (L)


13. A 2aAutora nasceu a .../.../2005. (M)


14. A 3aAutora nasceu a .../.../2006. (N)


15. À data do acidente, o Sinistrado auferia a retribuição global anual de € 11.030,92, constituída por € 600,00 x 14 de remuneração base, € 6,05 x 22 x 11 de subsídio de alimentação, € 0,43 de valor anual de horas noturnas, € 320,92 de valor anual de trabalho suplementar e € 845,47 de valor anual de prémio de desempenho. (O)


16. A entidade empregadora do Sinistrado tinha a responsabilidade emergente do acidente de trabalho totalmente transferida para a Ré Lusitânia Companhia de Seguros, SA, em função da retribuição referida em O). (P)


17. A estação ferroviária ... era constituída por 4 linhas de caminho de ferro e 3 plataformas de embarque, encontrando-se estas situadas numa reta extensa e com muito boa visibilidade para ambos os sentidos. (Q)


18. As plataformas de embarque ficam situadas a mais de 1,5 metros acima da linha de caminho de ferro. (R)


19. A estação ferroviária ... é atravessada por composições a circular a altas velocidades, nomeadamente respeitante ao Alfa, Intercidades e Regionais e que não têm aí paragem. (S)


20. A circulação desse tipo de comboios é intensa e constante na estação ferroviária em causa. (T)


21. É do conhecimento geral dos utilizadores dessa estação que aí passam comboios de alta velocidade e que não param. (U)


22. A passagem eminente dos comboios que não param e dos que param é sempre anunciada por avisos em alta voz através dos altifalantes da estação e de sinais sonoros dos próprios comboios. (V)


23. No dia e hora em causa, o infeliz Sinistrado FF encontrava-se na plataforma de embarque central da estação ... a aguardar a chegada do comboio com destino a ..., juntamente com outras pessoas. (W)


24. O Sinistrado encontrava-se à beira da plataforma a mexer no telemóvel. (X)


25. A dado momento, o Sinistrado deixou cair o telemóvel à linha de caminho de ferro. (Y)


26. De imediato, o Sinistrado saltou da plataforma de embarque para a linha de caminho de ferro para apanhar o telemóvel. (Z)


27. Nessa altura, as pessoas que se encontravam na plataforma de embarque disseram e chamaram a atenção do Sinistrado que aquele tipo de comportamento era perigoso. (AA)


28. Na altura em que o Sinistrado apanhou o telemóvel, surgiu o Comboio Regional n.o 4426, proveniente de ... e com destino a ..., que não parava naquela estação. (BB)


29. A passagem eminente de comboio foi anunciada por avisos em alta voz através dos altifalantes da estação e dos sinais sonoros do próprio comboio, (CC)


30. Sendo que, as pessoas que se encontravam na plataforma de embarque gritaram várias vezes para o Sinistrado se apressar a subir. (DD)


31. No momento em que tentava subir para a plataforma de embarque, o Sinistrado foi colhido pelo comboio. (EE)


32. O condutor do comboio não conseguiu evitar embater no Sinistrado, pois quando o avistou era tarde de mais para conseguir imobilizar a composição. (FF)


33. O telemóvel do Sinistrado, um Samsung Note 10, custou € 1.029,99 (1.o)


34. O telemóvel foi adquirido em ...-...-2019 pela 1aAutora, a qual havia ofertado ao Sinistrado (2.o)


35. O Sinistrado enviava uma mensagem através do telemóvel, via “messenger”, diariamente para a primeira Autora, ao regressar do trabalho para casa, quando se encontrava na estação de comboios de ..., para lhe dizer qual o comboio que ia apanhar (3o)


36. No dia .../.../2019 a 1a Autora não chegou a receber essa mensagem (4o)


37. O Sinistrado tinha dificuldades auditivas de ambos os ouvidos (5.o e 6.o)


38. O Sinistrado usava uma prótese auditiva no ouvido esquerdo (7o)


39. Não houve trasladação do corpo do Sinistrado(10o)


40. As despesas do funeral foram pagas pela 1aAutora, perfazendo o valor de € 1.638,83 (11o)


41. Se o telemóvel não fosse recuperado da linha para onde tinha caído, poderia ser destruído por um comboio (12o)


42. De imediato, não existia outra forma de recuperar o telemóvel, que não fosse descendo à linha (13o)


43. A oferta referida em 3) ocorreu cerca de uma semana antes da data do acidente (14o).


3.2. Factos não provados


5.o, em parte; 6.o, em parte, 8.o, 9.o, 12.o, em parte e 15.o.


