Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2075/19.0T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE
TRANSPORTE RODOVIÁRIO
CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS
ÓNUS DA PROVA
PERDA DAS MERCADORIAS
OBRIGAÇÃO DE MEIOS E DE RESULTADO
Apenso:


Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

Na responsabilização do transportador rodoviário de mercadorias pela não entrega da mercadoria, impende sobre o credor da indemnização o ónus de provar a perda/avaria da mercadoria, por se tratar de elemento constitutivo do seu direito (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – Relatório


1. – Serragados, Lda. propôs acção declarativa com processo comum contra PEC Nordeste, Indústria de produtos pecuários do Norte, SA e V..., Unipessoal, Lda., pedindo a condenação das Rés (individualmente ou solidariamente em conformidade com a culpa a determinar) no pagamento dos prejuízos que sofreu:


- 49.077,98 €, reportados ao preço da carne dos 80 bovinos.


- 5.017,50 €, pelo custo do transporte (de ... à Holanda e daí até às instalações da PEC em ...).


Alegou essencialmente:


- ter acordado com a 1.ª Ré o abate, corte e acondicionamento de 80 bovinos, que se destinavam a serem vendidos para a Holanda;


- ter contratado com a 2.ª Ré o serviço de transporte;


- não ter sido aceite pelo cliente (na Holanda) a referida carne, por a mesma, por culpa exclusiva das Rés, ter sido transportada a uma temperatura de +6ºC.


2. As Rés contestaram, separadamente, declinando a sua responsabilidade alegando terem procedido e feito cumprir as normas nacionais e europeias relativamente ao abate, comercialização e transporte de carne fresca.


A 1.ª Ré referiu que as câmaras de frio se encontravam todas a funcionar, sem ter ocorrido qualquer anomalia nos procedimentos, nomeadamente quanto às operações de carga, que foram acompanhadas por um funcionário da Autora. Alegou ainda que a temperatura de +6º C indicada pela Autora se enquadra nas normas nacionais e europeias relativamente ao abate e comercialização de carne fresca, que pode atingir os +7ºC.


A 2.ª Ré, cautelarmente, requereu a intervenção principal provocada da Seguradora Ageas Portugal – Companhia de Seguros, SA para quem transmitiu a responsabilidade civil.


3. Admitida a intervenção acessória provocada da Seguradora (despacho de 13-11-2019), veio esta contestar, declinando a responsabilidade pelo sinistro por ter realizado peritagem ao meio de transporte utilizado que revelou inexistir qualquer avaria no mesmo ou responsabilidade dos motoristas.


4. Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo as Rés dos pedidos.


5. Inconformada a Autora apelou impugnando a matéria de facto, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por maioria, julgado a apelação improcedente.


6. Interpôs a Autora recurso de revista, formulando as seguintes conclusões (transcrição):


1-No dia 09/07/2018, a aqui recorrente, Serragados, Lda., entregou 80 bovinos, no estabelecimento do Matadouro, da primeira Ré, PEC Nordeste, na Zona Industrial


2 – ..., ..., para abate nos dias 9, 10, 11 e 12 de julho de 2018. 2-Para carregar as carcaças dos 80 bovinos, no matadouro, em ..., transportar e entregar a mercadoria a AA, em ... , na Holanda, a autora contratou os serviços da segunda ré, V... Unipessoal, Ldª., e efetuou um contrato CMR com o nº ..96, cfr. doc. 4 da PI.


3-Foi convencionado no CMR, que mediante o pagamento de um preço, a ré, transportadora, carregaria as carcaças dos 80 bovinos no matadouro da PEC, em ..., no dia 14-07-2018 e, entregaria as carcaças a um comprador, na Holanda, com a temperatura da carne entre -1ºC a +1ºC.


4-No contrato, a autora é o expedidor, a empresa V... Unipessoal, Ldª, o transportador e AA, o destinatário.


5-O contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, celebrado entre as partes, nestes autos é regulado pela Convenção Relativa ao Contrato de Transportes de Mercadorias por Estrada, celebrada em Genebra em 19/5/1956 (CMR), aprovado para adesão pelo DL 46.235 de 18/3/65, e alterada pelo Protocolo de Genebra de 5/7/78, aprovado por adesão pelo DL 28/88 de 6/9.


