Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
226/11.1TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
CONTA SOLIDÁRIA
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
COMPROPRIEDADE
Data do Acordão: 06/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO - PROCESSO / INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / DISCUSSÃO E JULGAMENTO DA CAUSA / SENTENÇA (NULIDADES) / RECURSOS - PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PENHORA DE DIREITOS.
Doutrina:
- LEBRE DE FREITAS, “Código de Processo Civil”, Anotado, vol. 2º, 670.
- P. de LIMA e A. VARELA, “Código Civil”, Anotado, I, 532.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 212.º, 213.º, 344.º, 349.º, 351.º, 512.º, 516.º, 533.º, 1305.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º-A, 264.º, 268.º, 516.º, 519.º, 646.º, 652.º, N.º 2, AL. F) E N.º 3, 653.º, 655.º, 659.º, N.º3, 668.º, N.º1, AL. C), 712.º, 716.º, 861.º - A, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 29/05/2003, PROC. 03B3794;
-DE 26/10/2004, PROC. 04A3101;
-DE 05/06/2008;
-DE 15/03/2012, PROC. 492/07.TBTNV.C2.S1.
Sumário :
I - Apesar de qualquer dos contitulares duma conta de depósitos à ordem ter, perante o banco, o direito de dispor da totalidade do dinheiro que constitui o objecto do depósito, na respectiva esfera patrimonial só se radica um direito próprio sobre o numerário se, efectivamente, lhe couber, como proprietário, qualquer parte no saldo de depósito, e só dentro dos limites dessa parte;

II - São inconfundíveis e independentes, a legitimidade para movimentação da conta, inerente à qualidade de contitular inscrito no contrato de depósito e dela directamente decorrente, e a legitimidade para dispor livremente das quantias que a integram, esta indissociável do direito de “propriedade” sobre as quantias depositadas (desconsiderando-se aqui a natureza irregular do depósito bancário e o seu efeito de transferência para o depositário da propriedade do dinheiro).

III - Embora, ao menos genérica e directamente, não encontre assento na lei civil e comercial, presunção de contitularidade do dinheiro depositado nas contas de depósitos à ordem, tem vindo a ser pacificamente entendido como acolhida pelo regime dos arts. 512º e 516º C. Civil e aparece expressamente consagrada no nº 2 do artigo 861º-A do CPC.

IV - Se os fundos da conta à ordem resultaram exclusivamente do crédito dos rendimentos provenientes de aplicações financeiras, do tipo “banca-seguros”, terão, do ponto de vista da propriedade, para efeito de ilisão da presunção de compropriedade, a mesma titularidade que a da “entrega/prémio” efectuada.

Decisão Texto Integral:      

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA e BB intentaram acção declarativa contra CC peticionando a condenação deste a repor a quantia de 666.666,00€, equivalente a dois terços do valor debitado na conta bancária que identificam, ou a pagá-la aos AA., acrescida de juros legais a partir da citação.

Fundamentando a pretensão, alegaram que são, conjuntamente com o R., titulares, sem destrinça de partes, de uma conta bancária, que identificam, para a qual convergem valores monetários que se encontram convertidos em aplicações financeiras, conta que pode ser movimentada ou pelas assinaturas conjuntas dos AA. ou pela assinatura do Réu. O valor depositado na referida conta presume-se pertencer conjuntamente a todos os titulares, mas o Réu mandou debitar nela 1 000 000,00€, para uma conta de que nenhum dos AA. é titular, movimento bancário que é abusivo, no que respeita a 2/3, montante pertencente aos AA..

O Réu contestou.

Alegou, ao que importa referir, que todos os valores monetários movimentados na referida conta provêm de rendimentos próprios e exclusivos seus, razão pela qual se estabeleceu que o mesmo tinha o poder de a movimentar apenas com a sua assinatura e os AA. nunca a movimentaram.

Replicaram os AA., esclarecendo que a conta é alimentada por um conjunto de aplicações financeiras especiais, através da subscrição de um produto financeiro estruturado intitulado e do tipo banca-seguros, subscrição essa feita pelos AA. e pelo R., que tem como beneficiários últimos os seis netos do Réu e corresponde a uma verdadeira doação feita por este, em que os juros ou resultados financeiros da aplicação eram creditados regularmente na conta, utilizada pelo R. e também pelo A. BB.