III. – Fundamentação de direito


1. - Do objeto do recurso de revista excepcional


Nas conclusões do recurso de revista excepcional, a Ré invoca duas questões:


- O desvio do percurso habitual, descaracterizador de acidente de trabalho in itinere;


- A descaracterização do acidente de trabalho in itinere, por negligência grosseira do sinistrado.


2. - Do desvio do percurso habitual.


As Autoras alegam que se trata de uma questão nova, não apreciada pelas instâncias.


Apreciemos.


O artigo 608.o do CPC determina no seu n.o 2:


2 - O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” (negrito nosso).


No acórdão do Tribunal da Relação foi consignado:


(...), analisando os autos, verifica-se que a mesma não invocou como fundamento para a sua desresponsabilização a não verificação de acidente de percurso em virtude do sinistrado se ter desviado do seu percurso habitual para apanhar o telemóvel que tinha caído na linha férrea. Pelo contrário, em sede de tentativa de conciliação, presidida pelo Ministério Público, que teve lugar no dia ...-...-2021, a Ré seguradora expressamente aceitou que o acidente que vitimou o sinistrado ocorreu “na deslocação do trabalho para casa, no trajeto normalmente utilizado e no período habitualmente gasto”, tendo apenas declinado a sua responsabilidade por considerar que o acidente se deveu “a negligência grosseira do sinistrado” (artigos 109.o a 111.o do Código de Processo do Trabalho).


E tanto assim foi, que na sua contestação a Ré voltou a invocar a existência da negligência grosseira do sinistrado para considerar excluída a sua responsabilidade no tocante às consequências do acidente em causa (artigos 6.o a 41.o). Ou seja, na fase contenciosa do presente processo especial emergente de acidente de trabalho, a matéria da exclusão da responsabilidade, com base no disposto no art.o 9.o, n.o 3 (a contrário), da Lei n.o 98/2009, de 4 de Setembro, jamais foi suscitada pela Ré, não tendo também sido abordada na sentença recorrida. Configura, assim, tal matéria uma questão nova, cuja apreciação está vedada a este tribunal de recurso conhecer.”. (negrito nosso)


A propósito, pode ler-se no acórdão do STJ de 17 de novembro de 2016, proc. n.o 861/13.3TTVIS.C1.S2, Relatora Ana Luísa Geraldes, in www.dgsi.pt:


É que, como é sabido, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais (art. 627.o do CPC), através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá‐las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas, salvo quanto às questões de conhecimento oficioso, o que, como vimos, não é o caso.


De acordo com a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, não pode deixar de se ter presente que tradicionalmente seguimos, em sede de recurso, no âmbito do processo civil, um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no Tribunal de recurso.


Para se concluir no sentido de que os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que antes não foram submetidas ao contraditório e decididas pelo Tribunal recorrido.


Com efeito, em sede recursória o que se põe em causa e se pretende alterar é o teor da decisão recorrida e os fundamentos desta. A sua reapreciação e julgamento terão de ser feitos no seio do mesmo quadro fáctico e condicionalismo do qual emergiu a sentença proferida e posta em crise.


A este propósito, também Abrantes Geraldes explicita que os recursos se destinam a permitir que um Tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, objectivo que se reflecte na delimitação das pretensões que lhe podem ser dirigidas e no leque de competências susceptíveis de serem assumidas.


O mesmo é dizer que devem circunscrever-se às questões que já tenham sido submetidas ao Tribunal de categoria inferior e aos fundamentos em que a sentença se alicerçou e que resultaram da prova produzida e carreada para os autos, salvo, naturalmente, as questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos imprescindíveis ao seu conhecimento.


Não permitindo a lei que nos recursos sejam discutidas questões novas que não foram suficientemente submetidas ao escrupuloso respeito pela regra do contraditório, a fim de obviar que, numa etapa desajustada, se coloquem questões que nem sequer puderam ser convenientemente discutidas ou apreciadas.