6-O CMR é um contrato de resultado, isto é, o CMR gera uma obrigação de resultado, que só se pode ter por cumprida com a entrega da mercadoria.


7-O transportador, no CMR, obriga-se a 3 operações. A recepção da mercadoria, a sua deslocação ou transporte em sentido estrito e a sua entrega ao destinatário, no local de combinado nas condições convencionadas.


8-A transportadora recebeu e admitiu e carregou, em Portugal, a mercadoria, 80 carcaças de bovino, sem reserva e sem quaisquer objeções.


9-A transportadora realizou o transporte desde Portugal até Holanda e, ao chegar ao local de destino, aquando da entrega da carga da carne ao destinatário, as carcaças da carne apresentavam temperatura entre 5,5ºC e 5,9º Graus C. 1º- O cliente da autora, o destinatário da carne, AA, devido às temperaturas que as carnes apresentavam, invocando vício da mercadoria, recusou a carne dos bovinos, conforme pontos 6 e 9, da matéria de facto provada.


10-A decisão, recusa de recebimento mercadoria, tomada pelo destinatário foi aceite pelo Transportador sem qualquer objeção.


11- No momento da recolha em ..., presume-se que a mercadoria estava em perfeitas condições porque: -o transportador não colocou qualquer reserva a esse propósito no CMR -nos pontos A) e B) dos factos não provados e pelo disposto no nº 2 do art.º 9º da Convenção CMR.


12-O transportador, no que concerne à decisão do destinatário de recusar a mercadoria, só reagiu na contestação apresentada neste processo judicial, nos artigos 10º, 15º e 20º, onde alegou, mas não demonstrou, que a responsabilidade pela avaria foi motivada por facto imputável a terceiro.


13-A Transportadora, quando foi interpelada pela autora e aqui recorrente, sobre a recusa da mercadoria do destinatário na Holanda, acionou o seguro de responsabilidade civil, contratado com a Ageas – Portugal, Companhia de Seguros, apólice Nº 006010015378, cfr doc nº 8 junto pela autora com a PI e ponto 14 da matéria dada como provada.


14-Conforme com o Facto Provado como nº 28, o Certificado que a Transportadora possuía tinha sido falsificado na sua data de validade, e por isso, o Transportador à data que efetuou o contrato de CMR, para efetuar o transporte da mercadoria da autora, não possuía Certificado de Verificação do Termógrafo do Veículo do Transportador, válido.


15- A Portaria nº 1129/ 2009 de 1-10, aprova o regulamento do Controlo Metrológico dos instrumentos de medição e registo da temperatura a utilizar nos meios de transportes, nas instalações de depósito e armazenagem dos alimentos, a temperatura controlada, e determina a obrigatoriedade de ser requerida a renovação para o controlo metrológico legal dos registadores de temperatura / Termógrafos.


16-Assim, ao assinar o Contrato (CMR) tinha conhecimento que estava a cometer um ato ilícito de forma culposa e com dolo, porque bem sabia que tinha falsificado o Documento Público Administrativo para enganar a autora,


17- Por outro lado, A Ré – Transportador, não logrou demonstrar que a avaria da mercadoria tivesse tido por causa de alguma das situações tipificadas na Lei da Convenção CMR, para obter isenção de responsabilidade civil pelo prejuízo causado ao expedidor (aqui recorrente).


18-Assim, ficou provado, ponto 6 da matéria dada como provada, que a temperatura que a carne tinha quando chegou à Holanda era muito superior ao contratado no CMR (entre -1º e 1º Celsius) e assim existia avaria da mercadoria, por facto ilícito imputável ao transportador e era a ele, face à 13 recusa da mercadoria, que corria, o ónus de alegar e demonstrar que a recusa da mercadoria pelo destinatário era ilegítima o que não fez.


19-Pelo que se verifica, o incumprimento do contrato da CMR, imputável à Ré, transportadora, V..., Ldª, realidade que consubstancia o facto ilícito, suscetível de gerar a sua responsabilidade civil pelo prejuízo causado conforme determinam os artigos, 799 e seguintes e art.º 487º nº 2 do Código Civil.


20-Resulta também preenchido o nexo de causalidade como um dos requisitos integrantes da responsabilidade civil, porque a rejeição da mercadoria avariada pelo destinatário, teve por causa adequada o comportamento negligente da Ré, transportadora.