Após completa tramitação do processo, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou o R. a restituir aos AA. a quantia de 500.000,00 euros, acrescida de juros à taxa de 4% e à taxa legal que sucessivamente vigorar, desde a data da citação, até integral e efectivo pagamento.

O R. apelou, com total sucesso, pois o Tribunal da Relação, revogando a decisão recorrida, absolveu-o do pedido formulado pelos AA..

         Agora são os Autores que impugnam o acórdão, defendendo que “deve a decisão recorrida ser considerada nula e ilegal e por isso revogada, decidindo-se como na 1ª Instância, condenando-se o Réu nos termos naquela definidos”.

         Para tanto, argumentam nas conclusões da respectiva alegação:

 “1ª. A decisão sob recurso indeferiu a modificabilidade da matéria de facto e decidiu de modo diametralmente oposto à sentença da 1ª Instância;

 2ª. A decisão de 1ª Instância era nula, por oposição ou contradição entre a matéria de facto e a decisão, o que a Relação a quo não decidiu

Ou,

 3ª. A decisão ora sob recurso é nula por contradição entre a matéria de facto e a decisão, o que se tem assim por evidente e por evidenciado;

 4ª. Os recorrentes beneficiam a seu favor da presunção do artigo 516° do C. Civil, que o recorrido não logrou afastar;

 5ª. O recorrido não provou, como se propunha, que

      i) a conta foi aberta só por si em momento anterior;

      ii) os recorrentes só se tornaram co-titulares em momento posterior;

      iii) o 1 milhão de euros debitados pelo recorrido em Abril de 2009 foi gerado por juros ou rendimentos provenientes de aplicações financeiras feitas em Janeiro de 2005, na conta

in casu;

      iv) o recorrido nada alegou quanto à titularidade ou propriedade sua e exclusiva sobre o valor de 1 milhão de euros debitado em Abril de 2009 e aqui posto em causa.

Consequentemente,

  6ª. O recorrido não logrou afastar a presunção legal do artigo 516°, como a decisão de 1ª Instância bem decidiu;

  7ª. O Douto Tribunal a quo decidiu de modo inadequado e abusivo estribando-se ilegalmente em matéria avulsa e que não integrou a matéria de facto provada, o que merece forte censura;

  8ª. O Douto Tribunal a quo, através da decisão impugnada, desrespeitou o princípio do dispositivo, ex vi do art. 264°, o princípio da estabilidade da instância, ex vi do artigo 268°, o princípio da distribuição do ónus da prova, ex vi dos artigos 516° e 519°, ambos e os anteriores do C.P. Civil, bem como a estatuído no artigo 344° do C. Civil, e o princípio da igualdade das partes consagrado no art. 3°-A, do C.P. Civil;

Consequentemente,

  9ª. A decisão in casu é manifestamente ilegal;

Acresce que,

  10ª. Da matéria de facto provada resulta que o recorrente BB movimentava a conta a crédito, o que conduz à aplicação da presunção do artigo 516° do C. Civil;

  11ª. A decisão recorrida é por isso ilegal, desrespeitou o estatuído no artigo 516° do C. Civil e está em manifesta contradição com a matéria de facto provada, o que a torna nula, ex vi do disposto no artigo 668°, n° 1, alínea c), do C. Processo Civil”.

         O Recorrido defendeu a improcedência do recurso.

         2. - Do conteúdo das conclusões transcritas resultam colocadas, para resolução, as seguintes questões:

   -  se o acórdão é nulo, por contradição entre os fundamentos e a decisão;

  

   - se o acórdão impugnado utilizou matéria não articulada, tida por assente ou objecto de respostas à base instrutória, extraindo ilações indevidas, violando os princípios do dispositivo, da estabilidade da instância, da distribuição do ónus da prova e da igualdade das partes (arts. 264º, 268º, 516º, 519º e 3º-A, todos do CPC, e art. 344º C. Civil); e, 

  

   - se, por figurarem como co-titulares, conjuntamente com o Réu, da conta bancária à ordem identificada no processo, os Autores devem ser reconhecidos como titulares de um direito de crédito correspondente a metade do valor do respectivo saldo, ao abrigo da presunção estabelecida pelo art. 516º do código Civil. 

