Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
283/10.8TVLSB.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE GRUPO
SEGURO DE VIDA
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
CRÉDITO À HABITAÇÃO
CONTRATO DE MÚTUO
HOMICÍDIO
HERDEIRO
MORA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - DIREITO DAS SUCESSÕES
DIREITO COMERCIAL - CONTRATO DE SEGURO
Doutrina: - Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 110, nota 1, 2ª ed..
- Calvão da Silva, Apólice Vida Risco..., RLJ, nº3942, ano 136º, pág. 158 e ss..
- Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 684.
- José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, págs. 48, 359.
- Maria Inês Oliveira Martins, O Seguro de Vida..., 86.
- Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 183.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 67.º, 473.º, N.º1, 804.º, NºS 1 E 2, 805.º, N.º1, 806.º, 2032.º, N.º1, 2037.º, N.º1.
CÓDIGO COMERCIAL (C.COM.): - ARTIGOS 427.º, 458.º.
DL Nº349/98 DE 11.11, ARTIGO º 23.º.
DL N.º176/95 DE 26.07: ARTIGOS 1.º, ALS. B), G) H) E 4.º.
RGAS: - ARTIGO 123.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28.02.1991, AJ, 15º/16º, 36;
-DE 10.05.2007, PROCESSO Nº07B1277, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 29.10.2009, PROCESSO Nº2157/06, EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - No contrato de seguro de grupo destinado a garantir o pagamento de crédito à habitação, concedido por um banco no âmbito de um contrato de mútuo a ele associado, beneficiário do mesmo contrato é essa entidade financeira, devendo considerar-se terceiro face ao mesmo, o segurado que a ele adere.
II - O homicídio doloso do segurado às mãos do herdeiro não exclui o risco nem desvincula a seguradora face aos demais herdeiros que nele não tiveram qualquer participação.
III - De qualquer modo, assumindo-se o contrato de seguro de grupo como seguro sobre a vida de terceiro, a seguradora nunca ficaria desobrigada da entrega do capital seguro ao respectivo beneficiário, por efeito do disposto no art. 458.º, § único, do CCom.
IV - Incorre em mora, obrigando-se à reparação dela decorrente, independentemente de interpelação, o devedor que, de forma categórica e definitiva, manifesta ao credor intenção de não cumprir.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

I.
AA, representado pelo avô, BB, intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra “CC Seguros de Vida, S.A.”, pedindo a sua condenação da ré a cumprir o contrato de seguro, mediante o pagamento ao BCP, do capital em dívida no âmbito de um contrato de mútuo e o remanescente ao A., até ao montante de 50.000€, acrescido de juros à taxa legal, devidos desde 5/12/2007, tudo a liquidar em execução de sentença.
Para tanto alegou, em suma, que seu pai celebrou um seguro de vida com a ré no âmbito de um contrato de mútuo com hipoteca, celebrado com o BCP, beneficiário do mesmo seguro; o mesmo progenitor de quem é herdeiro, foi vítima de homicídio perpetrado, nomeadamente, por sua mãe, entretanto julgada e condenada por tal acto e por via dele, declarada a sua indignidade sucessória em acção própria; a ré recusou-se a efectuar o pagamento do capital seguro, apesar de interpelada pelo referenciado BCP.
Citada, a Ré Seguradora contestou dizendo que a obrigação se extinguiu dado que um dos herdeiros foi a responsável pela morte do tomador de seguro, extinguindo-se a sua obrigação de pagamento ainda pelo facto de a morte não ter advindo de eventos naturais e aleatórios; mais alegou que sendo o mutuo relativo a crédito habitação, o imóvel também é da propriedade da mãe do A. e não apenas do pai, pelo que o seguro não pode beneficiar a homicida; mais referiu que não são devidos juros desde a interpelação do BCP, pois este conformou-se com a recusa da ré e ainda que pudesse existir remanescente, os juros a ele relativos, são devidos apenas desde a citação por fim, impugnou que o A fosse beneficiário do apontado remanescente e concluiu pela extinção da sua obrigação, pela ilegitimidade activa quanto aos juros e ainda pela absolvição por improcedência.
