Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2593
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
DIREITO DE PERSONALIDADE
Nº do Documento: SJ200610240025936
Data do Acordão: 10/24/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I - Provado que a construção efectuada pelo réu no seu prédio, priva a habitação dos autores, no seu lado poente, onde se situam quartos de dormir, da exposição normal e prolongada aos raios solares, para os autores serem titulares do direito à demolição a que se arrogam com base na violação do direito à saúde, protegido no n.º 1 do art. 70.º do CC, teriam de demonstrar que a privação da exposição normal e prolongada aos raios solares na fachada poente da sua habitação afecta as condições de salubridade do seu prédio, sendo de molde a causar-lhes problemas de saúde.
II - Não tendo os autores demonstrado que a exposição aos raios solares e o nível de luminosidade com que ficaram não garantam minimamente a sua qualidade de vida, no que respeita à pretensa violação dos seus direitos de personalidade, não pode senão a diminuição dessas condições que da construção do réu lhes resultou ser considerada como uma consequência normal e necessária da transformação lícita do prédio vizinho.
III - Não tendo o réu violado, com a construção efectuada, qualquer das disposições do CC que impõem restrições ao direito de propriedade (nomeadamente os arts. 1346.º a 1352.º, 1360.º, e 1362.º a 1365.º), tanto mais que, para além de os autores não beneficiarem sequer de qualquer servidão de vistas, nenhuma disposição existe que proíba o proprietário de fazer no seu prédio, construção que entrave, total ou parcialmente, a luz natural do prédio vizinho, ou retire, total ou parcialmente, as vistas até então fruídas - fora os casos de servidões -, ou que imponha uma distância mínima de 10,50 metros entre a nova construção e outra já existente, não se pode entender haver qualquer ilicitude na conduta do réu ao construir o novo edifício.
IV - O RGEU não se destina a proteger as construções anteriores à sua entrada em vigor, por ser manifesto que o que o legislador pretende é conseguir que todas as novas construções, mesmo as que venham a substituir as anteriormente existntes, satisfaçam os requisitos que ali prescreve, sem embargo de dessa forma originar também, reflexamente, benefícios para as construções anteriores.
V - Os direitos subjectivos dos particulares que o RGEU salvaguarda são apenas, em princípio, os de quem, após a sua entrada em vigor, proceda à construção ou reconstrução de edifícios, como bem se compreende: ao impor determinadas obrigações a quem, de futuro, construa ou reconstrua edifícios, é também a eles que reconhece, em compensação, de forma implícita, o direito de exigir de prevaricadores o cumprimento das respectivas normas se com o seu incumprimento ficarem lesados.
VI - Assim, não podem os autores invocar, em seu benefício, as normas do RGEU, que não têm por objectivo reconhecer-lhes direitos subjectivos nem conceder-lhes protecção aos seus interesses.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 27 de Dezembro de 2001, AA e marido, BB, propuseram contra CC acção com processo ordinário, pedindo, para além da declaração de nulidade de licença camarária emitida para construção executada pelo réu, que este seja condenado a demolir a parte dessa construção que confina com o lado Poente do prédio dos autores, por forma a que a distância mínima entre ela e este seja de 10,50 metros, a repor o rego foreiro como este se encontrava antes de o réu o ter destruído, e a pagar a cada um dos autores a quantia de 2.000.000$00, acrescida de juros legais de mora a contar da citação até integral pagamento.

