Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01A3241
Nº Convencional: JSTJ00042728
Relator: REIS FIGUEIRA
Descritores: TRIBUNAL COMPETENTE
GESTÃO PÚBLICA
GESTÃO PRIVADA
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: SJ200201240032411
Data do Acordão: 01/24/2002
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR ADM. DIR PROC CIV. DIR JUDIC - CONFLITOS
Legislação Nacional: CPC95 ARTIGO 66 ARTIGO 414.
CONST97 ARTIGO 211 N1 ARTIGO 212 N3.
LPTA85 ARTIGO 1 ARTIGO 4 N4.
ETAF84 ARTIGO 3 ARTIGO 4 N1 F ARTIGO 51 N1 H.
L 11/87 DE 1987/04/07 ARTIGO 41 ARTIGO 42 ARTIGO 45 N1 ARTIGO 66 N1 N3
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1969/05/16 IN RLJ ANO103 PAG350.
ACÓRDÃO STJ DE 1975/05/19 IN RLJ ANO110 PAG315.
ACÓRDÃO STJ DE 1997/03/04 IN CJSTJ ANOV T1 PAG125.
ACÓRDÃO STJ PROC 368/01 DE 2001/05/31
ACÓRDÃO TCONFL DE 1981/11/15 IN BMJ N311 PAG195.
Sumário : I - A Competência material do foro - se administrativo, se comum - define-se em função da natureza do acto atacado: de gestão pública ou de gestão privada.
II - Pedindo-se que a requerida se abstenha da prática de actividade que apenas é o cumprimento da deliberação tomada no uso do jus imperii pelo órgão administrativo, o foro materialmente competente é o administrativo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A, B, C, D e E, todos residentes no Cadaval, requereram, pelo Tribunal Judicial daquela Comarca, providência cautelar não especificada contra "F", sociedade anónima, igualmente com sede no Cadaval, pedindo seja decretado que a requerida se abstenha de proceder na área geográfica da Quinta X, localizada na confluência dos concelhos de Torres Vedras, Cadaval e Alenquer, à execução de actividades ou obras que integrem o objecto do contrato de concessão celebrado entre esta e o Estado Português, e que se tornem necessárias para o processamento, depósito, ou eliminação de resíduos sólidos ou a tal equiparados nos termos da lei, designadamente abate de árvores, execução ou construção de infra-estruturas associadas, tais como as que têm por objecto a deposição ou eliminação daqueles resíduos ou outros, estações de transferência, aterro sanitário, unidades de tratamento; e bem assim que seja considerado o local inidóneo para a eliminação dos resíduos sólidos e instalação do aterro sanitário sólidos, e resultar muito razoável o fundado receio de lesão dos direitos invocados, pois, através da execução da obra, causar-se-á danos dificilmente reparáveis ao direito ambiente e ao direito a um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado, de que os requerentes são legítimos titulares; bem como que se declare imediatamente suspensa a deliberação da requerida sobre a alteração da localização do Aterro sobre a Quinta X, por violação do direito de participação procedimental da Lei de Acção Popular e mais elementares critérios de razoabilidade sobre a adequação daquela localização ao tipo de empreendimento.

Alegaram, essencialmente, que a construção do aterro sanitário é lesiva para o ambiente e qualidade de vida das populações, merecedor de tutela jurisdicional resultante do art. 66, nº1 da CRPortuguesa, integrando-se a pretensão dos requerentes no quadro da lesão de interesses difusos, especialmente tutelado pela Lei de Bases.

Citada a requerida opôs-se, alegando, entre outras coisas respeitantes ao mérito, que aqui não importa referir, que os requerentes propuseram três providências cautelares, com identidade de partes, pedido e causa de pedir, em três tribunais diferentes: Cadaval, Torres Vedras e Alenquer; que a presente providência cautelar deve ser apreciada pelos tribunais administrativos, e não pelos tribunais civis, pois os actos em causa são de gestão pública e praticados no exercício de um poder público.

Após o que o Sr. Juiz proferiu despacho, julgando incompetente o tribunal comum (cível), nos termos do art. 101 e seguintes do CPC, por a providência requerida atacar directamente uma decisão administrativa (da Associação de Municípios), e, declarando competente o tribunal administrativo, absolveu a requerida da instância.

Do assim decidido recorreram os requerentes, de agravo, para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Que, decidindo o recurso, concedeu provimento ao agravo, revogou a decisão recorrida, considerou materialmente competente o tribunal comum (cível), e determinou que o procedimento cautelar prossiga os seus termos no tribunal cível onde foi instaurado.

Recorre agora a requerida, também de agravo, para este STJ.

Alegando, concluiu como assim se resume:
a) Face ao disposto no art. 212, nº3 da CRPortuguesa, a questão posta, que é a do tribunal materialmente competente (comum ou administrativo), passa por saber se no caso sub judice, estamos perante uma relação jurídico-administrativa ou jurídico-privada.
b) Qualquer que seja o critério doutrinário perfilhado quanto ao conceito de relação jurídico-administrativa (em função dos sujeitos, do objecto ou do fim), não apenas a decisão de autorização de localização, como também a construção e exploração do Aterro Sanitário do Oeste se inserem no âmbito de relações jurídicas administrativas com os particulares.
c) Por um lado, está em causa a actuação de uma entidade pública - a "F", como concessionária - na prossecução de um fim público: art. 2 do DL 294/94. de 16/11
d) Por outro, não apenas a autorização de localização, como a própria construção e exploração do Aterro estão vocacionados para a prossecução do interesse público: defesa do ambiente, pela valorização tratamento de resíduos sólidos urbanos.
e) Consequentemente, o julgamento da presente causa incide necessariamente sobre relações jurídico-administrativas, sujeitas à jurisdição administrativa: art. 212, nº3 da CRPortuguesa e art. 4, f) do ETAF.
f) A aplicação do art. 45 da LBA (lei de Bases do Ambiente, aprovada pela Lei 11/87, de 07/04) a relações jurídico-administrativas é claramente inconstitucional, por violação do art. 212, nº3 da CRP.
g) Por outro lado, o pedido de abstenção da requerida de continuação das obras corresponde materialmente a um embargo de obra de um concessionário - o que só é possível se estiverem em causa actos de gestão privada: art. 414 do CPC.
h) Acresce que o que os requerentes pretendem colocar em causa é a localização escolhida e autorizada por decisão administrativa, que consideram inidónea.
i) Ora, a declaração de (in)idoneidade do local é, por reserva de lei, da competência da Administração, designadamente das entidades previstas nos art. 9, 10 e 11 do DL 239/97.
j) As decisões administrativas, relativas à localização do Aterro, só poderiam ser postas em crise através de uma declaração judicial da ilegalidade de tais decisões, o que só é possível por via da jurisdição administrativa, nomeadamente através de recurso contencioso e eventual suspensão de eficácia e através de acção para reconhecimento de direitos.
k) O pedido de abstenção da requerida de continuar a construção do Aterro Sanitário, a fim de, alegadamente, se evitar a ocorrência de danos ambientais seria sempre acessório de um processo principal, em que se discutiria necessariamente a validade dos actos administrativos relativos à localização do Aterro. Ora, o Tribunal materialmente competente para o processo principal deverá ser o materialmente competente para o meio cautelar acessório daquele.
l) Ao decidir pela competência material do tribunal comum, o acórdão recorrido violou o disposto no art. 212, nº3 da CRP, o art. 4, f) do ETAF, o art. 45 da Lei de Bases do Ambiente, o art. 414 do CPC e os art. 8 e seguintes do DL 239/97.

Os recorridos contra-alegaram em apoio da competência do tribunal comum.
Na primeira instância ponderou-se que:
a) na base da causa de pedir está a construção de um aterro sanitário num determinado local, que se considera inidónio, porque lesivo do direito ao ambiente e qualidade de vida das populações;
b) no entanto, não foi a requerida quem escolheu o local, ela é apenas a concessionária de uma obra do Estado;
c) por isso, na base da construção do aterro naquele local encontra-se uma decisão administrativa tomada pela Associação dos Municípios do Oeste, e tal decisão só é impugnável perante um tribunal administrativo; e, enquanto não for anulada, ela subsiste válida e eficazmente;
d) no substracto da construção do aterro naquele local encontra-se todo um complexo de decisões administrativas: da Associação dos Municípios do Oeste, da Assembleia Municipal do Cadaval, da Direcção Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais de Lisboa e Vale do Tejo, do Ministro do Ambiente e do Instituto dos Resíduos;
e) aliás, um dos pedidos é o de que se declare imediatamente suspensa a deliberação da requerida, sobre a alteração da localização, por violação do direito de participação procedimental da lei de acção popular.
f) Concluindo, o litígio em causa reporta-se a uma relação jurídico-administrativa, portanto da jurisdição administrativa: art. 3 do ETAF.

Na Relação de Lisboa ponderou-se que:
a) não está em causa um pedido sobre qualquer acto administrativo: o pedido incide directamente sobre a abstenção da actividade alegadamente lesiva do ambiente e do direito dos cidadãos a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, no quadro da lesão de interesses difusos;
b) o pedido não consiste na anulação do acto administrativo que determinou que o aterro fosse instalado naquele local (caso esse em que competente seria a jurisdição administrativa);
c) o art. 45, nº1 da Lei 11/87 (Lei de Bases do Ambiente) estabelece que o conhecimento das acções a que se referem o art. 66, nº3 da CRP e os art. 41 e 42 daquela Lei de Bases é da competência dos tribunais comuns;
d) aí se incluem as providências cautelares destinadas à suspensão provisória de actos agridam o ambiente, como por exemplo as actividades poluidoras (art. 41, nº1, a) e c));
e) o art. 45 dessa Lei não é inconstitucional (acórdão do TC nº 458/99, de 13/7/99, no DR, 2ª, de 06/03/00).

Apreciando.
No presente procedimento cautelar não especificado requerem-se três medidas:
1) que a requerida se abstenha de proceder à execução das actividades ou obras que integrem o objecto do contrato de concessão que celebrou com o Estado
2) que seja o local considerado inidóneo para eliminação dos resíduos sólidos e para instalação do aterro sanitário sólidos
3) que se declara imediatamente suspensa a deliberação da requerida sobre a alteração da localização do aterro.
Como causa de pedir invocam-se:
a) para os dois primeiros pedidos, que a execução da obra causará danos dificilmente reparáveis ao direito ao um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado dos requerentes: art. 66 da CRP,
b) para o terceiro pedido, que foi violado o direito de participação procedimental conferido pela Lei de Acção Popular e do Ambiente.

Não estão aqui em causa os direitos, constitucionalmente consagrados, ao ambiente e à qualidade de vida, bem como o direito de petição e acção popular: art. 66 e 52 da CRPortuguesa, art. 2 da Lei 11/87, de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente).
Em causa está, apenas, saber qual o tribunal materialmente competente para este procedimento: o comum (cível) ou o administrativo?

Vejamos.
"Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes da relações jurídicas administrativas e fiscais": art. 212, nº3 da CRP.
A jurisdição administrativa (e fiscal) é exercida pelos tribunais administrativos, definidos como órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo-lhes, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (e fiscais): art.ºs 1º e 3º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, vulgo ETAF, aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril.
Depois, distribuindo esta competência pelos diversos tribunais administrativos, estabelece a lei que compete aos tribunais administrativos (de círculo) conhecer, entre outras, das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso: art. 51º, nº 1, h) do mesmo ETAF.
No entanto, encontram-se excluídos da jurisdição administrativa (e fiscal) os recursos e as acções que tenham por objecto, entre outras, as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público: art. 4º, nº 1, f) do ETAF.
Por seu lado, a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de outra matéria; fora do âmbito da jurisdição administrativa (e fiscal) é aplicável o disposto na lei de processo civil: art.ºs 1º e 4º, nº 4 da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, vulgo LPTA, aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho.

Ainda por outro lado, a responsabilidade civil extracontratual do estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública rege-se pelo disposto no Decreto-Lei nº 48051, de 21/11/67, em tudo que não esteja previsto em leis especiais

Toda a questão reside em saber se os actos devem ser considerados como actos de gestão pública ou como actos de gestão privada.
Assim, se forem considerados actos de gestão pública, eles serão materialmente da competência dos tribunais administrativos (art. 212, n.º 3 da CRP e art. 51, nº 1, h) do mesmo ETAF). Se forem considerados actos de gestão privada, materialmente competentes serão os tribunais judiciais comuns (art. 211, nº 1 da CRP, art. 4, nº 1, f) do ETAF e art. 66 do CPC).
Esta é portanto a questão.

Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. III, 4ª edição, 510/511) definem, em geral, os actos de gestão privada como "aqueles que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares. São actos em que o Estado ou a pessoa colectiva pública intervém como um simples particular, despido do seu poder público.
Tratando-se de actos de gestão pública, a responsabilidade daquelas entidades deve naturalmente obedecer a princípios muito diferentes, visto se admitir a responsabilidade do Estado pela prática de actos lícitos (...) e nem sempre se conceder ao Estado e demais pessoas públicas o direito de regresso (...)".
Vaz Serra (em anotação ao acórdão do STJ de 16/05/69, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103º, 350/351) seguiu idêntico critério: saber se o acto se integra, ou não, numa actividade de direito público - " se ele se compreende numa actividade de direito privado duma pessoa colectiva pública, da mesma natureza da actividade de direito privado desenvolvida por um particular, o caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão privada; se, pelo contrário, o acto é praticado no exercício de um poder público, isto é, na realização de função pública, mas não nas formas e para a realização de interesses de direito civil, o caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão pública".

Critério que renovou na anotação que fez ao acórdão do STJ, de 19/05/75, na RLJ, ano 110-315.
Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, tomo II, 8ª edição, 1134) ensinava que "deve entender-se por gestão pública a actividade da Administração regulada pelo Direito Público e por gestão privada a actividade da Administração que decorra sob a égide do Direito Privado". Para, logo a seguir, concretizar que "como o Direito Público que disciplina a actividade da Administração é quase todo composto por leis administrativas, pode dizer-se que reveste a natureza de gestão pública toda a actividade da Administração que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para o prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para esse efeito".
Não encontramos, assim, divergências de monta entre os Autores: os actos praticados pelo Estado ou por pessoas colectivas públicas serão de gestão pública ou de gestão privada em função da natureza do regime jurídico a que estejam subordinados: de gestão pública se sujeitos ao direito público, de gestão privada se sujeitos ao direito privado. E estarão sujeitos a um ou outro ramo de direito, conforme a natureza do próprio acto.
Também a jurisprudência não se tem afastado disto: acórdãos do Tribunal de Conflitos, de 15/11/81, no BMJ nº 311-195, de 10/12/87, com anotação de Afonso Queiró, na RLJ, ano 121-237, e de 31/05/01, proferido no Conflito Negativo de Jurisdição nº 368, com o mesmo Relator do presente, e que julgamos inédito; bem como lapidarmente se escreveu no acórdão do STJ de 04/03/97, na CJSTJ, ano V, tomo I, 125: "os tribunais administrativos só dirimem litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, e nunca questões de direito privado; daí que o embargo de obra nova que envolva só questões de direito privado seja da competência dos tribunais comuns".
O critério determinante não será, propriamente, saber quem pratica o acto, ou a omissão, mas qual a natureza do acto.

Postas estas noções elementares, acompanham-se basicamente as razões aduzidas na primeira instância.
Ainda que (se possa considerar que) a implantação do aterro naquele local possa lesar o direito dos residentes a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado (o que naturalmente está ainda por provar), não é possível dar provimento ao requerido sem atacar a legalidade, ou pelo menos o mérito (a substância ou a correcção), em termos ambientais, de todas as decisões administrativas que lhe estão na base.
Porque, de facto, não foi a requerida quem escolheu o local.
O local, bem ou mal, foi escolhido por diversas entidades públicas, num processo complexo envolvendo desde as Câmaras Municipais (e elas serão três), até ao Ministro do Ambiente, passando pela Associação dos Municípios do Oeste, pela Direcção Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais de Lisboa e Vale do Tejo, pelo Instituto dos Resíduos, etc.
Daí que não possa atacar-se a construção do Aterro naquele local sem se atacar as deliberações que decidiram que se fizesse naquele local.

Ora, como vimos, o foro materialmente competente define-se em função da natureza do acto atacado: de gestão pública ou de gestão privada.
A gestão, neste caso, é pública, quer atenta a entidade que a realiza (a requerida actua como concessionária do Estado, portanto, em nome dele), quer a natureza do objecto (obra pública de construção de um aterro sanitário), quer os fins tidos em vista (prosseguimento do interesse público consistente na protecção do ambiente, pela valorização dos resíduos sólidos urbanos).
No caso presente, as providências requeridas seriam contrárias a decisões administrativas, pelo que, só revogadas ou anuladas estas, se podem obter os efeitos pretendidos com o procedimento.
Daí, caber a solução do litígio à jurisdição administrativa: art. 212, nº3 da CRP e art. 3 do ETAF.

Por outro lado, só a solução aqui adoptada (competência material do foro administrativo, porque a providência requerida consiste na não realização de uma obra de interesse público determinada pela autoridade administrativa competente) se compagina com a regra do art. 414 do CPC: as obras do Estado e das demais pessoas colectivas públicas e das entidades concessionárias de obras ou serviços públicos não podem ser embargadas, quando o litígio se reportar a uma relação jurídico-administrativa, caso em que a defesa dos direitos ou interesses lesados se efectuará através dos meios previstos na lei de processo administrativo contencioso.
De facto, a providência requerida em primeiro lugar corresponde substancialmente a um embargo de obra nova, que, nos termos do dito art. 414, não pode ter lugar nos tribunais comuns.
Determinar, neste caso, a primeira providência requerida seria fraudar a proibição legal do art. 414 do CPC, concedendo o embargo proibido, tão só porque "enroupado" de providência cautelar.
No que toca à segunda providência requerida, dir-se-á que não pode avaliar-se o mérito dos pedidos formulados, sem se avaliar a legalidade ou, pelo menos contrastar o mérito das decisões administrativas que autorizaram a construção do aterro naquele local. E o tribunal comum não tem jurisdição para controlar a legalidade, menos o mérito, de decisões administrativas. Como se escreveu na primeira instância: "como pode o tribunal considerar o local inidóneo, se existe uma decisão administrativa que, ao invés, o considera idóneo? Como se pode decretar que a Ré se abstenha de proceder à execução de actividades ou obras que integram o objecto do contrato de concessão entre esta celebrado e o Estado Português, no local, quando esse local foi considerado idóneo por decisão administrativa?".
Como pode o tribunal comum, abstraindo da legalidade e do mérito da decisão administrativa que lhe está na base (para o que não tem competência legal), saber se o local mais idóneo para a construção do Aterro é a Quinta X (como as instâncias competentes decidiram), ou as Y (como os requerentes entendem)?

Além de que o tribunal comum não tem competência legal para considerar idóneo ou não um local para aí construir um aterro sanitário, a qual cabe em exclusivo à entidades previstas na lei: DL 239/97.

Acompanham-se as alegações da recorrente na parte em que sublinha que as decisões administrativas relativas à localização do aterro só poderiam ser postas em crise através de uma declaração judicial de ilegalidade, o que só é possível na jurisdição administrativa; e o pedido de abstenção de continuação da obra a fim de se evitar danos ambientais, sempre seria acessório de um processo principal, e esse só podia ser aquele em que se discutiria a legalidade do acto que autorizou o aterro naquele lugar. Ora, o tribunal competente para o meio cautelar só pode ser o que o for para o processo principal.
O uso deste procedimento cautelar importaria um duplo desvio aos princípios (sem que se queira dizer, note-se bem, que essa tenha sido a intenção dos requerentes): por um lado, à norma que proíbe o embargo de obra nova por parte do Estado (art. 414 do CPC); por outro, ao princípio de que não pode impugnar-se uma actividade autorizada, sem se atacar a autorização. De facto, neste procedimento pretende-se que se não faça o aterro naquele local, mas não se ataca a decisão que autorizou que fosse feito naquele local.
Por outro lado, e no que tange à terceira providência requerida, quem tomou a deliberação de alterar a localização do Aterro não foi a requerida "F", mas a Associação de Municípios do Oeste, cuja deliberação é de natureza claramente administrativa.
Como se acentuou na primeira instância, "saber se o processo de autorização foi ou não concedido e, caso o não tenha sido, em que medida é que afecta a execução dessas obras, deve ser apreciado nos tribunais administrativos, bem como o deve ser a eventual violação da decisão administrativa em caso de alteração da localização do aterro sanitário".

Passemos a analisar brevemente os fundamentos da decisão recorrida (acórdão recorrido).
A disposição do art. 212, nº3 da CRPortuguesa tem, naturalmente, dada a sua hierarquia, de prevalecer sobre a norma do art. 45, nº1 da Lei 11/87 (Lei de Bases do Ambiente). Daí que, se houver conflito entre ambas, se deva aplicar a primeira.
No entanto, nem vemos que haja conflito, desde que o art. 45, nº1 seja interpretado, como parece que deve ser, no sentido de que a competência dos tribunais de comarca para as acções previstas no art. 41 da LBA não prejudica os casos em que competentes, por se tratar de relações jurídico-administrativas, são os tribunais administrativos. Tanto mais que o texto do artigo sugere que se trata de questões de natureza civil ("acções destinadas ao ressarcimento dos danos patrimoniais ou morais, em consequência de condutas que agridam o ambiente").
De forma aparentemente diversa se pronunciou já o Tribunal Constitucional, em seu acórdão nº 458/99, de 13/07/99 (no qual se espelha bem a discutibilidade da questão: julgado na primeira instância competente o tribunal administrativo, julgado o comum na Relação, de novo o administrativo no STJ e de novo o comum no TC).
No entanto, este Aresto do TC, além de não ter declarado a inconstitucionalidade de qualquer norma legal, nem de assumir força obrigatória geral - e só nesse caso ele seria obrigatório para nós - , talvez se concilie, afinal, com a solução que vimos defendendo.
Aí se entendeu não haver "uma reserva absoluta de matérias substancialmente administrativas aos tribunais administrativos, não sendo proibida constitucionalmente uma atribuição pontual a outros tribunais da competência para conhecer de questões substancialmente administrativas". E dá como exemplos: o julgamento de recursos da aplicação de coimas, recursos de decisões administrativas em matéria de patentes, certos casos de contencioso de actos dos conservadores e notários, recursos das decisões do CSM.
Passando por alto saber se nesses casos temos decisões substancialmente administrativas de que há recurso judicial (como o TC parece supor), ou antes decisões substancialmente contenciosas decididas administrativamente, com recurso contencioso - o certo é, porém, que tais casos não têm como o nosso o necessário parentesco.
No nosso caso, os actos praticados são iniludivelmente administrativos - quer quanto ao sujeito, quer quanto à natureza do objecto, quer quanto ao fim - praticados por entidades administrativas no uso da sua competência legal.
Por outro lado, não parece que o art. 45 da Lei 11/87, de 07/04 (LBA) deva ter a interpretação ampla e indiscriminada que os recorrentes pretendem emprestar-lhe.
Segundo tal preceito, "o conhecimento das acções a que se referem os artigos 66, nº3 da CRP e 41 e 42 da presente lei é da competência dos tribunais comuns" (nº1); "nos termos dos artigos 66, nº3 da CRP e 40 da presente lei, os lesados têm legitimidade para demandar os infractores nos tribunais comuns para obtenção das correspondentes indemnizações" (nº2).
Para compatibilizar este preceito com os dos art. 66, nº3 e 212, nº3 da CRP parece que uma só via é possível: no art. 66, nº1 confere-se o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (e o dever de o defender); no nº3 do mesmo art. 66 atribui-se a todos o direito de promover, nos termos da lei, a prevenção ou cessação dos factores de degradação do ambiente, bem como, em caso de lesão directa, o direito à correspondente indemnização.
Mas não se diz em que ordem jurisdicional, administrativa ou comum, esses direitos devem ser exercidos. Pelo que, tratando-se de actos de gestão privada, a jurisdição é a comum, tratando-se de actos de gestão pública a jurisdição é a administrativa.
Daí que o predito art. 45 da LBA deva ser interpretado de acordo com o comando do art. 212, nº3 da CRP, no sentido de que na sua base se encontram actos de natureza não administrativa.
Tanto mais que os comandos dos art. 41 e 42 da LBA, para que aquele art. 45 também remete, se reportam à obrigação de indemnizar (art. 41), cuja matriz e recorte é civil e não administrativo, e ao meio de obter a suspensão imediata das actividades causadoras do dano, que declaradamente é o processo de embargo administrativo (art. 42).
Estas ponderações, que nos conduzem à compatibilização do falado art. 45 da LBA com o art. 212, nº3 da CRP, foram também sublinhados no acórdão da RL de 30/11/00 (fls. 2425 a 2435 dos autos), proferido no recurso de agravo interposto do despacho que indeferiu liminarmente o procedimento equivalente requerido no tribunal comum de Torres Vedras, e que já se referiu acima: "o art. 45 foi elaborado tendo em mente as acções de responsabilidade civil e esquecendo que muitas das acções previstas nos art. 41 e 42 podiam visar actos administrativos. Regulamentou-se o direito ao ambiente face a terceiros privados, e não se curou das situações em que os lesantes fossem entidades públicas no uso do seu jus imperii". E, "a actividade da F limita-se ao cumprimento da deliberação tomada pela Associação de Municípios do Oeste e esta foi claramente tomada no uso do jus imperii".
Acolhemos esta posição.
O tribunal materialmente competente, em princípio, é o judicial (comum): art. 66 do CPC. Mas, neste caso, há uma norma a atribuir competência material ao tribunal administrativo: art. 3 do DL 129/84, de 27/04 (ETAF).

Por outro lado, a invocação da Lei 83/95, de 31 de Agosto, não chega para dizer competente o tribunal comum, quando em causa está uma relação jurídico-administrativa.
O pedido formulado no procedimento incide directamente sobre a construção do aterro naquele local, pretendendo-se que a mesma não seja levada a efeito ("abster-se de proceder à execução"). Mas incide indirectamente sobre o acto administrativo que autorizou a construção do aterro naquele local, pelo que não podemos considerar uma coisa sem considerar a outra, visto que a construção do aterro ali é resultado do acto quer ali a autorizou.
Se a providência fosse decretada era frustrada a norma do art. 414 do CPC, e decretada uma providência sobre um acto que a todo o momento poderia recomeçar, visto que não se atingia a deliberação que o autorizou.

Conclusão.
A decisão recorrida não aplicou, como devia, o art. 212, nº3 da CRP; e não aplicou, como devia, ou interpretou menos bem, os art. 3, f) do ETAF, o art. 45 da LBA e os art. 8 e seguintes do DL 239/97.

Decisão
Pelo exposto, acordam em dar provimento ao agravo e assim em revogar a decisão recorrida, confirmando-se o decidido na primeira instância.
Custas pelos recorridos.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2002
Reis Figueira,
Lemos Triunfante,
Barros Caldeira.