Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4913/05.5TBNG.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ROCHA
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
DONO DA OBRA
PAGAMENTO
EMPREITEIRO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
DECLARAÇÃO EXPRESSA
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
RESOLUÇÃO DE NEGÓCIO
Data do Acordão: 02/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 51
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O contrato de empreitada é um contrato bilateral ou sinalagmático de que resultam prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra: a obrigação de executar a obra e a do pagamento do preço.

II - Ao contrato de empreitada aplicam-se as regras especiais para ele definidas nos arts. 1207.º e segs., mas também as normas gerais relativas aos contratos e às obrigações com elas compatíveis.

III - A excepção do não cumprimento do contrato, consagrada no art. 428.º do CC, é uma consequência natural dos contratos sinalagmáticos, pois, neles, cada uma das partes assume obrigações, tendo em vista as obrigações da outra parte, de sorte que se romperia o equilíbrio contratual, encarado pelas partes, se caso uma delas pudesse exigir da outra o cumprimento sem, por outro lado, ter cumprido o que se prestar a cumprir.

IV - No caso de incumprimento parcial, o alcance da excepção de não cumprimento do contrato deve ser proporcional à gravidade da inexecução, o que só poderá implicar uma recusa parcial por parte do credor; isto é, o credor poderá tão só suspender, parcial e proporcionalmente, a prestação, segundo o princípio da boa fé que deve presidir a toda a temática do cumprimento das obrigações.

V - O dono da obra, perante a apresentação pelo empreiteiro - no tempo acordado - de duas facturas respeitantes às primeiras quatro fases da obra (que no total tinha sete), não pode, pura e simplesmente, recusar-se a pagar qualquer quantia, baseado no facto - comprovado - de que alguns dos trabalhos facturados ainda não foram executados.

VI - O não cumprimento de qualquer obrigação é susceptível de desencadear, atento o efeito produzido, as situações de incumprimento definitivo ou de mora.

VII - Para constituir fundamento da resolução do contrato, o incumprimento culposo, equiparável à impossibilidade da prestação imputável ao devedor, tem de ser definitivo.

VIII - A mora, que pressupõe, ainda, a possibilidade, embora retardada, da prestação converte-se em incumprimento definitivo, quer mediante a perda (subsequente à mora) do interesse do credor, quer em resultado da inobservância do prazo suplementar ou peremptório que o credor fixe razoavelmente ao devedor relapso (prazo admonitório).

IX - Quando assim seja, a mora só se converte em não-cumprimento (definitivo) da obrigação (sem embargo de constituir imediatamente o devedor na necessidade de reparar os danos causados ao credor, por força do disposto no n.º 1 do art. 804.º) a partir do momento em que a prestação se não realiza dentro do prazo que, sob a cominação referida na lei, razoavelmente for fixado pelo credor.

X - Através da interpelação admonitória, opera-se, pois, também, a conversão da situação de mora em falta de cumprimento da obrigação, tendo especialmente em vista a resolução do contrato bilateral em que a obrigação se integra.

XI - A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente (art. 808.º, n.º 2), aferindo-se em função da utilidade que a prestação teria para o credor, embora atendendo a elementos capazes de serem valorados pelo comum das pessoas; há-de, assim, ser justificada segundo o critério da razoabilidade própria do comum das pessoas.

XII - A recusa (ou declaração) séria, certa, segura e antecipada de não cumprir (ou o comportamento inequívoco demonstrativo da vontade de não cumprir ou da impossibilidade antes do tempo de cumprir) equivale ao incumprimento (antes do termo), dispensando a interpelação admonitória.

XIII - A recusa pura e simples do autor-dono da obra em efectuar qualquer pagamento ao réu- empreiteiro, não obstante grande parte das obras relativas às quatro primeiras fases já se encontrar efectuada, apontando diversas razões que se mostraram totalmente infundadas - e apesar de ter conhecimento que o réu atravessava dificuldades financeiras -, inviabilizando qualquer outra solução para o litígio surgido, traduz um comportamento próprio de quem não quer ou não pode cumprir, possibilitando à contraparte a resolução válida do contrato sem precedência de interpelação admonitória.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1.
H... - Habitação Investimentos Imobiliários, Lda., propôs contra M...de S... T... - Construções, Lda., a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, pedindo o pagamento da quantia de € 43.875,00, relativa a danos causados pelo incumprimento de um contrato de empreitada celebrado entre ambos.

Citada, contestou a ré, negando a obrigação de pagar essa quantia e alegando que o segundo contrato que celebrou com a autora é modificável, por ser usurário, e que os contratos seguintes não devem ser atendidos, pois resolveu legalmente o primeiro contrato.
Mais pede que se declare nula ou se reduza a cláusula penal prevista no ponto 10º e, em sede de reconvenção, pede € 35.800,00 referente à obra que realizou e não lhe foi paga.