Para tanto invocaram, em resumo, serem eles autores donos de um prédio composto por casa de habitação com rés – do – chão, …. andar e terreno, sendo o réu dono de um outro prédio que confronta pelo respectivo lado Nascente com aquele deles autores;

o réu iniciou no seu terreno uma construção que a Câmara Municipal, após alerta da autora, impôs que fosse alterada, assim como o respectivo projecto, porque a sua fachada Nascente taparia completamente três janelas de quartos de dormir existentes no lado Poente daquele prédio dos autores, sendo uma no rés – do – chão e duas no 1º andar, e a viga de travação, ao nível do 1º andar, passaria 10 cm para lá do telhado da casa dos autores;

na sequência, o réu criou uma reentrância na dita fachada, ao nível do ….. andar, assegurando um afastamento mínimo de três metros daquelas janelas do …. andar, mas não o arejamento, a iluminação natural e a exposição prolongada à acção directa dos raios solares, sendo que, ao nível do rés – do – chão, se mantém um muro de betão a menos de meio metro da janela aí localizada na casa dos autores;

a edificação do réu contraria o disposto nos art.ºs 58º, 59º e 73º do RGEU, 65º e 66º da CRP, e 9º, n.º 1, da Lei n.º 11/87, de 7/4, e viola o direito consagrado no art.º 70º do Cód. Civil;

com a dita construção, o réu tapou um rego foreiro, existente há mais de 200 anos, que atravessa o lugar de Pé da Serra e passava no limite do seu prédio, junto à parede Poente da casa dos autores, destinado à condução de águas de regadio (no Verão) e escoamento de águas pluviais, sendo a única forma de conduzir as águas pluviais da parte superior dessa localidade e evitar inundações; o que, interrompendo o normal curso de tais águas, causou a inundação da habitação dos autores, tornando inabitáveis alguns dos seus compartimentos;

as referidas limitações, até à obtenção da demolição da construção, causam aos autores uma vida sem condições de sanidade e repouso, coarctam-lhes a plena utilização (da casa) e provocam-lhes desconforto, angústia e tristeza.

Em contestação, o réu invocou incompetência absoluta do Tribunal para conhecer dos alegados afastamentos resultantes de lei administrativa com vista a garantir a salubridade do prédio, e a excepção de litispendência por a autora ter impugnado o acto de licenciamento, em recurso administrativo, no qual são discutidas tais questões;

também impugnou os factos invocados pelos autores, dizendo que não tinham estes o direito, aliás por eles não invocado, de gozar servidão de ar e vistas por qualquer das ditas aberturas, sendo que, ainda assim, a abertura do rés – do – chão fica a cerca de 1,5 metro da empena do prédio do réu e media 0,15 m X 0,30 m até que foi alargada pelos autores em 1999/2000;

acrescentou desconhecer o alegado quanto ao rego foreiro, sendo que o mesmo, pelo menos desde há dez anos, não existe;

em reconvenção, pediu a condenação dos autores a fecharem a abertura – janela do rés – do – chão.

Houve réplica, em que os autores sustentaram que a janela do rés – do – chão se mantinha igual havia décadas.

Foi proferido despacho saneador que julgou procedente a excepção de incompetência absoluta do Tribunal, decisão essa revogada pela Relação em recurso oportunamente interposto.

Enumerada a matéria de facto desde logo dada por assente e elaborada a base instrutória, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido decidida, a fls. 471-472, a matéria de facto sujeita a instrução.

Após alegações de direito apresentadas por ambas as partes, foi proferida, a fls. 525 a 549, sentença que julgou a acção parcialmente procedente e a reconvenção improcedente, condenando o réu a repor o rego foreiro na situação em que este se encontrava antes de o ter destruído, e a pagar a ambos os autores a quantia de 5.000,00 euros, acrescida dos respectivos juros legais de mora a contar da citação até integral pagamento, absolvendo a ré do demais pedido e os autores do pedido reconvencional.

