Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4352
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
ARRENDATÁRIO
CITAÇÃO
NULIDADE
UTILIZAÇÃO IMPRUDENTE
DETERIORAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
OBRAS
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: SJ200712180043527
Apenso:
Data do Acordão: 12/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
1. Não pode conhecer-se no recurso de revista da decisão proferida pela Relação que manteve o despacho proferido no tribunal da 1ª instância relativo ao indeferimento da arguição da nulidade da citação da ré.
2. O artigo 1038º, alínea h), do Código Civil comporta a interpretação extensiva no sentido de o arrendatário dever avisar o senhorio da necessidade de obras no locado, com vista à respectiva realização.
3. É gravemente imprudente e justificativa da resolução do contrato de arrendamento a situação duradoura do locado em que a arrendatária acumulava lixo, roedores e insectos, tinha a sanita entupida com areia, o soalho apodrecido, os vidros de quase todas as janelas quebrados, as paredes degradadas e a instalação eléctrica roída pelos ratos.
4. A dúvida sobre o montante da indemnização devida pela arrendatária aos senhorios justifica a sua fixação segundo juízos de equidade tendo em conta os factos relativos ao dano.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
AA, BB e CC intentaram, no dia 13 de Fevereiro de 2006, contra DD, acção declarativa constitutiva de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração de resolução de identificado contrato de arrendamento relativo ao primeiro andar esquerdo do prédio sito na Rua ....., nº ..., Paço de Arcos, e a condenação da ré a entregar-lho e pagar-lhes € 36 742,74 acrescidos de juros à taxa legal.
Fundaram a sua pretensão, por um lado, na circunstância de, na sua posição de senhorios, terem iniciado em 2002, no âmbito do plano Recria, as obras de recuperação do aludido prédio, e de a Câmara de Oeiras lhe haver determinado a realização de obras no locado, mas que a ré não permitiu a entrada, o que levou aquela autarquia, por deliberação de 24 de Novembro de 2004, a deliberar o seu despejo administrativo, executado em 14 de Dezembro de 2004
E, por outro, no facto de a ré ter derrubado as paredes interiores do locado e acumulado ao longo do tempo lixo, a par da sua degradação completa, e, consequentemente, de ter infringido o disposto nos artigos 64º, nº 1, alínea d), do Regime do Arrendamento Urbano e 1038º do Código Civil.
E, finalmente, nos prejuízos ditos resultantes do que despendeu com os trabalhos de recuperação do andar, retirada do lixo, eliminação da bicharada e remoção e guarda do recheio da casa no montante de € 36 742,74.
A ré foi considerada citada para os termos da causa por despacho proferido no dia 29 de Junho de 2006 e, face à ausência de contestação, foram declarados confessados os factos articulados pelos autores.
Ela agravou do mencionado despacho, admitido para subir diferidamente, e por sentença proferida no dia 10 de Outubro de 2006, foi declarada a resolução do contrato de arrendamento, condenada a ré a entregar a casa aos autores e a pagar-lhes € 36 742,74 acrescidos de juros a contar da citação.