Saneado, instruído e julgado o processo, foi proferida sentença, que julgou improcedente a acção e parcialmente procedente a reconvenção, condenando a autora a pagar à ré a quantia de € 12.500,00, acrescida de IVA a 19% e juros a contar da notificação à autora do pedido reconvencional até integral pagamento.

Inconformada, a autora recorreu, ainda que sem êxito, para o Tribunal da Relação do Porto.

Ainda irresignada, pede revista.
Concluiu a alegação do recurso pela seguinte forma:
A recorrida incumpriu o contrato de empreitada celebrado com a recorrente, já que não respeitou o plano de execução dos trabalhos e não facturou os trabalhos de acordo com esse plano de execução.
Por isso, foi legítima a recusa da recorrente em pagar as duas facturas que lhe foram apresentadas, cujo teor dava como cumpridas as primeiras quatro fases da obra, o que não correspondia à realidade.
A recorrente fez valer validamente a excepção do não cumprimento do contrato, expressa na carta de fls. 79-80.
Sendo válida e legítima a excepção do não cumprimento do contrato por banda da recorrente, não era lícito à recorrida invocar a falta de pagamento que corporizava a dita excepção para declarar a resolução desse contrato de empreitada.
Ainda que não houvesse motivo para a recorrente fazer valer a excepção do não cumprimento, a falta de pagamento das ditas facturas gerava apenas a constituição da recorrente em mora.
Portanto, tal mora nunca poderia justificar a resolução do contrato declarada pela recorrida na carta de fls. 86-88.
Ainda que houvesse mora, nada nos autos permite concluir que a mesma se converteu em incumprimento definitivo.
Não há motivo para entender que a prestação se tivesse tornado impossível ou que a recorrida tivesse perdido o interesse na prestação, assim como não se mostra que a recorrida tivesse dirigido à recorrente uma interpelação admonitória.
Sendo infundada a resolução contratual declarada pela recorrida, fica esta sujeita a indemnizar a recorrente, nos termos e pelos montantes acima referidos, que ascendem a € 35.622,50.
Sem prejuízo disso, a conduta da recorrida, retirando da obra todos os materiais e maquinarias necessários à execução da empreitada, sempre configuraria um abandono da obra, sujeitando a recorrida ao dever de indemnizar, em termos análogos aos referidos em sede de resolução contratual ilegítima.
No valor a pagar pela recorrida à recorrente, a título de indemnização, deverá ser deduzida a quantia de € 12.500, que corresponde à avaliação dos trabalhos por esta realizada, operando-se a respectiva compensação, razão pela qual essa indemnização deverá quedar-se em € 23.122,50.
No caso vertente, face aos trabalhos realizados até ao momento em que emitiu as facturas, o mais que era lícito à recorrida era emitir uma factura que expressasse os trabalhos efectivamente realizados e liquidasse o seu valor, apresentando-a à recorrente.
Só em face do eventual incumprimento da recorrente, poderia a recorrida assumir a constituição daquela em mora, com as demais consequências legais.
Constitui abuso de direito não realizar trabalhos contratados e facturá-los como se tivessem sido realizados e pretender, mesmo assim, o respectivo pagamento, a pretexto de que, se não foram feitos os trabalhos facturados, foram feitos outros (mesmo que, contratualmente, de execução posterior aos omitidos).
Mostra-se violado o disposto nos arts. 428°, 762°, 798°, 804°, 808°, 1208º, 1211° e 1214°, nº1, do Código Civil.