[cf. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Processo Civil”, 2a Edição, págs. 395 e segts. No mesmo sentido cf. António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2016, 3a Edição, Almedina, pág. 98, e in “Recursos Em Processo Civil – Novo Regime”, Almedina, 2a Edição, págs. 25 e segts.; 94 e segts.; cf. tb. José Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, in “CPC Anotado”, Vol. III. Tomo 1, 2a Ed., Coimbra Editora, pág. 8.].” – fim de citação


Concordando nós com o exposto entendimento, não conhecemos da primeira questão - do desvio do percurso habitual – por se tratar de uma questão nova, não apreciada nas Instâncias.


3. - Da descaracterização do acidente de trabalho in itinere, por negligência grosseira do sinistrado.


3.1. - Legislação aplicável


O acidente descrito nos autos ocorreu no dia ... de ... de 2019, pelo que o regime jurídico aplicável é o da Lei n.o 98/2009, de ... (LAT), como decorre do n.o 1 do seu artigo 188.o: a presente lei entra em vigor no dia ... de ... de 2010.


Nos seus artigos 1.o, 2.o e 3.o está consagrado o direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho aos trabalhadores por conta de outrem, reparação essa que é da responsabilidade dos empregadores ou das empresas seguradoras para as quais tenha sido transferida - cf. artigos 7.o e 79.o da LAT -.


Por sua vez, o artigo 8.o, n.o 1, define acidente de trabalho como “aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.”.


A extensão do conceito é definida pelo artigo 9.o:


1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:


a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;


2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:


a) (...);


b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;”.


Caracterizado como de trabalho, o acidente descrito nos autos, resta saber se se verifica ou não o estatuído no artigo 14.o, n.o 1, alínea b) da LAT, que permita afastar a responsabilidade da Ré seguradora.

O artigo 14.o - Descaracterização do acidente - dispõe:

1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:

a) (...);

b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;

c) (...).

2 – (...).

3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”. (negritos nossos)

3.2. - No acórdão do Tribunal da Relação pode ler-se:

“Com base no descrito quadro factual, o que pode desde já adiantar-se é que a conduta do sinistrado, ao saltar para a linha do caminho de ferro para apanhar o telemóvel, visto aí o ter deixado cair, é reveladora de grande falta de diligência, cuidado e prudência da sua parte.

Com efeito, é do conhecimento geral que as estações de caminho de ferro e as suas plataformas por serem locais onde passam com regularidade comboios, alguns deles a alta velocidade e que não param, são zonas perigosas, a implicar especial atenção e prudência da parte dos utentes.

Por ser assim, nas estações de caminho de ferro onde existem passadeiras de peões, as mesmas encontram-se assinaladas e devidamente sinalizadas, de modo a que os peões saibam que (apenas) por aí lhes é permitido transpor a linha férrea e as circunstâncias em que o podem fazer em segurança.

Nas próprias plataformas, é também comum a existência de uma faixa amarela ao longo da mesma, bem como indicações no sentido de não ser permitida a ultrapassagem dessa faixa amarela (antes da chegada dos comboios). Tudo isto, naturalmente, porque a circulação ferroviária é uma atividade perigosa, que implica riscos, impondo-se, por isso, para todos que as utilizam especial atenção, prudência e cuidado.

No caso em apreço, a negligência do sinistrado é ainda mais evidente quando é certo o mesmo usava a referida estação com regularidade para se deslocar de comboio para casa após o trabalho e vice-versa, sendo por isso conhecedor das características do local.

Sucede, contudo, como acima se deu conta, que para se aferir da existência da negligência grosseira e exclusiva do sinistrado, é imperioso que se atente no circunstancialismo concreto que rodeou o acidente.

E nesse conspecto não pode deixar de se assinalar, consoante resulta da factualidade provada, que o sinistrado saltou para a linha a fim de “salvar” e recuperar o telemóvel que aí havia caído.

Tratava-se, nem mais nem menos, do telemóvel que lhe havia sido ofertado, há poucos dias, pela sua companheira, e que havia custado cerca de €. 1029.99.

Assim, para o sinistrado, o dito telemóvel, para além de ter valor económico (face ao seu custo e à modesta condição social do sinistrado, que auferia apenas de ordenado base €600,00), tinha também para o mesmo óbvio valor estimativo, visto ter sido oferecido pela sua companheira. Se não conseguisse recuperar o telemóvel, o mesmo poderia ficar definitivamente destruído.

