Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
139/18.6JAFUN.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO PEREIRA
Descritores: RECURSO PENAL
HOMICÍDIO QUALIFICADO
HOMICÍDIO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA DA PENA
LEGITIMIDADE
CAPACIDADE SUCESSÓRIA
INDIGNIDADE
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS ACESSÓRIAS E EFEITOS DAS PENAS / DECLARAÇÃO DE INDIGNIDADE SUCESSÓRIA – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO / HOMICÍDIO QUALIFICADO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÕES EM GERAL / ABERTURA DA SUCESSÃO E CHAMAMENTO DOS HERDEIROS E LEGATÁRIOS / CAPACIDADE SUCESSÓRIA / DECLARAÇÃO DE INDIGNIDADE.
Doutrina:
- Anton, Boix Reig, Orts Berenguer e Carbonell Mateu, Derecho Penal, Parte Especial, 2.ª edição, Tirant lo Blanch, 1988, p. 498;
- Carbonell Mateu e Gonzalez Cussac in Vives Antón et altri, Comentarios al Código Penal de 1995, I, Titant lo Blanch, 1996, p. 728 e ss.;
- Carlos Pamplona Corte-Real, Direito da Família e das Sucessões, II, Lex, 1993, p. 210;
- F. Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, p. 220;
- Fernanda Palma, O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português, in Revista do Ministério Público, ano 4, volume 15, p. 59 e ss.;
- J. Oliveira Ascensão, Direito Civil Sucessões, Coimbra Editora, p. 149 e ss.;
- João Carlos Rocha da Silva, Psicoses Delirantes Crónicas e Esquizofrenia a Caminho de uma Distinção, in estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/29273/1/João%20Silva.pdf;
- Jorge Augusto Pais do Amaral, Direito da Família e das Sucessões, 3.ª edição, Almedina, 2016, p. 299 e ss.;
- Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, I, CE, 1999, p. 27;
- Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2017, 2.ª edição, AAFDL, p. 196;
- M. Miguez Garcia e J.M.Castela Rio, Código Penal Parte geral e especial, 3.ª edição, Almedina, 2018, p.417;
- Manuel Simas-Santos e Manuel Leal Henriques, Código Penal Anotado, vol. II, 4.ª edição, Rei dos Livros, p. 9 e ss.;
- Michael Kingham & Harvey Gordon, Aspects of morbid jealousy in Advances in Psichiatric Treatment (2004), vol 10, p. 207 – 215, in https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridge-core/content/view/06CBB7BF78CC43C785AE6F7C0F0046C9/S1355514600001310a.pdf/aspects_of_morbid_jealousy.pdf;
- Nuno E. Gomes da Silva, Direito das Sucessões, AAFD, Lisboa, 1978, p. 211 e ss.;
- Svetlana Grishin, Delírio de ciúme, in https://pt.iliveok.com/health/delirio-de-ciumes_102483i15956.html;
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 69.º-A, 131.º E 132.º, N.º 2, ALÍNEA B).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 2036.º.
Sumário :
I - O código penal vigente optou, na sua primeira versão, por eleger como exemplo padrão do homicídio qualificado, o parricídio próprio, sendo certo que, com as alterações supervenientes do art.º 132.º, esses exemplos padrão se foram alargando, neles se tendo também incluído as situações previamente consideradas de parricídio impróprio.

II - Em escasso período de tempo, aquilo que se circunscrevia à relação “descendente ou ascendente, natural ou adoptivo, da vítima” foi sendo alargado para um conjunto de relações, nem todas familiares, ou que já não assumem essa natureza, dificilmente se descortinando nessas relações fundamento material de uma antijuridicidade agravada ou de um tipo de culpa que justifique a preterição de um quadro sancionatório de oito a dezasseis anos de prisão em favor de um outro de doze a vinte e cinco anos.

III - Tal disparidade, assente como é entendimento alargado da doutrina no tipo de culpa, arrisca-se a ser entendida como uma óbvia manifestação do direito penal de autor, em detrimento do direito penal do facto, que constitui a matriz do nosso direito penal.

IV - A vida humana tem idêntico valor e o bem jurídico protegido no homicídio simples e no qualificado é o mesmo, havendo por isso que ponderar cuidadosamente os fundamentos da qualificação tendo presente que o crime de homicídio é sempre um crime perverso.

V - No caso dos autos o crime é praticado pela esposa contra o marido com quem viveu durante cerca de 25 anos, cujo relacionamento se deteriorou por suspeitas de infidelidade conjugal por parte do marido e se agravou em 15-07-2017, quando tais suspeitas se confirmaram, situação que associada a episódios de violência no seio do casal levou a que em 25.01.2018, A tivesse recorrido ao GAVVD.

VI - Tal factualidade não permite concluir que o relacionamento entre ambos estava de tal modo degradado que dispensasse a arguida dos deveres a que os cônjuges estão reciprocamente vinculados sendo que a severidade da lei penal não tem apenas como fundamento esses deveres mas também uma situação confiança própria de quem vive em conjunto, por isso se despojando das cautelas que em geral se adotam em relação a terceiros, no pressuposto de que se desfruta de uma situação de segurança.

VII - Há porém que ter em conta que a arguida à data dos factos apresentava um quadro de ansiedade e de depressão e que no relatório médico psiquiátrico é referenciada com “humor lábil (instável), com ideação delirante de ciúme”.

VIII - É também manifesto o arrependimento da arguida traduzido no facto logo após a agressão ter accionado a linha de emergência para assistência ao marido, no seu interesse em acompanhar a sua situação clínica e de ter sido a única pessoa que reclamou o corpo do marido, dez dias após a sua morte, já que nenhum familiar o havia feito.

IX - Não é de considerar que a conduta da arguida exceda o grau de culpa geralmente associado ao homicídio simples, podendo questionar-se se a depressão que a acompanhava e a patologia de que padecia, a cuja génese ou pelo menos evolução não foi de todo alheia a conduta da vítima, não apontam para alguma diminuição do grau de culpa.

X - O exemplo padrão da alínea b) do n.º 2 não pode deixar de ser entendido como o paroxismo de uma relação degradada, quase sempre associada a prévias situações de violência física e/ou psicológica por parte do agressor, o que aqui manifestamente não é o caso e, sendo as circunstâncias do n.º 2 do art.º 132.º expressão do tipo de culpa, uma conduta especialmente perversa é muito dificilmente compatível com uma personalidade que também o não seja, sendo certo que a conduta da arguida não revela uma personalidade dessa natureza, havendo pois que determinar a medida da pena, dentro da moldura prevista no art.º 131.º, ou seja, da pena de prisão de 8 a 16 anos.