Apelaram autores e réu, tendo a Relação negado provimento a ambos os recursos e confirmado a sentença ali recorrida, por acórdão de que vem interposta a presente revista, de novo por autores e réu, que, em alegações, formularam as seguintes conclusões:

I – Os autores:

1ª - É realidade que não existe uma norma que, concreta e especificamente, determine que um proprietário não pode “fazer no seu prédio construção que entrave, total ou parcialmente, a entrada de luz natural no prédio vizinho”; o que não implica que esse proprietário o possa fazer;

2ª - E isso pela razão de existirem normas destinadas a proteger os direitos de personalidade de quem é lesado com esse tipo de obras, nomeadamente o art.º 70º do Cód. Civil, cuja violação por parte do réu se patenteia nos factos provados relativamente aos autores;

3ª - Tendo ficado demonstrado que a construção do réu priva efectivamente o lado Poente da habitação dos autores da exposição normal e prolongada aos raios solares, onde se situam quartos de dormir dessa habitação, como ficou, daí resulta que essa construção atenta contra as condições de salubridade do prédio dos autores e contra a saúde das pessoas que no mesmo habitam;

4ª - O que é dizer, tal construção atenta contra os direitos de personalidade deles autores, protegidos no art.º 70º do Cód. Civil – tutela essa que é hoje comumente aceite;

5ª - Há, inclusivamente, um “direito a um nível de luminosidade” conveniente à saúde, bem estar e conforto na habitação dos autores (Lei n.º 118/87, de 7/4 – Lei de Bases do Ambiente – art.º 9º, n.º 1), direito dos autores que se encontra patentemente violado pela construção do réu;

6ª - Pelo que desde logo por esta via não será acertada a asserção da sentença quando afirma que não haveria, com a construção do réu, “a violação de qualquer direito subjectivo ou interesse legítimo” dos autores;

7ª - Por outro lado, assiste, pois, aos autores, o direito de fazerem cessar as causas de violação ao seu direito de pleno gozo e fruição do seu prédio, ou seja, de obterem “a demolição da parte do edifício construído ilícita e lesivamente ao direito de fruição do lesado (proprietário do prédio vizinho) – art.ºs 483º, 562º, 564º e 466º, todos do Cód. Civil” (Ac. da Relação de Lisboa de 17/1/91, in Col. Jur., 1991, I – 127);

8ª - Por outro lado e sem prescindir, o acórdão recorrido entendeu que as normas do RGEU não visariam “a protecção de qualquer outro interesse, para além do interesse público da salubridade das novas construções, designadamente o interesse ou o direito dos proprietários vizinhos, a não ser por forma reflexa”, concluindo que os autores não podiam “obter a protecção que não logram obter” (na perspectiva do acórdão, atrás rebatida) “pela das restrições de direito privado”;

9ª - Porém, sendo o direito de edificar de natureza privada, no respectivo exercício ele tem de se sujeitar tanto às normas de direito privado como às de direito público; e no que tange a estas últimas, se a finalidade última do RGEU foi definir as regras a que devem ficar submetidas as edificações urbanas em termos de protecção do interesse público, tal não impede que um particular possa invocar a sua violação perante outro, e de a fazer submeter à apreciação do Tribunal Comum;

10ª - Seria atentatório da unidade do sistema jurídico que, se um particular é lesado no mesmo direito por violação de normas destinadas a proteger interesses privados e concomitantemente por normas primordialmente destinadas a acautelar interesses públicos (ou seja, dos particulares considerados no seu conjunto), lhe estivesse vedado sustentar essa violação num mesmo Tribunal, com o argumento de que estas últimas não seriam susceptíveis de o ser por em primeira mão não se destinarem a proteger interesses privados;

11ª - Num caso como o dos autos, em que a violação de direitos de personalidade resultou da edificação de um muro, de uma construção contígua a essa habitação, e uma vez que a protecção geral e abstracta que a lei civil não pode, por definição, determinar qual a distância que a mesma deve então ter relativamente à construção já existente,

12ª - A resposta a tal questão deverá buscar-se em normas do mesmo sistema jurídico, num diploma legal que tenha sido aprovado por um outro diploma com a mesma força e a mesma dignidade do que aprovou o Cód. Civil, normas essas que constituam afloramentos do mesmo direito constitucionalmente consagrado à qualidade de vida (CRP, art.ºs 65º e 66º). É o caso do RGEU,