Importa ainda ponderar que o telemóvel constitui atualmente um objeto de uso indispensável para a generalidade das pessoas.

A esse respeito, numa referência meramente indicativa, anota-se o seguinte:

É sobretudo por via do telemóvel que as pessoas estabelecem e mantêm contactos telefónicos, deixam mensagens e trocam as mais diversas informações. Aí se armazenam também vários dados, sendo no telemóvel que se guardam os contactos de familiares e amigos, fotos, mensagens, notas e demais aspetos relevantes da vida de cada um. É através do telemóvel que, normalmente, se acede às redes sociais, e-mails e a diversos conteúdos, incluindo notícias, anúncios e publicidade. Sendo, igualmente, através do telemóvel que se pode jogar, ver filmes, ouvir música, etc., etc.

O telemóvel “entranhou-se” de tal modo na vida dos cidadãos em geral, que o mesmo, para muitos, é como que “uma extensão da própria pessoa”. Situação essa, a que como utilizador, certamente, o sinistrado não seria alheio.

[Para alguns está-se perante uma verdadeira adição, sobretudo nas camadas mais jovens da população, falando-se mesmo da existência de nomofobia (medo de ficar sem telemóvel). Vd. “Escravos do telemóvel”, Jornal Expresso, https://expresso.pt/sociedade/2017-10-28-Escravos-do-telemovel.].

Foi, pois, para evitar ficar sem o telemóvel que o sinistrado se lançou à linha de caminho de ferro, a fim de o apanhar. O que fez de imediato, em gesto quase instantâneo, assim que o telemóvel ali caiu.

É certo que as pessoas que se encontravam no local chamaram a atenção para a perigosidade do comportamento do sinistrado e que a passagem do comboio foi anunciada através dos altifalantes da estação e sinais sonoros do comboio. Acontece, porém, que tendo o sinistrado dificuldades auditivas em ambos os ouvidos, se desconhece se o mesmo os ouviu.

Todavia, na altura em que saltou para a linha férrea, não se demonstra que o comboio estivesse próximo, fosse avistável pelo sinistrado ou estivesse prevista a sua passagem, sendo razoável pressupor que o sinistrado terá calculado que conseguiria recolher o telemóvel e sair a tempo da linha, visto que apenas foi colhido pela composição quando já se encontrava a tentar subir para a plataforma.

Importa ainda salientar que o comboio que atingiu o sinistrado era um comboio regional e não um comboio de alta velocidade (como, é por exemplo, Alfa Pendular).

Para além disso, se é certo que o maquinista não conseguiu evitar o embate, pois quando avistou o sinistrado já era tarde de demais para imobilizar a composição, nada se apurou que nos permita afirmar que esse comboio circulava de acordo com a velocidade legalmente permitida para o local, sendo que os princípios de prudência e diligência se impunham àquele como a qualquer condutor – tanto mais que se aproximava de uma estação, onde é normal se encontrarem várias pessoas e circularem outras composições. Acresce que tão pouco se apurou a periodicidade e o horário desse comboio. Isto é, não se dispõe de dados, que nos permitam concluir no sentido de que o acidente não ocorreu (também) por culpa do maquinista do comboio – por, eventualmente, o mesmo circular em excesso de velocidade no local.

Assim, apesar da “ousadia”, ligeireza e imprudência do sinistrado, atendendo ao contexto em que os factos ocorreram, e à luz dos ensinamentos que supra se deixaram expostos, afigura-se-nos não se poder afirmar que estamos em presença de um ato exclusivo, gratuito, sem qualquer justificação, temerário em alto e relevante grau, completamente incompreensível à luz das regras da vida e da experiência comum. Não se demonstrando, assim, in casu, que o acidente se tenha ficado a dever a negligência grosseira e exclusiva do sinistrado.

Termos em que improcede, sem mais, a presente questão” – fim de citação.

Apreciemos.

3.3. - A interpretação do artigo 14.o, n.o 1, alínea b) e n.o 3, da Lei n.o 98/2009, de ... – e, anteriormente, do artigo 7.o, n.o 1, alínea b), da Lei n.o 100/97, de ... e do artigo 8.o, n.o 2, do DL n.o 143/99, de ...; da alínea b), do n.o 1 da Base VI) da Lei n.o 2127, de ... de ... de 1965 -, têm proporcionado vários escritos sobre a matéria, quer na doutrina, quer na jurisprudência.