XI - A parte final do art.º 69.º-A do Código Penal revela a autonomia da via nele prevista de declaração da indignidade sucessória relativamente ao que se dispõe no art.º 2036.º do CC, no sentido de que a declaração nos termos do art.º 69.º-A do CP não pressupõe qualquer enxerto cível nem está sujeita ao princípio do pedido, operando automaticamente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório

1.1 - Por acórdão de 30 de janeiro de 2019 do Juízo Central Criminal ..., foi a arguida AA condenada, como autora material de um crime de "homicídio qualificado", p. e p. pelos artigos 131° e 132°, n.°1 e 2, al. b), do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão, tendo ainda sido declarada indigna para suceder na herança aberta por morte do seu marido, BB, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 2034°, al. a) e 2037° ambos do Código Civil, em obediência ao disposto no artigo 69°-A do Cód. Penal.

1.2 - Recorreu a arguida para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 17 de julho de 2019, decidiu negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.

1.3 - Vem agora a arguida recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, sintetizando as razões do recurso nas seguintes conclusões da respectiva motivação:

“(…)

I. O presente recurso tem como objeto a matéria de direito do Douto Acórdão proferido nos autos pelo tribunal “a quo”.

II. Nos termos do Acórdão, ora objeto de recurso, a Recorrente foi condenada, como autora material, de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131º, 132º nº 2 al. b) ambos do C.P., na pena efetiva de 14 (catorze) anos de pena de prisão. Decisão esta que foi mantida pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

III. Salvo o devido respeito, que é muito, não pode a ora Recorrente conformar-se com esta decisão, o Tribunal a quo não fez correta interpretação e aplicação do Direito aos factos e a prova produzida, violando o disposto nos artigos 40º, 70ºss, 131º e 132º nº 2 al. b) todos do C.P..

IV. A interpretação que o tribunal a quo fez dos factos provados é uma clara violação do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do C.P.P.

V. O mesmo não serve como fundamento para enquadrar os factos como homicídio qualificado nos termos do artigo 131º e artigo 132º nº al. b) do C.P.

VI. O relacionamento conjugal da Recorrente e da vítima, BB, há muito que estava degrada com episódios, recorrentes, de infidelidade e de violência doméstica, não havendo, no caso sub judice, especial censurabilidade ou perversidade, nem culpa agravada que fundamente a punição nos termos do artigo 131º e artigo 132º nº al. b) do C.P.

VII. O Tribunal a quo, ao condenar a Recorrente nos ternos do artigo 132º nº 2 al. b), não procedeu a correta valoração dos factos

VIII. Num primeiro momento, o Tribunal a quo deu por provado os factos dos pontos 2, 3, 4, 5, 7, 26 e 27, do acórdão, objeto de recurso, factos estes que por si só provam a degradação da vida conjugal, pela infidelidade, pelo agravamento da violência domestica, durante anos a Recorrente foi vítima de violência psicológica e posteriormente de violência física.

IX. O Tribunal a quo dá por provada a inexistência dos laços conjugais e condena a Recorrente pela prática de homicídio qualificado nos termos do artigo 132º nº 2 al. b)

X. Perante a degradação da relação conjugal, os factos provados pelo Tribunal a quo só poderiam ser enquadrados no homicídio simples, previsto e punido no artigo 131º do C.P., sendo afastado a culpa agravada e consequentemente, a especial censurabilidade.

XI. A conduta da recorrente deve ser analisada e valorada, tomando em consideração o conjunto de circunstâncias que antecederam ao acto punível e não apenas uma parte dos factos.

XII. A Recorrente era vítima de violência domestica, agravada pelos hábitos alcoólicos da vítima BB, estava num quadro depressivo, era apoiada pelo Gabinete de Apoio a Vítima de Violência Domestica, pediu apoio clínico e estava a medicamentada com ansiolítico.

XIII. A pena aplicada pelo Tribunal a quo viola o artigo 40º, 70º ss, 131º, todos do C.P. e o artigo 18º da C.R.P.

XIV. A pena aplicada é excessiva quando põe em causa o princípio da prevenção geral e especial, que deve presidir à determinação da medida da pena, tendo em conta a conduta da arguida, ora Recorrente.

XVI. A Recorrente está socialmente integrada, tem trabalho, apoio familiar, não tem antecedentes criminais, prestou auxilio a vítima, preocupou-se com o estado de saúde da mesma e tratou do seu funeral, sendo por isso, a pena a que foi condenada excessiva.

XVII. A pena acessória de declaração de indignidade sucessória, o artigo 69-A do C.P. não tem aplicação automática.

XVIII. Os herdeiros da vítima foram notificados para intervir nos autos, a filha CC, constitui-se Assistente e deduziu pedido de indemnização cível, têm legitimidade e capacidade para requer a condenação da Recorrente na pena acessória de declaração de indignidade sucessória, não tendo feito, o Tribunal a quo não tem legitimidade para declarar oficiosamente.

XIX. A aplicação automática do artigo 69-A do C.P. e consequentemente declarar a indignidade sucessória do condenado é ilegal por violação do referido preceito legal uma vez que o mesmo não é de aplicação automática.

XX. A aplicação automática do artigo 69-A do C.P. viola o artigo 30º nº 4 da C.R.P., nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de um direito civil.

TERMOS EM QUE E NOS MAIS DE DIREITO NOMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER     REVOGADA A     DOUTA DECISÃO RECORRIDA,    SUBSTITUINDO-A     POR OUTRA   QUE  SE   QUADUNE    COM   A PRETENSÃO AQUI EXPOSTA.

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!

1.4 - O M° P° junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso nos termos seguintes:

1 - A arguida recorrente foi condenada pelo Juízo Central Criminal ..., da comarca ..., pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. p. nos termos do disposto os artigos 131.°, n° 1 e 132, n°s 1 e 2, al. b), do Código Penal, na pena de 14 anos de prisão, por acórdão proferido a 30/01/2019. Nos termos deste acórdão, a arguida foi ainda declarada indigna para efeitos de sucessão por morte de seu marido, nos termos e para os efeitos previstos nos arts 2034, ai. a) e 2037, ambos do Código Civil, por força do disposto no art. 69-A, do Código Penal.