13ª - Cujo art.º 60º, que regula a distância mínima entre fachadas, nas quais existam vãos de compartimentos de habitação (como é o caso), distância que não poderá ser inferior a 10 metros;

14ª - O seu art.º 58º estatui, do ponto de vista genérico, que não será permitida a edificação se não ficarem assegurados o arejamento, a iluminação natural e a exposição prolongada à acção directa dos raios solares; e o seu art.º 73º impõe o afastamento mínimo de três metros das janelas dos compartimentos das habitações em relação a qualquer muro ou fachada fronteiros e impede a existência de qualquer obstáculo à iluminação a menos de dois metros das mesmas;

15ª - E cujo art.º 59º impõe uma distância dos prédios a construir em relação aos prédios fronteiros não inferior à altura daqueles – tudo normas que se encontram, pois, grosseiramente violadas na construção perpetrada pelo réu – e que este Tribunal pode determinar que efectivamente o estão;

16ª - Em síntese, tanto pela primeira ordem de razões como pela segunda, assiste aos recorrentes o direito de obterem o decretamento da demolição da parte da obra deste que confina com o lado Poente do prédio deles,

17ª - Por forma a que a distância mínima entre o muro de betão e o prédio deles seja de dez metros e meio – tanto por ser esta (segundo o projecto) a altura da dita construção, como nos termos dos mencionados art.ºs 59º e 60º do RGEU, como – ainda – tal distância assegurar um mínimo de condições de luminosidade e exposição prolongada do prédio dos autores aos raios solares;

18ª - Assim não tendo entendido, o acórdão recorrido fez inexacta interpretação dos normativos citados nas conclusões 2ª, 4ª, 5ª, 7ª, 12ª a 15ª, e 17ª.

Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido na parte em que confirmou a absolvição do réu do pedido de demolição da identificada edificação, condenando-se o mesmo a proceder a essa demolição.

II – O réu:

1ª - Os Srs. Desembargadores reconhecem no acórdão recorrido que a atenta audição da prova gravada os fazia propender para uma interpretação diferente da que foi dada pela Mer.ma Juíza a quo de alguns dos depoimentos espelhados na decisão da 1ª instância;

2ª - Os Srs. Desembargadores que subscreveram o acórdão recorrido também estranharam a total rejeição da prova testemunhal das testemunhas do réu, sem qualquer referência que justificasse tal omissão, com o manifesto prejuízo da transparência total da mesma decisão recorrida “no despacho de fundamentação que finalizou a decisão”;

3ª - A ser assim, o que se impunha era ordenar a repetição do julgamento de forma a eliminar as dúvidas e deficiências apontadas;

ao decidir de forma diferente, o acórdão recorrido violou o disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 712º do Cód. Proc. Civil;

4ª - Ficou provado que o rego foreiro a que os autos aludem não era propriedade dos autores, que também não tinham nenhuma servidão sobre ele;

5ª - Assim, os autores não têm direito a exigir a reposição do rego;

6ª - Se com as obras e a destruição do rego houve alguma inundação, como está provado, de alguns dos compartimentos do prédio dos autores, a indemnização adequada é a imposição de obras que afastem ou impeçam de uma vez por todas qualquer inundação provocada pela inundação das águas das chuvas provenientes dos prédios com cotas superiores às dos autores e do réu;

7ª - Entende o réu que essas obras já as fez;

8ª - Mas se se entender que não é assim ou que tal facto não está provado, então o réu deve ser condenado apenas a fazer as obras necessárias para derivação das águas das chuvas de forma a que as mesmas não possam inundar o prédio dos autores;

9ª - O único facto ilícito que pode ser atribuído ao réu é o de não ter tomado providências de forma a que, ao destruir o rego foreiro, as águas das chuvas pudessem inundar os compartimentos do prédio dos autores;

10ª - Ao decidir de forma diferente, o acórdão recorrido violou o disposto nos art.ºs 483º, n.º 1, 487º, n.º 2, 342º, e 562º, todos do Cód. Civil;

11ª - Não vindo sequer invocados quaisquer danos materiais emergentes de tais inundações nem a sua duração, exagerado parece o montante indemnizatório atribuído, que deve ser reduzido no máximo a metade;

12ª - Ao decidir de forma diferente, o acórdão recorrido violou o disposto no art.º 562º do Cód. Civil.