Nas contra-alegações, a ré pronuncia-se pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.
Estão provados os seguintes factos:
a) A autora é uma empresa que se dedica à compra e venda de imóveis, construção de prédios para venda, investimentos e empreendimentos imobiliários.
b) A ré é uma empresa que se dedica à execução de obras de construção civil.
c) Autora e ré celebraram entre si, em 28.07.2004, um contrato que denominaram de «contrato de empreitada construção civil - pedreiro» onde a autora declara adjudicar à ré uma empreitada de construção civil de pedreiro de uma moradia unifamiliar de quatro frentes, pelo custo de € 49.000,00, fixo até final da obra, a pagar como consta no ponto 7°, sendo que ao montante de cada liquidação é deduzida a percentagem de 15% para constituição de «fundo de garantia», sendo ainda o IVA suportado em 50% por autora e ré, tudo conforme fls. 10 a 33, cujo teor se dá por reproduzido.
d) Autora e ré celebraram entre si, em 28.02.2005, um acordo que denominaram de «aditamento contrato de empreitada construção civil - pedreiro, outorgado em 28 de Julho de 2004» onde declaram alterar, por mútuo acordo, o custo da adjudicação, que passa a ser de € 28.000,00, passando a cláusula 6a do contrato referido em c) a referir a percentagem de 20%, alteram o modo de pagamento do custo de adjudicação, o IVA passa a ser pago pela ré e acrescentam 50 dias ao prazo de execução como, aí se refere, teria sido solicitado, sendo o prazo de execução máxima até 02.05.2005 já incluídos 30 dias de tolerância, tudo conforme fls. 50 a 53, cujo teor se dá por reproduzido.
e) A licença de construção foi emitida em 10.09.2004.
f) A colocação do contador da água ocorreu em 06.10.2004.
g) Na obra acima referida falta construir: no telhado - isolamento e ripas de madeira tratadas, telha, chaminés; no interior - parede para colocação de quadro eléctrico; quartos - zona de vestiário e estrutura para colocação de armário embutido; coretes, abrir ranhuras para colocação de tubos para aquecimento central e aspiração central; casa para armazenamento de gás e caldeira; caixas de alvenaria para águas pluviais e respectivas tampas e valas.
h) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 42 a 44 (cópia de carta datada de 21.10.2004, enviada pela autora à ré, onde comunica a falta de início das obras em tal data, o que lhe acarreta prejuízos, sendo fls. 43 cópia de registo datado de 21.10.2004 e fls. 44 aviso de recepção assinado em 25.10.2004.
i) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 45 e 46 (cópia de carta datada de 17.01.2005, enviada pela ré à autora, pedindo a prorrogação de prazo para conclusão dos trabalhos por 50 dias, sendo fls. 46 envelope com registo de 17.01.2005.
j) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 47 a 49 (cópia de carta datada de 25.01.2005, enviada pela autora à ré, em resposta à carta referida em i), onde aquela declara não aceder ao pedido de prorrogação de prazo, sendo fls. 48 cópia de aviso de recepção assinado em 27.01.2005 e 49 cópia de registo datado de 25.01.2005.
k) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 142 e 143 (cópia de carta datada de 28.01.2005, enviada pela ré à autora, em resposta à carta mencionada em j), onde a ré informa que o atraso no início das obras se deveu a que o terreno não tinha as medidas que constam no projecto e explica o andamento da obra, referindo que a autora não está a cumprir com o acordado, ao referir que só paga no dia 12.03.2005, data final do contrato.
l) Autora e ré celebraram entre si, em 28.02.2005, um acordo que denominaram de «contrato de empreitada construção civil obra de trolha - pintor e vedações», onde a autora declara adjudicar à ré as empreitadas de construção civil de trolha, pintor e vedações para a acima referida moradia, a iniciarem quando terminado o contrato referido c) e d), pelo custo de € 25.000,00, com IVA a suportar pela ré, com o prazo de execução de 150 dias, acrescido de 30 dias de tolerância, a contar de 03.05.2005, contando-se todos os dias, úteis ou não, haja ou não trabalho nestes dias, com «coima» diária de € 1.000,00 por cada dia de atraso, tudo conforme fls. 54 a 58, cujo teor se dá por reproduzido.
m) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 59 a 68 (documento denominado de «caderno de encargos obra de trolha pintor e vedações», onde se referem o tipo de obras a realizar, datado de 28.02.2005.
n) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 144 a 147 (cópias de cartas datadas de 14.03.2005 e 16.03.2005, enviadas pela ré à autora, onde declara remeter a primeira e segunda factura respeitantes às 1ª a 4a fases de trabalho, sendo fls. 145 e os respectivos registos e avisos de recepção.
o) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 70 a 72 (cópia de carta datada de 18.03.2005, enviada pela autora à ré, onde declara devolver as facturas nºs 098, de 08.03.2003, e 099, de 15.03.2005, por não ter sido considerado o Fundo de Garantia, sendo fls. 71 e 72 o respectivo registo e aviso de recepção.
p) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 73 e 76 (cópias de facturas nºs 98 e 99, respectivamente, emitidas pela ré, com data de 08.03.2005 e 15.03.2005, com vencimento em 23.03.2005 e 30.03.2005, nos valores de € 9.600,00 e € 3.200,00, acrescido de IVA. a 19%).
q) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 79 a 81 (cópia de carta enviada pelo Dr. J...P..., em nome da autora, à ré, datada de 08.04.2005, onde declara que se mantêm os motivos que levaram à devolução das facturas referidas em p), por o valor facturado ter de sofrer dedução de 20% para constituição de Fundo de Garantia, por o IVA ser a cargo da ré e por as respectivas fases de trabalho em causa não estarem concluídas, referindo ainda que constata a autora que, desde 01.04, há retirada de materiais de obra, o que evidencia abandono dos trabalhos; fls. 81 é cópia do registo do envio dessa carta, datado de 08.04.2005.
r) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 86 a 89 (cópia de carta datada de 11.04.2005, enviada pela ré à autora onde comunica a falta de pagamento das facturas referidas em p), informando-a de que incorreu em incumprimento, refere que o representante da autora, J...O..., confronta os trabalhadores e encarregado da obra com declarações ofensivas, considera que não tem responsabilidade em determinados aspectos da obra - certificado de betão armado, alteração de tijolo usado -, e declaram que resolvem o contrato de empreitada celebrado em 28.07.2004 e aditamento de 28.02.2005 com justa causa, devido ao incumprimento contratual da autora, com efeitos imediatos; fls. 89 consiste no envelope de tal carta com registo de 11.04.2005.
s) No dia 14.09.2004, ocorreu reunião de início de obra entre autora e ré.
t) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 150 (cópia de carta enviada pela autora à ré, datada de 31.03.2005, onde comunica que foi verificado incumprimento referente aos elementos estruturais - betão armado, aconselhando a ré a não dar continuidade à obra sem ser elaborado projecto com indicação para a sua construção.
u) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 151 (cópia de carta enviada pela autora à ré, datada de 31.03.2005, onde solicita o certificado de betão armado da classe betão B20).
v) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 152 (cópia de carta enviada pela autora à ré, datada de 31.03.2005, onde comunica que foi verificado incumprimento referente a tijolo colocado.
x) Dá-se por reproduzido o teor de fls. 150 (cópia de carta enviada pela autora à ré, datada de 31.03.2005, onde comunica que foi verificado que a ré tem feito trabalhos ao Sábado e para demonstrarem a existência da legalidade desse procedimento com respectivo seguro de acidentes de trabalho).
y) A colocação do contador de electricidade e ligação de fornecimento de energia ocorreu em 11.10.2004.
z) O acordo referido em d) surge do encontro de vontades entre autora e ré, tendo esta pedido àquela uma prorrogação no prazo para conclusão de obras, o que influenciou a celebração desse acordo.
aa) A ré retirou da obra contentor, ferramentas e, em 08.04.2005, retirou da obra a grua, não mais voltando a realizar trabalhos nessa mesma obra.
bb) Nessas datas, faltava proceder ao isolamento e construir parede de tijolo externa em redor de toda a obra da placa do 1° andar para cima, construir caixas de estores e realizar remates às janelas.
cc) Faltava ainda construir parte de um muro do lado esquerdo e o muro da parte da frente da obra, na casa de banho do 1º andar faltava construir uma parede e na cozinha/copa faltava construir a caixa de estores e uma parede para criar uma área de arrumos com prateleiras.
dd) Na garagem faltava encher o chão em pelo menos 1 m2.
ee) Nos anexos falta construir a parede da frente em tijolo, divisões internas, colocar placa, chão e isolamento em poliuterano extrudido e laca de cobertura do mesmo.
ff) A ré realizou trabalhos na obra.
gg) A autora, para finalizar os trabalhos de pedreiro não realizados pela ré, gastou € 15.500,00, acrescidos de 50% do valor do IVA.
hh) Por força da retirada da obra por parte da ré, a autora teve de procurar novos empreiteiros para finalizar a obra.
ii) A autora, para realizar obras nas artes de trolha e pintor, pagou € 35.000,00, acrescidos de IVA.
jj) A ré sabia e concordou em que, após 08.04.2005, o livro da obra fosse retido pelo engenheiro responsável pela coordenação técnica da obra.
kk) Dias após a reunião referida em s), a ré, ao implantar a mesma, constatou que faltavam cerca de 0,25 m de afastamento em relação ao lote vizinho, tendo a autora ficado de encontrar solução para tal questão.
ll) Em 09.11.2004, o lote tinha as dimensões corrigidas.
mm) Enquanto não fosse solucionado o mencionado em kk), a Ré não pôde iniciar os trabalhos relativos à colocação das fundações em betão armado, tendo realizado somente trabalhos de escavação para adiantar a obra.
nn) A ré permitiu que o coordenador técnico da obra ficasse com o livro da obra após 08.04.2005.
oo) A ré atravessava dificuldades financeiras, o que a autora sabia.
pp) Até 08.04.2005, a ré procedeu ao desaterro e montagem do estaleiro.
qq) Até ao dia 08.04.2005, a ré efectuou as divisões da cave em paredes duplas, divisões exteriores em paredes duplas, ceresitou as paredes na cave, colocou tubos de drenagem ao redor da cave, no interior e colocou tela pitonada antes de encostar terra.
rr) Construi as paredes exteriores e divisórias do r/c.
ss) Construiu divisões e a cobertura do 1º andar.
tt) Construiu, na arte de pedreiro, o alpendre.
uu) Construiu fundações, paredes interiores e parte de fundações dos muros de vedação dos anexos.
vv) A ré não realizou na obra, no 1° andar, uma parede exterior com tijolo de 0,15 metros, não isolou caixas de ar com poliuterano extrudido, não construiu palas para execução de caixas de estores e respectivos remates.
xx) Não foram construídos pátios e rampa nem se cimentou em grosso.
yy) A questão referente a cerca de 0,25 m de afastamento em relação ao lote vizinho referida em kk) ficou solucionada antes do dia 09.11.2004.