         3. - Vem assente o quadro factual que segue.

1. Está domiciliada no Banco DD, SA, uma conta com o NIB …, com os seguintes titulares: CC, BB e AA. (al. A)).

2. A referida conta é movimentada com a assinatura de CC ou com a assinatura, em conjunto, de BB e AA, (al. B) e resp. 1º e 2° da BI).

3. A 17 de Abril de 2009, a referida conta foi objecto de um movimento a débito que consistiu na transferência de € 1.000.000,00 para a conta n.º …, também domiciliada no DD, ficando na mesma o saldo de € 188.608,30. (al. C)).

4. A ordem de transferência foi assinada pelo Réu. (al. D)).

5. A conta n.º … (alínea C)) não tem como titular nenhum dos AA. (al. D)).

6. O A. AA nunca movimentou a conta referida em A), a crédito ou a débito. (resp. 3º da BI).

7. Os extractos da conta eram recebidos pelo Réu. (resp. 4º).

8. A 3 de Janeiro de 2005, CC, na qualidade de “tomador de seguro” e BB, na qualidade de “segurado”, subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 147-151, denominado “Proposta de Subscrição - ES Private Obrigações 2ª Série - Código do produto -87.31 - Contrato n.º … - n.º de conta …”, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido, constando como beneficiários em vida o tomador do seguro e em caso de morte EE, FF. (resp. 6º, 7º e 5º).

9. A 3 de Janeiro de 2005, CC, na qualidade de “tomador de seguro” e AA, na qualidade de “segurado”, subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 152-156, denominado “Proposta de Subscrição - ES Private Obrigações 2ª Série - Código do produto -87.31 - Contrato n.º … - n.º de conta ….”, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido, constando como beneficiários em vida o tomador do seguro e em caso de morte GG, HH, II e JJ. (resp. 6º, 7º e 5º da BI).

10. As aplicações financeiras referidas na resposta aos artigos 6º e 7º produziam, cada uma, um rendimento anual de €100.000,00. (resp. 9º e 5º).

11. Os quais, entre Janeiro de 2006 e Janeiro de 2010, foram sendo depositados na conta NIB …. (resp. 10º e 5º).

12. A conta referida em A) era movimentada exclusivamente pelo A. BB e pelo Réu CC. (resp. 11º da BI).

         4. - Mérito do recurso.

         4. 1. - Nulidade do acórdão.

         Os Recorrentes argúem a nulidade do acórdão, por contradição entre os fundamentos de facto e a decisão – art. 668º-1-c) do CPC -, pois que, argumentam, ao alterar-se radicalmente a orientação decisória, depois de indeferir a modificabilidade da matéria de facto, passou a haver a referida oposição e correspondente vício.

A nulidade da al. c) referida é vício que ocorre quando os fundamentos invocados pelo julgador deveriam logicamente conduzir a resultado oposto ao expresso na decisão, ou seja, quando a peça processual revele um real vício do silogismo judiciário.

         Está em causa, como fundamento da sanção, um vício relativo à estrutura do acórdão, de natureza estritamente formal, a integrar uma contradição lógica entre premissas e a conclusão, de sorte que o desenvolvimento daquelas haveria de conduzir a solução diferente da efectivamente extraída.

         Como faz notar LEBRE DE FREITAS (“CPC, Anotado”, vol. 2º, 670), “a oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão inicial (art. 193º-2-b)”, sendo que a nulidade não é confundível com eventuais erros de interpretação de declarações das partes, designadamente as vertidas em articulados, ou de matéria de facto ou com erros na subsunção desses factos às normas jurídicas e de interpretação destas.

         Sendo esta a situação, o caso será de erro de julgamento, que não de nulidade.

 Ora, apreciado o conteúdo da alegação oferecida, constata-se que, não só os Recorrentes não identificam qualquer concreta contradição ou divergência entre os pressupostos que constituem as premissas da decisão e a que foi proferida – pois que se limitam a jogar com a mera circunstância de a matéria de facto se manter como premissa constante, esquecendo os demais elementos do silogismo e respectiva interacção, designadamente quanto à interpretação dos próprios factos, direito aplicável e sua subsunção -, como não se consegue detectar qualquer desvio entre os raciocínios revelados no desenvolvimento da fundamentação e as consequências deles retiradas na formulação das conclusões e decisão.
         Nada se alega, em suma, que ponha em evidência a pressuposta ausência de harmonia lógica entre a fundamentação que se utilizou e a conclusão a que, por via dela, se chegou.