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a improcedência da acção.

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Em contra alegações, os autores e o réu sustentaram a improcedência do recurso interposto pela respectiva contra parte.

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Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que os factos assentes são os como tais declarados no acórdão recorrido, para o qual nessa parte se remete ao abrigo do disposto nos art.ºs 726º e 713º, n.º 6, do Cód. Proc. Civil, uma vez que não há impugnação da matéria de facto nem fundamento para a sua alteração e este Supremo tem de aceitar os factos tal como fixados pela Relação (art.ºs 722º, n.º 2, e 729º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma).

I - Quanto ao recurso dos autores, suscitam eles as seguintes questões:

saber se a construção levada a cabo pelo réu atenta contra os direitos de personalidade deles autores, protegidos pelo art.º 70º do Cód. Civil, na medida em que priva o lado Poente da sua habitação, onde se situam quartos de dormir, da exposição normal e prolongada aos raios solares, assim atentando contra as condições de salubridade do prédio dos autores e por isso contra a saúde das pessoas que nele habitam e causando-lhes uma diminuição de luminosidade;

saber se, com a sua construção, o réu viola o direito dos autores ao pleno gozo e fruição do seu prédio;

saber se, face às normas do RGEU, a construção levada a cabo pelo réu tem de ficar afastada 10,50 metros do prédio dos autores.

Para decidir estas questões há que atentar em que se mostra assente que os autores adquiriram o seu prédio por escritura pública de 17/4/97, e que o réu, tendo adquirido o seu por escritura pública de 22/6/98, neste procedeu a uma construção com um muro em betão e um pilar que deitam para a fachada Poente do prédio dos autores, situados a uma distância desta fachada que varia entre 50 cm e 360 cm e a uma distância de 49 cm, respectivamente, tendo a mesma construção do réu, ao nível do 1º andar da habitação dos autores, um afastamento de três metros das duas janelas desse 1º andar;

essa construção do réu priva a habitação dos autores, no seu lado Poente, onde se situam quartos de dormir, da exposição normal e prolongada aos raios solares;

no rés – do – chão da mesma fachada Poente do prédio dos autores há uma janela, com a localização e configuração actual desde há mais de vinte anos, que dista da estrema com o prédio do réu menos de 1,50 metros.

Quanto à primeira questão, dispõe o art.º 70º do Cód. Civil que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral” (n.º 1), e que, “independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida” (n.º 2).

Entre os direitos de personalidade protegidos naquele n.º 1 conta-se indiscutivelmente o direito à saúde. O que implica que, para os autores serem considerados titulares do direito à demolição que aqui se arrogam com base na violação desse direito à saúde, teriam de demonstrar (art.º 342º, n.º 1, do Cód. Civil) que a privação da exposição normal e prolongada aos raios solares na fachada Poente da sua habitação afecta as condições de salubridade do seu prédio, sendo de molde a causar-lhes problemas de saúde.

Ora, tal não ficou provado, uma vez que não se ficou a saber em que medida se verifica aquela privação, que, atingindo apenas a fachada Poente da casa dos autores, nem sequer se mostra ser, mesmo só nessa fachada, total, para além do que, em toda a parte restante, a casa dos autores mantém a exposição que tinha aos raios solares, pois, encontrando-se a casa do réu a Poente, também só fica privada de exposição directa aos raios solares quando o Sol se encontra a Poente;

acresce que, embora essa privação possa causar desconforto, incómodo ou desagrado, não se prova que tenha necessariamente implicações nas condições de salubridade do prédio – como aconteceria se se tivesse provado, o que não se verifica dadas as respostas negativas aos pontos da base instrutória que versavam essa matéria, que o prédio do réu impedia o arejamento do prédio dos autores, ou que permitia condições de infiltração de humidades no prédio destes -, tanto assim que o próprio ponto da base instrutória em que se perguntava se as condições de salubridade da habitação ficavam diminuídas como resultado da forma como o muro fôra construído obteve resposta negativa.