Interpôs a ré recurso de apelação, e a Relação, por acórdão proferido no dia 24 de Maio de 2007, negou-lhe provimento, tal como ao recurso de agravo.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- tendo a citação sido feita em pessoa diversa da recorrente, o funcionário postal deveria tê-la advertido e responsabilizado nos termos do artigo 241.º do Código de Processo Civil;
- não o tendo feito e indicado erroneamente essa pessoa como a que devia ser citada, essa citação de terceiro é nula e sem efeito em relação à recorrente;
- ao referido erro de identificação e omissão da advertência do carteiro acresce a errada indicação da morada da recorrente, do que decorre a nulidade equivalente à falta de citação, só suprível mediante a sua repetição;
- a secretaria deveria ter advertido oficiosamente a recorrente por carta expedida em dois dias, nos termos do artigo 241º do Código de Processo Civil, dentro do prazo de contestação, condição de defesa nesse prazo, mas só o foi depois de esgotado;
- como consequência dessa falta de advertência, imputável ao tribunal, a recorrente não contestou no prazo devido, o que influi no exame e decisão da causa, gerando a nulidade, só suprível mediante a repetição da citação ou do alargamento do prazo de contestação;
- a Relação erra de direito ao considerar tais omissões irregularidades, o recomeço do prazo para arguir nulidades ou contestar em 26 de Maio de 2006, data da notificação do indeferimento do pedido de apoio judiciário;
- como a recorrente tinha constituído mandatário, que subscreveu o pedido de apoio judiciário, o seu indeferimento devia ser-lhe notificado, por força do artigo 52º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo;
- o prazo de contestação pela recorrente ainda não se esgotou, seja por erro, nulidade ou ineficácia da citação por extemporaneidade ou nulidade da advertência da secretaria, seja por a segurança social não haver notificado o seu mandatário;
- os factos provados não permitem concluir, dada a sua generalidade e imprecisão, ter havido alterações substanciais à disposição interna das divisões, nem imputá-las a concreta actuação da recorrente;
- quanto aos ditos prejuízos com as obras de recuperação e de reparação, a frase que na sua quase totalidade se justificam é conclusiva, e tão genérica que não permite averiguar como se distribuem, em concreto, os gastos imputáveis aos senhorios e à inquilina;
- o orçamento junto pelos recorridos inclui itens que traduzem meras melhorias da fracção, sem conexão com as deteriorações imputadas à recorrente, podendo resultar da deterioração normal do prédio, carente de obras de recuperação e de reparação gerais, da responsabilidade dos recorridos;
- nenhuma das obras orçamentadas tem como objectivo reconstruir as paredes divisórias alegadamente derrubadas, nem demolir as outras paredes que segundo os recorridos haviam sido atrabiliariamente edificadas;
- os recorridos agem de má fé ao pretenderam aproveitar a oportunidade para renovarem a casa à custa da recorrente, sabendo que a maioria dos prejuízos com obras orçamentados invocados não resultam de actos àquela imputáveis;
- a circunstância de as obras de reparação geral do prédio e das fracções haverem ocorrido no âmbito do Recria não impede a destrinça da responsabilidade imputada à recorrente e aos recorridos, sob pena de aquela dever custear obras que deviam ser feitas por estes;
- para tal destrinça, bastaria que os recorridos tivessem articulado factos de quantificação do montante das obras que se propunham fazer na fracção e no prédio;
- na falta de tal destrinça factual, não podia o tribunal dar como provado serem todas as obras imputáveis à recorrente, sob pena de manifesto enriquecimento indevido à custa alheia;
- a Relação erra no julgamento, tanto na interpretação que faz da matéria de facto como na aplicação que pretende fazer do artigo 64.º, n.º 1, alínea d), do Regime do Arrendamento Urbano.

II
É a seguinte a factualidade considerada assente no tribunal recorrido:
1. Foi inscrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, no dia 15 de Outubro de 1965, a aquisição do prédio mencionado sob 2 por CC em virtude de partilha por óbito de EE.
2. Foi inscrita na referida Conservatória, no dia 17 de Abril de 1986, a aquisição do prédio referido sob 1, em virtude de partilha por óbito de EE, em usufruto por CC e em propriedade a AA e a BB.
3. Por sucessão no respectivo contrato de arrendamento, a ré é actualmente a legítima titular do arrendamento do 1.º andar esquerdo do referido imóvel, pagando a renda mensal de € 28.
4. Os autores, no início do Verão de 2002, iniciaram as obras de recuperação e de reparação do imóvel mencionado sob 1, no âmbito do chamado Programa Recria, em colaboração com o Igaphe e a Câmara Municipal de Oeiras, tendo esta autarquia vindo a determinar, por deliberação de 10 de Julho de 2002, a realização coerciva de obras no seu primeiro andar esquerdo.