                Poderá até, no caso sob apreciação, ter ocorrido erro de interpretação da factualidade alegada e na determinação das normas jurídicas aplicáveis, enquanto pressupostos de facto e de direito, o que a ter-se verificado integrará um erro de julgamento relativamente à conclusão a que se chegou sobre a solução do litígio, mas não é possível surpreender e, consequentemente, reconhecer, nessa sede, a comissão de qualquer erro lógico, a constituir oposição entre os pressupostos e a conclusão. 

         Nestes termos, não se reconhece a comissão da invocada nulidade.

         4. 2. - Violação da lei do processo.

         Sustentam os Recorrentes que na decisão impugnada foram desrespeitados o princípio do dispositivo (art. 264º CPC), o princípio da estabilidade da instância (art. 268º CPC), o princípio da distribuição do ónus da prova (arts. 516º e 519º CPC e 344º CC) e o princípio da igualdade das partes (art. 3º-A CPC), o que tudo terá ocorrido por o Tribunal ter decidido “de modo inadequado e abusivo estribando-se ilegalmente em matéria avulsa e que não integrou a matéria de facto provada”, “alargando a sua base «iter-cognitiva» a matéria [não] articulada, nem tida por assente, nem quesitada, nem (naturalmente) respondida”.

          

Os Recorrentes queixam-se, portanto, de que a Relação criou uma nova realidade factual ao considerar matéria que o Réu não alegara para afastar a presunção do art. 516 C. Civil e que não consta das respostas aos quesitos, atento o teor restritivo das respostas aos pontos 1, 2 e 5 da base instrutória, extraindo ilações que exorbitam o teor dos factos provados.

         A Relação acolheu a matéria de facto que a 1.ª instância fixara e não declarou usar da faculdade de modificação da mesma ao abrigo de qualquer das alíneas do art. 712º-1.

Como o acórdão evidencia, no lugar e em sede própria - o item II do acórdão -, apenas transcreveu o teor da factualidade que a 1ª Instância tivera como provada, na qual fez assentar a decisão de direito, factualidade que, em apreciação de pretensão do Apelante, declarou mesmo «imodificável».

Há, então, que apurar se, apesar disso, como se sustenta no recurso, a utilização efectuada e a fixação do sentido do quadro fáctico relevante altera a factualidade material emergente do seu julgamento na 1.ª instância, designadamente por via ilativa não consentida, ou se acrescenta factos não alegados, sendo certo que, se a alteração se verificar, se estará perante um erro, por ampliação não permitida, do julgamento da matéria de facto, por uso indevido do art. 712º, que não perante uma nulidade do acórdão. É que estas, as nulidades, referem-se, como antes dito, à sentença ou acórdão enquanto silogismo judiciário (arts. 668º e 716º CPC), mas a violação das normas do art. 712º prende-se directamente com a matéria da fixação e decisão da matéria de facto (arts. 646º, 652º-2-f) e 3 e 653º).        

         Relativamente às ilações ou presunções judiciais, dir-se-á que é perfeitamente lícito à Relação, como tribunal de instância, esclarecer a matéria de facto e extraí-las, a partir dos factos provados, mas sempre com a limitação de que da operação não pode resultar alteração da factualidade de que as presunções são retiradas.

É que, extravasados esses limites, já ocorre afastamento do que tem de corresponder a deduções lógica e racionalmente fundamentadas que, enquanto matéria de facto, os arts. 349º e 351º C. Civil consentem.  

                Quando tal suceda, isto é, quando a Relação tenha procedido a alteração da matéria de facto o Supremo não está impedido de apreciar o uso que a 2.ª instância fez dos seus poderes nesse campo, pois que se trata, então, de averiguar se houve violação da lei, designadamente dos critérios legais fixados no art. 712º-1 CPC e dos preceitos relativos ao regime probatório.