E, no que respeita à luminosidade, embora seja certo que os autores têm direito a um nível de luminosidade conveniente à sua saúde, bem estar e conforto na sua habitação (art.º 9º, n.º 1, da Lei n.º 11/87, de 7/4 – Lei de Bases do Ambiente), dos factos provados não resulta que a extensão da privação da exposição aos raios solares seja de tal ordem que afecte aquele direito. Uma vez que não se mostra que se trata de uma privação total, bem pode acontecer que a luminosidade de que os autores ficaram a beneficiar seja suficiente para satisfação do comum das pessoas colocadas na situação daqueles, sem afastar as condições mínimas de salubridade.

Não demonstram, assim, os autores, que a exposição aos raios solares e o nível de luminosidade com que ficaram não garantam minimamente a sua qualidade de vida, pelo que, no que respeita à pretensa violação dos seus direitos de personalidade, não pode senão a diminuição dessas condições que da construção do réu lhes resultou ser considerada como uma consequência normal e necessária da transformação lícita do prédio vizinho.

Quanto à segunda questão, dos factos provados resulta que o réu, com a sua construção, não violou qualquer das disposições do Cód. Civil que impõem restrições ao direito de propriedade (nomeadamente os art.ºs 1.346º a 1.352º, 1.360º, e 1.362º a 1.365º), tanto mais que, para além de os autores não beneficiarem sequer de qualquer servidão de vistas, nenhuma disposição existe, como correctamente se considerou nas instâncias, que proíba o proprietário de fazer, no seu prédio, construção que entrave, total ou parcialmente, a luz natural do prédio vizinho, ou retire, total ou parcialmente, as vistas até então fruídas – fora os casos de servidões, aqui, como se disse, inexistentes -, ou que imponha uma distância mínima de 10,50 metros entre a nova construção e outra já existente.

Por isso, não se pode entender haver qualquer ilicitude na conduta do réu ao construir o novo edifício, mas apenas exercício do seu direito de propriedade dentro dos limites da lei e sem violação do direito dos autores a que por sua vez fruam o seu prédio, da mesma forma que aquele pode fruir o seu, sempre dentro dos limites, que a lei lhes fixa, resultantes da existência de prédio vizinho.

Finalmente, no que se refere às normas do RGEU, começa-se desde logo por notar que nenhuma das suas disposições impõe aquela distância mínima de 10,50 metros pretendida pelos autores.

Por outro lado, do preâmbulo do RGEU resulta com clareza que visa apenas as novas construções ou as reconstruções de edifícios já existentes, isto é, as construções e reconstruções executadas depois da sua entrada em vigor: são essas que têm de ser levadas a cabo de harmonia com as suas normas, a fim de se garantir que os edifícios a construir ou a reconstruir tenham condições de salubridade e obedeçam a requisitos de solidez e de defesa contra riscos de incêndio, bem como a requisitos de ordem estética. Portanto, no que se refere à salubridade, que é o que os autores sustentam que o réu pôs em causa, o que o RGEU tem em vista proteger é o interesse público da salubridade das novas construções.

Não se destina, pois, o RGEU, a proteger as construções anteriores à sua entrada em vigor, por ser manifesto que o que o legislador pretende é conseguir que todas as novas construções, mesmo as que venham a substituir as anteriormente existentes, satisfaçam os requisitos que ali prescreve, sem embargo de dessa forma originar também, reflexamente, benefícios para as construções anteriores. Pelo que os direitos subjectivos dos particulares que aquele Regulamento salvaguarda são apenas, em princípio, os de quem, após a sua entrada em vigor, proceda à construção ou reconstrução de edifícios, como bem se compreende: ao impor determinadas obrigações a quem, de futuro, construa ou reconstrua edifícios, é também a eles que reconhece, em compensação, de forma implícita, o direito de exigir de prevaricadores o cumprimento das respectivas normas se com o seu incumprimento ficarem lesados.