3. O Direito.
Tendo em conta as conclusões da alegação do recurso, as questões a dilucidar são as seguintes:
A recorrente fez valer validamente a excepção do não cumprimento do contrato, expressa na carta de fls. 79-80?
Sendo válida e legítima a excepção do não cumprimento do contrato por banda da recorrente, não era lícito à recorrida invocar a falta de pagamento que corporizava a dita excepção para declarar a resolução desse contrato de empreitada?
Ainda que não houvesse motivo para a recorrente fazer valer a excepção do não cumprimento, a falta de pagamento das ditas facturas gerava apenas a constituição da recorrente em mora?
Ainda que houvesse mora, nada nos autos permite concluir que a mesma se converteu em incumprimento definitivo?
A conduta da ré, retirando da obra todos os materiais e maquinarias necessários à execução da empreitada, sempre configuraria um abandono da obra, sujeitando a recorrida ao dever de indemnizar, em termos análogos aos referidos em sede de resolução contratual ilegítima?
Constitui abuso de direito não realizar trabalhos contratados e facturá-los como se tivessem sido realizados e pretender, mesmo assim, o respectivo pagamento, a pretexto de que, se não foram feitos os trabalhos facturados, foram feitos outros (mesmo que, contratualmente, de execução posterior aos omitidos)?