Na doutrina:

Cruz de Carvalho, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Legislação Anotada, pág. 42, em anotação à Base VI, n.o 1 alínea b), da Lei n.o 2127, escreveu: “é preciso que haja um comportamento temerário, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil, indesculpável, mas voluntária, embora não intencional, (...)”.

“Os factos referidos nesta Base, porque impeditivos do direito do sinistrado à reparação, incumbe à entidade responsável a prova da sua existência (cfr. artigo 342.o do Código Civil)” – cf. Autor e obra citada, pág. 39.

Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina 2.a Edição, Reimpressão, ..., pág. 63, em anotação ao artigo 7.o, n.o 1, alínea b), da Lei 100/97, escreveu:

Ao qualificar negligência grosseira, o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras. (...).

O legislador do art.o 7.o teve também o cuidado de distinguir a negligência quanto à intensidade da vontade ou gravidade, no pressuposto de que a doutrina costuma estabelecer três graus: lata, leve e levíssima. A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira; é grosseira porque é grave e por ser aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bónus pater famílias.

Mais recentemente, Júlio Manuel Vieira Gomes, in O Acidente de Trabalho, O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra editora, 2013, págs. 232 a 234, escreveu:

“(...) a privação da reparação por acidente de trabalho é uma consequência desproporcionada, a não ser para comportamentos dolosos ou com um grau de negligência muito elevado que sejam, eles próprios, a causa do acidente, de tal modo que verdadeiramente se quebre o nexo etiológico entre o trabalho e o acidente.”

E a págs. 267 e 268: “(...) desde a sua génese que os sistemas de reparação dos acidentes de trabalho assentam na normal coexistência entre risco (ou responsabilidade objetiva do empregador) e a culpa do sinistrado: boa parte dos acidentes de trabalho decorre de distrações, inadvertências, imperícia, mas também de desatenção e mesmo desrespeito pelas regras de segurança. Só em casos excecionais é que a responsabilidade do empregador deve ser excluída nessas situações – em suma, a descaracterização do acidente deve restringir-se a situações muito graves do ponto de vista do juízo de censura do sinistrado – sob pena de a pessoa que trabalha e que, como pessoa comete erros, com maior ou menor frequência, ficar desprovida de proteção por um erro momentâneo”. (negritos nossos)

Na jurisprudência:

No acórdão do STJ de 26.01.2006, proc. n.o 05S3114, Fernandes Cadilha (Relator), foi consignado:


A jurisprudência tem vindo a associar o comportamento temerário em alto e relevante grau a um comportamento inútil, indesculpável, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência (acórdão do STJ de 7 de novembro de 2001, Revista 1314/01). Por outro lado, em diversas situações, o Supremo tem afirmado que não basta a mera circunstância de a conduta do sinistrado integrar uma infracção ao Código da Estrada, ainda que eventualmente qualificável como contravenção grave, para se dar como preenchido o requisito que integra a causa de descaracterização do acidente (cfr., em situações similares à dos autos, os acórdãos de 2 de fevereiro de 2005, Revista n.o 3151/04, e de 22 de Junho de 2005, Revista n.o 260/05).”.


No acórdão do STJ de 02.02.2006, proc. n.o 05S3479, Relator Sousa Peixoto, in www.dgsi.pt, pode ler-se: “a negligência consiste na omissão da diligência a que o agente estava obrigado ou, por outras palavras, na inobservância do dever objectivo de cuidado que lhe era exigível e, segundo a terminologia clássica, pode revestir várias formas: culpa levíssima, culpa leve e culpa grave. A primeira (culpa levíssima) ocorre quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa, excepcionalmente, diligente teria observado. A segunda (culpa leve) acontece quando o agente tiver deixado de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria observado. A terceira (culpa grave) existirá quando o agente deixar de usar a diligência que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta não teria observado.


A negligência grosseira corresponde à culpa grave ou lata, que os romanos apelidavam de nimia ou magna negligentia e que, segundo eles, consistia em non intelligere quod omnes intelligunt – cfr. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 2.a edição, pág. 304.