Não mostram os autores que se encontrem nesta situação, pois, embora apenas tenham adquirido o seu prédio em 1997, se ignora a data da sua construção ou reconstrução, que forçosamente foi muito anterior, tanto assim que a aludida janela do rés – do – chão existe com a localização e configuração de hoje desde há mais de vinte anos.

Assim, não podem os autores invocar, em seu benefício, as normas do RGEU, que não têm por objectivo reconhecer-lhes direitos subjectivos nem conceder-lhes protecção aos seus interesses.

De todo o modo, sempre se dirá que são bem claros os termos do dispositivo do art.º 58º do RGEU, invocado pelos autores como tendo sido violado pelo réu: o que nele se dispõe é que a construção ou reconstrução de qualquer edifício se deve executar por forma que fiquem assegurados o arejamento, iluminação natural e exposição prolongada à acção directa dos raios solares, e bem assim o seu abastecimento de água potável e a evacuação inofensiva dos esgotos. Ou seja, refere-se apenas ao arejamento, à iluminação natural e à exposição à acção directa dos raios solares do próprio edifício a construir e não de edifícios pré-existentes.

Da mesma forma, o disposto no art.º 60º do RGEU, que fixa a distância mínima de 10,00 metros entre fachadas de edificações nas quais existam vãos de compartimentos de habitação e não de 10,50 metros, refere-se apenas a construções projectadas, e não já existentes, tanto mais que de outra forma poderia criar injusta e injustificadamente um privilégio ou uma autêntica servidão fora das hipóteses legais consagradas no art.º 1547º do Cód. Civil a favor de quem tivesse construído primeiro, abusivamente, com vãos de compartimentos de habitação para o lado do prédio vizinho sem cuidar de deixar qualquer distância, ou distância mínima de metro e meio, - como se passa com o prédio dos autores, cuja janela do rés – do - chão se encontra a menos de 1,50 metro da sua estrema confinante com o prédio do réu (art.º 1.360º, n.º 1, do Cód. Civil) -, entre janelas da sua edificação e a estrema do seu prédio, permitindo-lhe o aproveitamento de todo o seu terreno e privando o proprietário confinante, mesmo sem estar onerado com servidão de vistas, de aproveitar o seu.

Ao que acresce que os autores nem sequer demonstraram, como lhes cumpria, a existência de vãos de compartimentos de habitação na empena da construção do réu virada a Nascente.

E o mesmo se passa com o art.º 73º do RGEU, que igualmente se preocupou apenas com a fixação de requisitos exclusivamente respeitantes ao edifício a construir ao exigir a distância mínima de três metros entre as janelas nele abertas e o muro ou fachada a elas fronteiros, sendo, assim, de aplicação somente ao prédio projectado, e não se mostrando que este tenha, na empena virada para o prédio dos autores, qualquer janela.

Quanto ao art.º 59º, também invocado, não faz depender (salvo no que se refere ao seu § 4º) a distância entre prédios da altura de qualquer edificação, - sendo aliás de notar que as alturas dos prédios em causa nestes autos não se mostram apuradas -, antes determinando a forma de fixação da altura da edificação, que os autores não invocam sequer ter sido fixada de forma ilegal nem pedem que seja reduzida; isto, salvo, como se referiu, no que respeita ao seu § 4º. Mas nem este se poderia considerar violado, uma vez que não se mostra a existência da situação nele prevista, que é a de interrupção de continuidade numa fila de construções.

Não pode, em consequência, reconhecer-se razão aos recorrentes autores.