2 - Inconformada com essa decisão dela recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 17 de Julho de 2019, negou provimento ao recurso e manteve integralmente a decisão impugnada.

Ainda inconformada com esse acórdão, dele recorre agora para o Supremo Tribunal de Justiça.

3 - A recorrente insurge-se, de novo e ainda, contra o enquadramento jurídico dos factos dados como provados, em concreto discorda da qualificação do crime de homicídio, nos termos da al. b), do n° 2, do artigo 132, do Código Penal, reafirmando que não se verifica especial censurabilidade ou perversidade na sua conduta.

4 - Argumenta que a decisão recorrida fez uma aplicação automática da agravação decorrente do art.132, n° 2, al. b), do Código Penal, no entanto, perante "a degradação da relação conjugal", que decorre da factualidade dada como provada nos pontos 2 a 5, 7, 26 e 27, o Tribunal deveria ter afastado "a culpa agravada e consequentemente, a especial censurabilidade".

5 - Acrescenta que a "conduta da recorrente deve ser analisada e valorada, tomando em consideração o conjunto de circunstâncias que antecederam o acto punível e não apenas uma parte dos factos", mormente a circunstância de ser vítima de violência doméstica - física e psicológica, agravada pelos hábitos alcoólicos da vítima, no âmbito da qual pediu e recebeu apoio, mas também o quadro depressivo em que se encontrava e em consequência, a censurabilidade da sua conduta deve conter-se no contexto da violação do bem "vida" previsto no n° 1, do art. 131, do Código Penal.

6 - A recorrente discorda também da medida da pena em que foi condenada, considerando-a excessiva, dado que está inserida no mercado de trabalho, tem apoio familiar e não tem antecedentes criminais. Conclui que o crime dos autos constituiu um episódio único na sua vida, pelo que são diminutas as exigências de prevenção especial, devendo a pena ser fixada no limite mínimo.

7- Insurge-se,   ainda,   a   recorrente  contra   a   declaração  de  indignidade sucessória, de que foi objecto, nos termos do disposto no art. 69-A, do CP.

8 - A recorrente, não tem, porém, a nosso ver, razão nas críticas que dirige à decisão recorrida. Com efeito, quer a decisão da Ia Instância quer a decisão recorrida fundamentam a subsunção jurídica dos factos ao tipo agravado e explicitam porque consideram que a conduta da arguida   recorrente   é especialmente censurável apesar do contexto em que ocorreu.

9 - A agravação do crime decorrente do preenchimento de um dos exemplos padrão elencados no n° 2, do art. 132, do Código Penal não é automática, como é pacificamente aceite pela doutrina e jurisprudência. E também a decisão recorrida, tal como anteriormente a da 1ª Instância, acolheu essa orientação e por isso analisou e ponderou a conduta da arguida no contexto dos factos provados e de todo o circunstancialismo envolvente no sentido de graduar a culpa com que aquela actuou. Mas concluiu que a infidelidade da vítima, o alcoolismo, a violência existente na relação conjugal e a consequente degradação daquela relação não era de molde a afastar a especial censurabilidade do acto de tirar a vida à pessoa com quem partilhava a vida há mais de 20 anos e em relação à qual tinha um particular dever de respeito.

10 - O Tribunal, na escolha e determinação do quantum da pena, observou inteiramente os critérios estabelecidos nos artigos 40, 70 e 71, do Código Penal, considerando a ilicitude elevada, o grau de culpa muito acentuado, mas ponderou igualmente o quadro de ciúmes e de perturbação psicológica da arguida proveniente da degradação da vivência conjugal, "pautada por um crescendo de violência" e o arrependimento demonstrado, concluindo que as exigências de prevenção geral são "acutilantes".

11 - O Tribunal da Relação de Lisboa corroborando o consignado na decisão da 1ª Instância considerou adequada a pena aplicada e manteve a condenação em 14 anos de prisão.

12 - Perante o quadro factual fixado e a análise e ponderação efectuadas não podemos deixar de subscrever, também, as conclusões constantes da decisão recorrida no que respeita à medida da pena. Na verdade a pena fixada situa-se muito próxima do limite mínimo da moldura penal abstracta e reflecte todo o circunstancialismo envolvente da conduta da arguida, o arrependimento demonstrado e a sua inserção social e familiar, mas não pode também deixar de satisfazer as acentuadas exigências de prevenção geral face ao bem jurídico protegido, a vida, cuja violação reclama da parte da comunidade uma reacção adequada.

13- Também se nos afigura correcta a decisão recorrida no que respeita à declaração de indignidade sucessória da recorrente nos termos do preceituado no art. 69-A, do Código Penal e subscrevemos as considerações na mesma expressas.

Nestes termos e em CONCLUSÃO:

- deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida,

(…)”.

1.5 – Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça foram com vista ao Ministério Público, tendo a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta subscrito a posição do MP em segunda instância, sem nada de novo acrescentar, pelo que não há que dar cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n,º 2 do CPP.

1.6 – Cumpridos os vistos foram os autos à conferência, havendo agora que apreciar e decidir.

II - Fundamentação

2.1 - Os factos provados são os seguintes:

1. A arguida AA e BB casaram um com o outro no dia 3 de Dezembro de 1998, tendo residido juntos até ao dia 27 de Março de 2018, com última residência na Rua ...., n.°..., ..., ..., onde viveram durante cerca de três anos.

2. Desde 2015, o relacionamento entre a arguida AA e BB não era pacífico porque a arguida suspeitava que este teria uma relação extraconjugal e que a pessoa com quem mantinha essa relação frequentaria, na sua ausência, a habitação que partilhavam, onde se relacionariam sexualmente.

3. O relacionamento entre a arguida AA e BB deteriorou-se a partir de 15.07.2017, quando a arguida confirmou a sua suspeita e identificou a pessoa com quem o marido mantinha essa relação extraconjugal, que conhecia como funcionária de um café que frequentava com alguma regularidade e para onde se deslocava na companhia de BB.

4. Com o intuito de comprovar que o BB continuava essa relação extraconjugal e que ele e a pessoa com quem se relacionava frequentavam a sua habitação na sua ausência, onde manteriam relações sexuais, no mês de Março de 2018, a arguida AA, perante a negação do BB quanto à frequência da habitação por parte da pessoa com quem mantinha essa relação extraconjugal e da jura deste no sentido de que esse relacionamento tinha cessado, decidiu ocultar no teto da casa de banho, um gravador de registo de som.