21- Nestas circunstâncias, está demonstrado o facto ilícito e, por outro lado, não se mostrando excluída a culpa do Transportador, recai sobre a Ré Transportadora, em virtude das normas da CMR e do Código Civil a responsabilidade civil com obrigação legal de ressarcir os danos resultantes da rejeição pelo destinatário da mercadoria avariada.


22- Admitida a responsabilidade civil da R, Transportadora, cumpre aferir se responde pela totalidade ou parte dos danos causados.


23- No presente caso e atendendo que o Transportador; incumpriu o contrato da CMR; não foi diligente na entrega da mercadoria nas condições contratadas e também agiu de forma culposa, livre e consciente de estar a praticar um crime, quando falsificou o documento administrativo por não ter a inspeção do frio do transporte validada.


24-No âmbito da responsabilidade civil contratual, vigora a presunção da culpa do devedor – transportador nos termos do art.º 799 nº1 do Código Civil, como refere o autor, Menezes Cordeiro, Manual de direito Bancário, 1998, pag.362.


25-No Ordenamento Jurídico Português, o conceito de culpa exprime um juízo de reprovação pessoal da conduta do agente, baseado no nexo entre o 14 facto ilícito e a vontade do agente, surgindo assim o dolo e a negligência ou mera culpa e a responsabilidade civil para reparar o dano causado, como refere Antunes Varela, Obrigações em Geral I, 10ª edição, 2004, pág. 567.


26-Pelo que a efeitos de excluir a limitação de responsabilidade, servem tanto o dolo como a mera culpa, ambos podem servir para configurar a culpa para efeitos de responsabilidade civil contratual, resultando indiferente a modalidade de culpa assumida pelo devedor – transportador, para ter que ressarcir o dano causado ao prejudicado.


27. pelo supra exposto, o transportador, não beneficia da limitação da sua responsabilidade, prevista nos artigos 23º e 24º na CMR, pelo contrário fica obrigado a ressarcir integralmente os danos causados ao Expedidor.


28-Porque o não cumprimento do contrato CMR pela Ré , é imputado a título de culpa, e verificado que a Ré, transportadora, não ilidiu a presunção de culpa, podemos concluir que incorreu na responsabilidade prevista no art.º 17 nº 1 e 29 nº1 da CMR e deve ressarcir o dano causado à aqui recorrente na sua totalidade, conforme previsto no art.º 798 do C. Civil.


29- A reparação, pela transportadora, na integra do dano causado à autora constitui entendimento reiterado e seguido pelo STJ nos Acórdãos de 15 de Maio de 2013 ( 9268 / 07.0TBMAI.P1.S1) 5 de Junho de 2012 ( 3303 / 05.4TBVIS.C2.S1) , 14 de Junho de 2011 ( 437/ 05.9TBANG.C1.S1) todos acessíveis em www.dgsi.pt


30- Pelo supra exposto a 2ª Ré, Transportadora, deve ser condenada a ressarcir, à autora, seja diretamente ou mediante a Apólice de Seguro de Responsabilidade Civil contratada com AGEAS Portugal, Companhia de seguros, Ldª, e referida no artigo 13 destas conclusões, e que foi chamada ao processo judicial, dos valores que foram dados como provados como facto nº 15.


31- Assim; e concretizando, a carne foi comercializada, entre a autora e o destinatário pelo valor de €56.817,77. Dessa carne houve peças que foram desossadas, embaladas em vácuo e vendidas pelo valor de € 9.416,49. Por 15 isso a autora e aqui recorrente ficou prejudicada no valor de 47.401,28 euros. Ao valor de €47.401,28, acresce: - o valor de € 1.677,30, pago à PEC para desossar a carne que vendeu; - o valor de € 5.017,50, relativos ao transporte da carne recusada, desde ... à Holanda e da Holanda até às instalações da PEC em .... No total a recorrente ficou prejudicada em 54.096,08 euros, acrescidos de juros desde a citação até integral pagamento.”.


7. Em contra-alegações a Ré Seguradora, defendendo a manutenção do acórdão, concluiu (transcrição):


I. A recorrente alega factos novos que não se encontram provados.


II. Como decorre expressamente do nº 3 do artigo 674º do C.P.C., “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista”.