II - Quanto ao recurso do réu, suscita ele as questões de saber se devia ter sido ordenada a repetição do julgamento, violando o acórdão recorrido, ao não o fazer, o disposto no art.º 712º, n.ºs 3 e 4, do Cód. Proc. Civil; se os autores têm direito a exigir a reposição do rego na situação em que anteriormente se encontrava; e se está correcto o montante da indemnização fixada.

A este respeito ficou provado, além dos factos acima descritos, que a privação da exposição normal e prolongada aos raios solares do lado Poente do seu prédio em consequência da construção feita pelo réu, e a inundação do seu prédio, determinante da inabitabilidade de alguns compartimentos, por força do tapamento do rego pelo réu, causaram nos autores desconforto, angústia e tristeza.

No que se refere à primeira questão, não pode ser reconhecida razão ao réu, desde logo porque, como se vê pelo n.º 6 do citado art.º 712º, das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

No respeitante à segunda questão, há que reconhecer razão ao réu.

Isto porque, embora não se encontrando posta em causa a ilicitude da sua conduta na parte em que deu origem à inundação no prédio dos autores, é evidente que estes só teriam direito à reposição do rego foreiro na situação anterior se tivessem algum direito sobre ele, fosse de propriedade, ou fosse de servidão, que dizem ser de escoamento, ou se essa reposição fosse necessária para evitar novas inundações.

Dos factos provados, porém, para além de não conduzirem à aquisição da propriedade dos autores sobre o leito ou mesmo sobre as águas desse rego, não constam os suficientes para conduzirem à conclusão da existência de uma tal servidão em proveito do prédio dos autores, pelo que não comprovam estes que são titulares de qualquer direito àquela reposição, só exigível se não houvesse possibilidade de, com outras e diferentes obras, obviar a novas inundações. Mas, não tendo também, por outro lado, demonstrado os autores, como lhes cabia (art.º 342º, n.º 1, do Cód. Civil), impossibilidade da realização de outras obras susceptíveis de impedir novas inundações no seu prédio, inexiste fundamento para determinar a pretendida reposição, não podendo, além disso, ser determinada a realização de obras distintas para o efeito por essa realização não ter sido pedida (art.º 661º, n.º 1, do Cód. Civil).

Finalmente, quanto ao montante da indemnização arbitrada, é com efeito de entender que enferma de exagero.

Na verdade, por um lado, não se mostra provado qualquer dano patrimonial resultante da inundação ocorrida.

Depois, sendo necessário para existir obrigação de indemnizar nas hipóteses de responsabilidade por facto ilícito que, desde logo, haja ilicitude (art.º 483º, n.º 1, do Cód. Civil), e não se demonstrando, pelo acima exposto quanto ao recurso dos autores, a existência deste requisito por parte do réu no que respeita à privação da exposição prolongada à luz solar directa do lado Poente do prédio dos autores, o dano por estes sofrido com esse fundamento não é indemnizável.

Assim, só há lugar a indemnização quanto ao desconforto, angústia e tristeza resultantes da inundação, não se justificando, por não se provar qualquer excepcional intensidade desse sofrimento, a fixação do montante determinado nas instâncias, antes sendo de concluir que, à luz de critérios de equidade a que o art.º 496º, n.º 3, do Cód. Civil, manda atender, o montante adequado é o de 2.500,00 euros.

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Pelo exposto, acorda-se em negar a revista interposta pelos autores e em conceder parcialmente a revista interposta pelo réu, alterando-se o acórdão recorrido na parte em que fixou o montante indemnizatório de 5.000,00 euros e fixando-se este montante em 2.500,00 euros, revogando-se o mesmo na parte em que condenou o réu na reposição do dito rego foreiro, absolvendo-se o réu do pedido nessa parte e confirmando-se o mesmo acórdão em tudo o mais.

Custas, da revista dos autores, por eles, e, da revista do réu, por ambas as partes, na proporção de 2/3 pelos autores e de 1/3 pelo réu.

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Lisboa, 24 de Outubro de 2006


Silva Salazar
Afonso Correia
Ribeiro de Almeida