5. Mau grado as inúmeras tentativas para o conseguir, os autores não lograram convencer a ré a permitir a entrada no andar aos operários do empreiteiro que se preparavam para realizar as obras, pelo que, dado que se tratava de obras coercivas, a Câmara Municipal de Oeiras ordenou, por deliberação de 24 de Novembro de 2004, o despejo sumário administrativo da ré, executado não sem dificuldade no dia 14 de Dezembro de 2004, com intervenção da Polícia Municipal, da Polícia de Segurança Pública, do Delegado de Saúde, dos Bombeiros e de técnicos juristas da autarquia.
6. Ela impediu a entrada no local arrendado aos operários que ali iriam fazer obras determinadas pela Câmara Municipal de Oeiras, de que seria a principal beneficiária, a qual foi tomada a seu cargo pela Delegação de Saúde e conduzida para um estabelecimento hospitalar, vivendo actualmente, depois de um período de internamento num hospital psiquiátrico, com uma sua filha, na Rua ............, nº .., ........ direito, em Lisboa.
7. Havia centenas de quilos de puro lixo, garrafas e embalagens vazias, trapos sujos, latas semi-vazias de comida para gatos, uma fauna indescritível de baratas e ratos, tudo envolvido num cheiro nauseabundo, que era o meio ambiente da ré.
8. À medida que o lixo foi sendo retirado e após várias desinfestações - só de baratas mortas foram retirados cinco sacos de 50 litros cada - em finais de Fevereiro, foi possível constatar que algumas paredes divisórias haviam sido derrubadas e outras, atrabiliariamente, edificadas, a sanita estava completamente entupida com areia para gatos, o soalho de todas as divisões encontrava-se irremediavelmente apodrecido, quase todos os vidros das múltiplas janelas estavam partidos, as paredes encontravam-se num estado tal de degradação que necessitavam de ser completamente picadas e rebocadas e a instalação eléctrica estava completamente degradada e perigosamente roída pelos ratos.
9. A ré fez ou mandou fazer no local onde habitava obras que modificaram a disposição interna das divisões e causou nele deteriorações que não resultam da utilização corrente do mesmo.
10. A ré causou aos autores prejuízos resultantes da indemnização que foram obrigados a pagar ao empreiteiro da ordem de € 2 600, e, em consequência do despejo administrativo, contrataram com uma pensão o alojamento da ré, que lhes custou € 100, até terem sido informados que ela estava internada num hospital psiquiátrico.
11. Após o despejo administrativo, pela desinfestação do local, os autores tiveram de desembolsar € 388,74, cobrados pelas empresas que, ao longo de mais de um mês, se encarregaram de matar a bicharada que coabitava com a ré e de a remover com o demais lixo acumulado, bem como de desinfectar, com os adequados produtos químicos, todo o andar.
12. Para finalizar as obras de reparação e recuperação do andar, que ainda estão em curso, os autores viram-se compelidos a remover, para local adequado, o recheio da casa, pertença da ré, operação que lhes custou € 1 390 com a mudança e está custando € 383,00 por mês, o que de Outubro até hoje já perfaz € 1 149, tudo no montante actual de € 2 539.
13. Essas obras de recuperação e reparação, que na sua quase totalidade se justificam pelo estado de completa degradação a que a ré deixou chegar o local arrendado importarão, na sua globalidade, em € 31 811.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se os recorridos têm ou não direito a impor à recorrente a entrega da fracção predial em causa e o pagamento de € 36 742,74 com juros de mora desde a data da citação.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação negativa do objecto do recurso;
- natureza e efeitos do contrato que envolve a recorrente e os recorridos;
- releva ou não no caso o regime legal das obras no locado?
- ocorrem ou não os pressupostos de resolução do referido contrato?
- verificam-se ou não os pressupostos do direito de indemnização invocado pelos recorridos no confronto da recorrente?
- síntese da solução para o caso-espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos pela delimitação negativa do objecto do recurso.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões de alegação formuladas pelo recorrente (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A recorrente não incluiu nas conclusões de alegação a vertente da indemnização não relacionada com o custeio das obras de reparação e de recuperação do locado nem o segmento relativo à contagem dos juros de mora desde a sua citação para a acção, pelo que deles não há que conhecer no recurso.