                Tratar-se-á, então, não de afastar ou censurar as ilações retiradas dos factos provados pela Relação quando, baseando-se em critérios desligados do campo do direito, estiverem logicamente fundamentadas - pois que, assim sendo, não integram mais que matéria de facto, como tal da exclusiva competência das instâncias -, mas, diferentemente, de "verificar da correcção do método discursivo de raciocínio" e, em geral, saber se esses critérios se mostram respeitados, produzindo alteração factual, apreciando a questão apenas sob o aspecto do respeito da legalidade.

               

         Presunções são, como as define a lei (art. 349º C. Civil), ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, sendo as presunções judiciais, previstas no art. 351º, presunções de facto, da livre apreciação do tribunal, em sede de matéria de facto.

Nas presunções judiciais ou simples, assentes no raciocínio do julgador, a partir das máximas da experiência, juízos de probabilidade e de lógica, de determinados factos provados, os factos base, o juiz infere um facto novo desconhecido.

         Embora este processo intelectual do julgador tenha normalmente lugar no acto de formação e prolação da decisão sobre a matéria de facto (arts. 653º e 655º CPC), nada impede que o possa ter na fase da sentença, previamente à aplicação do direito, no momento em que se fixam os factos provados, em obediência à ordem cronológica estabelecida pelo n.º 2 do art. 659º CPC.

         De referir que, para além de ser lícito aos tribunais de instância tirar conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto provada, também lhes cabe fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que não alterem o quadro factual provado e se limitem a desenvolvê-lo (cfr. ac. STJ, de 29/05/2003 – proc. 03B3794).   

            Analisando o acórdão recorrido, em ordem a averiguar se nele se retiraram dos factos provados ilações indevidas, por ilógicas, se, em sede interpretativa, se extraíram conclusões que impliquem a alteração da factualidade que a 1ª Instância acolhera ou se, de qualquer modo, se consideraram ou utilizaram factos não alegados e não provados, designadamente de forma a extravasar o conteúdo das respostas aos quesitos 6º, 7º, 9º e 10º para o qual remeteu a resposta ao quesito 5º, não se vislumbra que tal tenha acontecido.

         Em boa verdade, também não se detecta qualquer facto extravagante, ferido de algum dos aludidos vícios, facto ou matéria que os Recorrentes se dispensaram de concretizar, pois que apenas:

- remetem vagamente para uma omissão de matéria susceptível de afastar a presunção, invocação manifestamente infundada e não verdadeira face ao que se pode ler nos arts. 19 e ss. da contestação;

- convocam a falta de reclamação por insuficiência quanto à matéria quesitada, acto processual cuja omissão é insusceptível de ter qualquer repercussão na acusada alteração factual; e,

- invocam a as respostas aos referidos quesitos, matéria que o acórdão se limitou a reproduzir tal como consta da sentença.

 

           

            Manifestamente infundadas, face ao expendido, as invocadas violações:

  - do princípio do dispositivo, desde logo porque, como indicado, claramente, o Réu alegou a titularidade exclusiva do dinheiro da conta de depósito em causa, enquanto rendimento de aplicações financeiras por si efectuadas;

   - da estabilidade da instância, porque nenhuma modificação foi operada, designadamente quanto à causa de pedir e ao pedido, nem sequer, como se viu, ocorreu alteração alguma da fundamentação de facto;

  - da distribuição do ónus da prova e da igualdade das partes, porque o julgamento e fixação da matéria de facto, designadamente por via ilativa, ou a sua interpretação, nada tem que ver com as regras dos arts. 516º e 519º CPC (e 344º CC), ou com a igualdade das partes, não sendo confundíveis as presunções judiciais ou naturais, que, como dito, actuam ao nível da apreciação e fixação da matéria de facto, com as presunções legais ou de direito, que funcionam ao nível da aplicação do direito aos factos (necessariamente quando se trate de presunção “juris et de jure” e esteja demonstrado o facto base da presunção ou, sendo a presunção “juris tantum”, quando não se tenha provado o facto contrário ao presumido). Na aplicação do regime jurídico destas presunções (legais), sim, poderá falar-se em violação das regras do ónus da prova, com o consequente erro de julgamento, mas já na aplicação do direito, que não na valoração e fixação dos fundamentos de facto.         

         Improcede, assim, a alegada ilegalidade da decisão, por violação da lei do processo.

         4. 3. - Presunção do artigo 516º do Código Civil.