III. A recorrente aborda questão nova que não foi abordada no recurso para o Tribunal da Relação e, por consequência, não foi objecto de pronúncia por parte do Douto Acórdão recorrido – e não o foi, por não ter sido alegada nem provada a factualidade correspondente.


IV. Para que pudesse ponderar-se a responsabilidade do transportador, a recorrente teria de alegar e provar que ocorreu uma avaria na mercadoria; e que essa avaria ocorreu entre o momento do carregamento e o momento da sua entrega ao destinatário pelo transportador.


V. Ou que a falta do certificado ISQ condicionou o transporte da carne em boas condições; e que durante o transporte o veículo não manteve a temperatura de 0º - 2º.


VI. Não foi provado nem sequer alegado na petição inicial o que consta das conclusões do recurso 3, 9, 1º (?), 10, 11, 12, 14, 16, 18, 19, 20, 21, 23 e 31.


VII. Por força da falta da sua alegação oportuna e da falta de prova sobre os mesmos, e também da citada norma do artigo nº 3 do artigo 674º do C.P.C., não pode este Venerando Tribunal debruçar-se sobre esses factos extemporaneamente alegados, nem proferir qualquer decisão que neles se possa apoiar, como de resto bem salientou o Douto Acórdão recorrido.


VIII. Não basta à recorrente alegar que a mercadoria foi recusada, seria preciso provar a avaria entre o momento do carregamento e o momento da entrega.


IX. A simples recusa da entrega por parte do destinatário, desacompanhada da prova de que ocorreu avaria entre aqueles dois momentos, não é suficiente para responsabilizar o transportador.”


II – Apreciação do recurso


De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC), impõe-se conhecer a seguinte questão:

Da responsabilidade da Ré Transportadora (V..., UNIPESSOAL, LDA.) pelos prejuízos sofridos pela Autora em consequência da não realização do negócio com a cliente holandesa


1. Os factos


1.1 provados


1. Entre a A. e a primeira R. foi celebrado um acordo quanto a prestação de serviços, de que existe um Memorando de Entendimento, conforme documento 1 junto com a PI e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.


2. No dia 09/07/2018, a Empresa comercial SERRAGADOS, Lda., no âmbito daquele contrato, entregou 80 bovinos, sua propriedade, com o fim de os comercializar, todos com certificado de admissão para abate, no estabelecimento do Matadouro, da primeira Ré, PEC Nordeste, na Zona Industrial 2 – ..., ....


3. Os 80 bovinos referidos foram abatidos no Matadouro PEC Nordeste S.A. nos dias 9, 10, 11 e 12 de julho de 2018.


4. Os 80 Bovinos, após o abate foram vendidos e acondicionados pela 1ª Ré no veículo da 2ª Ré, no dia 14 de Julho de 2018, com destino ao comprador, cliente da autora, sito na Holanda AA, em ... Sanitario: NL .57.


5. Para efectuar esse transporte realizado desde o matadouro PEC em ... até à Holanda, a Autora contratou os serviços de transporte da segunda Ré, V... Unipessoal, Lda., como consta do doc. 4 da PI, CMR ..96, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


6. No dia 18-07-2018, aquando da entrega da carne transportada, o cliente da Autora, AA, alegou que a carne dos bovinos apresentava uma temperatura de +6º Graus, invocando apenas a medição de cinco peças, com resultados entre os 4,7º e os 5,9ºC.


7. O mesmo foi alegado pela intermediária da Autora denominada A..... ....... ............., S.L. no e-mail de 18/07/2018 e assinado por BB, que considerou importante a realização de uma peritagem.


8. Após receber a comunicação do comprador da carne na Holanda, a Autora estabeleceu contactos com as duas Rés para nomearem um perito com a finalidade de realizar uma peritagem à carne na Holanda, o que não foi realizado.


9. A carne acabou por ser devolvida e transportada pela mesma empresa.


10. A Autora solicitou os registos do frio à PEC Nordeste e à Transportadora, tendo aquela lhe entregue os registos de forma parcial.


11. A Autora já havia efectuado outras reclamações relativamente a “temperaturas altas” noutra câmara, como consta dos documentos 8, 9 e 10 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


12. Na semana anterior, a PEC reconheceu e indemnizou a Autora por falta de frio noutra câmara frigorífica, distinta das dos autos.