O A. respondeu pugnando pelo indeferimento de todas as excepções alegadas, dizendo que é o único filho do falecido, e mesmo que não figure na proposta de adesão os beneficiários, sempre o remanescente integrará a herança, pelo que reverterá para os herdeiros, neste caso o A.; em relação à morte do pai, esta deve ser considerada acidental, por via de facto que é aleatório e imprevisível; quanto à alegada extinção do contrato, argumenta que não é herdeiro da homicida e o Banco beneficiário tão pouco tem algo a ver com essa situação; por fim, em relação à ilegitimidade, entende que a questão não é processual mas de mérito.
Considerando que o estado dos autos lhe permitia conhecer imediatamente do pedido, a Senhora Juíza proferiu saneador sentença e na procedência da acção, condenou a Ré Seguradora a pagar ao BCP o capital em dívida, por via do contrato de mútuo e o remanescente ao Autor, até ao montante de €50.000, acrescidos de juros, à taxa legal, devidos desde 5/12/2007 até integral pagamento.
Inconformada, a Ré interpôs recurso de revista per saltum para este Supremo Tribunal e concluiu a sua alegação do seguinte modo:
1- A apólice de seguro contratada com a recorrente não prevê expressamente o caso de o Beneficiário ser entidade diversa do herdeiro e ter sido este quem matou a pessoa segura.
2- Aplica-se por isso, e atendendo à data da celebração do contrato de seguro (2003) e à data da morte (2007), o Cód. Comercial.
3- No art°. 458, n°. 1 do Cód. Comercial estabelece-se que o segurador não é obrigado a pagar a quantia segura se o segurado foi morto pelos seus herdeiros. O estatuído nesse n°. 1 só não é aplicável ao seguro de vida contratado por terceiro (§ único do art°. 458).
4- No caso sub judice o seguro não foi contratado por terceiro, pelo que opera a exclusão do n°. 1 do art°. 458º, não devendo a recorrente ser obrigada a pagar qualquer quantia.
5- A exclusão é oponível ao Beneficiário designado (BCP) ainda que este seja pessoa diversa do herdeiro homicida.
6- A declaração de indignidade sucessória da homicida não a exclui da categoria ou qualificação de herdeiro mas é tão só uma causa especial de incapacidade sucessória.
7- A exclusão prevista no art°. 458º baseia-se em princípios de moralidade e de ordem pública, visando não só preservar a essência do Seguro (o que se garante são eventos aleatórios, não intencionais) mas também prevenir actos criminosos e benefícios ilegítimos.
8- A interpretação atrás feita é a que melhor se coaduna com a letra e com o espírito do art°. 458º do Cód. Comercial, em especial do seu n°. 1.
9- Mas além disso, no presente caso, um qualquer pagamento ao Banco seria clamorosamente imoral.
Com efeito,
10- Dado que ambos os cônjuges se constituíram devedores ao Banco do empréstimo concedido, dado que a propriedade do imóvel a que o mútuo se refere a ambos pertencia (e pertence), dado que o mútuo ainda não está pago, se o segurador (a recorrente) fizer algum pagamento ao Banco isso iria beneficiar directamente a homicida DD pois quanto menor for o montante a pagar ao Banco (enquanto mutuária), menor a sua obrigação e maior o seu benefício.
11- Não foi bem interpretado e aplicado o art°. 458 do Cód. Comercial, pelo que deve a, aliás douta, sentença ser revogada, decidindo-se que por força do estabelecido no n°. 1 do art°. 458º a recorrente não está obrigada a pagar a quantia segura.
Sem prejuízo:
12- Não está provado, nem foi sequer alegado pelo autor, que aquando da comunicação / interpelação à recorrente o BCP indicou, de forma fundamentada, o valor em dívida à data do falecimento do segurado.
13- Tal especificação era indispensável pois nos termos da apólice o montante a pagar ao Banco não seria necessariamente o limite máximo do capital (50.000,00 €) mas sim o valor em dívida à data do falecimento, que podia ser igual, superior ou inferior ao capital.
14- Assim, o eventual crédito do BCP sobre a recorrente é ilíquido.
15- Nos termos do n°. 3 do art°. 806 do Cód. Civil se o crédito for ilíquido não há mora enquanto se não tornar líquido. Isto tenha havido ou não interpelação, como decorre dos nrs. 1 e 2 desse artigo.
16- Não se verifica, pois, mora da recorrente relativamente ao valor eventualmente a pagar ao BCP.
17- Tão - pouco o autor interpelou a recorrente para pagar, indicando qual o valor em dívida ao Banco e qual o remanescente que lhe seria devido.
18- Não se verifica, pois, mora da recorrente relativamente ao valor eventualmente a pagar ao autor.