5. Ainda no mês de Março de 2018, mas em data anterior ao dia 27 desse mês, a arguida AA ouviu uma das gravações efetuadas, constatando que estava registada a voz da referida pessoa e que o BB havia mantido relacionamento sexual com esta.

6. Na manhã do dia 27 de Março de 2018, a arguida AA e o BB mantiveram relações sexuais um com o outro, mas o facto de este não ter ejaculado despoletou uma discussão entre ambos, porque para aquela esse facto comprovava que o BB mantinha a relação extraconjugal que jurava ter cessado.

7. Posteriormente, pelas 23h:00, no dia 27 de Março de 2018, após a chegada do BB a casa, este e a arguida iniciaram nova discussão sobre o relacionamento extraconjungal daquele.

8. Durante essa discussão, a arguida AA ficou irada, tendo-se deslocado para a cozinha, onde se muniu de uma faca, com quinze centímetros de lâmina.

9. Na posse desta, a arguida aproximou-se de BB e, de forma repentina, desferiu-lhe, repetidamente, cinco golpes na zona do tórax.

10. Já atingido pelos vários golpes, BB cambaleou até à porta de entrada da residência, gritando “mataste-me, atingiste-me no coração”, vindo a cair no chão, já desfalecido.

11. Após atingir BB, a arguida AA, ainda com a faca numa das mãos, abriu a porta de entrada da residência e dirigiu-se a dois indivíduos que trabalhavam no corredor do prédio, verbalizando “chamem a polícia que eu matei o sacana”.

12. Depois entrou novamente na residência, tendo acionado, através do telefone fixo, a linha de emergência.

13. Como consequência direta e necessária da sua conduta, a arguida AA causou a BB as lesões melhor descritas no relatório clínico de internamento, designadamente:

• duas feridas na face anterior do tórax, uma de cerca de 4 cm., na linha médio clavicular ao nível da 4ª EIE e a outra de cerca de 2 cm. na linha médio clavicular ao nível do 5° espaço intercostal esquerdo, hemotórax;

• ferida na língula de cerca de 2 cm.;

• hemopericárdio com ferida tamponada no tronco da artéria pulmonar,

• hemorragia da artéria mamária interna esquerda; e as lesões melhor descritas no relatório de autópsia, nomeadamente:

• ferida n.°1: trajeto de trás para a frente e ligeiramente para a direita, paralelo ao plano transversal, iniciando-se na região peitoral esquerda, passando pelo 3° espaço intercostal, atingindo o lobo superior do pulmão e o saco pericárdio e terminando ao nível do tronco pulmonar;

• ferida n.°2: trajeto de trás e ligeiramente para a direita, paralelo ao plano transversal, iniciando-se na região peitoral esquerda, percorrendo o tecido adiposo e terminando no apêndice xifóide;

• ferida n.°3: impossível caracterizar face á sua proximidade com a toracotomia;

• ferida n.°4: trajeto de trás para a frente e ligeiramente para a direita, paralelo ao plano transversal, iniciando-se no teço inferior da face lateral do hemitorax esquerdo, passando pelo 6° espaço intercostal e terminando na cavidade pleural;

• ferida n.°5: trajeto da esquerda para a direita, paralelo ao plano transversal iniciando-se no terço do inferior da face lateral do hemitorax esquerdo, passando pelo 7° espaço intercostal e terminando na cavidade pleural.

14. BB deu entrada no serviço de urgência do Hospital ..., cerca das 00h:35m., do dia 28 de Março de 2018, onde foi submetido a uma cirurgia de emergência, tendo falecido no dia 3 de Abril de 2018.

15. As lesões traumáticas torácicas acima descritas, produzidas por instrumento de natureza corto-perfurante, foram causa adequada da morte do BB.

16. A arguida AA agiu com o propósito determinado de tirar a vida a BB, seu cônjuge, sabendo que, ao desferir golpes com a referida faca no tórax, atingiria, como atingiu, órgãos vitais.

17. A arguida AA sabia que o instrumento corto-perfurante utilizado era adequado a causar sofrimento, a atingir órgãos vitais e a causar lesões mortais em BB, com o que se conformou.

18. À data dos factos, a arguida AA apresentava um quadro de ansiedade e de depressão, sendo medicada para esta última situação a partir de meados de 2017.

19. A arguida AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

20. Durante o período em que o BB esteve hospitalizado, a arguida mostrou-se sempre preocupada com a situação clínica daquele.

21. A arguida, através do seu irmão, DD, reclamou o corpo do BB e organizou o funeral deste, já que, decorridos dez dias sobre morte daquele, nenhum familiar deste o havia feito.

22. O BB faleceu no dia 03.04.2018, no estado de casado com a arguida.

23. A CC nasceu a ... 6.05.1969 e é filha de BB e de FF.

24. O GG nasceu a ... .07.1970 e é filho de BB e de FF.

25. O HH nasceu a ... .12.1972 e é filho de BB e de FF.

26. AA viveu com o ofendido durante cerca de vinte e cinco anos, tendo desta união nascido uma filha em 1993, que veio a falecer quatro meses após o seu nascimento, devido a problemas cardíacos. Refere ter vivido esse momento de forma penosa e sozinha, não tendo sentido apoio do cônjuge. Apesar de descrever uma dinâmica relacional positiva até meados de 2016, os dados recolhidos apontam para alguma idealização face aos sinais de uma relação instável e comportamentos de alguma subserviência da arguida e controlo por parte do ofendido, e que se traduziram por exemplo no abandono de atividades como a obtenção da carta de condução e da escola. Quando se conheceram a arguida encontrava-se a frequentar o 8º ano no ensino noturno. Os relacionamentos mais significativos da arguida estavam circunscritos aos estabelecidos em contexto laboral e à família alargada.

27. A 25.01.2018, AA recorreu ao Gabinete de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica, passando a ser acompanhada neste âmbito. Descreve a existência de uma relação extraconjugal por parte do ofendido, com relato de episódios de agressão física e psicológica de parte a parte, que geraram participações policiais. Neste contexto chegou a solicitar apoio médico, afirmando ter tomado ansiolíticos.