        

Relativamente ao mérito da causa, sustentam os Recorrentes que, como co-titulares da conta bancária, são beneficiários da presunção estabelecida no art. 516º C. Civil, que o Recorrido não logrou afastar, presunção cuja aplicação também resulta da circunstância de o Recorrente BB movimentar a conta a crédito.

         No acórdão impugnado, depois de se pôr em evidência ser pelo facto de pertencer aos Autores (mesmo presumidamente), como contitulares da conta, parte do montante depositado na conta bancária de que é também contitular o Réu, dever este restituir uma quota do que unilateralmente movimentou, decidiu-se não ser devida tal restituição, visto estar factualmente demonstrado que o dinheiro depositado em tal conta não pertence seguramente aos AA., que apenas figuram como simples titulares com poderes de movimentação, estando, em consequência, afastada a presunção constante do art. 516º do Código Civil. 

         Os Autores, ora Recorrentes reclamaram, através desta acção, a reposição, pelo Réu, de dois terços do montante por este movimentado, a débito da conta de que todos são contitulares, fundamentando tal pretensão, apenas, nessa contitularidade e na presunção, que invocam, de dela se presumir que os valores depositados são pertença conjunta dos mesmos contitulares.

         Não alegam, portanto, os Autores terem entrado ou contribuído, de alguma forma ou em momento algum, com valores ou dinheiro seu para a constituição do saldo da conta bancária em causa.

         Por isso, a acção assenta exclusivamente na presunção resultante de os sujeitos activos do contrato de depósito bancário nele figurarem como seus titulares, enquanto credores do banco, em regime de solidariedade activa.

         A base ou facto base da presunção, como facto conhecido a partir do qual se pretende chegar ao facto desconhecido, que é a titularidade ou o direito à propriedade do valor que constitui o objecto do depósito, há-de ser, então, como invocado pelos Autores, a contitularidade constante do contrato, relação de natureza obrigacional.

 

        

O art.º 516.º do C. Civil, a coberto do qual os Recorrentes deduzem a sua pretensão, dispõe que “Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito”.

        

Não há dúvida de que, tratando-se, embora, de uma conta mista, nas relações entre os AA. e o R., do lado activo, e o Banco, como sujeito passivo, estava, ela, sujeita ao regime da solidariedade activa.

Por isso, quer os AA., quer o R., por via dessa solidariedade entre credores tinham o direito de proceder à mobilização total do depósito, sem que o Banco, como devedor comum, pudesse opor-lhes que o montante do depósito não lhe pertencia por inteiro (art. 512º-1 C. Civil).

No domínio das relações externas é este o regime típico da solidariedade.

Quando, porém, tal suceda, isto é, quando um dos credores obteve satisfação do seu direito para além do que lhe devia caber segundo a titularidade do crédito nas relações internas entre os credores, então terá de satisfazer aos outros a parte que lhes pertence no crédito comum (art. 533º C. Civil).

Ora, é nesta sede, das relações internas entre os credores, que, de acordo com o dito art. 516º, se presume que os credores solidários participam no crédito em partes iguais.

Tem, assim, como objectivo a presunção, quando se não demonstre coisa diferente – pois que, como ressalva o próprio texto da norma, se trata de mera presunção juris tantum -, permitir a determinação da quota dos credores aos quais a prestação não foi efectuada.

         Do referido se extrai, como vem sendo assinalado na doutrina e na jurisprudência, que, apesar de qualquer dos contitulares do depósito ter, perante o banco, o direito de dispor da totalidade do dinheiro que constitui o objecto do depósito, na respectiva esfera patrimonial só se radica um direito próprio sobre o numerário se, efectivamente, lhe couber, como proprietário, qualquer parte no saldo de depósito, e só dentro dos limites dessa parte.

        

Inconfundíveis e independentes, pois, a legitimidade para movimentação da conta, inerente à qualidade de contitular inscrito no contrato de depósito e dela directamente decorrente, e a legitimidade para dispor livremente das quantias que a integram, esta indissociável do direito de “propriedade” sobre as quantias depositadas (desconsidera-se aqui a natureza irregular do depósito bancário e o seu efeito de transferência para o depositário da propriedade do dinheiro).