Neste contexto, dúvidas não há de que para descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar que a sua conduta (por acção ou omissão) atentou contra o mais elementar sentido de prudência (...). É preciso, em suma, que a sua conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum. (...), a falta grave e indesculpável deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta.


No acórdão do STJ de 09.06.2010, proc. n.o 579/09.1YFLSB, Sousa Grandão (Relator), in www.dgsi.pt, foi escrito:


A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo, mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).


Segundo a terminologia clássica, a negligência também pode assumir diferentes graus, em função da ilicitude e da culpa: será levíssima quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado, será leve quando o parâmetro atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e, enfim, será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria também incorrido.


Correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada - se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.


A par de um tal comportamento, a assinalada exclusão da responsabilidade mais exige que o acidente tenha resultado em exclusivo desse comportamento.


Refira-se também que a “negligência grosseira” deve ser apreciada em concretoconferindo as condições do próprio sinistrado – e não com referência a um padrão abstracto de conduta.


No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 22.09.2011, proc. n.o 896/07.5TTVIS.C1.S1, in www.dgsi.pt, (Pinto Hespanhol Relator):


“(...)


Neste plano de consideração, a lei acolheu a figura da negligência grosseira que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.


Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta. (negritos nossos).


Os citados acórdãos do STJ salientam ainda que a descaracterização do sinistro como acidente de trabalho constitui um facto impeditivo do direito de reparação, competindo, pois, à entidade responsável, a prova da correspondente materialidade, nos termos do artigo 342.o, n.o 2, do Código Civil (CC).


3.4. - A gestão da segurança ferroviária é uma atividade das empresas gestoras das infraestruturas e operações ferroviárias, em cumprimento da obrigação legal prevista:


- No artigo 66.o-C do Decreto-Lei no 270/2003 de 28 de outubro, alterado pelos Decretos-Lei no 151/2014 de 13 de outubro e n.o 85/2020, de 13.10.2020;


- No artigo 18.o do Regulamento n.o 402/2013/CE e


- No Regulamento publicado pelo DL n.o 276/2013, de 4 de novembro, em vigor à data do acidente.


Na campanha pública que a empresa IP - Infraestruturas de Portugal, S.A., promoveu no final do ano de 2022, entre 21 e 29 de novembro, com divulgação na televisão e nas rádios nacionais, regionais e locais, canais digitais e na rede de mupis nas estações ferroviárias, chamava a atenção para o facto da audição ser um sentido privilegiado para se dar conta da aproximação de um comboio e recomendava para que “Nunca atravesse uma linha de caminho-de-ferro com auscultadores nos ouvidos: pare, escute e olhe”.


O artigo 19.o - Proibições de circulação - do DL n.o 276/2003, de 04 de novembro determina:


“1 - Salvo o disposto nos artigos seguintes, não são permitidos o trânsito a pé, o estacionamento ou o atravessamento de linhas férreas por quaisquer pessoas, salvo se possuírem autorização de trânsito e ou licença de atravessamento, emitidas pela empresa gestora da infra-estrutura ferroviária.


2 – (...).”.


O artigo 20.o - Excepções às proibições de circulação – do mesmo diploma prescreve:


1 - Observadas as disposições do presente diploma, as indicações dos agentes ferroviários em serviço e cumpridas ainda todas as regras de segurança impostas pelas circunstâncias, é permitido:


a) O atravessamento nas passagens de nível, de acordo com o disposto no Regulamento de Passagens de Nível, aprovado pelo Decreto-Lei n.o 568/99, de 23 de dezembro, bem como nas linhas assentes em vias que sejam comuns a outros modos de transporte;


b) O atravessamento, a circulação e o estacionamento nas estações e apeadeiros, quando necessários para a utilização de comboios ou de instalações concessionadas, ou ainda para a realização de operações de transporte estritamente nos locais próprios para o efeito.


2 - É proibido o atravessamento da linha férrea, salvo em casos de justificada necessidade, nos quais, e sempre que possível, o atravessamento deverá ser acompanhado por um agente ferroviário em serviço, que posteriormente atestará as razões que o motivaram e as condições em que o mesmo se efectuou.”


Ou seja, a proibição de atravessar a linha férrea, o denominado “trespassing”, fora das passagens de nível, não é absoluta.