O tribunal da primeira instância baseou a resolução do contrato em causa na alteração substancial da estrutura do locado, mas a Relação desconsiderou esse fundamento por virtude de os recorridos não terem afirmado factos complementares demonstrativos da materialidade subjacente ao conceito jurídico alteração substancial da disposição interna das divisões.
Os recorridos não ampliaram o recurso de revista a fim de este Tribunal poder conhecer do fundamento em que decaíram na Relação, nos termos do artigo 684º-A, nº 1, do Código de Processo Civil.
Em consequência, não temos que conhecer no recurso sobre esta problemática da integração dos factos assentes sobre o mencionado fundamento formalmente estabelecido na lei.
A recorrente suscitou neste recurso a questão processual relativa à nulidade do seu acto de citação que havia sido objecto de recurso de agravo para a Relação do despacho sobre essa matéria do tribunal da primeira instância.
Expressa a lei que, sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admitido recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil, de modo a interpor do mesmo acórdão um mesmo recurso (artigo 722º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Trata-se do princípio designado da unidade ou absorção, em que o recurso de revista, em razão do seu objecto essencial relativo à violação de normas jurídicas substantivas, arrasta para a sua órbita o conhecimento da violação de normas jurídicas adjectivas, próprio do recurso de agravo.
Todavia, para o efeito, exige a lei, como condição do conhecimento da violação de normas jurídicas processuais, que a decisão da Relação sobre essa matéria seja impugnável nos termos do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil.
A este propósito, estabelece a lei, por um lado, ser admissível recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação de que seja admissível recurso, salvo nos casos em que couber revista ou apelação (artigo 754º, nº 1, do Código de Processo Civil).
E, por outro, não ser admissível recurso de agravo do acórdão da Relação sobre decisão da 1ª instância, salvo se estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B, jurisprudência com ele conforme (artigo 754º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Ora, estamos no caso vertente perante um segmento decisório de um acórdão da Relação que conheceu do despacho proferido no tribunal da primeira instância que julgou improcedente a arguição da nulidade do acto de citação da recorrente.
O referido segmento decisório não se integra na excepção à proibição da admissibilidade de recurso a que se reporta o nº 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil.
Em consequência, não pode este Tribunal, nesta matéria de natureza processual, conhecer da parte da decisão proferida pela Relação de manutenção do despacho proferido no tribunal da 1ª instância relativo ao indeferimento da arguição da nulidade da citação invocada pela recorrente.

2.
Prossigamos com a análise da natureza e dos efeitos do contrato que envolve a recorrente e os recorridos.
Ignora-se a data em que o contrato em causa foi celebrado, mas sabe-se a relação jurídica litigiosa em causa é anterior à entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro – NRAU.
As instâncias julgaram a causa com base nas pertinentes normas do Código Civil e do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro – RAU).
Independentemente da data em que o contrato em causa foi celebrado ou daquela em que a recorrente nele sucedeu ao anterior outorgante do lado activo, porque se trata de uma relação jurídica duradoura, releva em sede aplicação a lei vigorar ao tempo dos factos em que o litígio se consubstancia, ou seja o Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 19 de Outubro (artigo 12º, nº 2, do Código Civil).
O contrato de locação consubstancia declarações negociais por via das quais uma das partes se vincula a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa e esta a pagar àquela determinada remuneração, é qualificado de contrato de arrendamento quando o seu objecto mediato for uma coisa imóvel (artigos 1022º e 1023º do Código Civil).
