Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P3513
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LEAL HENRIQUES
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ACUSAÇÃO
ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
CRIME PARTICULAR
INSTRUÇÃO CRIMINAL
DADOS PESSOAIS
PROTECÇÃO DE DADOS
DEVER DE SIGILO
DEVASSA POR MEIO DA INFORMÁTICA
VIOLAÇÃO DE SEGREDO POR FUNCIONÁRIO
VIDA PRIVADA
TAXA DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200304090035133
Data do Acordão: 04/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 547/02
Data: 05/28/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. Na comarca de Portimão, e no Proc.º Inqº nº 2008/94/P, o Mº Pº, representado pelo Procurador da República A, actualmente a exercer funções no Tribunal Tributário de Évora, deduziu em 96.01.25 acusação contra o médico B, em serviço no Hospital Distrital local, imputando-lhe a prática de um crime de abandono, à data p.p. pelo artº 138º, nºs 1, al. b) e 3 do C.P. (versão de 1982) e actualmente pelo artº 138º, nºs. 1, al. b) e 3, al. b), do mesmo diploma, por considerar indiciada a sua responsabilidade na morte da menor C, entregue aos seus cuidados clínicos naquele Hospital e ocorrida em 14 de Maio de 1993.
Posteriormente, o referido médico, ao ter acedido a um "site" na Internet, através da URL (http: //terravista.pt/portosanto/2035) da autoria do mencionado Procurador, que tinha como título na 1ª página "Ministério Público Comarca de Portimão, Página não Oficial e em Reformulação", e que referia o seu conteúdo como Acusações (por tipo de crimes), verificou que da mesma página constava uma acusação intitulada "Abandono de Sinistrado/negligência médica", precisamente aquela que o ora participado tinha formulado contra si no apontado Inqº nº 2008/94/P na comarca de Portimão.
Face a tal constatação, e porque se sentiu com ela atingido na sua honra e dignidade profissional, apresentou queixa criminal contra o seu autor, onde refere:
- na referida acusação, levada à Internet, pelo Procurador A, constava, para além da descrição dos factos, a sua identificação, estado civil, profissão, especialidade e local de trabalho, nome da doente que veio a falecer e de outros intervenientes no caso, tudo de forma mais ou menos completa (o visado era identificado como B S.T. e ou B T, casado, médico, especialista de medicina interna em serviço no H.D.P. e a doente C G e/ou C);
- na dita "página" da Internet informava-se que o arguido, requerendo a instrução, não fora pronunciado, havendo recurso pendente dessa decisão, não sendo verdadeiro este último dado, porquanto, no momento da última actualização daquela "página" (00.08.20), a Relação de Évora, através de acórdão datado de 02.04.04, havia já confirmado o despacho de não pronúncia;
- o "site" em causa, em 01.01.27, registava 3845 visitantes e desde esta data até 01.03.22 foram efectuadas mais 507 visitas, o que revela um elevado grau de frequência.

O queixoso imputava, assim, ao Procurador A a prática de uma conduta que consistia no tratamento de valores pessoais automatizados, recolhidos e revelados de forma ilegítima, na medida em que estavam coberto pelo sigilo, sem que para tanto estivesse autorizado pelo próprio.

Concluída a respectiva investigação, veio o MºPº competente (junto da Relação de Évora) a proferir despacho de arquivamento do processo, louvando-se na seguinte fundamentação:

- «... no caso dos autos a acusação registada na página web limita-se a descrever factos relacionados com a vida profissional do arguido, ora queixoso, sem beliscar, no que quer que seja, com aspectos da sua vida íntima», já que «os factos nela narrados não fazem parte daquela esfera íntima a que se refere a "teoria das três esferas" da doutrina alemã mas dizem respeito à actividade profissional do ora queixoso que, por isso mesmo, se acham subtraídos da sua vida privada ...»;
- Pelo que o arguido, ao registar a acusação no "site", nos moldes atrás descritos, não mostra que tenha violado, manifestamente, o direito à intimidade da vida privada do queixoso, tanto mais que, aquando desse registo, onde a mesma fora deduzida, se não encontrava em segredo de justiça e ainda que os factos nela narrados eram do domínio público como o comprova a notícia inserida na edição do "Correio da Manhã" do dia 10.06.93 e o reconheceu o próprio queixoso, quando prestou declarações»;
- «Por outro lado, também, não resulta da prova carreada para os autos que o arguido, ao registar a acusação no "site" tenha sido movido por qualquer propósito de molestar o queixoso na sua honra, consideração e /ou dignidade profissional, já que procedeu de acordo, tão só e apenas, com o objectivo desse "site", isto é, introduzir-lhe acusações por tipo de crimes, sem querer visar os respectivos intervenientes processuais e/ou que os mesmos fossem facilmente identificáveis».

Descontente com esta tomada de posição, veio o queixoso Dr. B requerer a abertura da instrução, pretendendo que nela se apreciasse se existiam ou não indícios de o arguido, Procurador A, ter praticado os crimes de difamação (artº. 180º do C.P.), de não cumprimento de obrigações relativas a protecção de dados (artº 43º da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro), de violação do dever de sigilo (artº 47 da mesma Lei), de violação de segredo por funcionário (artº 383º do C.P.), de devassa da vida privada (artº 192º do dito Código).
Realizados os actos pertinentes, proferiu o senhor Juiz decisão instrutória final, na modalidade de não pronúncia, fundamentando-a em razões que aponta e que, dito em resumo, são as seguintes:

- quanto ao crime do artº 180º do C.P.(difamação):

-«Este crime tem a natureza de crime particular (artºs 180º e 188º do C.P). Logo, quanto a ele, não é admissível a instrução. Não tendo o assistente deduzido acusação dominante ... (artº 285º do C.P.P.), o processo não pode prosseguir quanto a ele (art. 50º do C.P.P.).
Falta-lhe uma condição de prosseguibilidade»;

- quanto aos crimes dos artºs. 43º e 47º da Lei nº 67/98 (incumprimento de obrigações relativas a protecção de dados):

- «Da análise da acusação existente em http://terravista.pt/portosanto/2035... constata-se que as referências nela existentes relativas ao assistente são "B ST (médico internista que tratou a menor no Hospital D)", "DR. B T". As outras referências "C", "C G", "C" - esta expressão aparece 2 vezes no meio de um texto com 16 páginas -, "Hospital Distrital de ...", "Centro de Saúde de ...", "SA", "SAP de ...", "HDP", não são de molde a permitir, directa ou indirectamente, a identificação do cidadão B, casado, médico especialista de medicina interna no Hospital do Barlavento Algarvio (anterior Hospital Distrital de Portimão), residente na Urbanização Quinta do Pinheiro, Lote .., 8500 Portimão, portador do BI nº ......, passado pelo Arq. Id. Lisboa em 27.08.98, sem grande esforço ou demora. Mesmo com as duas referências expressas ...a "C" não era objectivamente fácil para qualquer cidadão médio do Algarve, ou mesmo de Portimão, identificar, através destas referências, o cidadão aqui assistente Dr. B, de entre os médicos na região existentes, nem mesmo atendendo à sua especialidade. Tanto mais que os factos ocorreram em "Maio de 1992" e o assistente só teve conhecimento da acusação muito mais tarde, mais de 6 anos depois, senão mesmo 7 - o "site" foi criado em meados de 1999 e o assistente teve conhecimento dela em Janeiro de 2000 (...)
- (...) Por todo o exposto, a acusação existente na Internet contra o assistente não contém um tratamento de dados pessoais e, como tal, que impusesse a notificação da Comissão Nacional de Protecção de Dados e, por conseguinte, as provas existentes nos autos não consubstanciam qualquer preenchimento do tipo legal de crime previsto no artº 43º ou 47º da Lei nº 67/98. É que o crime p.e p. neste artº 47º também exige, no preenchimento do elemento objectivo do tipo, que se esteja perante a revelação ou divulgação de "dados pessoais". E isto não se verifica, pois ... a acusação existente na Internet não contém "dados pessoais" do assistente»;

- quanto ao crime do artº 383º do Cód. Penal (violação de segredo por funcionário):