Não existe qualquer discrepância nos autos sobre a qualificação do negócio jurídico firmado entre as partes.
Esse contrato foi qualificado pelas instâncias, sem oposição das partes, como de empreitada.
É essa, justamente, a espécie desenhada pelos factos provados.

O art. 1207º do C.Civil (diploma a que pertencerão as demais disposições legais a citar sem menção em contrário) define a empreitada como o contrato pela qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.
O contrato de empreitada é, pois, um contrato bilateral ou sinalagmático de que resultam prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra: a obrigação de executar a obra e a do pagamento do preço.
Ao contrato de empreitada aplicam-se as regras especiais para ele definidas nos arts. 1207º e seguintes, mas também as normas gerais relativas aos contratos e às obrigações com elas compatíveis (v. Pedro Martinez, in Cumprimento Defeituoso, em especial na compra e venda e na empreitada, 1994, pag. 302).
O empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado e sem vícios que reduzam ou excluam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato - art. 1208º.

A excepção do não cumprimento do contrato, consagrada no art. 428º, é uma consequência natural dos contratos sinalagmáticos, pois, neles, cada uma das partes assume obrigações, tendo em vista as obrigações da outra parte, de sorte que se romperia o equilíbrio contratual, encarado pelas partes, se caso uma delas pudesse exigir da outra o cumprimento sem, por outro lado, ter cumprido o que se prestar a cumprir.
A excepção de inadimplência corresponde a uma concretização do princípio da boa fé, constituindo um meio de compelir os contraentes ao cumprimento do contrato e de evitar resultados contraditórios com o equilíbrio ou equivalência das prestações que caracteriza o contrato bilateral.
Por isso, ela vigora, não só quando a outra parte não efectua a sua prestação, porque não quer, mas também quando ela a não realiza ou não a oferece, porque não pode e vale tanto para o caso de falta integral do cumprimento, como para o de cumprimento parcial ou defeituoso, desde que a sua invocação não contrarie o princípio geral da boa fé consagrado nos arts. 227º e 762º, nº 2, (Pires de Lima e Antunes Varela, C.C.Anotado, vol. I, pag. 406).
Apesar da lei apenas prever a hipótese de não haver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, entende-se, comummente, que a excepção pode ser invocada, ainda que haja vencimentos diferentes, por aquele dos contraentes cuja prestação deva ser feita depois da do outro, só não podendo opô-la o contraente que devia cumprir primeiro (v. Vaz Serra, RLJ, 108º-155 e Antunes Varela, Obrigações, vol. I, 4ª ed., pag. 319).
A excepção “non (e non rite) adimpleti contractus” tem sido qualificada uniformemente com excepção dilatória de direito material ou substancial (v. Alberto dos Reis, C.P.Civil Anotado, III, pag. 80 e José João Abrantes, A Excepção de não cumprimento, pag. 127).
É excepção material ou de direito material, porque fundada em razões de direito substantivo; é dilatória, porque não exclui definitivamente o direito do autor, apenas o paralisa temporariamente, o retarda.
Sendo um meio de conservação do equilíbrio contratual dos contratos bilaterais, não tem nem podia ter carácter sancionatório.
Como escreve Menezes Cordeiro, a exceptio visa salvaguardar até ao fim um sinalagma funcional: não tem um sentido positivo, mas tão só o escopo de garantir o sentido inicial imprimido ao contrato pelas partes (C.J., XII, tomo 4º, pag. 46).
Esta, como as demais excepções materiais dilatórias, apesar de produzirem um efeito retardador (à semelhança das excepções dilatórias processuais), conduzem (ao contrário destas) à absolvição do pedido.
Para além disso, só opera se invocada, sendo vedado ao tribunal o seu conhecimento oficioso (cfr. Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária”, pag. 334).

Posto isto, atentemos no caso em apreço nestes autos.