28. AA completou o segundo ciclo, tendo iniciado um percurso profissional no início da idade adulta.

29. Ao longo do seu percurso de vida passou por várias entidades laborais, onde permaneceu durante períodos mais ou menos prolongados, sendo que as saídas foram sempre motivadas por fatores alheios à sua vontade. Assim, nos últimos vinte e quatro anos trabalhou como empregada de mesa no mesmo restaurante, sendo a este nível retratada como uma funcionária envolvida e responsável, que mantinha uma relação positiva com as chefias e colegas de trabalho, desconhecendo-se as repercussões da atual situação no contrato de trabalho.

30. Em termos familiares, a arguida conta sobretudo com o apoio de um irmão e de uma cunhada, com quem reside atualmente e de quem depende economicamente. Apesar de ter outros irmãos, estes elementos têm-se constituído ao longo dos anos a sua principal referência afetiva.

31. AA legitima a intervenção do sistema de justiça, e neste contexto mostra-se disponível para cumprir uma eventual medida que venha a ser aplicada, ainda que perante uma pena privativa da liberdade demonstre receio e preocupação.

32. No âmbito da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, AA integra o agregado familiar do irmão e da cunhada, com quem mantém uma relação aparentemente gratificante. Tem cumprido as orientações da Equipa de Vigilância Eletrónica, tendo beneficiado recentemente de consulta de psiquiatria a seu pedido, encontrando-se a tomar medicação.

33.  A arguida AA não tem antecedentes criminais.

34.   A morte do BB deveu-se ao facto de a arguida o ter golpeado, com uma faca, de quinze centímetros, no tórax.

35.   O BB careceu de tratamento, tendo sido transportado ao hospital, no dia 28.03.2018, por volta das 00h:35m., onde foi submetido a cirurgia de emergência.

36.   O BB, em consequência da atuação da arguida, esteve no hospital durante 7 dias, entre a vida e a morte, tendo falecido no dia 03.04.2018.

Factos não provados

1. No dia 27 de Março de 2018, pelas 23h00, a arguida confrontou BB com a gravação e com a confirmação das suas suspeitas, tendo este contraposto o seguinte “Prova, prova que eu meto aqui uma mulher. Mas nunca me vais apanhar, que eu não meto ninguém aqui dentro”.

2. A arguida desferiu um golpe que atingiu o pescoço do BB, cortando-o.

3. A arguida AA desferiu-lhe dois golpes na zona do abdómen.

4. A arguida AA agiu com total indiferença pela vida humana e sem qualquer motivo atendível para a sua conduta, que não causar sofrimento a BB.

5. Devido à maneira como o seu pai morreu, a assistente/demandante CC ficou triste e sofreu transtorno emocional, para o qual passou a ser medicada.

O tribunal não se pronuncia sobre a matéria referida nos pontos 3. A 5., 9., 11. E 13. A 25. Do pedido de indemnização civil por considerar tratar-se de matéria conclusiva ou de direito.

A matéria de facto dada como provada, e agora constante dos factos provados, que não estava vertida na acusação e que não foi comunicada à defesa provém das declarações da própria arguida, não sendo, por isso, necessária a sua comunicação e o exercício do contraditório (cfr. artigo 358º, n.º2, do Cód. de Proc. Penal).

2.2 - O objecto do recurso cinge-se a duas questões:

1 - Qualificação dos factos quanto a saber se os mesmos integram o crime de homicídio simples ou homicídio qualificado;

2 – Legitimidade para a declaração da indignidade sucessória.

2.3 - Indo à primeira questão:

2.3.1 - Nos termos do art.º 132.º (homicídio qualificado), n.ºs 1 e 2 alíneas a) e b) do Código Penal:

1 – Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 – É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa do outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;
(…)

As modalidades agravadas de homicídio previstas nas alíneas a) e b) correspondem, respectivamente, aos chamados parricídio próprio (praticado contra ascendente e descendente) e impróprio ou quase parricídio, numa previsão substancialmente mais alargada do que era comum na generalidade das legislações penais europeias até aos anos 80/90 do século passado.

Os diferentes sistemas penais consagravam soluções diversas, podendo grosso modo dizer-se que nos países de influência germânica o crime de parricídio não era penalmente acolhido, situação diferente da dos países do sul da Europa que, de forma mais restrita ou mais ampla, com autonomia ou como modalidade agravada do homicídio, em geral o consagravam.

   Diversamente do que acontecia com o nosso Código Penal de 1886, que incriminava autonomamente o parricídio, “aquele que matar voluntariamente seu pai ou mãe, legítimos ou naturais, ou qualquer dos seus ascendentes legítimos”  (art.º 355.º), o código vigente optou antes, na sua primeira versão, por eleger como exemplo padrão do homicídio qualificado, o parricídio próprio, sendo certo que, com as alterações supervenientes do art.º 132.º, esses exemplos padrão se foram alargando, neles se tendo também incluído as situações previamente consideradas de parricídio impróprio, embora numa matriz claramente diferenciada do modelo tradicional como se constata pelo facto de nesses exemplos se não incluir o fratricídio mas estar incluído o homicídio contra ex-cônjuge, namorada/o ou ex-namorada/o ou o progenitor de descendente comum  em 1.ºgráu.

2.3.2 - A inserção do parricídio entre os exemplos padrão não foi isenta de controvérsia, tendo merecido viva oposição por parte do senhor Conselheiro Sousa Brito, que sugeria uma solução semelhante à do projecto do código francês que punha termo à qualificação do parricídio, apenas havendo agravação quando ocorresse especial vulnerabilidade da vítima[1].

Em boa verdade o CP francês de 1994 viria a prever a qualificação do homicídio quando praticado contra ascendente legítimo ou natural ou contra pai ou mãe adoptivos (art.º 221-4, 2.º), qualificação que subsequentes alterações legislativas viriam a expandir (Lei n.º 2003-239  de 18-03-2003 e Lei 2006/399, de 04-04-2006).

Mais radical foi a mudança no código penal espanhol de 1995, que erradicou o crime de parricídio e que, na sua modalidade agravada do homicídio, o crime de assassinato, também o não contempla (artigos 149.º e 140.º), alteração esta que teve bom acolhimento na doutrina que de há muito defendia a sua eliminação por se entender que tal figura, como delito autónomo, respondia a vestígios de censura ética, alheios à função protectora de bens jurídicos que corresponde ao direito penal.[2]

2.3.3 - É conhecido o debate que se tem travado à volta dos exemplos padrão, quanto a saber se eles radicam na ilicitude ou na culpa, ou em ambas, na sua natureza não automática nem taxativa. Há todavia uma questão que aqui se impõe salientar, que é a plasticidade desses exemplos no que diz respeito à vertente da relação familiar, para-familiar, ou ex-familiar entre autor e vítima.