No entanto, a lei impõe duas condições: (i) a justificada necessidade e (ii) o cumprimento de todas as regras de segurança impostas pelas circunstâncias do caso em concreto.


No caso dos autos, as Instâncias consideraram como justificada a tentativa de recuperação do telemóvel por parte do sinistrado, não só pelo seu valor de aquisição (quase o dobro da sua remuneração base mensal) e estima pessoal (oferta da sua companheira) - cfr. factos provados 33) a 35) -, como também pela necessidade imperiosa que, actualmente, o telemóvel constitui para o bónus pater famíliae.


Pode afirmar-se, com a necessária segurança, que, em pleno século XXI, o telemóvel faz parte da “inteligência artificial, electrónica” do ser humano, que o acompanha “noite e dia” para as mais diversas operações pessoais e sociais que o dito aparelho permite realizar.


(cfr. também https://tag.jn.pt/nao-sejas-escravo-do-teu-telemovel/).


Tal relevância pessoal e social, motivou o sinistrado a actuar de modo instintivo, impulsivo e imediato para o tentar recuperar, perante a sua queda inesperada à linha férrea - “De imediato, o Sinistrado saltou da plataforma de embarque” – facto 26) -.


3.5. - No entanto, deve afirmar-se que a recuperação do telemóvel - a “justificada necessidade” - estava condicionada ao estrito cumprimento de todas as regras de segurança ferroviária impostas pelas circunstâncias no local do acidente.


Nos autos, foi dado como provado que:


A estação ferroviária ... é atravessada por composições a circular a altas velocidades, nomeadamente respeitante ao ..., Intercidades e Regionais e que não têm aí paragem, como é do conhecimento geral dos utilizadores dessa estação.


A passagem eminente dos comboios que não param e dos que param é sempre anunciada por avisos em alta voz através dos altifalantes da estação e de sinais sonoros dos próprios comboios.


No dia e hora em causa, o sinistrado encontrava-se à beira da plataforma de embarque central da estação ... a aguardar a chegada do comboio com destino a ..., juntamente com outras pessoas, e, a dado momento, deixou cair o telemóvel à linha de caminho de ferro.


De imediato, saltou da plataforma de embarque para a linha de caminho de ferro para apanhar o telemóvel.


Na altura em que o Sinistrado apanhou o telemóvel, surgiu o Comboio Regional n.o 4426, proveniente de ... e com destino a ..., que não parava naquela estação.


A passagem eminente de comboio foi anunciada por avisos em alta voz através dos altifalantes da estação e dos sinais sonoros do próprio comboio.


Sendo que, as pessoas que se encontravam na plataforma de embarque gritaram várias vezes para o Sinistrado se apressar a subir - cf. pontos 19) a 30 dos factos provados.


O Sinistrado tinha dificuldades auditivas de ambos os ouvidos e usava uma prótese auditiva no ouvido esquerdo – cf. pontos 37) e 38 dos factos provados


Da factualidade dada como provada pelas Instâncias, apenas é referida sinalização sonora no local do acidente - cfr. ponto 29) dos factos provados -.


Na Terminologia usada pela IP - Infraestruturas de Portugal, S.A., empresa responsável pelo sector ferroviário, o “intervalo entre dois comboios consecutivos, é o intervalo de tempo entre dois comboios consecutivos circulando na mesma via e no mesmo sentido. É determinado com base no intervalo de tempo mínimo admissível (dependente do tipo de sistema e da técnica de segurança) e nas exigências da exploração e do tráfego.” (sublinhado e negritos nossos).


Impunha-se, pois, saber qual o tempo mínimo que mediou entre a passagem do Comboio Regional n.o 4426 e o comboio que o precedeu na mesma linha e no mesmo sentido de marcha, na estação ....


A Ré seguradora, porém, não alegou (cfr. artigos 10.o, 11.o, 12.o da contestação), nem muito menos provou, como era seu ónus, tal factualidade.