19- Houve má interpretação e aplicação do art°. 806 do Cód. Civil por parte da Meritíssima juiz a quo.
Para além disso
20- Se o BCP, tendo recebido até agora as prestações devidas pelo empréstimo, viesse a receber o capital seguro (ou parte dele) mais juros sobre o capital, tal constituiria um enriquecimento sem causa, vedado pelo art°. 473º do Cód. Civil.
21- A Meritíssima juiz a quo não levou em conta, devendo fazê-lo, o art°. 473º do Cód. Civil.
22- Deve por isso -e sem prejuízo do alegado acima- ser revogada a sentença na parte dos juros decidindo-se que os mesmos não são devidos ao BCP, nem ao autor, enquanto não forem tornados líquidos os respectivos eventuais créditos
Contra alegou o Recorrido para, de forma motivada, pugnar pela confirmação da sentença.
Ora, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
São duas as questões suscitadas na revista:
A exclusão do risco e a extinção da obrigação da ré seguradora.
A condenação em juros.

II – Apreciando:
A – Em primeiro lugar enunciam-se os factos dados como provados, sem qualquer oposição das partes na contenda:
1. O autor encontra-se representado por BB, seu avô paterno, no âmbito do exercício do poder paternal que lhe foi conferido por sentença proferida nos autos n.º 307/07.06TMLSB, que correram termos pela 2ª Secção do 3º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Lisboa;
2. No dia 20 de Janeiro de 2007, faleceu, em Lisboa, EE, pai do autor, casado que foi em segundas núpcias de ambos, com DD , sendo esta e o A. os únicos herdeiros do falecido e não tendo este deixado testamento ou qualquer outra disposição de última vontade (conforme escritura de habilitação de herdeiros, junta a fls. 20 a 22 );
3. EE, em 12 de Maio 2003, celebrou com a ré, então denominada G...., S.A.”, um contrato denominado de seguro de vida grupo, com o número de apólice 00000 da P....., no qual figurava, como pessoa segura, o referido EE, com o nº 00000, o que fez no âmbito de um contrato de mútuo com hipoteca celebrado com o Banco Comercial Português, SA;
4. Tal seguro cobria a morte ou invalidez total ou permanente do referido EE, no valor de 50.000,00€;
5. Previu-se ainda no contrato em causa que “O beneficiário deste seguro é a favor do Banco Comercial Português, SA.” e o o capital seguro “… quer em caso de falecimento, quer em caso de invalidez da pessoa segura, constatada no âmbito desta apólice, será liquidado ao beneficiário acima indicado, até ao valor da dívida à data do falecimento ou da invalidez, e no montante máximo até ao valor do capital seguro; se houver remanescente, este será liquidado em caso de invalidez à pessoa segura ou em caso de falecimento, aos beneficiários indicados na proposta de adesão” (cfr. documento de fls. 23 cujo teor se reproduz);
6. Em 15 de Setembro de 2009, BB, representante legal do autor, entregou à ré uma carta, nos termos da qual solicitou informações relativas ao cumprimento do referido contrato de seguro;
7. Por carta de 22 de Setembro de 2009, a ré respondeu referindo que o assunto estava, para ela, encerrado, conforme missiva que enviara ao BCP em 18 de Dezembro de 2007 e cuja cópia entregou ao referido BB;
8. Desta carta resulta que o BCP interpelou a ré, para o cumprimento do contrato de seguro, em 5 de Dezembro de 2007, tendo a ré comunicado, por via daquela carta, ao BCP, a confirmação da existência da apólice antes descrita, bem como, o respectivo limite de 50.000,00€, negando-se a efectuar o pagamento alegando que “…tendo em atenção os factos notórios que rodearam o falecimento do V. cliente (e nosso segurado) Senhor Eng. EE e o disposto nº 1 in fine do artigo 458º do Código Comercial, nenhuma obrigação cabe a esta Seguradora de pagar qualquer quantia abrangida pela citada apólice” (cfr. doc. de fls. 37);
9. Por carta de 13 de Outubro de 2009, BB, representante legal do autor, entregou à ré uma carta, contestando a posição da ré e renovando a reclamação de pagamento do capital seguro de 50.000,00€ (cfr. doc. de fls. 38);
10. Por carta de 15 de Outubro de 2009, voltou a ré a negar-se ao cumprimento (doc. de fls. 39);