Em escasso período de tempo, aquilo que se circunscrevia à relação “descendente ou ascendente, natural ou adoptivo, da vítima” foi sendo alargado para um conjunto de relações, nem todas familiares, ou que já não assumem essa natureza, dificilmente se descortinando nessas relações fundamento material de uma antijuridicidade agravada ou de um tipo de culpa que justifique a preterição de um quadro sancionatório de oito a dezasseis anos de prisão em favor de um outro de doze a vinte e cinco anos.

Uma tal disparidade, assente como é entendimento alargado da doutrina no tipo de culpa[3], arrisca-se a ser entendida como uma óbvia manifestação do direito penal de autor, em detrimento do direito penal do facto, que constitui a matriz do nosso direito penal[4].

Feitas estas observações impõe-se lembrar que os chamados exemplos-padrão não operam de forma automática, sendo exigível que previamente se apure se os factos em que se manifestam são susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade. E tendo em conta as observações que acima foram feitas impõe-se especial cuidado nessa avaliação que pressupõe uma metodologia que parte do homicídio simples para depois verificar se há razões para o qualificar e não o inverso.

A vida humana tem idêntico valor e o bem jurídico protegido no homicídio simples e no qualificado é o mesmo. Há por isso que ponderar cuidadosamente os fundamentos da qualificação tendo presente que o crime de homicídio é sempre um crime perverso, por isso merecedor de forte censura e de pesada sanção penal. Questão é apurar, não da sua perversidade, mas de eventual especial perversidade.

2.3.4 - No caso dos autos o crime é praticado pela esposa contra o marido com quem viveu durante cerca de 25 anos, estando ambos casados desde 1998.

O relacionamento entre ambos deteriorou-se a partir de 2015, por suspeitas de infidelidade conjugal por parte do marido, situação esta que se agravou em 15-07-2017, data em que tais suspeitas se confirmaram, confirmando-se ainda que os encontros do marido com a amante ocorriam na própria residência do casal. Tal situação, associada a episódios de violência no seio do casal levou a que em 25.01.2018, AA tivesse recorrido ao Gabinete de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica, passando nesse âmbito a ser acompanhada.

Na manhã do dia 27 de Março de 2018, a arguida e o marido travaram uma discussão porque, tendo tido relações sexuais e não tendo ele ejaculado, tal facto levou a arguida a concluir que o relacionamento extraconjugal do marido se mantinha. E foi essa suspeita que, pelas 23h00 desse mesmo dia conduziu a nova discussão entre ambos, no decurso da qual a arguida foi à cozinha, onde se muniu de uma faca, de 15 cm. de lâmina, com a qual desferiu cinco golpes na zona torácica do marido, lesões estas de que lhe resultou a morte, cinco dias depois.

2.3.5 - É evidente que a referida factualidade não permite concluir que o relacionamento entre ambos estava de tal modo degradado que dispensasse a arguida dos deveres a que os cônjuges estão reciprocamente vinculados nos termos do art.º 1672.º do Código Civil. Acresce que a severidade da lei penal não tem apenas como fundamento esses deveres mas também uma situação confiança própria de quem vive em conjunto, por isso se despojando das cautelas que em geral se adotam em relação a terceiros, no pressuposto de que se desfruta de uma situação de segurança, podendo-se comer, beber, dormir, discutir ou até brigar, sem que tais actividades possam constituir fonte de perigo.

Há porém que ter em conta que a arguida à data dos factos apresentava um quadro de ansiedade e de depressão, sendo medicada para esta última situação a partir de meados de 2017 e que no relatório médico psiquiátrico de 05.04.2018, ( fls. 203 a 205 dos autos) é referenciada com “humor lábil (instável), com ideação delirante de ciúme”.

Por outro lado é manifesto o arrependimento da arguida traduzido no facto de logo após a agressão ter accionado a linha de emergência para assistência ao marido, no seu permanente interesse em acompanhar a sua situação clínica e de ter sido a única pessoa que reclamou o corpo do marido, dez dias após a sua morte, já que nenhum familiar o havia feito.

2.3.6 - A dado passo da decisão recorrida escreve-se:

Na verdade, por muito que possa custar á recorrente, é da lógica e da experiência, que alguém que anda desconfiada da relação extramatrimonial do seu cônjuge, alguém que ainda por cima é ciumenta, alguém que recolhe som e imagem com um gravador e alguém que confronta constantemente o cônjuge ( cônjuge que admite a relação mas depois diz ter-Ihe posto um fim não sendo verdade), alguém a que acresce comportamentos por vezes violentos mútuos, e que apresenta um quadro depressivo com acompanhamento e medicação, leve a cabo o acto que a recorrente acabou por levar”.

Concorda-se com o que aí se encontra descrito sendo de acrescentar que segundo relatório médico psiquiátrico (fls. 203 a 205 dos autos), a arguida evidenciava humor lábil (instável), com ideação delirante de ciúme.

Ideação delirante de ciúme, também designada por síndrome de Otelo, é uma perturbação mental que pode representar sérios riscos para o próprio e para terceiros. A pouca atenção que se tem dado a esta patologia tem levado a que muitas situações de violência contra ou entre cônjuges sejam encaradas exclusivamente sob o ângulo da violência doméstica o que, não deixando de ser verdadeiro, se traduz numa visão redutora, que não contribui positivamente para o diagnóstico e tratamento do problema.

Há vasta literatura sobre o delírio de ciúme mas, na leitura de dois artigos, um de Svetlana Grishin e outro de Michael Kingham e Harvey Gordon, encontramos óbvias coincidências entre as situações neles descritas e a factualidade dos presentes autos, quanto às manifestações da doença e os riscos para terceiros, como sejam a ocultação de equipamentos para detecção de infidelidade do parceiro, o recurso à violência para obrigar à confissão ou como vingança, o arrependimento subsequente à agressão, que por vezes acaba por levar ao suicídio [5].