13. A E....... presta serviços técnicos de frio industrial à PEC Nordeste, o que faz regularmente desde 2017.


14. A segunda Ré, logo que interpelada pela Autora, accionou o seguro de responsabilidade civil, contratado com a Ageas – Portugal, Companhia de Seguros, apólice Nº 006010015378, conforme documento junto a fls. 85 v.º e ss., cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo a mesma negado responsabilidade após peritagem, por considerar que não houve qualquer erro técnico dos motoristas, nem avaria do sistema de frio.


15. Da carne que veio da Holanda, que seria comercializada pelo valor de € 56.817,77, houve algumas peças que ainda foram desossadas, embaladas em vácuo e vendidas pelo valor de € 9.416,49, tendo a Autora um gasto de € 1.677,30 para a desossar e de € 5.017,50, relativos ao gasto do transporte da carne devolvida, desde ... à Holanda e da Holanda até às instalações da PEC em ....


16. A PEC Nordeste desconhece as condições da encomenda entre a Autora e o cliente holandês.


17. A unidade industrial de abate da PEC dispõe de duas centrais de frio, que são totalmente independentes, com funcionamento distinto e separadas fisicamente.


18. A primeira central é uma unidade de frio industrial que funciona a amoníaco e é composta por um grupo de compressores, reservatório de amoníaco e torre de refrigeração comum a todas as câmaras ligadas a esta rede de frio, onde se situam nomeadamente as câmaras 10 a 17.


19. A segunda central é uma unidade de gases fluorados sendo constituída por compressores independentes para cada câmara, com os circuitos de distribuição de gás independentes para cada câmara de frio, onde se situam designadamente as câmaras 00 e 20 a 24.


20. As centrais de frio da primeira Ré estão devidamente certificadas pelo Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ).


21. A manutenção e assistência das mesmas são asseguradas pela referida sociedade E......., SA., com a qual a PEC tem um contrato de manutenção para os seus equipamentos de refrigeração, quer no circuito de amoníaco, quer no circuito de gases fluorados, conforme documento n.º 5 da contestação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, vigorando tal contrato desde o dia 1 de Agosto de 2017.


22. As oitenta carcaças que a Autora escolheu para expedir para a Holanda estiveram armazenadas nas câmaras de frio C11, C12, C13, C14 e C15, atendendo a que eram de diferentes dias de abate.


23. O problema detectado no sistema de frio em 13 de Julho de 2018, distinto do reclamado nos autos, não ocorreu em nenhuma das citadas câmaras de frio C11, C12, C13, C14 e C15, nem no circuito de frio industrial em que estas estão incluídas, mas na câmara 00 que está integrada na secção de frio do circuito de gases fluorados, enquanto as câmaras C11, C12, C13, C14 e C15 estão integradas no circuito de amoníaco, integrando uma central de frio independente, separada fisicamente e com um funcionamento distinto.


24. Imediatamente após o abate, as carnes apresentam temperaturas que oscilam entre os +37ºC e os +38ºC, com diminuição contínua posterior e apresentação, ao fim de 24 Horas, de temperaturas inferiores a +7ºC.


25. Os valores das temperaturas das aludidas câmaras foram cumpridos no período em questão, com temperaturas médias inferiores a 7ºC.


26. As oscilações dos valores da temperatura dependem, designadamente, da abertura de portas para transferência de carcaças entre câmaras, escolha de carcaças pelos seus proprietários para expedição e realização de análises.


27. De acordo com as indicações da Autora, as carcaças foram entregues à empresa transportadora, a segunda Ré, no dia 14 de Julho de 2018, através das ordens do seu funcionário, sr. CC, designadamente para o camião ir à rampa, por duas vezes, com as portas abertas, ‘acomodar’ as peças já carregadas para obtenção máxima de espaço, tendo depois voltado a encostar no cais para continuar a carga, não tendo sido detectada qualquer anomalia na carne.


28. A 2ª Ré não possuía certificado de verificação do termógrafo do veículo válido à data da ocorrência.


29. O transporte da carne fresca ocorreu entre os dias 14 e 18 de Julho de 2018.


30. A primeira Ré é certificada, a nível nacional e europeu, pela APCER (ISO9001:2015), pela ISACert B.V. (Global Standard for Food Safety) e pela OCA – GLOBAL (IFS Food Version 6.1).


1.2 não provados:


A) As câmaras de frio da PEC, C11, C12, C13, C14, onde estava a carne dos aludidos 80 bovinos, estavam avariadas.


B) A carne já foi carregada com uma temperatura superior à “correcta”.


2. O direito


2.1 Através da presente acção a Autora pretende ser ressarcida dos prejuízos decorrentes do facto de 80 bovinos, sua propriedade, abatidos e destinados a serem adquiridos por um seu cliente situado na Holanda, AA, terem sido por este recusados com fundamento na inadequada temperatura que a carne registava (de +6.º C) ao chegar ao destino.


Para esse efeito demandou as Rés, PEC NORDESTE, Indústria de Produtos Pecuários do Norte, SA, enquanto responsável pelo abate dos bovinos e V..., Unipessoal, Lda., responsável pelo transporte da carne desde o matadouro (em ...) até ao respectivo destino, na Holanda.


Fundamentou a sua pretensão na responsabilidade de ambas as Rés1 por incumprimento do contrato que firmou com cada uma: a 1.ª Ré, com quem acordou o abate dos referidos bovinos2 e acondicionamento no veículo em que iriam ser transportados para a Holanda; a 2.ª Ré, com quem contratou o transporte da carne de ... para entrega na Holanda.


O acórdão recorrido, secundando a sentença, concluiu pela improcedência da acção por ausência de alegação e demonstração de factualidade cujo ónus impendia sobre a Autora. A saber:


- quanto à 1.ª Ré: do incumprimento contratual e/ou da violação das normas legais aplicáveis;


- quanto à 2.ª Ré: da avaria da mercadoria entre o momento do carregamento e o da sua entrega.


Conforme decorre do posicionamento que vem sendo assumido no processo pela Autora/Recorrente, a mesma, por via do recurso (quer na apelação, quer na revista), pretende colmatar deficiência de alegação de factualidade essencial que se lhe impunha que tivesse introduzido nos autos em tempo processual adequado.


Com efeito, no que se refere ao cumprimento das obrigações adstritas às Rés, entenderam as instâncias ser aplicável o Regulamento (ce) n.º 853/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 20043 (que estabelece regras específicas de higiene relativamente aos géneros alimentícios de origem animal, designadamente da carne de bovino, nos termos do qual se exige que a carne se mantenha a uma temperatura igual ou inferior a +7.ºC, para poder ser comercializada com segurança e de acordo com as normas de saúde pública - cfr. Anexo III, Secção I, e Capítulo VII, n.º 1 a) n.º 2 e n.º 34), o Decreto-Lei n.º 147/2006, de 31 de Julho, que aprova o Regulamento das Condições Higiénicas e Técnicas a Observar na Distribuição e Venda de Carnes e seus Produtos, bem como o Esclarecimento Técnico n.º 2 / DGAV / 2019 da Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária. Face à legislação em causa quer a sentença, quer o acórdão concluíram que a factualidade apurada nos pontos 1.º a 3.º e 17.º a 27.º, evidenciava a inexistência de qualquer violação contratual5.


Contrapõe a Autora que a conclusão retirada pelo tribunal quanto à regularidade da temperatura que a carne deve manter - igual ou inferior a +7.ºC – tem subjacente erro de apreciação, uma vez que a temperatura referida nas normas aplicáveis é a temperatura central ou interna da carne, não a temperatura uniforme a que a sentença se reporta.


Incorre, porém, a Recorrente num duplo equívoco:

i. por descurar que se evidencia do teor das decisões proferidas por cada uma das instâncias que foi levado em consideração, quer o Regulamento da UE, da Comissão, 2017/1981, de 31-10-2017 (que alterou o anexo III do referido Regulamento (CE) n.º 853/2004, no que diz respeito às condições de temperatura durante o transporte da carne); quer a existência de diferenciação entre temperatura de superfície e temperatura central da carne;

ii. por ter apenas alegado na petição inicial que a carne tinha uma temperatura superior a +7º C, à data do seu carregamento, e superior a +6.ºC, quando chegou ao seu destino, nada esclarecendo se tais valores correspondiam a temperatura central ou superficial.


2.2 O acórdão recorrido, ainda que por maioria, considerou que a responsabilização da 2.ª Ré pelos prejuízos (apenas a que é objecto de apreciação em sede da presente revista) pressuporia que a Autora tivesse alegado e demonstrado a avaria na mercadoria, por impender sobre ela (enquanto credora da indemnização) tal ónus. Apoia tal entendimento indicando, nesse sentido, como jurisprudência relevante deste tribunal, os acórdãos de 12-10-2017, (Processo n.º 4858/12.2TBMAI.P1.S1) e de 06-04-2021 (Processo n.º 21305/18.9T8PRT.G1.S1).


Um dos membros do colectivo de juízes discordou da solução jurídica alcançada por maioria, por entender que se imporia dar procedência ao recurso restrita à condenação da Ré V..., Unipessoal, Lda. Alicerça a sua discordância nas seguintes premissas:


- no contrato de transporte o transportador assume uma obrigação de resultado, que apenas se pode ter por cumprida com a entrega da mercadoria ao destinatário;


- encontra-se demonstrada nos autos a não entrega da mercadoria, que se deve presumir que estava em perfeitas condições quando foi recolhida pelo transportador, perante a matéria de facto provada nos pontos n.ºs 6 a 9, em face da falta de qualquer reserva a esse propósito feita no CMR junto à petição inicial (documento nº 4), bem como nas alíneas A) e B) do elenco dos factos não provados;


- embora não esteja demonstrada qualquer avaria da mercadoria, igualmente não se encontra demonstrada que a mesma não existisse;


- perante a falta de prova da adequação da mercadoria impende sobre o transportador o ónus de demonstrar a ilegitimidade da recusa do destinatário da mercadoria, ou que essa recusa foi motivada por facto imputável a terceiro.


Se bem se compreende o entendimento sufragado no voto de vencido, a obrigação adstrita ao transportador em demonstrar a ilegitimidade da recusa de recepção da mercadoria por parte do destinatário assenta no dever de entrega que o contrato de transporte pressupõe.


Com o devido respeito, não podemos partilhar de tal posicionamento, por o mesmo se traduzir numa indevida inversão do ónus de prova da ocorrência de dano ou avaria da mercadoria, ainda que “encoberta” pelo dever de entrega.


Vejamos.


2.3 Não oferece dúvida que no contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, como é o caso dos autos6, o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produza entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega – artigo 17.º, n.º1, da Convenção.


Igualmente não merece controvérsia o facto de o contrato de transporte de mercadorias constituir um contrato de resultado, pelo que o transportador assume uma obrigação de resultado ao obrigar-se a deslocar a mercadoria e a colocá-la no lugar convencionado.


Como salienta Adriano Marteleto Godinho7, embora a deslocação da mercadoria constitua o núcleo da prestação transportador, a mesma não é suficiente, pois que toda a operação do transporte é voltada à entrega da mercadoria, sendo esta crucial para identificar o cumprimento do contrato. Tal obrigação de entrega, porém, não tem o alcance de envolver um dever de demonstrar a exigibilidade de recepção da mercadoria pelo destinatário.


Assim sendo, a obrigação de entrega por parte do transportador, não escusa o interessado de fazer a prova de dois elementos fundamentais do seu direito a ser indemnizado pelo não recebimento da mercadoria por parte do destinatário da mesma:


- o dano/ avaria da mercadoria não recepcionada;


- os danos decorrentes da falta de entrega.


Por conseguinte, no que se reporta à responsabilização do transportador rodoviário de mercadorias pela não entrega da mercadoria, independentemente do entendimento que se defenda quanto à sua caracterização e natureza8, pressupõe, necessariamente, a demonstração da perda/avaria da mercadoria, ónus que impende sobre o credor da indemnização devida por essa perda/avaria, por se tratar de elemento constitutivo do direito à indemnização (artigo 342.º, n.º1, do Código Civil) 9.


Assim, na sequência do decidido pelas instâncias, não podem deixar de improceder, na sua totalidade, as conclusões das alegações.


IV. Decisão


Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.


Custas pela Recorrente.


Lisboa, 3 de Novembro de 2023


Graça Amaral (Relatora)


Luís Espírito Santo


Ana Maria Resende





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1. Invocando ainda o artigo 483.º do Código Civil.↩︎

2. Abate no estabelecimento do Matadouro em ..., propriedade da referida Ré.↩︎

3. O REGULAMENTO (UE) 2017/1981 DA COMISSÃO de 31 de Outubro de 2017, altera o anexo III do Regulamento (CE) n.º 853/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho no que diz respeito às condições de temperatura durante o transporte de carne.↩︎

4. Nos termos do qual “Os operadores das empresas do sector alimentar devem garantir que a armazenagem e o transporte de carne de ungulados domésticos sejam efectuados em conformidade com os requisitos seguintes:

1. a) Excepto quando existem disposições específicas em contrário, a inspecção post mortem deve ser imediatamente seguida de uma refrigeração no matadouro que garanta uma temperatura uniforme da carne não superior a 3 °C, no caso das miudezas, e a 7 °C no caso da restante carne, segundo uma curva de refrigeração que assegure uma diminuição contínua da temperatura. No entanto, a carne poderá ser cortada e desossada durante a refrigeração, em conformidade com o ponto 4 do capítulo V.

b) Durante as operações de refrigeração, deve existir uma ventilação adequada que evite a condensação na superfície da carne.

2. A carne deve atingir a temperatura especificada no ponto 1 e ser mantida a essa temperatura durante a armazenagem.

3. A carne deve atingir a temperatura especificada no ponto 1 antes do transporte e ser mantida a essa temperatura durante o transporte. No entanto, este poderá também ser realizado, se a autoridade competente assim o autorizar, para permitir o fabrico de produtos específicos, desde que:

a) Esse transporte seja efectuado de acordo com os requisitos especificados pela autoridade competente no que respeita ao transporte de um determinado estabelecimento para outro;

b) A carne deixe imediatamente o matadouro, ou uma sala de desmancha no mesmo local das instalações de abate, e o transporte não dure mais de duas horas.”.↩︎

5. Foi considerado na sentença que não tendo sido igualmente demonstrado que tivesse ocorrido qualquer avaria nas câmaras de frio que tivessem alterado a temperatura da carne (alíneas A) e B) dos factos não provados), não se verificava o primeiro requisito da responsabilidade civil extracontratual, que é a prática de qualquer acto ilícito, não existindo a violação de qualquer norma por parte das RR.↩︎

6. Regulado pela Convenção de Genebra de 19-05-1956, aprovada por adesão no direito português pelo DL 46235, de 18-03-1965, que foi modificada pelo Protocolo de Genebra de 05-07-1978, aprovado por adesão pelo DL 28/88 de 06-09. Esta Convenção é conhecida internacionalmente pela sigla CMR.↩︎

7. Responsabilidade do Transportador Rodoviário de Mercadorias, Temas de Direito dos Transportes I, Coordenação de M. Januário da Costa Gomes, Almedina, pp 89-90.↩︎

8. Presunção de responsabilidade que impende sobre o transportador (cfr. Adriano Marteleto Godinho, obra supra citada, p.95; Januário da Costa Gomes, “O acórdão de 12.10.2017 ou o persistente alheamento do STJ relativamente ao regime específico da CMR”, Revista de Direito das Sociedades, 2018, 3, p. 612; Nuno Castello-Branco Bastos, Direito dos Transportes, Série de Cadernos do IDET, Coimbra, Almedina, 2004, p.94; na Jurisprudência, acórdão do STJ de 09-02-2010 (Processo n.º 892/03.1TCGMR.G1.S1) e 05-06-2012 (Processo n.º 3303/05.4TBVIS.C2.S1) ou apenas presunção de culpa (cfr. António Menezes Cordeiro, “Introdução ao Direito dos Transportes”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, n.º 1(Jan.2008) – pp. 139-172; na Jurisprudência, acórdão do STJ de 14-06-2011 (Processo n.º 437/05.9TBANG.C1.S1), 15-05-2013 (Processo n.º 9268/07.0TBMAI.P1.S1).↩︎

9. Aspecto que não parece suscitar dúvidas quer na doutrina (cfr. Adriano Marteleto Godinho, obra supra citada, p.93; Januário da Costa Gomes, obra citada, p.614; Nuno Castello-Branco Bastos, obra citada, p.93; 94; Alfredo Proença, Transporte de mercadorias por estrada, Coimbra, Almedina, 1998, p. 58.), quer na jurisprudência (cfr. além dos acórdãos citados no acórdão recorrido, entre outros, acórdãos do STJ de 11-03-1999, Revista n.º 97/99; de 11-10-2001, Revista n.º 2088/01, de 15-05-2013, Processo n.º 9268/07.0TBMAI.P1.S1).↩︎