- «No que toca ao elemento subjectivo do tipo, o agente tem de actuar com dolo. No entanto, basta o dolo eventual. Mas exige-se um dolo específico. O agente tem de actuar com a específica intenção exigida no tipo, isto é, com a "intenção de obter, para si ou para outra pessoa, benefício, ou com a intenção de causar prejuízo ao interesse público ou a terceiros". Agindo com dolo genérico o funcionário será punido nos termos do artº 195º do CP (violação de segredo), supostos os demais requisitos. (...)
- (...) Constata-se, face às provas existentes nos autos - as declarações do arguido prestadas em sede de inquérito ... - e não infirmadas por qualquer outra espécie de prova ..., que o arguido não actuou com qualquer dolo específico (...)
- (...) Não existe, por isso, qualquer probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força das provas existentes nos autos, qualquer pena ou uma medida de segurança (artº 283º, nº 2, do C.P.P.) por este crime. Portanto não pode por ele ser pronunciado»;

- quanto ao crime do artº 195º do Cod. Penal (violação de segredo):

- «Segundo as declarações do assistente, ... a mãe da C "espalhou aos quatro ventos", "alto e bom som", o caso da acusação, tornando-o muito conhecido na cidade de Portimão e bem assim na ...de Silves (...). A esta publicidade dada ao caso pela mãe da infeliz C acresce a publicidade também dada ... pela imprensa (cfr. "Correio da Manhã" de 10.06.93).
- Donde se conclui ... que o caso já não era segredo. E se não existia segredo à data em que o arguido inseriu a acusação contra o ora assistente Dr. B, também se mostra impossível que o ora arguido tenha preenchido, com a sua conduta, os elementos objectivos deste tipo de crime»;

- quanto ao crime do artº 192º do Cód. Penal (devassa da vida privada):

- «... face às provas existentes nos autos, facilmente se constata que a acusação existente no endereço http://terravista.pt/portosanto/2035 ... se circunscreve aos factos relacionados com a vida profissional do arguido, deixando completamente intacta a sua área de reserva eminentemente pessoal ..., o seu último reduto do right to be alone, ou, a sua "última e inviolável área nuclear da liberdade pessoal". Nada disto a acusação belisca. A privacidade-intimidade do assistente é absolutamente deixada de parte pela dita acusação.
- Por conseguinte nunca se poderia ter por preenchido o elemento objectivo do tipo, que é precisamente condicionado no seu conteúdo e alcance por esta privacidade - intimidade.
- No que toca ao elemento subjectivo do tipo faz-se depender a punibilidade da intenção de "devassar a vida privada das pessoas, designadamente a vida familiar ou sexual". Trata-se, pois, de um dolo específico ... Ora também não se verifica este dolo específico ... A intenção do arguido ao fazer o dito "site" foi a de introduzir nele a acusação contra o assistente, entre muitas outras acusações e outras peças processuais do Mº Pº de Portimão, foi fazer uma página referente à actividade do MºPº»;

- quanto ao crime do artº 193º do Cód. Penal (devassa por meio de informática ):

-«...a acusação existente no endereço http://terravista.pt/portosanto/2035 ... não contém qualquer tratamento de dados. Logo e pelo exposto não se pode ter por preenchido o elemento objectivo do tipo».

Inconformado com tal decisão dela interpôs recurso o assistente para este Supremo Tribunal de Justiça, motivando-o para assim concluir:

- «O Senhor Magistrado que presidiu ao Inquérito e, logo que o declarou encerrado, deveria ter notificado o queixoso para deduzir acusação particular, por força do art.º 285°. do C.P.P ., o que não fez.
- De qualquer modo, o requerimento instrutório pode constituir a acusação particular pois contém todos os elementos exigíveis e cumpre os requisitos legais para o efeito.
- Pelo que não existe impedimento ao prosseguimento do processo no que diz respeito ao crime particular.
- Foram violados os artºs 50°. e 285°. do C.P .P ..
- Socialmente, para que um cidadão seja identificado, não é preciso que o seja da forma como o Senhor Juiz de Instrução enuncia.
- E um médico, como é o caso do recorrente, é normalmente conhecido pelo seu nome profissional e local de trabalho, estando estes elementos perfeitamente evidenciados na acusação publicada na web, com referências a muitos outros que se conjugam e num contexto descritivo que permite a conclusão fácil de se tratar da pessoa do recorrente.
- Não é por acaso que os cinco elementos da CNPD, entidade especialmente vocacionada para fazer a análise dos dados informáticos e que tem por missão fiscalizar o cumprimento da lei, relativa à protecção de dados pessoais, não tiveram qualquer dúvida em concluir do seguinte modo: "Comprova-se que os factos da acusação, incluindo a identificação (quase directa) do signatário, da paciente e de outros intervenientes são disponibilizados a qualquer visitante"... "Manifestamente, o procedimento seguido pelo autor da referida web page, viola o direito à intimidade da vida privada do requerente ".
- Para que se verifiquem os crimes previstos nos artºs 43° e 47°. da Lei n.º 67/98, não é exigível a utilização do padrão do "cidadão médio" referido pelo Sr. Juiz de Instrução, pois tratando-se de crimes de perigo, ele consuma-se independentemente de qualquer resultado ou evento no mundo exterior e é punível independentemente de quem venha a ter acesso ao site. Bastaria que fosse somente o assistente a acedê-lo.
- Foi dito nos artºs 32°. a 34° do requerimento instrutório e resulta do recorte do "Correio da Manhã", de 10.06.93, junto aos autos, que nunca o nome do recorrente foi nele mencionado nem dele consta qualquer elemento que, directa ou indirectamente, lhe seja dirigido. Pelo contrário, de forma genérica, foi feito pela mãe da C um elogio aos médicos e aos meios humanos que estiveram ao dispor desta.
- E mesmo que se considere que ela fez "publicidade" ao caso (termo excessivo e exagerado, pois a mãe da C não foi para os jornais nem para a televisão ou rádio, nem fez comícios ou espalhou comunicados contra o recorrente), junto das pessoas das suas relações e conhecidos, isso não justificaria que o arguido também a fizesse, agora pela Internet, meio susceptível de ser facilmente acedido por um universo de pessoas muito mais amplo.
- Os factos a que o assistente se referiu nas suas declarações em inquérito, a fls. 95, ocorreram muito antes da criação da página da web.
- Pelo que a acusação publicada na Internet e constante dos autos contém os seus dados pessoais tal qual eles vêm definidos no art.º 3° da Lei n.º 67/98 e foram analisados pela Comissão Nacional da Protecção de Dados.
- Foram violados os artºs 3°, 27°, 28°, 43° e 47°, da referida Lei.
- Pois que o arguido deveria ter sido pronunciado pela prática dos crimes previstos e punidos nos seus artºs 43°. e 47°.
- À data da colocação na Internet da acusação proferida contra o recorrente, ainda a mesma se encontrava protegida pelo segredo de justiça.
- O arguido detém, inquestionavelmente, a qualidade de funcionário e não estava autorizado a revelar o segredo de que tinha tomado conhecimento no exercício das suas funções.
- E, à custa de uma falsidade sobre o recorrente (o arguido afirmava que o processo estava em recurso quando ele já se encontrava definitivamente julgado com decisão transitada que ilibava o recorrente de toda a matéria acusatória), que tinha a obrigação de saber que o era, por força da sua própria função, permitiu-se fazer tal publicação na Internet, no seu exclusivo interesse, mais não fosse, para satisfação ou promoção pessoal.
- Não é aceitável que um magistrado não tenha consciência do que estava a fazer e das consequências da sua actuação para com terceiros, no caso concreto, para com o recorrente.
- O tipo subjectivo do crime exige somente o dolo eventual, pelo que o arguido deverá ser pronunciado pela prática do crime previsto e punido no art.º 383° do C.Penal, que também foi violado.
- No que ao recorrente diz respeito, nenhuma publicidade foi dada através da imprensa, pois que o Correio da Manhã de 10-06-93 não fala no seu nome. Ao contrário, refere-se de modo favorável aos médicos do Hospital de Portimão.
- A publicidade do caso não tem só por si relevância se não tiver associado a si o nome do recorrente, o que não consta no referido jornal.
- As intervenções da mãe da jovem falecida sempre existiram desde a ocorrência dos factos e no âmbito do que lhe era possível ter conhecimento.
- O conhecimento do processo e dos seus trâmites (decisão de não pronúncia falsamente em fase de recurso), e são estes que estão em causa, estavam no âmbito do arguido e só ele é que os publicitou.
- Aceitar-se a tese do Senhor Juiz de Instrução era abrir a porta a que nunca nenhum interveniente processual pudesse ser punido por violação do segredo de justiça.
- É excessivo que se tire a conclusão de que não existia segredo só porque a mãe da menor falou sobre o assunto em duas situações (1993 num jornal e em 1996 em alguns locais de Silves e Portimão).
- Pelo exposto, também o arguido deveria ter sido pronunciado pela prática do crime previsto e punido no artº 195° do C.P., que também se encontra violado.
- Embora se possa afastar a possibilidade da actuação do arguido se integrar no disposto no artigo 192°, em virtude de se afastar a punibilidade do dolo eventual, já quanto ao crime do artigo 193°. tal questão não se coloca.
- Como já foi dito, o site contém elementos de identificação quase directa do recorrente e, para além de conter as informações de carácter pessoal e profissional, imputa-lhe a prática de um crime que, na data da publicação, já tinha sido julgada improcedente. Mas o arguido afirmou que "(na sequência de instrução o arguido não foi pronunciado, tendo o MP. recorrido dessa decisão, mantendo-se pendente o recurso) ". E tinha a especial obrigação de saber que o que afirmava não era verdade.
- Com a agravante de ter mantido aquela afirmação mesmo após 09.03.2001, data em que diz ter feito a sua actualização, como deixou escrito.
- A acusação e a falsa informação de que o processo estava em recurso, integram-se claramente na devassa da vida privada do recorrente pois mantém a suspeita da prática de um crime que afinal já tinha sido decidido que não cometeu.
- O tipo legal do crime em causa supõe o dolo, bastando o dolo eventual. Não é necessária qualquer intenção específica para o preenchimento do crime.
- Daí que deva também o arguido ser pronunciado pelo crime p. e p. pelo art.º 193° do C. Penal, pelo que tal norma também foi violada.
- Não se encontra fundamentada a condenação do recorrente na taxa de justiça de 8 UCs.
- Tal montante é exorbitante e desajustado face aos critérios constantes no n°. 1 do art.º 82° do C.C.J., pelo que deverá ser alterado em conformidade.
- Foram violados os art.ºs 82° n° 1 e 83°, n° 2 do C.C.J.».

Respondeu o Mº Pº junto do tribunal recorrido para dizer, em síntese, o seguinte:

-« ... um requerimento de abertura da instrução nunca poderá equivaler à dedução de uma acusação, como se acha definida nos termos do artº 283º do CPP»;
- tratando-se de um crime particular (difamação), para além da queixa é necessário que nela o ofendido declare que deseja constituir-se assistente (cfr. nº 4 do artº 246º do CPP)», o que aquele não fez;
- no caso, «há muito se mostrava ultrapassado o prazo para apresentar queixa» (6 meses - artº 115º do C.P.), uma vez que só participou os factos em 01.03.28 e já tinha tido conhecimento da inserção da acusação na Internet em Janeiro de 2000;
- «... da análise da acusação vertida no "site" não era objectivamente fácil para qualquer cidadão médio identificar o aí arguido, como sendo o ora recorrente»;
- «Por outro lado, a acusação limita-se a descrever factos relacionados com a vida profissional do ora recorrente, não beliscando, no que quer que seja, com aspectos da sua vida íntima»;
- «...só se englobam no conceito de dados pessoais aqueles elementos que permitam uma identificação, sem grande esforço ou memória, o que não acontece na acusação em análise»;
- Além disso, «também inexistem ... indícios da prática dos crimes p. e p. nos artºs. 195º, 383º, 192º e 193º do C.P.»;
- Quanto aos crimes dos artºs. 195º e 383º porque, no caso de violação de segredo praticada por funcionário relativamente a factos apreendidos no exercício de funções, a situação é integrável no disposto no artº 383º e não do artº 195º, e tendo aquele crime natureza semi-pública, a queixa apresentada foi extemporânea (mais de 6 meses após o conhecimento dos factos);
- Além de que, pressupondo tal crime o dolo específico, não se indicia que o arguido «tivesse sido movido por um intenção especial de obter para si ou para outra pessoa benefício ou que tivesse a intenção de causar prejuízo ao interesse público ou a terceiros»;
- Relativamente ao crime do artº 192º do C.P., não tem o impugnante razão, primeiro porque «a acusação inserida no "site" apenas se reporta a factos relacionados com a vida profissional do ora recorrente», e segundo porque não se indicia « a intenção de devassar a sua vida privada», mostrando-se apenas o propósito de agir «de acordo com o objectivo desse "site", isto é, introduzir acusações por tipos de crime, sem querer visar os respectivos intervenientes processuais»;
- No que tange ao crime do artº 193º do mesmo Código, «a acusação inserida no "site" não contém qualquer tratamento de dados pessoais»;
- Finalmente quanto ao montante da taxa de justiça fixada no despacho de não pronúncia, atendendo a que o recorrente « exerce a profissão de médico especializado no Hospital Distrital de Portimão e no Hospital Particular do Algarve, exercendo também tal profissão no sector privado», «não seja temerário concluir que seja possuidor de uma desafogada situação económica, muito superior ao comum do cidadão médio», o que se harmoniza com o quantitativo estabelecido.

Respondeu igualmente o arguido, Procurador A, concluindo nestes termos:

- «A decisão recorrida não merece qualquer reparo, tendo aplicado correctamente a lei aos factos indiciados nos autos, chegando à única conclusão possível, qual seja, a de que daqueles não resultam indícios da prática de qualquer crime por parte do arguido;
- Pelo que o despacho de não-pronúncia que corroborou o entendimento anterior do Ministério Público deverá ser mantido, julgando-se improcedente o recurso.
- Sendo que, desde logo, nunca o arguido poderia ser pronunciado pela prática de qualquer crime, dado o facto de o requerimento de abertura de instrução não ter dado cumprimento ao disposto no art° 283º do C.P.P., aplicável por força do nº 2 do art° 287° do mesmo diploma - a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
- O assistente limitou-se a criticar o despacho de arquivamento produzido pelo Ministério Público, nada referindo, nomeadamente, quanto ao lugar, tempo, modo e motivação da prática do crime;
- Daqui que sempre estaria proibida a pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para abertura de instrução (art°s. 303º, n.º 3, e 309º, n.º 1, do C.P.P.).
- Mas, mesmo se assim não se entenda, certo é que dos autos não resultam indícios da prática de qualquer ilícito.
- Nunca poderia também, como pretende o recorrente, convolar-se em acusação particular pelo crime de difamação o próprio requerimento de abertura de instrução, sob pena de se violarem os mais básicos princípios de defesa do arguido e de se violar lei expressa (art°s. 246º, nº4 e 68°, nº 2, do C.P.P.);
- Pois que, não tendo o recorrente aquando da queixa manifestado o desejo de se constituir como assistente, só o solicitando já depois do despacho de arquivamento do MºPº, ao mesmo tempo que pedia a abertura de instrução, vedado lhe estava já deduzir aquela acusação particular;
- Sendo até que a questão se mostra ultrapassada pelo facto de o alegado crime de difamação se encontrar prescrito à data em que o arguido como tal ter sido constituído (o prazo prescricional referido no art° 118°, nº1, al. d), do C. Penal já havia decorrido nesse momento, tendo em conta que os factos dos autos ocorreram mais de 2 anos antes).
- Também no que se refere aos crimes imputados com referência à Lei n.º 67/98, não existem quaisquer indícios da sua prática, sendo até que esta Lei não é aplicável à conduta do arguido;
- Desde logo, apenas os colegas e amigos do assistente, pessoas que tinham conhecimento anterior dos factos é que ligaram a este a acusação constante no 'site' e conseguiram aperceber-se que era o recorrente o arguido naquela;
- Não sendo a identidade do assistente vertida na página 'web' em causa por forma a que qualquer pessoa, de forma simples e rápida, o identificasse;
- A norma constante no art° 3°, al. a), da Lei nº 67/98, quando refere que "é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social", tem que ser entendida como se dirigindo ao comum do cidadão, não a pessoas que lidam com a pessoa em causa, que dela e dos factos da sua vida têm conhecimento por outros meios;
- A entender-se diversamente, difícil seria encontrar alguém que nunca pudesse ser identificado ou referenciado, pois que todas as pessoas, na sua vida, passam por situações únicas, referenciáveis por todos quantos consigo se relacionam;
- Aliás, ao anonimizar a peça, cumpriu o arguido uma recomendação que a Comissão Nacional de Protecção de Dados elaborou, recomendação essa que esta Comissão reafirmou mais tarde, já no final do ano 2000, relativamente a peças jurídicas emanadas do STJ;
- Anonimização a que muitos 'sites' jurídicos ainda nem procederam na totalidade, como sucede, a título de exemplo, nos 'sites' www.pgr.pt, www.pre.pt e www.verbojurídico.pt, todos com motores de busca, em que constam peças processuais de diversa natureza (incluindo acusações no caso da PGR) com referências às identidades dos arguidos;
- Daqui que no caso dos autos, pelo contrário, não se possa falar na existência de "dados pessoais", o que afasta a prática destes crimes relacionados com dados informatizados, bem como, e desde logo, a prática dos outros crimes mencionados no requerimento de abertura de instrução e neste recurso, por o assistente não poder ser identificado pela generalidade das pessoas que acedessem ao "site";
- Aliás, mesmo a entender-se que no caso estavam em questão dados pessoais, nunca poderia entender-se o crime punido no art° 43°, n.º 1, al. a) da Lei n.º 67/98, de 26.10 como praticado, pois que para tal necessário seria um comportamento doloso específico por parte do arguido - o de intencionalmente omitir a notificação ou o pedido de autorização a que se referem os art°s. 27º e 28° ;
- Comportamento doloso esse que não se pode entender como verificado, antes afastado pela conduta do arguido ao informar o seu máximo superior hierárquico - a Procuradoria-Geral da República - da existência do "site";
- Por outro lado, os pedidos de autorização e a notificação à CNPD são exigíveis, como referem os artigos 27º e 28º, quando existe tratamento de dados pessoais, o que não se passava no caso, pois que não existiu, como refere o art° 30º, al. b) do mesmo diploma: "qualquer operação ou conjunto de operações sobre dados pessoais, [...], com comparação ou interconexão [...]";
- Na verdade, não existia no 'site' em referência nenhum motor de busca, nenhuma maneira de comparar dados, de os relacionar entre si, de chegar a qualquer conclusão através dos mesmos, de os relacionar com outros 'sites' ou ficheiros, qualquer conjunto estruturado de informações com aplicação de operações lógicas aos dados;
- Mas, mesmo a entender-se pela improcedência dos argumentos anteriores, nunca o arguido estaria obrigado a efectuar as comunicações e informações em causa à CNPD pois que o artº 27º, nº 4 refere estarem isentos "os tratamentos cuja única finalidade seja a manutenção de registos que, nos termos de disposições legislativas ou regulamentares, se destinem a informação do público em geral ou por qualquer pessoa que provar um interesse legítimo";
- Ora, como é admitido no Parecer da CNPD, no caso há também que ter em conta o princípio constitucional do direito à informação jurídica, consagrado no art° 20º, nº 2 da Constituição, sendo ainda que, por o processo não se encontrar em segredo de justiça, qualquer pessoa que mostrasse interesse legítimo pudesse e possa ainda obter as mesmas informações directamente do processo, nos termos do art° 90º do CPP (aí sem qualquer limitação quanto aos dados pessoais do arguido, nomeadamente nome completo, residência, etc.);
- Aliás, ao contrário do que o recorrente pretende fazer crer, nunca a Comissão de Protecção de Dados entendeu que o arguido violou as normas da Lei nº 67/98, nomeadamente as disposições legais que lhe imputa, pois que se assim tivesse efectivamente entendido teria instaurado contra o mesmo processo contraordenacional, ou teria, caso entendesse pela existência de crime, comunicado a situação ao Ministério Público.
- Quanto à violação do segredo de justiça não se pode concordar com o entendimento de que o mesmo só cessa após o despacho de pronúncia transitar em julgado, pois que é claro o art° 86° do CPP ao referir que o processo penal é, sob pena de nulidade, público, a partir da decisão instrutória, sendo-o até em momento anterior, nos casos em que a instrução é pedida pelo arguido, na sequência de acusação, e aquele não declarar que se opõe à publicidade;
- Na verdade, nenhum autor, à excepção do mencionado pelo recorrente (que em sede de requerimento instrutório manifestou expressamente dúvidas quanto a esta matéria) vai no mesmo sentido, não se conhecendo qualquer decisão jurisprudencial que apoie este entendimento. E tão pouco é esse o espírito da lei ou a sua letra, nem sequer, finalmente, a prática instituída nos tribunais;
- Aliás, seguindo as normas de interpretação constantes do art° 9° do Código Civil, não se poderá entender que o legislador pretendesse limitar a situação aos casos de trânsito em julgado da decisão instrutória, pois que, sempre que na lei processual penal se exige o trânsito em julgado de alguma decisão, tal é expressamente referido. Ora, sendo assim, terá que se entender necessariamente que o legislador, ao não mencionar a exigência de trânsito em julgado da decisão instrutória no art° 86º, nº1, não a exigiu, consagrando a solução mais acertada, exprimido adequadamente o seu pensamento, não sendo legítimo, para mais em direito criminal (em que é proibida a analogia e a interpretação extensiva) entender-se pela prática de crime face a situação não expressamente prevista na lei como facto ilícito;
- Daqui que, mesmo a existirem dúvidas quanto à matéria, nunca o arguido poderá ser prejudicado, ao ser seguida aquela orientação;
- E daqui que as considerações feitas àcerca da defesa dos interesses do arguido em ver mantido secreto o processo até decisão final não tenha correspondência na lei, não sendo essa a prática generalizada, mais uma vez se tendo de chamar a atenção para o 'site' da PGR onde se encontram vertidas acusações criminais, bem como para todos os outros 'sites' e até publicações (nomeadamente a Colectânea de Jurisprudência) em que se transcrevem peças processuais;
- Sendo ainda de notar que, mesmo se se entendesse que à data da colocação da acusação no 'site' o processo se encontrava em fase de segredo de justiça, nunca os autos poderiam prosseguir termos para julgamento do arguido pela prática do crime de violação do segredo de justiça, pois que o crime em causa só pode ser praticado dolosamente, o que não se mostra indiciado nos autos, por outro lado, não existem indícios de ter sido o mesmo consumado (apenas tentado, o que não é criminalmente punível), dado que aquela acusação só terá sido vista depois do momento em que transitou em julgado a decisão que manteve o despacho de não pronúncia e, finalmente, porque os autos nunca poderiam prosseguir termos contra o arguido pela prática deste tipo de ilícito, pois que o queixoso carece de legitimidade para, no que ao mesmo crime concerne, se constituir como assistente e requerer a abertura de instrução (sendo que, não obstante o queixoso tenha sido admitido a intervir nos autos como assistente, ao que o arguido não se opôs por , certamente por lapso, o Tribunal da Relação não ter dado cumprimento ao disposto no art° 68º, n.º 1, do C.P.P., certo é que tal decisão não faz caso julgado formal, podendo agora entender-se por aquela falta de legitimidade no que a este crime respeita);
- Também a circunstância de não ter sido actualizada a informação constante na página do 'site' em que se mencionava a pendência do recurso, quando este havia sido já decidido, não pode configurar a prática de ilícito criminal, tão pouco se podendo dizer que a acusação ali vertida é 'falsa'. A circunstância de a acusação não ter sido recebida, de ter sido proferida decisão de não pronúncia no seguimento daquela, não faz a acusação 'falsa'. Mantém a qualidade de peça processual, existe como tal;
- O que sucedeu foi que não se actualizou atempadamente a Informação constante a final da acusação na página 'web' (até porque esta não se destinava a fazer um relato do andamento do processo), o que, e ainda com certo esforço, o máximo que poderia levar era a entender-se que o arguido havia omitido uma acção - a alteração da página em que a acusação se encontrava -, no máximo, por negligência, o que não configura qualquer ilícito;
- A menção de última data de actualização do "site" não significava que todos os dados nele contidos estivessem actualizados a essa data, mas tão somente a última data em que tinham sido introduzidos novos elementos.
- Nunca qualquer intuito de o prejudicar ao manter a acusação no 'site', até porque nem sequer era identificável a pessoa do recorrente, sendo que a actualização que fez do 'site' abarcou primordialmente a página em que estavam ligações para outros 'sites' jurídicos;
- Prejuízo para o recorrente que nem se mostra por qualquer forma justificado ou justificável, dado que o arguido nem sequer conhece o recorrente, por nem sequer o ter interrogado como arguido no processo em que acabou por deduzir acusação, nenhuma relação tendo com o mesmo ou com a mãe da menor por aquele assistida (e que deu lugar à abertura de processo contra o aqui recorrente), sendo pessoa cuja fisionomia ainda hoje desconhece;
- Sendo que sempre poderia o recorrente, então, ao dar-se conta daquela desactualização, ter solicitado a actualização, o que nunca fez.
- Também quanto ao crime de violação de segredo não se pode entender como praticado pelo arguido, pelos motivos atrás referidos quanto ao crime de violação do segredo de justiça (único segredo que aqui poderia estar em causa);
- Sendo até que o próprio recorrente admitiu expressamente que os factos eram do conhecimento público em Portimão e Silves, até por referências que aos mesmos eram feitas pela mãe da menor que lhe imputava a morte da filha (chegando ao ponto de apresentar contra a mesma queixa pela prática de crime de difamação);
- Não sendo assim verdade que a mãe da menor o tenha elogiado publicamente, como pretende agora fazer crer, apenas com o objectivo de levar a considerar o aqui arguido como único responsável;
- Nem sequer corresponde à verdade essa sua alegação, pois que a mãe da menor acompanhou a acusação contra si deduzida no processo em que foi arguido, imputando-lhe a prática do crime, tendo aquela pleno conhecimento dos autos, sendo ali assistente.
- Quanto aos crimes referidos nos art°s. 192º e 193° do Código Penal, também não se verificam indícios da sua prática, como o próprio recorrente admite no que se refere ao primeiro deles, por inexistir o dolo específico, pois que no caso o que consta da acusação não são dados pessoais do foro pessoal do arguido, ou da sua vida privada, já que naquela apenas se descrevem factos relacionados com a sua vida profissional, pública;
- A intimidade da vida privada de cada um, que a lei protege, compreende aqueles actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos e afectos familiares, os costumes de vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até, por vezes, o amor da simplicidade, a parecer desconforme com a grandeza dos cargos e a elevação das posições sociais; em suma, tudo: sentimentos, acções e abstenções, que podem ser altamente meritórios do ponto de vista da pessoa a que se referem, mas que, vistos do exterior, tendem a apoucar a ideia que deles faz o público em geral (Parecer da PGR no 121/80, de 23 de Julho de 1981);
- "Esfera íntima da vida privada" constitui aquele sector da vida que se desenvolve entre as paredes domésticas e no âmbito da família e considera o direito da pessoa a conservar a discrição mesmo em torno dos acontecimentos e do desenvolvimento da sua vida como uma manifestação do "direito ao resguardo" (diritto alla riservatezza) - De Cupis, "Os Direitos da Personalidade", trad. de Adriano Vera Jardim, e António Miguel Caeiro, Morais Editora, Lisboa, 1961, págs. 142 e segs.;
- Daqui dever limitar-se a determinação do conceito de "vida privada" do nº 3 do artigo 35º da Constituição, à esfera da intimidade, ou seja, à esfera inviolável e intangível da vida privada, protegida de intromissões por parte de estranhos.
- Donde que, por os factos vertidos no 'site', mais concretamente na acusação, não conterem dados relativos à intimidade da vida privada, não se possa entender como tendo existido qualquer violação às normas constitucionais e penais que o assistente invoca;
- Aliás, o art° 86º, nº 3, do CPP refere que a publicidade do processo não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova, sendo que a autoridade judiciária deverá, oficiosamente ou a requerimento, especificar os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo (podendo até ordenar a sua destruição). No caso do processo do arguido nada requereu o mesmo, nem nada determinou o Mmº Juiz de Instrução, pois que não existiam no processo aquele tipo de dados, antes a referência a actos públicos praticados pelo arguido;
- A entender-se a divulgação de acusações e condenações criminais como violadores da reserva da vida privada e não referentes apenas à vida pública dos cidadãos, todos os 'sites' e publicações estariam em violação da lei, sendo criminalmente puníveis os seus responsáveis;
- Sendo que o parecer da Comissão Nacional de Dados mencionada nos autos não tenha, salvo o devido respeito, peso superior a diversos outros que têm sido proferidos e que apontam claramente para a conclusão contrária, acabando até por versar, no fundo, matéria para a qual a lei não lhe conferiu competência. (Sendo que, no que lhe competia, a CNPD nem sequer instaurou processo contraordenacional contra o arguido, tão pouco comunicou os factos ao Mº Pº para instauração de processo crime, assim entendendo pela não prática de ilícito).
- A actividade do arguido não merece assim qualquer censura, nomeadamente com relevância criminal, ao contrário do pretendido pelo recorrente, e tal como foi já entendido, quer em sede de inquérito, quer de instrução;
- O arguido, tal como informou o seu máximo superior hierárquico (o que, só por si, afastaria qualquer atitude dolosa no sentido de ofender ou prejudicar quem quer que fosse, nomeadamente o aqui recorrente, que não era mais do que um dos cerca de 100 arguidos que constavam nas acusações ali vertidas), limitou-se a criar uma página 'web' à semelhança de muitas outras existentes, contendo diversas informações àcerca dos serviços do Ministério Público na comarca onde então se encontrava colocado, tendo até o cuidado - que à data não se verificava, e ainda em certos casos se não verifica - de anonimizar os intervenientes processuais, colocando apenas peças que não se encontravam já abrangidas pelo segredo de justiça, tudo com vista a facilitar, dentro do possível, o exercício de funções por outros magistrados (nomeadamente por magistrados estagiários, que muitas vezes se defrontam com dificuldade naquele exercício) ;
- Não efectuou qualquer tratamento de dados, pois que se limitou a elaborar um índice por tipos de crimes, nunca se podendo relacionar os arguidos entre si ou com qualquer outro elemento, quer interno ao próprio 'site', quer externo;
- Não existiu assim qualquer intuito de ofensa à pessoa do aqui recorrente, pessoa que até nem conhece pessoalmente;
- Daqui que, para além das questões formais que sempre impossibilitariam a pronúncia do arguido, não resultarem dos autos indícios da prática de qualquer tipo de ilícito (nem sendo para isso necessário o recurso ao princípio 'in dubio pro reo'), correcta tendo sido a decisão de não-pronúncia, pois que daqueles indícios não resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena.
- Pelo que tal decisão deverá ser mantida.».

Neste Supremo Tribunal de Justiça o Mº Pº. promoveu se designasse dia para a realização da audiência, a qual veio a realizar-se com obediência ao legal formalismo, havendo agora que proferir decisão.

2. A situação objectiva que subjaz ao despacho de não pronúncia que desencadeou o presente recurso é a seguinte:

a. - Com data de 96.01.25, o Procurador da República na comarca de Portimão, Dr. A, que ora aqui figura como arguido, formulou contra o assistente/recorrente uma acusação no Procº de Inqº nº 2008/94/P, cujo teor era o seguinte:

«O Ministério Público, em processo comum com intervenção de tribunal singular, acusa :
B, casado, médico, nascido a 19.12.46 em Moçambique, filho de ...... e de ..... e residente no lote .., Urb. do Pinheiro, Portimão.
Porquanto:
No dia 13 de Maio de 1993, C, menor com 17 anos de idade, sentindo-se mal com uma crise de asma - doença de que padecia já há anos - deslocou-se ao S.A.P. de Silves, cerca das 23 horas e 30 minutos.
Após verificar que em tal local não lhe poderiam ser prestados os cuidados necessários, o médico ali de serviço determinou a transferência da menor para o Hospital Distrital mais próximo, o de Portimão, o que foi efectuado de ambulância.
Chegada a menor ao Hospital, logo os profissionais de saúde que a receberam e que estavam em serviço de permanência na urgência daquele Hospital lhe prestaram os cuidados necessários na situação, ministrando-lhe a medicação adequada e ligando-a a um ventilador dos existentes naquela unidade de saúde.
Verificando desde logo que, dado o estado da doente - cianosada, muito agitada, com muito baixa tensão arterial, batimentos cardíacos exagerados e com midríase (dilatação das pupilas que faz presumir a existência de lesões cerebrais) - se estava perante um caso de elevada gravidade, perante o qual o equipamento do Hospital Distrital de Portimão, nomeadamente em termos de ventiladores existentes, não seria suficiente para salvar a vida da doente.
Após as manobras iniciais, foi chamado o arguido, médico de medicina interna que se encontrava de prevenção à urgência, por ser aquela especialidade médica a que se reportava o caso da C.
O arguido compareceu prontamente no local, verificando o estado de saúde da menor, concordando com a medicação administrada e restantes manobras efectuadas.
Determinando a medicação a ser utilizada em seguida.
Logo se apercebendo que, dada a gravidade do estado de saúde da C, esta necessitava de ser assistida numa Unidade de Cuidados Intensivos, nomeadamente ligada a ventilador de capacidade que não existia no HDP, pois que o mais importante nestes casos é manter uma ventilação eficaz.
No entanto, nada fez nesse sentido.
Nomeadamente, não averiguou junto do Hospital de Faro se existia ventilador disponível.
Não estabeleceu qualquer contacto para transferir a doente para aquele Hospital ou para Hospital em Lisboa, por helicóptero, nessa mesma noite ou logo após o nascer do sol.
Antes saindo do local e deixando a doente entregue aos cuidados de uma médica de clínica geral, sem conhecimentos específicos na área em causa.
A qual manteve a medicação estabelecida pelo arguido, ao longo da noite, dada a condição de especialista daquele.
No entanto, cerca das 5 horas da madrugada, a C começou a ter vómitos de sangue abundantes, mostrando o seu estado de saúde estar a degradar-se rapidamente.
Face ao que a médica de clínica geral contactou telefonicamente o arguido, dando-lhe conta da situação.
No entanto este apenas lhe respondeu pela mesma via telefónica, dizendo-lhe para manter a medicação anterior, acrescentando um outro medicamento.
O que foi cumprido.
Assim se prolongando a agonia da C até que, cerca das 8 horas da manhã do dia 14 entrou de serviço, como chefe de equipa das urgências, um outro médico.
O qual, verificando o estado da doente, logo encetou diligências com vista à sua transferência para uma U.C.I..
O que, dadas as delongas necessárias em casos similares, só foi conseguido cerca das 11 horas e 45 minutos, momento em que a C foi colocado num helicóptero com destino ao Hospital de Stª Maria, em Lisboa.
Local onde, no entanto, acabou por chegar já sem vida, tendo falecido - como resulta do relatório de autópsia junto aos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido - por 'mal asmático'.
Tal desenlace foi resultado da conduta do arguido, que não acompanhou a doente nem diligenciou por qualquer meio com vista a removê-la para local adequado.
Não o fazendo quando a observou pela primeira vez, momento em que era já perceptível que a mesma não sobreviveria se se mantivesse no HDP, dada a escassez de meios deste que o arguido bem conhecia.
Nem quando alertado para o agravamento da situação.
Antes deixou a C apenas acompanhada por médica que não possuía as qualificações necessárias no caso e que até dada a impreparação específica na matéria, poderia não conseguir combater qualquer agravamento súbito da doente ou não lhe transmitir elementos importantes àcerca da situação, ausentando-se do local quando era o especialista de serviço para casos de urgência como aquele.
Sendo que nem quando avisado do agravamento da situação se dignou deslocar-se ao local ou, mesmo só então, diligenciar no sentido da transferência da C para uma U.C.I.
O que poderia ter sucedido, ou mesmo durante a noite - pois que o helicóptero se havia já deslocado anteriormente de noite ao HDP -, ou logo ao nascer do sol - caso se colocassem questões relacionadas com a falta de iluminação da pista do heliporto.
Como tal não aconteceu, acabou a transferência por ser efectuada demasiado tarde, assim não sendo possível salvar a vida da doente.
A conduta do arguido ao deixar a doente sem a sua assistência e sem diligenciar no sentido de a mesma ser socorrida pelos meios necessários foi por si levada a cabo de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo violar, essa sua actuação, as regras deontológicas a que está obrigado, bem assim como a lei.
Acabando a C por falecer por via dessa mesma conduta.
Incorreu o arguido, pelo exposto, na prática de um crime de abandono, p. e p. à data no art.º 138°, nºs. 1, al. b) e 3 do Código Penal (redacção original) e actualmente (face à entrada em vigor do Decreto-Lei n° 48/95, de 15 de Março), no artº 138°, nºs. 1, al. b) e 3) al. b), do mesmo diploma.

Prova:
Documental - a constante a fls. 5 a 8, 53 a 64, 74 a 117 e 193 a 195 do processo principal e 15 a 46, 55, 155 e 156 do apenso.
Pessoal - Testemunhas:
A. . D, id. a fls. 17;
B. . Dr. E, id. a fls. 121;
C. . Drª F, id. a fls. 143;
D. . Drª G, id. a fls. 155;
E. .H, id. a fls.177;
F. . Dr. I, id. a fls. 150;
G. . Dr. J, id. a fls. 147.

Medidas de coacção:
Entende-se como suficiente e adequado que o arguido aguarde os ulteriores termos processuais apenas sujeito à obrigação de prestar termo de identidade e residência (artº 196° do Código de Processo Penal).».

b.- Em meados de 1999 o arguido decidiu criar um "site" na Internet, tipo revista jurídica em suporte informático (sem motor de busca, cruzamento de informações ou descritores que facultassem a identificação de qualquer pessoa), cujo conteúdo era "Acusações", onde introduziu, por tipos de crimes, diversas peças por si elaboradas na comarca de Portimão, incluindo a acusação contra o assistente, depois de previamente lhe haver retirado o nome completo do arguido, da vítima, das testemunhas e do Hospital, que substituiu por iniciais (com excepção de por duas vezes ter deixado ficar o nome de B - o do arguido - e de em três pontos ter permanecido ou o nome de C, de C G. e ou de C - o da vítima), tudo de molde a impedir as respectivas identificações.

c. - Em 99.07.09 o Procurador A remeteu um e-mail à Procuradoria-Geral da República, dando conhecimento da criação daquele "site" e correspondente endereço, solicitando informação sobre eventuais objecções à existência de tal página, e em 99.11.03 dirigiu à mesma Procuradoria-Geral um ofício a melhorar a descrição do objectivo do mencionado "site", nunca lhe tendo sido posto pela hierarquia qualquer impedimento à sua manutenção.

d. - Em 01.01.27 o assistente teve acesso ao referido "site".
e. - A página em causa - http://terravista.pt/portosanto/2305 - já não se encontra disponível.

f. - A notícia da morte da vítima C foi amplamente difundida e comentada pela sua mãe em Portimão e Silves e veio publicada na edição do "Correio da Manhã" de 93.06.10, sob o título "Morte de Jovem Asmática Origina Inquérito em Silves", em decorrência de uma entrevista dada por aquela, onde fala das causas de internamento e dos cuidados médicos dados à filha no Hospital de Portimão e do posterior falecimento da mesma.
Estes, pois, os dados disponíveis.
Com o presente recurso pretende o assistente justamente pôr a responder em juízo o responsável pela introdução no já aludido "site" da Internet da acusação que no lugar próprio havia deduzido contra si, suscitando as seguintes questões nas conclusões da respectiva motivação:

1º - O requerimento que subscreveu para abertura da instrução valerá ou não como acusação para efeitos do prosseguimento do processo pela prática de um crime particular (difamação)?

2º - A inserção em "site" da Internet, e nos termos em que o foi, da acusação deduzida contra o recorrente no Inqº nº 2008/94, integra ou não a prática dos crimes de não cumprimento de obrigações relativas a protecção de dados (art. 43º da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro), violação do dever de sigilo (artº 47º da mesma Lei), violação de segredo por funcionário (artº 383º do C.P.), violação de segredo (artº 195º do mesmo Código), devassa da vida privada (artº 192º também desse Código) e devassa por meio de informática (artº 193º ainda do mesmo Diploma)?

3º - Admitindo a confirmação de pronúncia do arguido, não será exagerada a condenação do assistente em 8 Uc de taxa de justiça?

Quer o despacho de arquivamento dos autos, quer o subsequente despacho de não pronúncia - particularmente este - já dizem quase tudo o que importava reflectir sobre as questões ora levantadas pelo recorrente e que este já havia colocado no seu requerimento para abertura da instrução, pelo que, nesta sede, muito pouco se irá acrescentar para fundamentar a decisão.

Quanto à 1ª questão (substituição da acusação formal pelo requerimento em que se pediu a abertura da instrução relativamente a eventual crime de difamação) há que adiantar desde já, e independentemente de existirem ou não indícios factuais da prática de tal ilícito, que não estão reunidos os requisitos legais para que o procedimento criminal prossiga.
Na verdade, como flui de modo claro e inequívoco do estatuído na al. b) do nº 1 do art. 287º do C.P.P., o assistente só tem legitimidade para requerer a abertura da instrução quando estão em causa crimes públicos ou semi-públicos e mesmo aí apenas em relação a factos pelos quais o MºPº não tiver deduzido acusação.
Nas demais situações a instrução a requerimento do assistente é inadmissível.
Esta restrição harmoniza-se, de resto, com a posição que o assistente hoje assume na estrutura do processo penal, onde não pode deduzir acusação independentemente do Mº Pº relativamente a crimes não particulares, permitindo-se-lhe apenas, em tais situações, utilizar a via da instrução para apreciação judicial de factos relativamente aos quais o MºPº se absteve, total ou parcialmente, de acusar.
Ou seja, o assistente aparece aí numa 2ª linha, numa tentativa de levar a juízo o que o MºPº impediu de fazer.
É nestes termos que se tem entendido o preceito em causa:

«Sendo assim, se o MºPº acusou quanto a uma parte dos factos e se absteve em relação a outra parte, ao assistente caberá acompanhar o MºPº na parte que é objecto de acusação (acusando também) e, simultaneamente, requerer a abertura da instrução quanto aos factos em relação aos quais o Mº Pº se absteve.
Mas no caso de crimes particulares ... nunca o assistente poderá requerer a abertura da instrução.
Na verdade, aí é ele quem toma a iniciativa, acusando. Mas se o Mº Pº o não acompanhou não lhe cabe tomar qualquer atitude» (1)

Ora, no caso em apreço, estamos justamente perante um crime de natureza particular ( difamação - artºs. 180º e 188º, nº 1, ambos do C.P.), em que é inadmissível a instrução a requerimento do assistente, pelo que a que teve lugar nos autos apenas pode valer em relação aos demais crimes públicos ou semi-públicos denunciados.
Como assim, prejudicada fica a questão de saber se o requerimento para abertura da instrução poderá ou não valer como requerimento acusatório, partindo do princípio, como é óbvio, de que não seria extemporâneo.
Improcede, pois, esta questão.

Quanto à 2ª (indiciação dos demais crimes imputados ao arguido) a sua avaliação exige uma reflexão mais alongada e feita caso a caso.
Dois dos crimes invocados estão previstos na Lei de Protecção de Dados Pessoais (Lei nº 65/98 - artºs 43 e 47º).
Donde que importe - e em momento prévio à avaliação dos indícios recolhidos - saber se a conduta do arguido implicou ou não com a realidade prevista nos seus normativos.
Não é de todo fácil chegar-se ao exacto alcance do que sejam "dados pessoais".
É certo que a Lei se atreveu a avançar com uma definição, mas como em todas as definições -e muito mais nesta área tão sensível - não foi capaz de favorecer a captação do respectivo conteúdo.
Diz-se aí (2), com efeito, que por "dados pessoais" se entende qualquer informação, de qualquer natureza, e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável ("titular dos dados"); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social».
Pese embora a defeituosa e pouco esclarecedora definição da lei, é possível dela captar que "dados pessoais", para os fins que prevê, será toda e qualquer informação, relativa a uma pessoa singular que esteja identificada ou possa sê-lo, tendo essa informação a expressão que tiver.
O conceito em apreço, surge-nos, pois, demarcado pelas seguintes balizas:
- de um lado, uma informação àcerca de uma pessoa física;
- do outro, um titular dessa informação, que nela esteja explicitamente identificado ou seja identificável. (3)

Ou seja: para que se esteja perante um dado pessoal não basta a existência de uma informação relativa a uma pessoa individual, a um ser humano, exigindo-se mais que essa informação venha reportada a alguém em concreto, já completamente identificada ou contendo referências que permitam uma fácil, rápida e inequívoca identificação.
Tendo isto por assente, aceita-se que, no caso em apreço, a acusação lançada pelo arguido na Internet, e a que os autos aludem, constitui uma informação pessoal, na medida em que retrata aspectos da vida profissional de um cidadão, o que preenche, sem dúvida, um dos conteúdos da definição legal.
Mas já não parece que se possa dar por adquirido, sem discussão e sem dúvidas, que o segundo elemento do conceito ( o da identificação do titular dos dados) se tenha por verificada.
Que a pessoa a que a informação respeita não vem total e inequivocamente identificada na "site" parece não oferecer problema para ninguém, nem mesmo para o assistente.
Daí que a questão se desloque para a área do identificável, ou seja para a de saber se a acusação que o arguido introduziu na Internet permite, fácil e rapidamente, concluir que ela se refere ao assistente.
Entende este que sim, porque, segundo o seu entendimento, quem consultasse a "página", logo, logo, associava aquela acusação à sua pessoa, quer através do conteúdo da mesma acusação, quer com a ajuda das iniciais do seu nome, da profissão e do Hospital em que trabalhava, quer ainda por via da quase completa identificação da vítima do caso.
Em oposição se coloca o despacho de não pronúncia, quando pondera, como antes se assinalou, que a simples menção de "B ST" "Dr. B T" "Hospital D", "HDP", C", "C G.", "C" «não era objectivamente fácil para qualquer cidadão médio do Algarve, ou mesmo de Portimão, identificar, através destas referências o cidadão aqui assistente Dr. B , de entre os médicos na região existentes, nem mesmo atendendo à sua especialidade».
Lançados os dados há que os avaliar.
Sem grande esforço, crê-se que a razão está do lado do despacho de não pronúncia.
Na verdade, há desde logo a circunstância, aqui não despicienda, de os factos terem ocorrido em Maio de 1993 e só mais de 6 anos depois (em 1999) a acusação ter sido levada à Internet, portanto a uma distância tal no tempo que facilmente diluía na memória das pessoas próximas do caso os acontecimentos que o rodearam e os respectivos protagonistas.
E tanto assim que o número de pessoas que tomaram conhecimento do facto e que foram chamadas aos autos se circunscreveu a um reduzidíssimo universo e muito chegado ao assistente (amigos, funcionários seus ou colegas).
Por outro lado, as referências identificativas contidas na acusação transportada para a Internet estavam tão diluídas, por acção do próprio arguido com vista a dar-lhe o máximo anonimato possível, que não se tornava fácil e rápido identificar desde logo o assistente, como pressupõe a Comissão Nacional de Protecção de Dados (4).
Daí que arredada fique, por tais razões, a possibilidade de estarmos perante "dados pessoais" de alguém e que importe acautelar.
E assim sendo é impossível a verificação de qualquer dos crimes incluídos na Lei nº 65/98, nomeadamente os dos artºs. 43º e 47º, avançados pelo assistente, uma vez que, qualquer deles, pressupõe que estejam em causa "dados pessoais" de alguém identificado ou identificável.
Decidiu correctamente, portanto, e nessa parte, o despacho de não pronúncia que vem impugnado.

Voltemo-nos agora para os crimes do Código Penal, que também vêm questionados pelo assistente no seu recurso.
Comecemos, por razões de proximidade, pelo crime do artº 193º (devassa por meio de informática).
Quer pelos motivos antes referidos, quer pelas limitações impostas pelo tipo legal, tal ilícito é de ter como inverificado.
Na realidade, nem estamos perante "dados pessoais" de quem quer que esteja identificado ou seja facilmente identificável, nem a acusação introduzida na Internet pelo arguido se reporta às convicções políticas, religiosas ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada ou à origem étnica do assistente, uma vez que descreve uma situação ligada exclusivamente à vida profissional de um cidadão, o que é totalmente diferente.
Donde que também não mereça censura, relativamente a tal crime, o despacho recorrido.
Relativamente à infracção do artº 192º (devassa da vida privada), não se vê também onde o assistente possa ter razão.
Com efeito, o tipo aí definido está claramente delimitado pelo cordão da vida privada das pessoas.
«É esse exactamente o bem jurídico acautelado, ou seja, o direito à intimidade da vida privada, na qual se inclui a reserva da vida familiar, da vida sexual e (em certos casos - cfr. al. d) do nº 1) também da saúde, podendo eventualmente estender-se a outros tipos de intimidade pessoal (refere-se que a lei utiliza a expressão "designadamente")»(5)
Por conseguinte, a área que o preceito protege limita-se àquele núcleo individual e pessoal do cidadão que se quer longe do olhar e do conhecimento alheios, ou seja, aquelas actos que, não sendo secretos em si mesmos, devam subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos e afectos familiares, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e até, por vezes, o amor da simplicidade, a parecer desconforme com a natureza dos corpos e a elevação das posições sociais; em suma, tudo: sentimentos, acções e abstenções que podem ser altamente meritórios do ponto de vista da pessoa a que se referem mas que, vistas do exterior, tendem a apontar a ideia que delas faz o público em geral»(6)
Ora, a nada disto se refere a acusação que o arguido inscreveu na Internet, pois dela apenas constam actos da vida profissional do assistente, que nem de longe nem de perto constituem aspectos da sua vida privada.
Como tal é de ter como não indiciado qualquer crime desta espécie.
Um dos outros crimes apontados pelo assistente como tendo sido cometido pelo arguido é o do art. 383º do C.Penal.
Cuida este preceito da violação de segredo por funcionário.
E o seu objectivo é exactamente o da preservação de facto de que se teve ciência em razão do cargo e que importa, em homenagem ao interesse público, manter fora do conhecimento alheio, ainda que seja de uma só pessoa.
Daí que estejamos com NÉLSON HUNGRIA quando afirma que se faz mister que «entre as atribuições do agente se inclua o conhecimento do facto (tornando-se ele um depositário do segredo)», inexistindo crime «se o indiscreto funcionário ocasionalmente surpreendera o segredo, pouco importando que para isso tivesse contribuído sua qualidade de intraneus». (7)
Mas reclama-se mais para que o delito se consuma: exige-se ainda que o agente actue com intenção de obter benefício para si ou para outra pessoa, ou com a consciência de causar prejuízo ao interesse público ou a outra pessoa.
Ou seja: é requisito essencial da infracção o chamado dolo específico.
O que significa que não basta actuar ... é preciso que se actue com um determinado propósito. (8)
Se se agir com dolo meramente genérico - e como bem se acentua no despacho recorrido - a conduta cai na previsão do artº 195º, que constitui o preceito base e geral da punição de segredos.
Ora, na situação sob análise, não flui o mais leve indício de que o arguido tenha actuado com a intenção específica exigida pela lei, sendo até sintoma do contrário a circunstância de, previamente, ter inquirido da P.G.R. da legalidade da "página" que criou e de haver suprimido na acusação que levou à Internet referências que pudessem facilitar a identificação da pessoa visada.
Donde que nada haja que corrigir, nesse âmbito, ao despacho impugnado.
Finalmente caímos no tipo do artº 195º do C.P., que como ficou dito, absorve a censura da violação do segredo em geral, tido este como o «facto ou tema particular de cada um que se deseja esconder ou ocultar, isto é, que se deseja manter afastado do conhecimento de um círculo restrito de pessoas»(9)
O preceito em causa delimita o tipo tendo em atenção determinados factores.
Assim:
- «...o segredo circunscreve-se a factos ou termos concretos e verdadeiros (nunca a ideias, opiniões ou juízos), apenas conhecidos de um universo restrito de pessoas (circuito fechado) e que o seu titular legitimamente quer conservar reservado, isto é, sigiloso»;
- também se exige que o segredo «goze do carácter alheio, o que significa que tem que respeitar a alguém diferente da pessoa a quem se impõe a reserva;
- por fim, o conhecimento do segredo «tem que resultar exclusivamente do exercício da actividade profissional dos obrigados (estado, ofício, emprego, profissão ou arte), constituindo estes, pois, os confidentes necessários, ou seja, os que estão colocados em especial posição para recolher segredos, quer pela sua qualidade, quer pelo seu mister ».(10)

Mas apenas se exige, como ficou expresso, o dolo genérico, sendo, pois, indispensável, como se diz no despacho recorrido, que «o agente tenha conhecimento e vontade de que está a violar o segredo, o fim do agente é a violação do segredo (dolo directo) ou, pelo menos, o agente prevê como consequência possível da sua conduta a violação do segredo e, mesmo assim, assume o risco, conformando-se com a violação do segredo».
Construído o edifício jurídico atinente a este crime há que consultar a prova.
E esta pouco ou nada nos oferece que possa apoiar a tese do recorrente, como salienta o mesmo despacho impugnado e que nos limitamos a transcrever:

«Segundo as declarações do assistente ... a mãe da C "espalhou aos quatro ventos", "alto e bom som", o caso da acusação, tornando-o muito conhecido na cidade de Portimão e ...na de Silves. O assistente sobre isto disse: "(...) o caso constante da acusação foi muito conhecido na cidade de Portimão e ... na de Silves, em virtude de a mãe da doente não se coibir de falar publicamente no caso, inclusivamente acusando o ora depoente pela responsabilidade da morte da filha, o que originou que lhe tivesse movido um processo crime por difamação, tendo a mesma mãe da doente dado uma entrevista a um jornal que neste momento não pode precisar, sobre as circunstâncias em que ocorreu o internamento, o tratamento da sua filha no Hospital de Portimão e bem assim a razão do seu falecimento (...)".
A esta publicidade dada ao caso pela mãe da infeliz C acresce a publicidade também dada ao caso pela imprensa (cfr. "Correio da Manhã de 93.06.10...)».

Ora isto leva-nos facilmente a concluir que o facto já não constituía segredo para um círculo alargado de pessoas, donde a impossibilidade de se cometer um crime de revelação de algo que já não é sigiloso.
Também aí decidiu correctamente o despacho recorrido.

Para concluir há o problema - muito menos complicado - da taxa de justiça imposta naquele despacho ao assistente e que constitui a 3ª e última questão apresentada pelo recorrente.
O Senhor Juiz fixou-a em 8 UC, invocando os preceitos dos artºs. 515º nº 1, al. a) do C.P.P. e 83º, nº 2, do C.C. Judiciais.
Não se vê onde seja de censurar a fixação de tal montante, atendendo - como bem destaca o Mº Pº - à profissão do visado («médico especializado no Hospital Distrital de Portimão e no Hospital Particular do Algarve, exercendo também tal profissão no sector privado»), que lhe confere um estatuto sócio-económico «muito superior ao comum do cidadão médio», e a uma certa complexidade do processo (quantidade e diversidade de diligências realizadas e dos crimes imputados).
Daí que seja a mesma de manter.

3. De harmonia com o exposto, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar total provimento ao recurso, confirmando-se, assim, na íntegra, o despacho recorrido.

Pagará o assistente 10 UC de taxa de justiça.
Honorários à Exma. Defensora convocada para este auto: 3 UR

Lisboa, 9 de Abril de 2003.
Leal Henriques
Borges de Pinho
Pires Salpico
Henriques Gaspar
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(1) SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, Código de Processo Penal Anotado, II vol., 2ª ed., pág. 159.
(2) Artº. 3º, al. a), da Lei nº 65/98.
(3) Isto é: que sem grande esforço ou demora possa saber-se a que pessoa concreta se refere a informação (Deliberação nº 84/98, de 1 de Outubro, da Comissão Nacional de Protecção de Dados)
(4)Cfr. nota 3.
(5)LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, 2º Vol., 3ª ed., pág. 558.
(6)Parecer nº 121/80, de 81.07.23, da P.G,R., BMJ 309-142
(7)Comentário do Código Penal Brasileiro, Vol. IX, pág. 397.
(8)Cfr., neste sentido, HELENA MONIZ, Comentário Conimbricence do Código Penal, III, em análise ao art.º 383º.
(9)LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, 2º vol., 3ª ed., pág. 581.
(10)LEAL-HENRIQUES E SIMAS SANTOS, idem, pag.581