E nem é de estranhar que no exame psiquiátrico já referido se mencione que a arguida apresentava discurso coerente e adequado (…) sem atividade alucinatória, nem ideias ou pensamentos de morte, mantendo juízo crítico, não apenas porque o exame foi realizado uma semana após os factos mas também porque, como escreve João Rocha da Silva, referindo-se aos doentes com delírio de ciúme, “(…) É frequente a coexistência de sintomatologia depressiva, assim como o recurso a antidepressivos e antipsicóticos atípicos para estabilização da exuberância do delírio. Não há neste grupo de doentes um declínio importante das funções cognitivas, estando frequentemente inseridos na comunidade a que pertencem com autonomia preservada”[6].

2.3.7 - Ora, se no entendimento da decisão recorrida é da lógica e da experiência que, no quadro acima descrito (2.3.6) a arguida concretize o ato que acabou por levar a cabo, mais lógico se torna tal comportamento se nele se incluir a patologia associada ao delírio de ciúme.

Será que em tais circunstâncias se pode concluir que a conduta revela especial censurabilidade ou perversidade?

Não é de considerar que neste contexto factual a conduta da arguida exceda o grau de culpa geralmente associado ao homicídio simples, podendo mesmo questionar-se se a depressão que a acompanhava e a patologia de que padecia, a cuja génese ou pelo menos evolução não foi de todo alheia a conduta da vítima, não apontam para alguma diminuição do grau de culpa.

O exemplo padrão da alínea b) do n.º 2 não pode deixar de ser entendido como o paroxismo de uma relação degradada, quase sempre associada a prévias situações de violência física e/ou psicológica por parte do agressor, o que aqui manifestamente não é o caso. Por outro lado,   sendo as circunstâncias do n.º 2 do art.º 132.º expressão do tipo de culpa, estão naturalmente associadas à personalidade do arguido, à sua maneira de ser e forma de estar, reflectindo uma atitude deste perante os outros. Ou seja, uma conduta especialmente perversa é muito dificilmente compatível com uma personalidade que também o não seja, sendo certo que a conduta da arguida, não apenas na condução da sua vida e na sua ação mas em especial nas atitudes de manifesto arrependimento e tentativa de reparação do mal do crime que se seguiram logo após a ação criminosa, não revela uma personalidade dessa natureza.

Cremos ser esta uma das situações a que alude o Prof. Figueiredo Dias em que a qualificação é negada a despeito da presença dos elementos que a poderiam sustentar[7], considerando-se que o crime praticado pela arguida, não obstante a sua manifesta gravidade, não revela sinais de especial censurabilidade ou perversidade, pelo que terá que ser sancionado nos termos do art.º 131.º do C. Penal.

2.3.8 - Haverá pois que determinar a medida da pena, dentro da moldura prevista no art.º 131.º, ou seja, da pena de prisão de 8 a 16 anos.

Na determinação da medida concreta da pena o tribunal recorrido, analisando a decisão de primeira instância, considerou o seguinte:

“(…)

- a ilicitude da conduta que considerou elevada pois conexiona-se com a ofensa ao mais fundamental dos bens jurídicos, que é o valor "vida", e com o modo de execução dos factos, com recurso a uma faca e com desferimento de vários golpes, de forma repentina e inesperada.

- o grau de culpa que considerou muito acentuado. Entendeu que a arguida agiu com dolo, que é a forma mais intensa de culpa, na modalidade de dolo direto, materializada no número de golpes que foram desferidos e na zona atingida, o tórax, onde se alojam órgãos vitais provocando lesões corto-perfurantes e fatais.

-as circunstâncias em que os factos ocorreram, ou seja, num quadro de ciúmes e de alguma perturbação psicológica da arguida, proveniente de uma relação conjugal que se foi desgastando ao longo do tempo, mais de vinte anos, e pautada por um crescendo de violência em que a arguida se sentia a principal vítima.

- as exigências de prevenção geral que adjectivou de acutilantes, pois estamos em face de criminalidade violenta, que assume elevada preocupação comunitária, daí que seja necessário reforçar a confiança da coletividade na lei,   em  nome  de  uma desejável tranquilidade e segurança e de respeito pela vida humana, por forma a evitar a prática de crimes desta natureza.

- considerou ainda que após os factos, a arguida mostrou preocupação com o estado de saúde do ofendido e, perante o desinteresse da restante família deste, providenciou, por interposta pessoa, pelo enterro do corpo deste.

a arguida era pessoa com hábitos de trabalho e estava inserida socialmente.

(…)” – sublinhado nosso.

2.3.9 - Com exceção da referência ao grau de culpa muito acentuado, que face ao acima exposto se considera não ter ocorrido, subscreve-se tudo o mais que quanto aos fundamentos da medida da pena constam da decisão.

Temos assim e por um lado uma arguida autora de um crime ocasional, que não tem antecedentes criminais e não evidencia sinais de perigosidade, pelo que em relação a ela se não colocam exigências de prevenção especial.

Deparamo-nos por outro com a prática de um crime grave, que desperta repulsa e alarme na comunidade e que, quer em face da necessidade  de protecção do bem jurídico vida quer das exigências de prevenção geral, reclama punição severa mas que não exceda a medida da culpa (art.º 40.º, n.º 2 do Código Penal). Entende-se que o equilíbrio entre os dois mencionados vectores e tendo em consideração a medida da culpa, se realiza com a aplicação de uma pena de 10 (dez) anos de prisão.

2.4 - Sobre a indignidade sucessória

2.4.1 - Sustenta a recorrente que a pena acessória de declaração de indignidade sucessória, prevista pelo artigo 69-A do C.P., não tem aplicação automática e que, não tendo a mesma sido pedida pelos detentores de legitimidade para tal, os herdeiros da vítima, o Tribunal não a poderia declarar oficiosamente.

Começaremos por esclarecer que a declaração de indignidade sucessória não é uma pena acessória mas um efeito substantivo civil do crime[8]. Se assim não fosse nem teriam  sentido os termos em que a questão é suscitada pelo recorrente.

2.4.2 - A incapacidade sucessória por motivo de indignidade prevista no art.º 2034.º do Código Civil (CC) suscitou um debate na doutrina quanto a saber se a mesma devia funcionar de modo automático ou se para tal era exigível instauração de ação para a respectiva declaração.

O entendimento generalizado da doutrina, mesmo de quem considera que de jure condendo  a incapacidade por indignidade deveria funcionar de modo automático, é de que tal não acontece, devendo ser proposta ação para esse efeito, nos termos do art.º 2036.º do Código Civil, sendo, em matéria de legitimidade, de seguir as regras gerais de acordo com o Código de Processo Civil[9]. Em abono de tal posição invoca-se o disposto no art.º 2036.º do CC, a abordagem sistemática do conjunto das disposições que regem esta matéria (artigos 2033.º a 2038.º do CC), bem assim como o facto de o anteprojecto do código civil de Galvão Teles não fazer qualquer referência à declaração judicial de indignidade  e tal ter sido acrescentado na primeira revisão ministerial e redacção final[10].

Há no entanto quem entenda, como o Prof. Oliveira Ascensão, que o carácter automático das indignidades resulta da própria redacção do art.º 2034.º do CC que começa nos seguintes termos: “carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade” (sublinhado nosso) considerando este autor que a ação só é necessária quando o indigno tenha em seu poder bens da herança, hipótese em que se gera “uma aparência de sucessão que é necessário esclarecer o mais rapidamente possível, a bem da estabilidade das relações sociais.[11]

Na base da controvérsia está designadamente o disposto na alínea a) do art.º 2034.º, sendo de facto chocante e atentatório do mais elementar sentido de justiça que um homicida possa ser herdeiro da vítima, tornando-se o homicídio, para usar as palavras de Oliveira Ascensão, via de aquisição sucessória.

Os problemas mais sérios que daí resultavam foram entretanto resolvidos pela Lei n.º 82/2014, de 30 de Dezembro, que entre o mais deu nova redacção ao art.º 2036.º do Código Civil, incumbindo o Ministério Público de intentar a ação destinada a obter a declaração de indignidade no caso de o único herdeiro ser o sucessor por ela afetado ou quando, tendo havido a condenação a que se refere a alínea a) do artigo 2034.º, a sentença penal não tenha declarado a indignidade sucessória, sendo obrigatoriamente comunicada ao Ministério Público para o mencionado efeito.

2.3.4 - Para além disso a mesma lei aditou ao Código Penal o actual art.º 69.º-A (Declaração de indignidade sucessória), com o seguinte teor:

A sentença que condenar autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adotado, pode declarar a indignidade sucessória do condenado, nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do artigo 2034.º e no artigo 2037.º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 2036.º do mesmo Código”.

A parte final desta norma revela a autonomia da via nele prevista de declaração da indignidade sucessória relativamente ao que se dispõe no art.º 2036.º do CC. Ou seja, a declaração nos termos do art.º 69.º-A do CP não pressupõe qualquer enxerto cível nem está sujeita ao princípio do pedido, operando automaticamente.

Aliás, do Projeto de Lei n.º 662/XII/4ª, que conjuntamente com o Projeto de Lei n.º 632/XII/3ª esteve na origem da Lei n.º 82/2014, após alusão à situação intolerável de o cônjuge homicida poder herdar os bens da vítima, consta o seguinte:

“É neste contexto que se fundamenta a presente iniciativa, visando a automaticidade da declaração de indignidade sucessória, no quadro de sentença condenatória pela prática do crime de homicídio”[12].

No sentido da automaticidade pronunciam-se também Simas Santos e Leal Henriques[13], sendo inequívoco que foi esse o propósito do legislador e que é também o que melhor se concilia com a letra do preceito.

Por este entendimento se pautou também a decisão recorrida, que neste âmbito não merece censura.

III – Decisão

Pelo exposto acordam os juízes da 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em dar parcial provimento ao recurso e condenar a arguida, pela autoria material de um crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal, na pena de dez anos de prisão, mantendo no mais o acórdão recorrido.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 7 de novembro de 2019

Júlio Pereira (Relator)

Clemente Lima

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[1] V. Código Penal, Actas e Projecto da Comissão Revisora, Ministério da Justiça, 1993, pag. 190 e ss.
[2] T.S. Vives Anton Coor., Cobo del Rosal/Vives Anton/Boix Reig/Orts Berenguer/Carbonell Mateu, Derecho Penal, Parte Especial, 2.ª edição, Tirant lo Blanch, 1988, pag. 498.
[3] Embora com fundadas objecções da parte de alguns autores – v. entre outros, Fernanda Palma, O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português, in Revista do Ministério Público, ano 4, volume 15, pag. 59 e ss., par quem o fundamento de uma agravação que altera a moldura penal não pode deixar de ser a ilicitude.
[4] Sobre esta questão e a propósito do direito penal espanhol v. Carbonell Mateu e Gonzalez Cussac in Vives Antón et altri, Comentarios al Código Penal de 1995, I, Titant lo Blanch, 1996, pag. 728 e ss.
[5]Svetlana Grishin, Delírio de ciúme, que pode ser consultado em https://pt.iliveok.com/health/delirio-de-ciumes_102483i15956.html e de Michael Kingham & Harvey Gordon, Aspects of morbid jealousy in Advances in Psichiatric Treatment (2004), vol 10, pag. 207 – 215, consultável em  https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridge-core/content/view/06CBB7BF78CC43C785AE6F7C0F0046C9/S1355514600001310a.pdf/aspects_of_morbid_jealousy.pdf
[6] João Carlos Rocha da Silva, Psicoses Delirantes Crónicas e Esquizofrenia a Caminho de uma Distinção, in estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/29273/1/João%20Silva.pdf
[7] Jorge de Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, I, CE, 1999, pag. 27.
[8] M. Miguez Garcia/J.M.Castela Rio, Código Penal Parte geral e especial, 3.ª edição, Almedina, 2018, pag.417.
[9]F. Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, pag. 220; Jorge Augusto Pais do Amaral, Direito da Família e das Sucessões, 3.ª edição, Almedina, 2016, pag. 299 e ss.; Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2017, 2.ª edição, AAFDL, pag. 196.
[10] Carlos Pamplona Corte-Real, Direito da Família e das Sucessões, II, Lex, 1993, pag. 210; Nuno E. Gomes da Silva, Direito das Sucessões, AAFD, Lisboa, 1978, pag. 211 e ss.
[11] J. Oliveira Ascensão, Direito Civil Sucessões, Coimbra Editora, pag. 149 e ss.
[12] Sobre o processo legislativo v. Manuel Simas-Santos/Manuel Leal Henriques, Código Penal Anotado, vol. II, 4.ª edição, Rei dos Livros, pag. 9 e ss.
[13] Manuel Simas-Santos/Manuel Leal Henriques, obra citada, pag. 10.