A autora recusou o pagamento da 1ª e 2a facturas, respeitantes às 1ª a 4a fases de trabalho, pelas seguintes razões: o valor facturado teria de sofrer a dedução de 20% para constituição de Fundo de Garantia; o IVA teria de ser suportado pela ré; as fases de trabalho a que as facturas diziam respeito ainda não estavam concluídas e, desde 1 de Abril, que a ré retirava materiais da obra, o que evidenciava abandono dos trabalhos.
As instâncias não consideraram que qualquer uma dessas razões constituísse fundamento legítimo para o não pagamento das facturas.

No recurso de revista, deixando cair alguns dos fundamentos invocados, insiste, porém, em que lhe assistia o direito de não pagar as facturas, por não estarem ainda concluídas as fases da obra a que as mesmas diziam respeito.

Convocando a factualidade assente, temos que, em carta datada de 14.03.2005, a ré enviou à autora a 1ª factura (número 98), relativa às 1ª, 2ª e 3ª fases de trabalhos, no valor de € 11.800,00 e, por carta datada de 16.03.2005, enviou a 2ª factura (número 99), relativa à 4ª.
De acordo com o estabelecido na cláusula 7ª do contrato de empreitada, estavam previstas 6 fases até à conclusão da obra, assim descritas:
1ª fase: desde o início da empreitada até à execução da primeira placa, com crescimento de todas as paredes do exterior e todo o isolamento previsto, paredes interiores, divisões, chão, poço de saneamento, etc.
2ª fase: desde a execução da primeira placa até à segunda placa, com crescimento de todas as paredes do exterior, interior, divisões, alpendre, etc.
3ª fase: desde a execução da segunda placa até à terceira placa, com crescimento de todas as paredes do exterior, interior, divisões, etc.
4ª fase: desde a execução da terceira placa até à placa de cobertura, com crescimento de todas as paredes do exterior, interior, clarabóia(s), chaminés conforme projectos, também solicitadas pelo picheleiro, e do fogão de sala, etc.
5ª fase: execução do anexo, arrumo(s), barbecue, lavandaria, com crescimento de todas as paredes do exterior, interior, divisões, etc.
6ª e última fase: muros de todo o exterior, passeios, ranhuras, valas, para todas as artes, caixas para águas pluviais, saneamento e gás, tantas quantas forem necessárias, poço de águas pluviais, escadas, grelhas para águas pluviais. Tudo de acordo com os projectos de arquitectura, especialidades e conforme todos os cadernos de encargos, ou seja, obra(s) dada(s) como concluída(s) de pedreiro e aceite pelo primeiro outorgante, e pela direcção técnica, etc.

Os preços inicialmente acordados para cada uma das fases foram: € 10.000,00, para a lª; € 5.000,00 para cada uma das 2ª, 3ª e 4ª fases; € 9.500,00 para a 5ª fase; e € 14.500,00 para a 6ª fase.
O pagamento seria efectuado pela dona da obra nos oito dias seguintes posteriores à entrega da(s) factura(s) à Direcção Técnica ou à Autora, após conclusão das respectivas fases de construção, sendo esse prazo alargado para 15 dias na última fase.

Posteriormente, no aditamento de 28.02.2005, os preços referentes a cada uma das fases passaram a ser os seguintes: € 4.000, 00, para cada uma das 1ª à 4ª fases; € 5.600,00, para a 5ª fase; e € 6.400,00, para a 6ª fase.
Nesse aditamento, o prazo de pagamento das facturas foi também estendido para l5 dias para as 1ª, 2ª e 3ª fases, sendo o das 4ª e 5ª fases de acordo com o plano de trabalhos e pagamento, e a última fase nos 30 dias seguintes à conclusão da obra.

Decorre, ainda, dos factos provados que a empreiteira não executou alguns trabalhos das fases em relação às quais pediu o pagamento.
Assim, não realizou o isolamento nem construiu a parede de tijolo externa em redor de toda a obra da placa do 1° andar para cima e, na casa de banho do 1° andar, não construiu uma parede.

A pergunta que se coloca é, então, esta: deveria a autora, em face do programa contratual, pagar as facturas apresentadas pela ré, apesar da sua desconformidade com a realidade?

Diz-nos José João Abrantes (ob. cit., pags. 105 e 110): “É manifesto que quando uma parte invoca uma ofensa mínima ao contrato, para deixar de cumprir por completo…se está perante um abuso de direito de não cumprir, pois assim se frustram os princípios de equilíbrio e equivalência, que estão na base de todos os contratos sinalagmáticos.
… … …
O alcance do nosso meio de defesa deve ser proporcionado à gravidade da inexecução. Se não é justo ficar a parte que recebe um cumprimento parcial ou defeituoso impedida de alegar a excepção, também o não é responder a uma falta insignificante do ponto de vista da economia contratual com a recusa total da sua prestação. Sabido ser o equilíbrio sinalagmático o elemento caracterizador essencial da relação contratual em causa, a suspensão da prestação deve ser considerada legítima «na quantidade necessária para restabelecer o equilíbrio das prestações ainda por cumprir, as quais ficariam novamente sujeitas à regra do cumprimento simultâneo».
A parte da prestação recusada pelo excipiente deve ser proporcional à parte ainda não executada pelo contraente faltoso”.