11. Por carta de 27 de Outubro de 2009, o autor, através do seu representante legal, contestou a argumentação da ré e insistiu no cumprimento do contrato de seguro (doc. de fls. 40);
12. Por carta de 9 de Novembro de 2009, a ré confirmou a correspondência anterior (doc. de fls. 41);
13. No processo crime instaurado em resultado da morte do segurado EE, a mãe do autor e cônjuge do falecido, DD, veio a ser condenada como co-autora, na forma consumada, do crime de homicídio qualificado praticado contra o pai do autor e, ao tempo, seu marido, pelo Acórdão da 6.ª Vara Criminal de Lisboa, de 3 de Novembro de 2008, no processo registado com o número 58/07.1PRLSB, exarado a folhas 2955 a 3127, na pena de 23 anos de prisão (laudas 2 a 174 da cópia da certidão junta como doc. de fls. 56 a 230 e cujo teor se reproduz);
14. A decisão foi confirmada pelo Ac. da Relação de Lisboa, datado de 29/01/2009, e a pena em causa veio a ser reduzida para uma pena de 21 anos de prisão, nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2009, exarado a folhas 3595 a 3638 daqueles autos e confirmado pelos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 3669 e 4152 a 4153 dos mesmos autos, e pela Decisão Sumária do Tribunal Constitucional de 6.08.2009, de folhas 4177 a 4180 dos mesmos autos, e do Acórdão N.º 457/2009, de 14.09.2009, do mesmo Tribunal Constitucional, de folhas 4201 a 4205 dos mesmos autos (cfr. doc. de fls. 232 a 353 cujo teor se reproduz);
15. O Acórdão condenatório transitou em julgado, em 24 de Junho de 2009 e, com a prolação do Acórdão n.º 457/2009 do Tribunal Constitucional, estão esgotadas todas as instâncias de recurso por parte da arguida, mãe do A.;
16. O pai do autor, EE faleceu em consequência de homicídio doloso consumado e praticado, em co-autoria com outros dois arguidos, pela mãe do autor e cônjuge do autor da sucessão e segurado na ré;
17. O autor instaurou acção de indignidade sucessória, que correu termos na 3ª Vara Cível de Lisboa, 3ª Secção, com o nº 6459/09.3TVLSB, no âmbito do qual por sentença transitada a 31/05/2010, foi declarada a indignidade sucessória de DD e, consequentemente a incapacidade sucessória da mesma, como herdeira legitimária de EE, e ainda a declaração da nulidade da escritura na parte relativa à menção da DD como herdeira do falecido EE (nos termos da decisão de fls. 427 a 429 cujo teor se reproduz);
18. EE assinou a proposta relativa ao contrato de seguro celebrado com a ré e aludida, junta a fls. 373 a 376 cujo teor se reproduz;
19. Ao contrato de seguro em causa aplicam-se as condições gerais juntas a fls. 378 a 383 cujo teor se dá por integralmente reproduzido, figurando além do mais que para efeitos desse contrato se considera “c) Pessoa segura – A pessoa sujeita aos riscos que, nos termos acordados, são objecto deste contrato; d) Beneficiário – A pessoa ou a entidade a favor da qual é celebrado o contrato;”bem como no artº 3º 3.2 a): “Ficam excluídos da cobertura deste seguro os seguintes riscos: a) Falecimento em consequência de crime de que o Beneficiário seja autor material ou moral, ou de que tenha sido cúmplice (…)”;
20. A propriedade sobre o imóvel objecto da hipoteca e referente ao mútuo celebrado com o BCP, cuja escritura se encontra junta a fls. 25 a 34, encontra-se registado a favor de EE e DD (cfr. certidão junta a fls. 384 a 390).

B – Vejamos o direito:
B1 - O contrato de seguros pode definir--se como aquele pelo qual uma pessoa singular ou colectiva (tomador de seguro) transfere para uma empresa especialmente habilitada (segurador) um determinado risco económico próprio ou alheio, obrigando-se aquela ao o pagamento de determinada contrapartida (prémio) e esta a efectuar determinada prestação pecuniária, em caso de ocorrência do evento aleatório convencionado (sinistro) (Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 684).
Configura-se tal contrato por norma como contrato de adesão, dada a circunstância de suas cláusulas serem prévia e unilateralmente elaboradas e subscritas sem prévia negociação individual, integrando documento escrito que lhe confere forma – apólice – onde se define o objecto do seguro, os riscos cobertos, a vigência do contrato, a quantia segurada e o prémio ajustado.
No vertente caso, estamos perante um contrato que se insere no ramo vida pois constitui sua finalidade a cobertura de riscos relativos à invalidez e à vida do respectivo segurado (artº123º do RGAS) que, como vem aceite, se regula pelas estipulações da respectiva apólice, não proibidas pela lei e na sua falta e insuficiência pelas disposições do Código Comercial (artº427º).
E, não obstante se afirmar que foi celebrado pelo falecido EE e pela Ré, trata-se de um seguro de grupo, celebrado entre o BCP e a Ré ao qual aderiu o mencionado falecido, como resulta dos factos apurados.
Entende-se o seguro de grupo como aquele que é celebrado relativamente a um conjunto de pessoas ligadas entre si e ao tomador do seguro por um vínculo e interesse comum (José Vasques, Contrato de Seguro, 48) que, aqui, se materializou na obtenção de crédito hipotecário junto do mesmo tomador.
Na verdade, insere-se ele, no caso em presença, num complexo de relações contratuais, desenhado no quadro do regime legal do crédito à habitação própria constante do DL nº349/98 de 11.11, sucessivamente alterado, em cujo artº23º se dispunha que “ os empréstimos serão garantidos por hipoteca da habitação adquirida… (nº1). Em reforço da garantia prevista no número anterior poderá ser constituído seguro de vida, do mutuário e do cônjuge, de valor não inferior ao montante do empréstimo…” (nº2), assim se generalizando a associação à concessão de crédito à habitação da garantia da hipoteca do imóvel e do seguro de vida do mutuário (ou do mutuário e seu cônjuge), de valor não inferior ao montante do empréstimo.
Trata-se de seguro de grupo contributivo em que os mutuários daquele crédito são o grupo segurável (ligados entre si e ao tomador por esse vínculo e interesse comum), constituindo o leque de pessoas seguras, cujo risco de vida, saúde ou integridade física foi aceite pela seguradora após a adesão de cada uma delas ao seguro de grupo mediante a contribuição no todo ou em parte do respectivo prémio e o Banco, concessionário daquele mesmo crédito é, simultaneamente, tomador do seguro (responsável pelo pagamento do prémio) e seu beneficiário irrevogável, “até ao limite do capital seguro, do montante em dívida…revertendo para ele a prestação debitória da seguradora decorrente do contrato – do eventual excesso do capital seguro sobre o montante devido ao banco serão beneficiários, na falta de designação expressa, os herdeiros da pessoa segura em caso de morte…” (Calvão da Silva, Apólice Vida Risco…, RLJ, nº3942, ano 136º, pág. 158 e ss e artº1º, al b), g) h) e 4º do DL 176/95 de 26.07).
Em suma, como escreve este mesmo Autor na citada Revista, pág 161, “ a instituição de crédito celebra um seguro de grupo com a seguradora – normalmente, a ou uma seguradora que integra o mesmo conglomerado financeiro – e quando concede um empréstimo “pede” ao mutuário que declare a sua adesão a esse seguro de grupo a fim de se precaver contra o risco de morte ou invalidez do seu cliente e garantir o reembolso do crédito, melhor, do saldo (capital, juros e outros encargos)”.
B2 – Pretende a Recorrente que está desobrigada do pagamento da quantia segura em consequência da exclusão do risco, resultante da circunstância de o homicídio do Segurado ter sido perpetrado, em comparticipação, pelo seu cônjuge.
O que a este respeito se preveniu no clausulado do contrato consta do seu artº 3º…3.2 a): “Ficam excluídos da cobertura deste seguro os seguintes riscos: a) Falecimento em consequência de crime de que o Beneficiário seja autor material ou moral, ou de que tenha sido cúmplice”
Por beneficiário segundo o mesmo clausulado há-de entender-se a pessoa ou a entidade a favor da qual é celebrado o contrato, isto é, e como se viu acima, o Banco credor do mútuo hipotecário – o BCP que nada teve a ver com o referido homicídio.
Não será, pois, pelo aludido clausulado que se justificará tal exclusão.
Fundamenta-a a Recorrente no nº1 do artº458º do Código Comercial onde se prescreve que o segurador não é obrigado a pagar a quantia segura se o segurado foi morto pelos seus herdeiros, norma que, segundo a mesma Recorrente teria o sentido e alcance de ser oponível ao próprio beneficiário do contrato ou aos herdeiros que não tiveram qualquer participação naquela morte.
Na sua completa redacção estatui-se naquele dispositivo:
“O segurador não é obrigado a pagar a quantia segura:
1.º Se a morte da pessoa cuja vida se segurou, é resultado de duelo, condenação judicial, suicídio voluntário, crime ou delito cometido pelo segurado, ou se este foi morto pelos seus herdeiros;
2.º Se aquele que reclama a indemnização foi autor ou cúmplice do crime da morte da pessoa, cuja vida se segurou.
§ único. A disposição do nº1 deste artigo não é aplicável ao seguro de vida contratado por terceiro.”
Explicam-se estes casos de exclusão do risco por imperativos de ordem pública pois não pode admitir-se que a existência do seguro de vida constitua um estímulo a práticas fraudulentas ou ao cometimento de crimes com vista a favorecimentos e que, no caso de cobertura da seguradora, serviriam para converter o contrato “num instrumento de dissolução de costumes” (Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 183).
Importa começar por dizer que tais imperativos justificam que a desvinculação da Seguradora, no caso da morte do segurado às mãos dos herdeiros que nos ocupa, apenas se estenda àquele ou àqueles que nela participaram. Como refere aquele Autor na obra referenciada, pág. 191, “num seguro contraído pelo pai a favor dos filhos não faz sentido que a morte daquele por um destes faça extinguir o direito dos restantes”, desde logo porque “é contrário à finalidade de previdência que caracteriza o contrato de seguro”.
Neste mesmo sentido escreve José Vasques que “o legislador não foi feliz na redacção desta exclusão…uma vez que no seu espírito, estaria desobrigar a seguradora de qualquer pagamento ao beneficiário homicida, mas prevalecer a obrigação quando o segurado fosse morto pelos herdeiros quando não fossem estes os beneficiários – o que, aliás, resulta do nº2” (Contrato de Seguro, 1999, 359) da norma atrás reproduzida.
Temos, pois que a norma em análise não tem o sentido e alcance que a Recorrente lhe confere, restringindo a sua acção, quando o segurado é morto pelos seus herdeiros, aos casos em que estes são os beneficiários da quantia segura à luz do contrato celebrado, características que o caso vertente não reproduz como se viu.
De qualquer modo, afigura-se-nos que a exclusão reclamada pela Recorrente não tem aplicação ao contrato firmado nos autos.
Caracterizámo-lo como de seguro de grupo cujas especificidades decorrem de uma relação “triangular”- assim apelidada no Acórdão deste Tribunal de 29.10.2009, proc nº2157/06, in Base de Dados da dgsi. pt – , originariamente, estruturada no acordo entre a Seguradora e o tomador do seguro que este estende e alarga a todos os interessados que manifestem vontade de a ele aderirem, sem que essa adesão “envolva nova e autónoma relação de seguro” ou implique que os respectivos aderentes sejam partes em tal contrato – cfr também o Acórdão deste Tribunal de 10.05.2007, proc nº07B1277 na referenciada Base de Dados.
Trata-se, portanto, de contrato realizado em nome próprio pelo respectivo tomador mas o interesse nele coberto pertence ao segurado aderente, considerado terceiro face a esse contrato-quadro (O Seguro de Vida…, Maria Inês Oliveira Martins, 86).
Nesta perspectiva, estamos perante o contrato sobre a vida de terceiro a que se refere o § único do citado artº458º à sombra do qual resultaria, assim, inviabilizada a aplicação a este, do nº1 desse mesmo dispositivo. Ou seja: de pé se havia de manter a obrigação da Segurador de pagar o montante segurado.
Alega ainda a Recorrente que, sendo obrigada a entregar a quantia segura ao tomador e beneficiário contratual (o Banco), a fim deste se pagar das prestações do mútuo ainda em falta “isso iria beneficiar directamente a homicida DD pois quanto menor for o montante a pagar ao Banco (enquanto mutuária), menor a sua obrigação e maior o seu benefício” o que seria imoral.
Esclareça-se que, por via da indignidade sucessória que lhe foi traçada por sentença judicial. a aludida homicida está impedida de beneficiar do hipotético remanescente do capital seguro (artº67º, 2032º, 1 e 2037º,1 do CC).
Cumpre dizer, também, e desde logo, por uma questão de rigor que os autos não facultam quaisquer elementos relativos à qualidade de mutuária da referida DD, assim como à medida de sua contribuição na liquidação das prestações desse contrato. Desconhece-se, também, por isso, se da sua total liquidação, por meio do capital do seguro algum benefício, ela vai colher…
Presumindo-se, todavia que isso possa suceder, não foi esse o propósito a que obedeceu a constituição do contrato de seguro em apreciação o qual no quadro da constelação de relações jurídicas travadas em torno do aludido mútuo, tinha por função, tal como a hipoteca, garantir o cumprimento deste perante o Banco credor.
Não se vislumbra, assim, imoralidade naquilo que é afinal o cumprimento, por banda da Recorrente, da obrigação de entregar a quantia segura, por si assumida em letra de forma quando subscreveu, na qualidade de Seguradora, o respectivo contrato de seguro, quando é certo, como se viu, não subsistir fundamento para a desvincular de tal cumprimento.
B3 – Questiona a Recorrente, por fim, a sentença recorrida no tocante à condenação no pagamento de juros moratórios, ora atacando a eficácia das interpelações de que foi alvo pelo credor BCP e pelo Autor dada a iliquidez de sua obrigação de pagar o capital seguro ora alegando que tal pagamento constituiria um enriquecimento sem causa “se o BCP, tendo recebido até agora as prestações devidas pelo empréstimo, viesse a receber o capital seguro (ou parte dele) mais juros sobre o capital”.
Diz-se ilíquida a obrigação cuja existência é certa, mas cujo montante ainda não foi fixado – A. Varela, Das Obrigações em Geral, II, 110, nota 1, 2ª ed.
Já vimos no tratamento do precedente tema do recurso que a obrigação do contrato de seguro em apreço é certa e, segundo os termos da convenção assumida no mesmo contrato de seguro o seu montante está determinado – 50.000 euros.
Flui desta verificação que, não sendo ilíquida a obrigação da Recorrente, e dado estarmos perante uma obrigação sem prazo fixo, se justificou a interpelação de que foi alvo (artº804º, 1 e 2, 805º,1 e 806º do CC). Acrescente-se, porém que a sua constituição em mora sempre a dispensaria, depois de, em resposta a essa interpelação, na sua comunicação transcrita no ponto oito da matéria de facto, acima enunciada, ter transmitido, de forma categórica e definitiva, ao mesmo credor que não tinha intenção de dar cabal cumprimento a essa mesma obrigação – cfr, neste sentido, Acórdão deste Tribunal de 28.02.1991, AJ, 15º/16º, 36.
São, assim, devidos os juros em apreciação cujo pagamento, ao contrário do alegado pela Recorrente, não conduz ao enriquecimento sem justa causa do Banco credor.
Desde logo porque lhe não falta justa causa (artº473º,1 do CC), pois assenta na mora do devedor, consequência do seu incumprimento culposo quando a prestação ainda era possível, fazendo-o incorrer na responsabilidade de reparar os danos que cause ao mesmo credor (citado artº804º).
Depois porque, ao contrário do que parece pretender a Recorrente, está por demonstrar que, após a morte do Segurado mutuário, tenham sido entregues ao BCP as prestações que se foram vencendo, relativas à liquidação do empréstimo, caindo por terra, necessariamente, a base factual do alegado enriquecimento.
B4 - Concluindo:
1 - No contrato de seguro de grupo destinado a garantir o pagamento de crédito à habitação, concedido por um banco no âmbito de um contrato de mútuo a ele associado, beneficiário do mesmo contrato é essa entidade financeira, devendo considerar-se terceiro face ao mesmo, o segurado que a ele adere.
2 – O homicídio doloso do segurado às mãos do herdeiro não exclui o risco nem desvincula a Seguradora face aos demais herdeiros que nele não tiveram qualquer participação.
3 – De qualquer modo, assumindo-se o contrato de seguro de grupo como seguro sobre a vida de terceiro, a Seguradora nunca ficaria desobrigada da entrega do capital seguro ao respectivo beneficiário, por efeito do disposto no artº458º, § único do Código Comercial.
4- Incorre em mora, obrigando-se à reparação dela decorrente, independentemente de interpelação, o devedor que, de forma categórica e definitiva, manifesta ao credor intenção de não cumprir.

III.
Termos em que, pelos fundamentos expostos se nega a revista e se confirma a sentença recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.


Lisboa, 5 de Maio de 2011

Martins de Sousa (Relator)
Gabriel Catarino
Sebastião Póvoas