 

Como se afirmou no acórdão deste Supremo de 26-10-2004 (proc. 04A3101), “esquece-se, por vezes, que a relação jurídica que nasce da abertura da conta de depósito é uma relação jurídica de obrigação, e confunde-se o direito de crédito desta emergente para os titulares da conta com a propriedade dos bens objecto do depósito, isto é, com o direito real sobre estes. O depositante, como credor solidário, tem apenas um direito de crédito, isto é, o direito a receber a prestação a que está adstrito o devedor, o direito a exigir a entrega da importância do depósito. Mas esse direito não pode confundir-se com a propriedade da quantia depositada; é atribuído por igual a todos os titulares da conta, e a importância do depósito pode pertencer a um só deles ou até a um terceiro, e é evidente que, na totalidade, não pode integrar-se no património ou constituir riqueza de todos”.

No mesmo sentido, no acórdão de 05-6-2008 (em que foi Relator o aqui 2º Adjunto), escreveu-se que “ a titularidade da conta pode nada ter a ver com a propriedade do montante monetário nela depositado. Essa titularidade apenas dá aos beneficiários a possibilidade de movimentar, no todo ou em parte, os fundos objecto do depósito. Mas já não atribuiu aos mesmos a propriedade do numerário depositado. Esta pode pertencer a todos ou apenas um dos titulares”.

Fica, pois, como corolário do expendido, desde já adquirido que não assume aqui qualquer relevância a invocada movimentação da conta pelo A. BB (certamente, por exigência do contrato, acompanhada da assinatura do A. AA), como proposto na conclusão 10ª.

Relativamente à presunção de contitularidade do dinheiro depositado na conta de depósitos à ordem, dir-se-á que, embora, como do já exposto resulta, a mesma não encontre assento na lei comercial ou civil, ao menos genérica e directamente, certo é que, pacificamente, tem vindo a ser entendido como acolhida pelo regime dos referidos arts. 512º e 516º C. Civil, e, como posto em evidência no acórdão de 15-3-2012 (proc. 492/07.TBTNV.C2.S1), para os casos de depósitos bancários com pluralidade de titulares, aparece expressamente consagrada no nº 2 do artigo 861º-A, preceito em que, dispondo sobre a “penhora de depósitos bancários”, determina que “Sendo vários os titulares do depósito, a penhora incide sobre a quota-parte do executado na conta comum, presumindo-se que as quotas são iguais”.

Assim, P. de LIMA e A. VARELA (Código Civil, Anotado, I, 532), escrevem que “Se, por exemplo, duas pessoas fizeram um depósito bancário em regime de solidariedade activa, presume-se, enquanto não se fizer prova noutro sentido, que cada um do titulares é titular de metade da conta”.

Importa, então, saber se a presunção de contitularidade de quotas no saldo da conta comum foi ilidida, ou seja, se está demonstrada a existência de relações entre os contitulares que afaste a inferência que esse posicionamento dos sujeitos do contrato induz.

Os Recorrentes defendem que a resposta ao quesito 5º, de natureza restritiva, deixou afastado o nexo causal entre a constituição das aplicações financeiras e a produção, a título de juros ou rendimento do milhão de euros, transferido pelo Réu.

No quesito em causa perguntava-se se os valores existentes na conta de depósitos à ordem – valor transferido (1.000.000,00€), mais saldo de 188.608,30€ - são o rendimento de um conjunto de aplicações financeiras especiais realizadas pelo Réu, aplicações essas efectuadas através da subscrição de um produto financeiro estruturado intitulado e do tipo “banca-seguros”, quesito que obteve como resposta “provado apenas o que consta da resposta aos artigos 6º, 7º, 9º e 10º”, vale dizer, provado o que constitui os ponto 8, 9, 10 e 11 da matéria de facto supra transcrita.

         Ora, o que, se bem se vê, a resposta restritiva reflecte é a identificação e discriminação das aplicações financeiras (duas e não um conjunto genérico, como seguros do ramo vida, funcionamento do risco, etc. que, embora constante de documentos, os anteriores quesito 6º e 7º não reproduziam), do mesmo passo que deixa claro que essas duas aplicações/seguros produziam anualmente o rendimento de 200.000,00€, rendimento que, em vencimentos sucessivos de cinco anos, foi depositado na conta à ordem.   