Também Menezes Cordeiro, citado por aquele Autor, entende que a excepção de contrato não cumprido «funciona quando se tenha recebido apenas uma prestação incompleta ou inadequada, apenas como limite, induzido da boa fé face a uma falta pouco significativa», podendo o desrespeito por esse limite «provocar um abuso de direito. Assim sucede quando uma pessoa recuse uma prestação vital para o credor, a pretexto de um pequeno atraso na contraprestação, quando nada leve a fazer crer a sua intenção de não cumprir, em definitivo».

Seguindo esta doutrina, que vem sendo, de resto, sufragada pelos nossos tribunais superiores, e tendo em atenção os factos assentes, a atitude da autora, ao recusar a totalidade do preço relativo às quatro primeiras fases da obra, quando o que faltava fazer era incomparavelmente menos do que aquilo que havia já sido feito, não pode merecer acolhimento.
No caso de incumprimento parcial, o alcance da excepção de não cumprimento do contrato deve ser proporcional à gravidade da inexecução, o que só poderia implicar uma recusa parcial por parte da recorrente.
Isto é, a autora podia tão só suspender, parcial e proporcionalmente, a prestação, segundo o princípio da boa fé que deve presidir a toda a temática do cumprimento das obrigações.
A boa fé no cumprimento dos contratos traduz-se no dever de agir segundo um comportamento de lealdade e correcção, que visa contribuir para a realização dos interesses legítimos que as partes pretendem obter com a celebração do contrato.
“ A boa fé não contemporiza com cumprimentos formais; exige uma atitude metodológica particular perante a realidade jurídica, a concretização material dos escopos visados. Este aspecto releva no domínio dos deveres acessórios, em boa parte destinados a promover a realização material das condutas devidas, sem frustrar o fim do credor e sem agravar a vinculação do devedor” (Menezes Cordeiro, A Boa Fé no Direito Civil, vol. I, pag. 649).

Não tendo recebido qualquer quantia pelos trabalhos realizados, a ré acabou por, em 11.4.2005, resolver o contrato.

Alega a autora que mesmo que não houvesse motivo para fazer valer a excepção do não cumprimento, a falta de pagamento das ditas facturas gerava apenas a constituição da recorrente em mora e, ainda que houvesse mora, nada nos autos permite concluir que a mesma se converteu em incumprimento definitivo.

Que dizer?

O não cumprimento de qualquer obrigação é susceptível de desencadear, atento o efeito produzido, as situações de incumprimento definitivo ou de mora (desprezam-se, aqui, por irrelevantes, as situações de cumprimento imperfeito ou defeituoso).
Para constituir fundamento da resolução do contrato, o incumprimento culposo, equiparável à impossibilidade da prestação imputável ao devedor, tem de ser definitivo.
Dois casos há, no entanto, que o art. 808º equipara ao incumprimento definitivo, ao prescrever, no seu nº1, que “se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se, para todos os efeitos, não cumprida a obrigação”.
Segundo este normativo, a mora, que pressupõe, ainda, a possibilidade, embora retardada, da prestação converte-se em incumprimento definitivo, quer mediante a perda (subsequente à mora) do interesse do credor, quer em resultado da inobservância do prazo suplementar ou peremptório que o credor fixe razoavelmente ao devedor relapso (prazo admonitório). (cfr. Ac. do STJ, de 10.12.97, CJ, III-165).
Quando assim seja, a mora só se converte em não-cumprimento (definitivo) da obrigação (sem embargo de constituir imediatamente o devedor na necessidade de reparar os danos causados ao credor, por força do disposto no nº1 do art. 804º) a partir do momento em que a prestação se não realiza dentro do prazo que, sob a cominação referida na lei, razoavelmente for fixado pelo credor (Antunes Varela, RLJ 128º-136 e Ac. do STJ cit.).
Através da interpelação admonitória, opera-se, pois, também, a conversão da situação de mora em falta de cumprimento da obrigação, tendo especialmente em vista a resolução do contrato bilateral em que a obrigação se integra (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., pags. 352 e 354 e Ac. STJ, de 21.5.98, in CJ, II, pags. 92 e 93).
A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente (art. 808º, nº 2).
Portanto, a perda de interesse susceptível de legitimar a resolução do contrato afere-se em função da utilidade que a prestação teria para o credor, embora atendendo a elementos capazes de serem valorados pelo comum das pessoas. Há-de, assim, ser justificada segundo o critério da razoabilidade própria do comum das pessoas (v. Baptista Machado, RLJ 118º-55 e Almeida Costa, RLJ 124º-95).

Sustenta a autora que a ré não lhe fixou qualquer prazo admonitório, nem se verifica a perda de interesse do credor.