O contrato de arrendamento urbano é aquele pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano no todo ou em parte, mediante remuneração (artigo 1º do Regime do Arrendamento Urbano,
Tendo em conta as afirmações conclusivas constantes de II 3 - cuja estrutura não observa o que se prescreve nos artigos 264º, nº 1, 467º, nº 1, alínea d), 498º, nº 4 e 664º do Código de Processo Civil relativamente à causa de pedir, mas em relação às quais as partes não dissentem - e a referência fáctica à renda, importa concluir estarmos perante um contrato de arrendamento para a habitação, em que a recorrente assume a posição de arrendatária.
Resulta de II 1 e 2, em relação ao prédio em que se integra a fracção predial em causa, que AA e BB são os titulares do direito de propriedade e CC a usufrutuária.
Em regra, o usufrutuário do prédio é que assume a posição de locador, porque a concernente cedência do gozo se inscreve no âmbito dos seus poderes de uso, fruição e administração (artigos 1439º e 1 e 1446º do Código Civil).
Todavia, a lei permite, por convenção, que as partes afastem esse regime (artigo 1445º do Código Civil).
Em consequência, inexiste fundamento legal para que se considere, ao invés do que foi pressuposto nas instâncias, não assumirem todos os recorridos a posição de senhorios em relação à recorrente.
Do referido contrato resultou para os recorridos, além do mais que aqui não releva, a obrigação de assegurarem à locatária o gozo da casa para os fins a que se destinava, ou seja para a habitação (artigo 1031º, alínea b), do Código Civil).
E para a recorrente a obrigação de facultar aos recorridos o exame da casa e de a usar de modo prudente, ou seja, não fazer dela um uso imprudente (artigo 1038, alíneas b) e d), do Código Civil).

3.
Continuemos com a análise do regime de obras no confronto com a alegação da recorrente.
O senhorio é obrigado, na sequência do contrato de arrendamento, a assegurar ao arrendatário o gozo da casa arrendada de modo a que ele a possa habitar (artigo 1031º, alínea b), do Código Civil).
Importa, assim, que o senhorio assegure a manutenção da casa arrendada em estado de conservação idêntico àquele que estaria ao tempo da celebração do contrato, designadamente por via da periódica realização de obras.
A lei distingue, em relação às obras a realizar no prédio arrendado, entre as de conservação ordinária, de conservação extraordinária e de beneficiação (artigo 11º, nº 1, do RAU).
As obras de conservação ordinária são as concernentes à limpeza do prédio e suas dependências, as impostas pela Administração Pública, nos termos da lei geral aplicável e que visem conferir ao prédio as características apresentadas aquando da concessão da licença de utilização e, em geral, as destinadas a manter o prédio nas condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração (artigo 11º, nº 2, do RAU).
As obras de conservação extraordinária são, por seu turno, as ocasionadas por defeito de construção do prédio ou por caso fortuito ou de força maior e, em geral, as que não sendo imputáveis a acções ou omissões ilícitas perpetradas pelos senhorio, ultrapassem, no ano em que se tornem necessárias, dois terços do rendimento líquido desse mesmo ano (artigo 11º, nº 3, do RAU).
Finalmente, as obras de beneficiação são as que não sejam de qualificar como ordinárias ou extraordinárias (artigo 11º, nº 4, do RAU).
Na falta de convenção em contrário por escrito, o senhorio só tem de realizar as obras de conservação extraordinária ou de beneficiação se, nos termos das leis administrativas em vigor, isso lhe for imposto pela câmara municipal (artigo 13º, nº 1, do RAU).
As obras de conservação ordinária devem ser realizadas pelo senhorio, que por via disso fica com direito à actualização da renda, sem prejuízo, além do mais que aqui não releva, do que se prescreve nos artigos 1043º do Código Civil e 4º do Regime do Arrendamento Urbano (artigo 12º do RAU).
Já depois de os recorridos terem iniciado as obras de recuperação do prédio, a Câmara Municipal de Oeiras determinou-lhes, com base em deliberação de 10 de Julho de 2002, a realização de obras na casa arrendada em causa.
Mas a recorrente não consentiu que eles realizassem tais obras, pelo que, pouco mais de dois anos depois, ordenou o despejo sumário administrativo da fracção predial em causa, executado em 14 de Dezembro de 2004.
Infringiu, por isso, a obrigação decorrente do artigo 1038º, alínea e), do Código Civil de tolerar as reparações urgentes, bem como quaisquer obras ordenadas pela autoridade pública.
Uma outra obrigação dos locatários traduz-se no dever de avisar imediatamente o locador de algum vício ou perigo que ameace o locado (artigo 1038º, alínea h), do Código Civil).
A letra e o escopo finalístico do mencionado normativo comporta a sua interpretação extensiva no sentido de o locatário avisar o senhorio da necessidade de obras no locado, com vista à respectiva realização (artigo 9º, nº 1, do Código Civil).
Os factos provados não revelam que a recorrente tenha avisado os recorridos a fim de eles realizarem quaisquer obras na casa arrendada, pelo que se não pode concluir no sentido de o estado de degradação da casa lhe seja imputada em termos censura ético-jurídica.

4.
Vejamos agora se ocorrem ou não os pressupostos de resolução do referido contrato de arrendamento.
A recorrente considerou, depois de se referir à pré-ruina do prédio e à carência de obras de reparação e de recuperação a cargo dos recorridos também abrangente do locado, não revelarem os factos provados deteriorações consideráveis do locado justificativas da resolução do contrato de arrendamento.
Desvaloriza, por um lado, a ocupação da sanita com areia para gatos sob o argumento da sua fácil remoção, e o apodrecimento do soalho por falta de concretização da sua localização, área da extensão, irremediabilidade e imputação a ela e liga a quebra de quase todos os vidros à pré-ruina do prédio.
E, por outro, quanto à degradação das paredes, a carecerem de serem picadas e rebocadas, por se tratar de juízo manifestamente conclusivo, remetendo para a mencionada situação do prédio e a sua necessária reparação a cargo dos recorridos.
Finalmente, quanto à instalação eléctrica roída pelos ratos, referiu que os factos não revelavam ser resultado da sua acção ou omissão, e, quanto ao lixo, às garrafas, às embalagens, aos ratos, às baratas e ao mau cheiro, afirmou descreverem os recorridos o meio ambiente e não a causa das alegadas deteriorações.
A este propósito, importa ter em linha de conta haver a Relação expressado, por um lado, revelarem os factos provados que grande parte da estrutura e do equipamento da casa ficou inutilizado.
E, por outro, que tal estado deterioração irreversível resultou directamente ou foi fortemente acelerado e acentuado pela forma insensata e irreal como a recorrente descuidou o andar onde vivia, obrigando a uma intervenção radical e aprofundada em todo esse espaço que, em condições normais, nunca ocorreria.
E, finalmente, acabou a Relação por imputar à actuação da recorrente as referidas deteriorações.
Assim, estamos perante uma ilação extraída pela Relação dos factos assentes, no âmbito dos seus poderes em matéria de facto, naturalmente por via de presunção judicial, que este Tribunal não pode sindicar (artigos 349º e 351º do Código Civil e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil).
O senhorio pode resolver o contrato de arrendamento se o arrendatário praticar actos no prédio arrendado que nele causem deteriorações consideráveis não consentidas, que não possam justificar-se nos termos dos artigos 1043º do Código e 4º do Regime do Arrendamento Urbano (artigo 64º, nº 1, alínea d), parte final, do RAU).
Presume-se que a casa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção quanto não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega (artigo 1043º, nº 2, do Código Civil).
Em consequência da referida presunção, não tendo sido descrito o estado do locado ao tempo da celebração do contrato de arrendamento, o ónus de prova de que o locado foi entregue em mau estado de conservação incumbe ao locatário (artigo 350º do Código Civil).
Como a recorrente não provou o contrário – não existe documento onde as partes tenham descrito o estado da fracção predial em causa ao tempo da entrega - importa assentar em que ela foi entregue em bom estado de manutenção.
É lícito ao arrendatário realizar pequenas deteriorações no prédio arrendado quando elas se tornem necessárias para assegurar o seu conforto e comodidade, e, na falta de convenção em contrário, é o locatário obrigado a manter e a restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato (artigos 1043º, nº 1, do Código Civil e 4º, nº 1, do RAU).
A prudente utilização do locado é a que é envolvida de zelo e cuidado normais na espécie de coisas em causa, considerando-se como tal, os pequenos estragos, por exemplo, a colocação de antena de televisão ou de arames para estender roupa nas varandas, a abertura de orifícios nas paredes para instalação de ar condicionado ou a colocação nelas de suportes para estantes para quadros, imagens ou candeeiros.
Considerando o que se prescreve sob II 7 e 8, estamos perante um situação de sanita entupida com areia para gatos, de soalho apodrecido, de quase totalidade dos vidros das janelas quebrado, de paredes degradadas carecidas de serem picadas e rebocadas, de instalação eléctrica perigosamente roída pelos ratos.
Trata-se, com efeito, de utilização duradoura gravemente imprudente da casa arrendada pela recorrente, por via da qual ela infringiu as suas obrigações decorrentes do contrato e da lei. Ademais, são consideráveis as deteriorações que ela revela, cuja gravidade a recorrente tentou desvalorizar, derivadas da utilização assaz imprudente da casa locada.
São deteriorações não consentidas nem justificáveis ao abrigo dos artigos 1043º do Código Civil e 4º do Regime do Arrendamento Urbano, envolvendo um quadro de degradação da casa arrendada insusceptível de ser qualificado como sua utilização prudente, antes pelo contrário.
Perante o referido quadro, tal como foi considerado no acórdão recorrido, importa concluir no sentido de ocorrerem no caso vertente os pressupostos de resolução do contrato de arrendamento previstos na segunda parte da alínea d) do nº 1 do artigo 64º do Regime do Arrendamento Urbano.

5.
Atentemos agora sobre se ocorrem ou não no caso espécie os pressupostos do direito de indemnização invocado pelos recorridos no confronto da recorrente.
Esta última só põe em causa a indemnização relativa aos custos de reparação da casa arrendada.
Alegou, por um lado, que os factos provados, pela sua generalidade e imprecisão, não permitem a destrinça entre as obras imputáveis à sua acção ou omissão e as imputáveis à omissão dos recorridos.
E, por outro, que o documento de referência contém vários itens reveladores de melhorias da fracção sem conexão com deteriorações que lhe sejam imputáveis, susceptíveis de derivarem da sua deterioração normal.
Finalmente expressou não haver fundamento para a absorção da obras assumidas pelos recorridos por virtude da velhice do prédio e de este nunca ter tido obras de conservação pela actuação imputada à recorrente nem para concluir da impossibilidade de destrinça entre a responsabilidade deles e dela.
A Relação considerou que as depreciações prudentes legalmente consentidas acabam por ser excedidas, absorvidas, consumidas por aquelas que resultam do uso anormal de todo o locado, não sendo legítimo nem possível, nestas circunstâncias muito especiais e específicas, cindir uma realidade da outra e, consequentemente, tentar descortinar até onde iria a parte que sempre seria da responsabilidade do senhorio daquela que, a partir daí, deveria ser imputada à inquilina.
A este propósito, está assente que as obras de recuperação e de reparação da casa locada, justificadas na sua quase totalidade pelo estado de completa degradação a que a ré a deixou chegar, importarão, na sua globalidade, na quantia de € 31 811.
Na realidade, tal como a recorrente alegou, a mencionada degradação da casa locada não resulta apenas da acção e omissão da recorrente, mas também da falta de realização de obras de conservação ordinária no locado, naturalmente a cargo dos recorridos ou de quem os antecedeu na relação jurídica de arrendamento em causa.
Tal como se concluiu no acórdão recorrido, considerando os factos provados, não é possível destrinçar entre o dispêndio em obras imputável à recorrente e à degradação do prédio e, consequentemente, da fracção predial arrendada, por virtude do seu tempo de duração e ausência de obras de conservação.
A recorrente praticou ilícito contratual, visto que com a sua acção e omissão infringiu o disposto nos artigos 406º, nº 1, 1043º, nº 1, e 1038º, alínea d) e 1305º do Código Civil e afectou negativamente o direito de propriedade e de usufruto dos recorridos.
Como se está no domínio da responsabilidade civil contratual, porque a recorrente não ilidiu a presunção de culpa a que se reporta o artigo 799º, nº 1, do Código Civil, impõe-se a conclusão no sentido de que o referido facto ilícito da sua autoria está envolvido de culpa, ou seja, que tal acção e omissão lhe é censurável do ponto de vista ético jurídico.
Ademais, o referido acto ilícito e culposo da recorrente originou aos recorridos, em termos de causalidade adequada, prejuízos reparáveis, pelo que se constituiu na obrigação de os indemnizar no quadro da responsabilidade civil contratual (artigos 562º, 563º e 798º do Código Civil).
Verificam-se, pois, os pressupostos do direito de indemnização invocado pelos recorridos no confronto da recorrente, importando agora operar o chamado dano de cálculo.
Os factos provados revelam que parte do mencionado dano ou prejuízo que afectou a esfera jurídica dos recorridos não é imputável à recorrente, mas não se apurou a fracção do quantitativo global de € 31 811 que lhe deve ser imputada.
Impõe-se, por isso, no quadro dos factos assentes, que o montante indemnizatório que a recorrente deverá suportar no confronto dos recorridos por virtude do custeio das obras de recuperação e de reparação em causa seja determinado por recurso a juízos de equidade (artigo 566º, nº 2, do Código Civil).
Tendo em conta a factualidade provada, e o referido juízo de equidade e de proporcionalidade, julga-se adequada a indemnização devida pela recorrente aos recorridos, por virtude do custeio das obras de reparação e de recuperação do locado, no montante de € 18 000.

6.
Finalmente, a síntese da solução para o caso-espécie decorrente dos factos provados e da lei.
O objecto do recurso relativo validade ou nulidade da citação da recorrente e à improcedência do fundamento da acção concernente à alteração da estrutura das divisões internas do locado não é susceptível de ser conhecido por este Tribunal.
Os recorridos e a recorrente estão juridicamente vinculados aos efeitos de um contrato de arrendamento para habitação, em que a última assume a posição de arrendatária por sucessão anterior arrendatário, e os primeiros na posição de senhorios.
O quadro de facto provado não revela que a recorrente tenha intimado os recorridos a fim de realizar obras no locado e, consequentemente, também dele não resulta a mora dos últimos quanto a essa realização.
A imprudente utilização da casa arrendada pela recorrente justifica legalmente o direito dos recorridos de lhe imporem a resolução do contrato de arrendamento.
A acção e omissão ilícita e culposa da recorrente na utilização da casa arrendada gerou aos recorridos, em termos de causalidade adequada, prejuízos reparáveis, pelo que se constituiu na obrigação de os indemnizar no quadro da responsabilidade civil contratual.
A dúvida sobre o montante da indemnização a imputar ao facto ilícito da autoria da recorrente, a resolver de harmonia com os factos provados e juízos de equidade e de proporcionalidade, justifica a sua fixação em € 18 000.

Procede, assim, parcialmente o recurso.
Vencidos parcialmente, são os recorridos e a recorrente responsáveis pelo pagamento das custas respectivas, na proporção do vencimento (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, altera-se o acórdão recorrido apenas por via da redução para dezoito mil euros da indemnização devida pela recorrente aos recorridos relativa aos danos consubstanciados no custeio das obras de reparação e de recuperação da casa arrendada, mantendo-se no mais o conteúdo do acórdão recorrido, e condenam-se uma e outros no pagamento das custas respectivas, na proporção do vencimento.

Supremo Tribunal de Justiça,18 de Dezembro de 2007

Salvador da Costa (Relator)

Ferreira de Sousa
Armindo Luís