         Trata-se, como se colhe dos factos 8 e 9 e dos documentos de que os mesmos foram extraídos, de contratos de seguro, ramo vida, em que é tomador e beneficiário, em caso de vida do segurado, o Réu, ou seja, foi o Réu que pagou o prémio (único) e é beneficiário do contrato, ou, em caso de morte, terceiros, que não, em qualquer caso, algum dos segurados, objecto do risco do contrato.

         Depois, como frutos civis, os rendimentos provenientes da “valorização do contrato”, que eram depositados na conta de depósitos à ordem, terão, obviamente, do ponto de vista da propriedade, a mesma titularidade que a da “entrega/prémio” efectuada pelo Réu – arts. 1305º, 212º e 213º C. Civil.

         Crê-se, no concurso desses elementos, estar suficientemente demonstrada, designadamente sob o aspecto da causalidade – que, do ponto de vista naturalístico, enquanto pura matéria de facto, está subtraída à apreciação do Tribunal de revista -, ter entrado na conta, até Janeiro de 2006, cinco vezes 200.000 euros.  

         Aqui chegados, não pode deixar de acompanhar-se a interpretação da matéria de facto, ab initio assente, nos termos em que foi efectuada no acórdão recorrido, quando nele se afirma que dos factos apurados resulta que nenhum dos Autores suportou qualquer esforço económico ou teve participação na entrega de fundos para a dita conta bancária, nem na sua alimentação, esforço ou participação que, note-se, também não alegaram.

         Igualmente se aceita a conclusão de que os fundos da conta movimentada resultaram exclusivamente, a crédito, da subscrição, pelo Réu, das aplicações mencionadas, o que, de resto, emerge do vertido (confessado) nos artigos 38º e seguintes da réplica (apesar de abandonada a ensaiada tese de doação feita pelo R., ao que parece depreender-se do alegado, aos netos).

         Não beneficiam, consequentemente, os Recorrentes da presunção de titularidade do numerário que constituía a parte do depósito do qual o Recorrido efectuou o levantamento e transferência a seu favor.

         Em conformidade, julga-se não ser merecedora de censura a decisão que teve por afastada a presunção constante do art. 516º do Código Civil e improcedente a pretensão dos Autores, ora Recorrentes.

         4. 4. - Sintetizando a fundamentação da resposta à questão dos efeitos decorrentes de as Partes figurarem como contitulares da conta à ordem na propriedade dos respectivo saldo:

- Apesar de qualquer dos contitulares duma conta de depósitos à ordem ter, perante o banco, o direito de dispor da totalidade do dinheiro que constitui o objecto do depósito, na respectiva esfera patrimonial só se radica um direito próprio sobre o numerário se, efectivamente, lhe couber, como proprietário, qualquer parte no saldo de depósito, e só dentro dos limites dessa parte;

        

- São inconfundíveis e independentes, a legitimidade para movimentação da conta, inerente à qualidade de contitular inscrito no contrato de depósito e dela directamente decorrente, e a legitimidade para dispor livremente das quantias que a integram, esta indissociável do direito de “propriedade” sobre as quantias depositadas (desconsiderando-se aqui a natureza irregular do depósito bancário e o seu efeito de transferência para o depositário da propriedade do dinheiro).

 

- Embora, ao menos genérica e directamente, não encontre assento na lei civil e comercial, presunção de contitularidade do dinheiro depositado nas contas de depósitos à ordem, tem vindo a ser pacificamente entendido como acolhida pelo regime dos arts. 512º e 516º C. Civil e aparece expressamente consagrada no nº 2 do artigo 861º-A do CPC.

- Se os fundos da conta à ordem resultaram exclusivamente do crédito dos rendimentos provenientes de aplicações financeiras, do tipo “banca-seguros”, terão, do ponto de vista da propriedade, para efeito de ilisão da presunção de compropriedade, a mesma titularidade que a da “entrega/prémio” efectuada.

 

         5. - Decisão.

         De harmonia com o exposto, acorda-se em:

         - Negar a revista;

         - Confirmar a decisão impugnada; e,

         - Condenar os Recorrentes nas custas.

       Lisboa, 4 Junho 2013

    Alves Velho (relator)

    Paulo Sá

     Garcia Calejo