A Ré também não alegou (cf. artigo 13.o da contestação), nem provou, que os “avisos e sinais sonoros” de anúncio da passagem do Comboio Regional n.o 4426, proveniente de ... e com destino a ..., tenham ocorrido antes de o sinistrado ter saltado da plataforma de embarque (a sequência dos pontos 26), 27), 29), 30) dos factos provados indicia que foi depois); como também não alegou, nem provou, que a amplitude do som dos altifalantes da estação de ... e dos sinais sonoros emitidos pelo referido comboio fosse de grau audível pelo sinistrado, dadas as “dificuldades auditivas de ambos os ouvidos” - cfr. pontos 37.o e 38.o dos factos provados -.


Estes três factos seriam essenciais para qualificar como negligência grosseira o alegado “comportamento temerário em alto e relevante grau” - cfr. artigo 39.o da contestação -, correspondenteà culpa grave ou lata, que os romanos apelidavam de nimia ou magna negligentia e que, segundo eles, consistia em non intelligere quod omnes intelligunt.”, isto é, um comportamento temerário, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil, indesculpável, e injustificada, à luz do mais elementar senso comum.


Na verdade, o ouvir ou não ouvir os sinais sonoros, e o saltar antes ou depois de emitidos tais sinais faz toda a diferença para a qualificação jurídica da negligência como grosseira, “uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares” - ouvindo e saltando depois -; diferenteda simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras” – não ouvindo e saltando antes -, características da denominada “culpa leve”, tanto mais que também não foi alegado nem provado qual o intervalo mínimo de passagem dos comboios na estação ferroviária ..., no sentido de ... e de ..., no dia e hora do acidente, para se poder avaliar, com a certeza e a segurança jurídica que o Direito impõe, do eventual tempo útil e necessário para a recuperação de telemóvel caído à linha férrea.


Improcede, assim, o recurso de revista excepcional.


IV. - Decisão


Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social julgar improcedente o recurso de revista excepcional apresentado pela Recorrente.


Custas a cargo da Ré.


Lisboa 29 de março de 2023


Domingos José de Morais (Relator)


Júlio Gomes


Mário Belo Morgado (Vencido, nos termos da declaração anexa)


__________________________


DECLARAÇÃO DE VOTO


Votei vencido, pelas seguintes razões:


1. A alínea b) do número 1 do artigo 14.o da LAT dispõe que a obrigação que o empregador tem de reparar os danos resultantes de um acidente de trabalho é afastada sempre que o acidente “provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”, por tal se entendendo “o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão” (no 3).


Corporiza-se, deste modo, um harmónico equilíbrio entre as exigências de tutela dos direitos dos sinistrados em acidentes de trabalho (e de solidariedade social para com eles) e, por outro lado, adequadas exigências de autorresponsabilidade que são inerentes ao regular funcionamento da coletividade.


2. In casu, grave e indesculpavelmente, o sinistrado adotou um comportamento de extrema temeridade perante uma “fonte de perigo”. Dessa forma, criou um “risco”/”perigo” injustificado e não permitido.


Podendo e devendo (sem qualquer dificuldade) atuar de molde a não criar o perigo que causou o acidente, agiu livremente, à margem de qualquer constrangimento ou necessidade premente, nada justificando/explicando que tenha agido como agiu ou que tenha agido sem previamente tomar os cuidados elementarmente exigíveis (v.g. solicitando informação ou apoio junto dos serviços da Estação da CP).


Acresce que a conduta do trabalhador (tal como a “fonte de perigo” em causa) não revela qualquer conexão com o trabalho ou com o local de trabalho, tal como se revela totalmente alheia aos perigos habitual e tipicamente inerentes ao (concreto) trajeto utilizado pelo trabalhador entre a sua residência e o local de trabalho. Uma vez que se quebrou o “nexo etiológico entre o trabalho e o acidente”, não se tratou de um “comportamento laboral”.


3.Também entendo que sobre a R. não impendiam quaisquer ónus probatórios relacionados com a produção do acidente. Ao sinistrado estava vedada a conduta que adotou sem se assegurar de que o podia fazer com segurança, nomeadamente colhendo as informações necessárias junto dos competentes funcionários da Estação da CP. Ao decidir agir perante uma “fonte de perigo” (alheia ao seu trabalho), o sinistrado assumiu a responsabilidade de agir dentro dos limites de um “risco permitido/tolerado”. A haver qualquer circunstancialismo suscetível de relevar neste âmbito, apenas às autoras cabia proceder á sua alegação e prova.


4. Concederia, pois, a revista.

a) Mário Belo Morgado