Só que, como refere Calvão da Silva (Sinal e Contrato Promessa, 11ª ed., pags. 135 e 136), “não há razão para manter o credor vinculado, até ao vencimento, a uma relação jurídica que, em virtude de declaração séria, certa e segura, ante diem, de não cumprir do devedor, perdeu a força originária e desapareceu como vínculo em cuja actuabilidade final o sujeito activo possa confiar para satisfação plena e integral do seu interesse, razão da existência da obrigação. É exacto, por isso, configurar a declaração antecipada de não cumprir (ou o comportamento inequívoco demonstrativo da vontade de não cumprir ou da impossibilidade antes do tempo de cumprir) como incumprimento (antes do termo), pressuposto suficiente de consequências jurídicas imediatas, como…, em geral, todos os remédios e sanções previstos para o incumprimento”.
O comportamento da autora é próprio de pessoas que não querem ou não podem cumprir, o que significa que a ré podia resolver validamente o contrato.
Com efeito, a autora recusou-se, pura e simplesmente, a efectuar qualquer pagamento, não obstante grande parte das obras relativas às quatro primeiras fases já se encontrar efectuada, apontando diversas razões que se mostraram totalmente infundadas (v. factos o) e q)) e apesar de ter conhecimento que a ré atravessava dificuldades financeiras (facto oo)), inviabilizando qualquer outra solução para o litígio surgido.

Também a alegação da autora de que, tendo a ré retirado da obra todos os materiais e maquinarias necessários à execução da empreitada, tal configuraria um abandono da obra, sujeitando-a ao dever de indemnizar, em termos análogos aos referidos em sede de resolução contratual ilegítima, carece de qualquer fundamento, desde logo porque, como bem observa a Relação, ao invocar a exceptio, assumiu que o outro contraente cumpriu, ainda que inexactamente.
Ademais, a retirada dos materiais e ferramentas da obra e a subsequente paralisação dos trabalhos têm de ser vistas à luz do incumprimento contratual por parte da própria autora e da posterior resolução do contrato.

Afirma a autora que constitui abuso de direito não realizar trabalhos contratados e facturá-los como se tivessem sido realizados e pretender, mesmo assim, o respectivo pagamento, a pretexto de que, se não foram feitos os trabalhos facturados, foram feitos outros (mesmo que, contratualmente, de execução posterior aos omitidos).
O abuso de direito – art. 334º do Código Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Não basta, porém, que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
Como não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, isto é, não é necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, basta que, na realidade (objectivamente), esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e clara, assim se acolhendo a concepção objectiva do abuso do direito (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pag. 217).
A complexa figura do abuso de direito, como é sublinhado no Acórdão do STJ, de 21.9.93 (C.J., III, pag. 21), citando Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, pags. 63 e sgs.; Almeida Costa, Direito das Obrigações, pags. 60 e sgs.; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pags. 298 e sgs. e Antunes Varela, RLJ, 114º-75, «é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico inoperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento».

O abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.
Como refere Baptista Machado (Obra Dispersa, I, 415 e ss.) o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.
É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis.”
Está ínsita a ideia de “dolus praesens”.
O conceito de boa fé constante do art. 334º do Código Civil tem um sentido ético, que se reconduz às exigências fundamentais da ética jurídica, “que se exprimem na virtude de manter a palavra dada e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do circulo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos” (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pags. 104-105).
“Uma conduta para ser integradora do “venire” terá de, objectivamente, trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, em si, uma clara injustiça.
Ou seja, tem de existir uma situação de confiança, justificada pela conduta da outra parte e geradora de um investimento, e surgir uma actividade, por “factum proprium” dessa parte, a destruir a relação negocial, ao arrepio da lealdade e da boa fé negocial, esperadas face à conduta pregressa.
Não se busca o “animus nocendi” mas, e como acima se acenou, apenas um comportamento anteriormente assumido que, objectivamente, contrarie aquele” (Ac. STJ, de 15.5.2007, www.dgsi.pt).
Para o Prof. Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil, 45) “o venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo”.
E o mesmo Professor considera (ROA, 58º, 1998, 964) que o “venire contra factum proprium” pressupõe: “1º- Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no “factum proprium”); 2º- Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do “factum proprium” seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis”; 3º- Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do “factum proprium”, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo “venire”) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4º- Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no “factum proprium”) lhe seja de algum modo recondutível.”

Revisitando a factualidade provada e procurando surpreender na actuação da ré qualquer contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada, em vão a encontramos.
É verdade que nem todas as obras referentes às fases a que se reportam as aludidas facturas estavam realizadas, mas daí a podermos concluir que a mesma actuou com abuso de direito (basta, para tanto, atentar no que, a propósito da 1ª questão, foi referido) vai uma longa distância.
Seguindo o ensinamento de Menezes Cordeiro supra exposto, quem assim actuou foi a autora e não a ré.

O que vale por dizer que as conclusões da alegação terão de improceder.

4.
Face ao exposto, decide-se negar a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2010
Oliveira Rocha (Relator)
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista