Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
139/12.0TBFLG-M.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
DEVER DE DILIGÊNCIA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
FRACÇÃO AUTÓNOMA
FRAÇÃO AUTÓNOMA
ADJUDICAÇÃO
Data do Acordão: 10/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – MASSA INSOLVENTE E INTERVENIENTES NO PROCESSO / ÓRGÃOS DA INSOLVÊNCIA / ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA – ADMINISTRAÇÃO E LIQUIDAÇÃO DA MASSA INSOLVÊNCIA / LIQUIDAÇÃO.
Doutrina:
- Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed.

V. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed.

Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (CIRE) – ARTIGOS 59.º E 164.º NÚMEROS 2 E 3.
Sumário :

I - É dever do administrador da insolvência agir de forma criteriosa e ordenada, sob pena de responder pelos danos causados aos credores.

II - Tendo a administradora da insolvência, por não ter usado da diligência devida, desconsiderado a proposta apresentada pelo credor, com garantia real, tendente a que lhe fosse adjudicada a fração autónoma sobre que incidia a garantia por preço superior ao da venda que acabou por ser feita a terceiro, tornou-se tal administradora culposamente responsável pelo dano causado ao credor.

III - O facto da proposta do credor se reportar a outra fração que não aquela sobre que incidia o seu direito de garantia, mas resultando evidente do contexto da declaração que se tratava de lapso de escrita, não afasta essa responsabilidade da administradora da insolvência nem implica a redução da indemnização.

IV - A circunstância do lapso se revelar no próprio contexto da declaração necessariamente que implica que o lapso esteja afastado do processo causal que levou ao dano.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA demandou, por apenso aos autos de insolvência de BB, Lda. e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, CC, peticionando a condenação desta:

a) no pagamento da quantia de € 35 050,00 a título de indemnização por danos patrimoniais, resultantes do diferencial entre o valor obtido com a venda da fração autónoma que identifica (fração “…”, destinada a habitação, sita no …º andar, tipo T2, Bloco 1, com lugar de garagem identificado pelo nº 7, sito na cave do edifício e um espaço para arrumos, do prédio urbano sito em ..., freguesia ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...e inscrito na respetiva matriz sob o artigo … e atualmente inscrito na matriz urbana sob o artigo ..., da União de Freguesias de ... (...), ..., ..., ...) e o valor oferecido pelo autor;

b) no pagamento de juros desde a data da citação.

Alegou para o efeito, em síntese, que a Ré foi nomeada administradora de insolvência na sentença que decretou a insolvência da sociedade BB, Lda., tendo procedido à venda dos bens apreendidos para a massa, entre eles a fração da verba n.º … do auto de apreensão de bens, correspondente à referida fração autónoma “…”, e sobre a qual fora judicialmente reconhecido ao Autor, em ação de verificação ulterior de créditos que instaurou, direito de retenção para garantia do crédito de € 82 000,00.

Ocorre que a Ré, contra o que devia ter feito, não ouviu o Autor acerca da modalidade da alienação da fração, da mesma forma que não informou o Autor acerca do valor fixado para a alienação da fração ou do preço da projetada venda a terceiro e que depois se realizou.

Além disso a Ré preteriu a proposta de aquisição entretanto apresentada pelo Autor.

Esta atuação da Ré, que é ilícita e culposa, causou ao Autor um prejuízo equivalente à diferença entre o valor da sua proposta (€82.000,00) e o valor (€46.950,00) pelo qual veio a ser vendida a fração.

Contestou a Ré, concluindo pela improcedência da ação.

Disse, em síntese, que o Autor não apresentou qualquer proposta relativamente à fração sobre que lhe foi reconhecido o direito de retenção, já que a proposta que efetivamente remeteu à Ré respeitava a outra fração, sendo que só depois de efetivada a escritura de transmissão o Autor veio corrigir a identificação do número da verba constante da sua proposta. O Autor tinha conhecimento que o imóvel iria ser vendido e qual o preço da alienação, pelo que não lhe é devida qualquer indemnização. Na realidade, conclui a Ré, o Autor, com o erro que cometeu na identificação da fração, é que foi o causador da não consideração da sua proposta, pois que de outra forma a Ré não teria procedido à venda da fração a terceiro nos termos em que o fez.

A Ré mais requereu, e viu deferida, a intervenção principal de DD - Sucursal, para quem havia transferido a responsabilidade civil por danos causados a terceiros no exercício da sua atividade de administradora de insolvência.

A Chamada a Intervir contestou, concluindo pela improcedência da ação.

Mais disse que, a provar-se a responsabilidade da Ré, o dano em causa estaria excluído das coberturas do seguro.

Seguindo o processo seus devidos termos veio, a final, a ser proferida sentença (Juízo de Comércio de Amarante) que, em procedência parcial da ação, condenou a Ré a pagar ao Autor a indemnização de €25.000,00, acrescida de juros de mora desde a citação.

Inconformados com o assim decidido, apelaram o Autor, a Ré e a Chamada a Intervir.

A Relação do Porto julgou improcedentes os recursos da Ré e da Chamada a Intervir. Mas julgou procedente o recurso do Autor, condenando a Ré a pagar-lhe a indemnização pedida no montante de €35.050,00, acrescendo juros tal como fixado na sentença.

Mantendo-se inconformados, pediram a Ré e a Chamada a Intervir revista.

Esta última introduziu o seu recurso como revista excecional, mas a competente formação de juízes não admitiu a revista assim interposta, razão pela qual está o respetivo recurso findo e dele não se poderá conhecer.

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No que se refere ao recurso interposto pela Ré CC, nada impede o seu conhecimento como revista ordinária.

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São as seguintes as conclusões que a Ré extrai da sua alegação:

1- A presente ação foi interposta pelo A. com o intuito de obter a condenação da R. a indemnizá-lo, alegadamente pelo facto de esta ter preterido o dever de informação quanto à venda da fracção autónoma apreendida nos autos, sobre a qual o A. tem direito de retenção, matéria que consta do preceituado nos nºs 2 e 3 do artº 164º do CIRE.

2- Como tem sido entendimento unânime entre a doutrina e jurisprudência “o único objectivo do Legislador ao determinado o dever de audição e de comunicação previstos no nº 2, do artigo 164º, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, foi o de permitir a tal credor, detentor de um direito de garantia real, poder optar por apresentar uma proposta de valor superior para adquirir por adjudicação o bem para si, por tal se mostrar mais consentâneo com a defesa dos seus interesses”.

3- Nos termos da matéria fáctica dada como provada, resulta que a R. não informou o A. da modalidade da venda por si escolhida para a verba nº 97, nem do preço da projectada venda ao comprador- EE antes da realização da escritura de compra e venda celebrada em 8 de Abril de 2016- cfr. facto provado nº 35.

4- O certo, porém, é que apesar de não ter sido feita tal comunicação, o A. fez, em tempo útil, a sua proposta., pelo que a violação do dever de comunicar a que alude o nº 2 do artº 164º do CIRE não impediu o A. de fazer a sua proposta.

5- Assim, a violação do dever de comunicar a que alude o nº 2 do artº 164º do CIRE nenhum prejuízo causou ao credor, A, pois não o impossibilitou de fazer a sua proposta, pelo que o objectivo da lei não saiu frustrado ou defraudado.

6- Logo, não foi a preterição da sua audição nos termos previstos no artigo 164º, nº 2 do CIRE que impediu o A. de apresentar, em tempo útil, uma proposta de valor superior ao da venda realizada na escritura de 08.04.2016 e antes de tal escritura ter sido realizada, pelo que o mesmo não teria direito a qualquer indemnização.

7- Sucede, porém, que o Acórdão recorrido decidiu que a R. preteriu a proposta oferecida pelo credor ora A. e que tal preterição terá de ser imputada à R, Administradora de Insolvência, cuja consequência resultou no impedimento de o A. ser ressarcido do seu crédito, pois a proposta deste ascendia a um valor superior ao valor indicado para a projetada venda e que se veio a concretizar, concluindo que a R. não usou da diligência própria de um administrador criterioso e ordenado.

8- A R. Recorrida não concorda com tal entendimento, pois entende que a desconsideração da proposta apresentada em 4 de Abril de 2016 pelo A. deverá ser imputada, única e exclusivamente a este, a título de culpa.

9- Na verdade, o A. era detentor de um crédito do montante de 82.000,00 €, crédito esse que se encontrava garantido pelo direito de retenção sobre o imóvel constante da verba nº … do Auto de Apreensão, lote nº …, constituído pela fracção autónoma designada pela letra “…”, habitação no segundo andar do prédio sito em ..., freguesia ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº … e inscrita na respectiva matriz sob o artigo ….

10- No entanto, na proposta por si apresentada em 4 de Abril de 2016, através dos seus mandatários, consta, por lapso do A., a “verba nº … do Auto de Apreensão, lote …, correspondente à fracção autónoma designada pela letra “…”, correspondente …….” (sublinhado nosso).

11- Isto é, a proposta apresentada pelo A, por lapso deste, não respeitava nem à verba, nem ao lote relativos ao prédio sobre o qual era detentor de um direito real de garantia.

12- Como efetivamente assim acontecia, tal proposta foi posteriormente rectificada no que concerne quer ao número da verba, quer ao lote, por comunicação do A. efetuada em 12 de Abril de 2016, isto é, após a outorga da competente escritura de compra e venda.

13- Cumpre, assim, apurar se a responsabilidade pelo facto de não ter sido considerada a proposta apresentada pelo A. deverá ser imputada a este ou à R., a Administradora de Insolvência, sendo certo que o acórdão recorrido considerou que tal responsabilidade caberia exclusivamente à R., entendimento com que esta não se conforma.

14- Antes de mais, refira-se que, como é consabido, para o instituto da responsabilidade civil extracontratual operar é necessário que se cumpram os seguintes requisitos: a) O facto, b) a ilicitude, c) a culpa, d) o dano e e) nexo de causalidade entre o facto e o dano.

15- O acórdão recorrido considerou estarem verificados todos os referidos pressupostos sendo que, no que concerne aos pressupostos culpa “a lei estabelece um critério particular da sua apreciação, ao considerar que a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado. A lei não estabelece uma presunção de culpa”.

16- Refere ainda o acórdão recorrido que “neste quadro legal e ponderando todos os factos provados somos levados a concluir que apenas a Ré-apelante, administradora de insolvência, é responsável pelos prejuízos sofridos pelo autor”, por ter havido violação do dever de informação das propostas de venda e preterição da proposta de compra apresentada pelo autor, na qualidade de titular de um direito real de garantia.

17- Afigura-se, porém, que tais argumentos não procedem e que não foram devidamente ponderados todos os factos dados como provados.

18- Refira-se desde logo que os artigos matriciais e as descrições prediais quer da verba nº …, quer da verba nº … – de que o A. gozava do direito de retenção- são os mesmos, isto é, ambas as verbas respeitam a frações inscritas na respetiva matriz sob o artº … e estão ambas descritas na Conservatória do Registo Predial soba mesma descrição, isto é, descrição nº …- cfr. factos provados nºs … e …., pelo que era, assim de molde, a induzir em erro a R., administradora de insolvência.

19- O acórdão recorrido argumenta, porém, que “A indevida indicação da verba e lote na proposta apresentada pelo credor não justifica a actuação negligente do administrador de insolvência, sobre quem recaía a obrigação de obter esclarecimentos junto do credor, caso a proposta lhe oferecesse dúvidas e por isso, não justifica que a mesma tenha sido ignorada”.

20- O certo, porém, é que tal proposta não só não foi ignorada como foi junta aos autos pela R.: na verdade, conforme resulta dos factos dados como provados- cfr. facto nº 27: “Em 11 de Abril de 2016, a Sra. Administradora de Insolvência veio dar conhecimento e juntar aos autos a proposta recebida do credor AA, para a aquisição da verba nº … do Auto de Apreensão de Bens Imóveis, sobre a qual detém direito de retenção, pelo valor de 82.000,00 €, e que deu conhecimento desta proposta à Comissão de Credores, aguardando que se pronuncie”.

21- Porém, conforme resulta do facto vindo de descrever, tal proposta respeitava à verba nº … do Auto de Apreensão, lote … e não à verba nº …, lote …, sobre a qual o A. detinha efetivamente um direito real de garantia.

22- O acórdão recorrido, apesar de reconhecer que o lapso na indicação na verba e no lote apenas é imputável ao A., o certo é que não retira daí as devidas ilações, isto é, deveria imputar a responsabilidade pela preterição da proposta- errónea, como vimos- ao A. e não à R.

23 -E não o fez porque considerou que o lapso decorrente da indevida identificação do prédio não era relevante.

24- Ora, tanto era relevante tal lapso que o A. se viu na necessidade de vir rectificar, em 12 de Abril de 2016, a sua proposta nos termos constantes do facto provado nº 31, sendo certo que tal retificação se mostrou inócua e extemporânea, pois foi remetida após a venda da fração pretendida adjudicar, realizada por escritura outorgada quatro dias antes, ou seja, em 8 de Abril de 2016.

25- A decisão vertida no Acórdão Recorrido, ao culpar a R. pela não satisfação dos interesses do A., através da preterição da sua proposta errónea, como vimos- não valorou todas as circunstâncias vindas de descrever, pelo que mal andou em decidir como decidiu.

26- Acresce que a proposta apresentada pelo A. foi efetuada através da sua mandatária que, conforme resulta da sentença de 1ª instância (“….contactos “semanais” da Sra. Advogada que representa neste processo o Autor, também afirmou que a mesma representava outros credores…….”), representava outros credores, com interesses noutros imóveis igualmente apreendidos para a massa insolvente.

27- Assim, a proposta em causa, efetuada através da ilustre mandatária do A. por comunicação remetida para a R. em 4 de Abril de 2016 não podia ser automaticamente relacionado com o A. e o seu interesse na venda da fracção autónoma em causa.

28- Aliás, a massa insolvente integrava no seu activo mais de uma centena de imóveis- cfr. facto provado nº 7-, com todos os direitos e garantias que se lhe encontram associados, com vários credores garantidos por hipotecas e outros direitos reais de garantia, designadamente direitos de retenção.

29- Dúvidas, no entanto, não restam é que quem praticou o lapso na identificação da verba em causa foi o próprio A., pelo que, por culpa deste, e só deste, deve ser imputada a desconsideração da proposta de adjudicação por ele efectuada.

30- A desconsideração por parte da R. da proposta de adjudicação apresentada pelo A. deveu-se ao lapso cometido pelo A. na identificação da verba que aquele pretendia adjudicar, devendo tal desconsideração ser imputada, a título de culpa exclusiva, ao A. pelo que nos termos do preceituado no artº 570º, nº 1 do Código Civil deve ser totalmente excluída a responsabilidade da R.

31- Caso assim não se venha entender, o certo, porém é que a responsabilidade da R. deve ser mitigada por virtude do lapso do A. ao proceder à identificação do prédio nos moldes em que o fez- alusão à verba nº … do auto de apreensão, lote …, quando deveria referir-se à verba nº …do Auto de Apreensão, lote nº ….

32- Na verdade, o A contribuiu decisivamente para que a Administradora de Insolvência, ora R, omitisse o seu dever de levar em consideração a proposta de adjudicação efetuada pelo A..

33- Ora, o Acórdão recorrido não teve em consideração esse lapso imputável ao ..., que consubstancia uma conduta culposa por parte do lesado (do A) que contribuiu para a produção dos danos por este alegadamente suportados.

34- A sentença recorrida não determinou, como lhe competia, de que forma e em que termos a conduta do A. contribuiu para a produção dos danos, violando, assim, o preceituado no artº 570º, nº 1 do Código Civil.

35- A culpa do A. não foi devidamente ponderada no Acórdão recorrido, culpa essa devidamente provada nos autos, pelo que a douta sentença recorrida deverá ser revogada, reduzindo-se, em consonância, o montante da indemnização arbitrada a favor do A.

36- O Acórdão recorrido violou o preceituado nos artigos 483º, 570º e 572º do Código Civil.

Termina dizendo que “ na procedência do recurso, deve ser proferido Acórdão a julgar a presente acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo a R. do pedido formulado ou, quando assim não se entenda, ser reduzida a indemnização arbitrada a favor do A., revogando-se sempre o douto acórdão recorrido”.

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O Autor contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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São questões a conhecer:

- Relevância do lapso de escrita da proposta do Autor;

- Responsabilidade da Ré perante o Autor.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes, como tal descritos no acórdão recorrido:

1. Por sentença proferida em 27.01.2012, devidamente publicitada e transitada em jugado, foi declarada a insolvência da sociedade BB, Lda., tendo sido nomeada administradora de insolvência a Ré CC, que aceitou o cargo.

2. Por sentença proferida em 29.07.2014, transitada em julgado, no apenso K, de verificação ulterior de créditos, foi reconhecido ao Autor AA o crédito no montante de 82.000 euros, que goza do direito de retenção sobre a fração autónoma identificada pela letra “H” integrada no prédio urbano a construir em regime de propriedade horizontal, denominado Edifício ..., sito no Lugar ..., Lote …, do Alvará de Loteamento nº …, freguesia ..., Concelho de ..., fração destinada a habitação, sita no ….º andar, tipo T2, Bloco 1, com lugar de garagem identificado pelo n.º …, sito na cave do edifício, do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …da Freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº …, com o alvará de licença de construção n.º …, emitido em 17.05.2005 pela Câmara Municipal de ..., fração apreendida sob a verba n.º … do auto de apreensão de bens, junto ao apenso de apreensão de bens pela Sr.ª Administradora de Insolvência.

3. Na sentença proferida no apenso K foi considerado facto provado que em Julho de 2009 foram entregues ao Autor AA as chaves da fração apreendida sob a verba 97, passando o Autor a partir de tal data a usar e fruir da mesma.

4. A ação de verificação ulterior de créditos, que correu termos sob o apenso K, foi interposta pelo Autor AA em 20.02.2013, tendo a Administradora de Insolvência apresentado ali contestação, em representação da massa insolvente, em 19.03.2013 e tendo sido notificada a sentença às partes em 30.07.2014.

5. Do Auto de Apreensão de bens junto ao apenso E de apreensão de bens, com data de 04.10.2012, a fls. 21 e seguintes, consta a apreensão da verba n.º …, assim identificada: fração “…” do prédio urbano, sito em ..., freguesia ..., conselho de ..., descrito na Conservatória de registo Predial de ... sob o n.º …  e inscrito da respetiva matriz sob o artigo ….

6. Do Auto de Apreensão de bens junto ao apenso E de apreensão de bens, com data de 04.10.2012, a fls. 21 e seguintes, consta a apreensão da verba n.º …, assim identificada: fração “…” do prédio urbano, sito em ..., freguesia ..., conselho de ..., descrito na Conservatória de registo Predial de ... sob o n.º ...e inscrito da respetiva matriz sob o artigo ....

7. Dos Autos de Apreensão de bens, juntos ao apenso E de apreensão de bens, resulta a apreensão inicial de um total de 110 verbas correspondentes a bens imóveis.

8. Do apenso F, de Liquidação de Bens, fls. 61 e seguintes, consta a ata da reunião da Comissão de Credores, do dia 25.01.2013, onde se dá nota que a Administradora de Insolvência nessa reunião entregou aos presentes (membros da referida Comissão de Credores) uma listagem que a ela ficou anexa, com as avaliações dos imóveis apreendidos, entre eles a verba n.º 97, fração “…”, com hipoteca a favor da ..., sita em ..., e avaliada em 70.000,00 euros.

9. Do apenso F, de Liquidação de Bens, consta a junção, em 08.02.2013, fls. 73 e seguintes, do anúncio a publicar para a venda de diversos imóveis, entre eles do lote …, verba n.º …, fração “…”, do prédio urbano, sito em ..., freguesia ..., concelho de ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o número … e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., pelo valor base de 70.000,00 euros.

10. Em 11 de outubro de 2013 a Administradora de Insolvência presta informação no apenso de Liquidação onde dá nota da não apresentação de qualquer proposta para a aquisição, de entre outras, da verba n.º ….

11. A Administradora de Insolvência veio dar conhecimento ao apenso de Liquidação, em 24.03.2014, de uma proposta apresentada por FF, Lda., para aquisição das verbas n.ºs 82 a 97 do auto de apreensão de bens, pelo valor global de 260.000 euros e que, nessa data, estava a aguardar que a Comissão de Credores se pronuncie sobre tal proposta.

12. Em 18.06.2014, a Administradora de Insolvência veio informar e juntar no apenso de liquidação a minuta do anúncio a publicar no “...” para publicitação da venda, por negociação particular, das verbas n.ºs 1 a 3, 6 a 17, 44 a 51, 53, 54, 82 a 86, 88 a 95, 97 a 102, 107 e 109 a 110 do Auto de arrolamento de Bens Imóveis e referindo que não foi publicada a venda das verbas n.ºs 52, 87 e 96, em virtude das mesmas se encontrarem oneradas com contratos promessa, cujo cumprimento ainda não foi decidido, correspondendo no anúncio publicitado, o lote … à verba n.º … e pelo valor base de 70.000,00 euros, tendo os referidos dois anúncios sido publicados e tendo sido juntos aos autos em 27.06.2014, a fls. 382.

13. Em 22.07.2014, a Administradora de Insolvência juntou ao apenso de Liquidação informação sobre a venda e juntou a Ata de Abertura de propostas, onde apenas foi apresentada uma proposta no valor global de 280.000 euros para aquisição das verbas n.ºs 82, 83, 84, 85, 86, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95 e 97, que por ser inferior ao valor base vai ser posta à consideração da Comissão de Credores.

14. Em 23.12.2014, a Administradora de Insolvência deu informação nos autos da apresentação de uma proposta apresentada por GG, para aquisição das verbas n.ºs 82 a 84, 86, 88 a 95 e 97 do Auto de Apreensão de Bens, pelo valor de 280.000 euros e que deu conhecimento desta proposta à Comissão de Credores, aguardando que se pronuncie.

15. Em 19.05.2015, a Administradora de Insolvência veio informar e juntar no apenso de liquidação a minuta do Anúncio a publicar no “...” para publicitação da venda, por negociação particular, das verbas n.ºs 1 a 3, 6 a 17, 46 a 51, 82 a 86, 88 a 95, 97 a 102, 107, 109 e 110 do Auto de arrolamento de Bens Imóveis, correspondendo no anúncio publicitado, o lote 30 à verba n.º 97 e pelo valor base de 70.000,00 euros, tendo os referidos dois anúncios sido publicados e tendo sido juntos aos autos em 27.05.2014, a fls. 441.

16. Em 23.06.2015, a Administradora de Insolvência juntou ao apenso de Liquidação informação sobre a venda e juntou a Ata de Abertura de propostas, onde apenas foi apresentada uma proposta no valor global de 350.500 euros para aquisição das verbas n.ºs 82, 83, 84, 85, 86, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95 e 97, que por ser inferior ao valor base vai ser posta à consideração da Comissão de Credores.

17. Em 26 de novembro de 2015, a Administradora de Insolvência veio juntar ao apenso de Liquidação informação da proposta apresentada por HH, para aquisição da verba n.º 97 do auto de apreensão de bens imóveis, pelo valor global de 25.000 euros, a qual foi posta à consideração dos elementos da Comissão de Credores.

18. Em 04 de dezembro de 2015, a Administradora de Insolvência veio juntar ao apenso de Liquidação informação da resposta da ... relativamente à proposta apresentada por HH, para aquisição da verba n.º 97 do auto de apreensão de bens imóveis, pelo valor de 25.000 euros, a qual deveria ser recusada face ao valor diminuto da mesma.

19. Em 16 de dezembro de 2015, a Administradora de Insolvência veio juntar ao apenso de Liquidação informação da proposta apresentada por EE ..., Lda., para aquisição da verba n.º 97 do auto de apreensão de bens imóveis, pelo valor de 30.000 euros, a qual foi posta à consideração dos elementos da Comissão de Credores.

20. Em 23 de dezembro de 2015, a Administradora de Insolvência veio juntar ao apenso de Liquidação informação da resposta da ... relativamente à proposta apresentada por EE ..., Lda., para aquisição da verba n.º 97 do auto de apreensão de bens imóveis, pelo valor de 30.000 euros, a qual deveria ser recusada face ao valor diminuto da mesma.

21. Em 20 de janeiro de 2016, a Sr.ª Administradora de Insolvência veio juntar ao apenso de Liquidação informação da proposta apresentada por EE ..., Lda., para aquisição da verba n.º 97 do auto de apreensão de bens imóveis, pelo valor de 42.000 euros, a qual foi posta à consideração dos elementos da Comissão de Credores.

22. Em 16 de fevereiro de 2016, a Administradora de Insolvência apresentou no apenso de Liquidação informação sobre a comunicação que recebeu do mandatário II, onde este a informa que o seu cliente JJ pretende que lhe sejam adjudicadas as frações A, B e C, respetivamente, lote …, verba …, lote …, verba …, e lote …, verba …, do prédio urbano sito em ..., da freguesia ..., concelho de ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o n.º …, da freguesia ..., e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., por lhe terem sido prometidas vender, e estando o respetivo preço integralmente pago, estando na posse das mesmas.

23. Em 19 de fevereiro de 2016, a Administradora de Insolvência apresentou no apenso de Liquidação informação respeitante à ... dando nota que esta credora não aceitou a proposta apresentada pela sociedade EE – …., Lda., no valor de 42.000 euros, para aquisição da verba n.º .., devendo a proponente ser convidada a melhorar a proposta para valor não inferior a 46.900 euros.

24. Em 25 de fevereiro de 2016, a Administradora de Insolvência apresentou no apenso de Liquidação informação sobre a nova proposta apresentada pela sociedade EE – …al, Lda., no valor de 46.950 euros, para aquisição da verba n.º …, e que deu conhecimento desta proposta à Comissão de Credores, aguardando que se pronuncie.

25. Em 02 de março de 2016, a Administradora de Insolvência apresentou no apenso de Liquidação informação sobre a comunicação recebida da ... dando nota que os promitentes-compradores das verbas n.ºs 93, 94 e 95 do auto de apreensão de bens imóveis poderão requerer a adjudicação das referidas verbas, desde que seja depositado o valor das mesmas, uma vez que ainda não foi proferida sentença de graduação de créditos a reconhecer a natureza garantida do crédito reclamado pelos promitentes-compradores.

26. Em 07 de março de 2016, a Administradora de Insolvência apresentou no apenso de Liquidação informação sobre a comunicação recebida do credor KK, S.A. dando nota que nada tem a opor à venda da verba n.º 97 à EE – ..., Lda., pelo valor de 46.950 euros, desde que a credora hipotecária se pronuncie favoravelmente.

27. Em 11 de abril de 2016, a Administradora de Insolvência veio dar conhecimento e juntar aos autos a proposta recebida do credor AA, para aquisição da verba n.º 95 do Auto de Apreensão de Bens imóveis, sobre a qual detém direito de retenção, pelo valor de 82.000,00 euros, e que deu conhecimento desta proposta à Comissão de Credores, aguardando que se pronuncie.

28. Com o requerimento junto pela Administradora de Insolvência, em 11.04.2016, foi junta uma missiva remetida por Advogada, LL, dirigida à Administradora de Insolvência, identificando o processo n.º 139/12.0TBFLG-K, e o Autor AA, onde vem referido: “O Autor é credor, com direito de retenção, relativamente à verba n.º …, do Auto de Apreensão, lote …, correspondente à fração autónoma designada pela letra “…”, correspondente à habitação situada no segundo andar do prédio, com acesso pelo arruamento principal, sendo a segunda a contar do lado nascente, com um lugar de garagem localizado na cave do edifício identificado com o n.º 7 e um espaço para arrumos, sito em ..., freguesia ..., concelho de ..., inscrita na matriz predial com o n.º ... e descrita na Conservatória do registo Predial de ... sob o n.º ..., ao abrigo do disposto nos artigo 164.º, n.º 3 e 4 e 165.º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas vem propor a aquisição, por adjudicação, da verba identificada pelo valor de 82.000,00 euros, (…) requer ainda que seja dispensado do depósito do preço, uma vez que não excede a importância a receber (…)”.

29. Em 15 de abril de 2016, a Administradora de Insolvência juntou ao apenso de Liquidação, a cópia da escritura de compra e venda, celebrada em 08.04.2016, entre a Administradora de Insolvência, como vendedora, e HH em representação da sociedade EE – ..., Lda., como comprador, tendo por objeto de venda e pelo preço de 46.950 euros, a fração autónoma designada pela letra “…”, destinada a habitação, situada no segundo andar do prédio, com acesso pelo arruamento principal, sendo a segunda a contar do lado nascente, com um lugar de garagem localizado na cave do edifício identificado com o n.º 7 e um espaço para arrumos, sito em ..., freguesia ..., concelho de ..., descrita na Conservatória de Registo Predial de ... sob o n.º …, da freguesia ... e inscrita sob o artigo ..., da União das freguesias de ... (...), ..., ..., ..., concelho de ....

30. Em 13 de maio de 2016, o Autor AA apresentou no apenso de Liquidação de Bens um requerimento a solicitar a notificação da Administradora de Insolvência para proceder à anulação da venda efetuada da fração “…”, e adjudicar o bem ao Autor ou para efetuar o pagamento ao mesmo, da quantia total do crédito garantido e reconhecido (82 000,00 euros) e constante da proposta do Autor para a fração em causa, invocando como fundamento o facto de a Administradora de Insolvência nunca o ter notificado, apesar de ser credor com direito de retenção, da existência de uma proposta para aquisição da fração; mais invocou que, em 12.04.2016, verificou que tinha enviado a adjudicação com um erro de escrita, na referência à verba, apesar de ter identificado corretamente a fração, matriz e descrição predial, bem como o número do processo, e  respetivo apenso, e que nessa data teve conhecimento pela Administradora de Insolvência que esta tinha procedido à venda da referida fração, em 08.04.2016.

31. Com o seu requerimento apresentado em 13.05.2016, o Autor juntou também ao apenso de liquidação, a cópia de um e-mail enviado em 12.04.2016, pelas 12,39 horas, à Administradora de Insolvência, onde alega que, por lapso de escrita, no seu pedido de adjudicação enviado em 04.04.2016, referiu a verba n.º …, lote …, quando deveria ter mencionado verba n.º …, lote …, o qual é referente à identificada fração “…”, sobre a qual incide o seu direito de retenção no processo apenso K, com sentença transitada em julgado.

32. Com data de 23.06.2016, foi proferido despacho, no apenso de Liquidação, que apreciou e decidiu indeferir a nulidade da venda invocada pelo credor AA, no seu requerimento apresentado em 13.05.2016, decisão transitada em julgado.

33. No apenso B, de reclamação de créditos, foi proferida sentença em 07.02.12017, que graduou o crédito no montante de 82.000 euros, do Autor AA, para ser pago, em primeiro lugar, pelo produto da venda da verba n.º …, do Auto de apreensão de Bens de fls. 21, do Apenso E, de Apreensão de Bens, até ao respetivo montante máximo assegurado pelo direito de retenção sobre a referida fração autónoma, e em segundo lugar, pelo remanescente, o crédito garantido do credor ..., S.A., até ao respetivo montante máximo assegurado.

34. Entre a Ré CC e a companhia de seguros DD - Sucursal, foi celebrado um acordo escrito denominado de contrato de seguro, a que corresponde o n.º de Apólice ..., mediante o qual a primeira transferiu para a segunda a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros no exercício da sua atividade de Administradora Judicial ou Administradora de Insolvência até ao limite de 1.000.000 euros por reclamação e anuidade, incluindo custos de defesa, com inicio em 28.07.2013 e em vigor para o período de 28.07.2017 a 27.07.2018 (ambos os dias inclusive).

35. A Administradora de Insolvência não informou o Autor AA da modalidade da venda por si escolhida para a verba n.º ., nem do preço da projetada venda ao comprador EE – ..., Lda., antes da realização da escritura de compra e venda celebrada em 08.04.2016.

36. A ..., credora hipotecária da fração apreendida sob a verba n.º …, foi tomando conhecimento das diversas propostas apresentadas para aquisição de tal fração, por ser um dos membros da comissão de credores e, nessa qualidade, a Administradora de Insolvência dava-lhe conhecimento de todas as propostas que iam sendo apresentadas para a aquisição das verbas apreendidas.

Foram considerados não provados os factos seguintes:

a) A Ré sabia que estava a agir ilicitamente e a causar danos ao Autor quando preteriu conscientemente a sua proposta de adjudicação do imóvel por 82.000,00 euros;

b) Na sequência do arrombamento e mudança de fechadura da porta da fração apreendida sob a verba 97, ordenada pela Ré em 01.04.2016, o Autor tomou conhecimento que tal fração ia ser vendida e do preço da respetiva venda.

De direito

Com a presente ação visa o Autor a condenação da Ré, administradora da insolvência, a indemnizá-lo pelo prejuízo decorrente do facto de ter preterido os deveres de audição e de informação quanto à venda da fração autónoma sobre a qual o Autor goza de direito de retenção, e de ter desconsiderado a proposta que este apresentou.

Esta pretensão do Autor funda-se no direito do art. 164º, n.ºs 2 e 3, do CIRE, que estabelece que o credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação já projetada, sendo que pode então propor a aquisição do bem por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado; o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.

Não suscita dúvidas que o objetivo da lei ao determinar tais deveres de audição e de comunicação é o de permitir ao credor poder optar por apresentar uma proposta de valor superior para adquirir o bem para si, por tal se mostrar mais consentâneo com a defesa dos seus interesses[1].

Como reconhece a própria Recorrente, resulta dos factos provados (ponto 35) que não informou o Autor acerca da modalidade da venda por si escolhida para a verba nº 97, sobre a qual havia sido reconhecido ao Autor direito de retenção; da mesma forma que não informou o Autor do preço da projetada venda, que veio depois a ser feita, em 8 de abril de 2016, a EE. Mas diz bem a Recorrente quando diz que, apesar de não ter sido cumprida tal informação, ainda assim o Autor não deixou de fazer, em tempo útil (4 de abril de 2016), a sua proposta, visando que a fração lhe fosse adjudicada pelo valor do seu crédito (€82.000,00). Daqui que a omissão das formalidades previstas no n.º 2 do citado art. 164.º tenha perdido essencialidade.

A questão, porém, é que a Ré desconsiderou essa proposta, o que é dizer, agiu de forma a não aceitar a proposta, na medida em que veio a vender a fração a terceiro, por preço (€46.950,00) inferior ao valor oferecido pelo Autor, com o prejuízo daí decorrente para este. Logo, tornou-se culposamente responsável pelo dano sofrido, criando-se assim para o Autor o direito indemnizatório[2] previsto na última parte do n.º 3 do citado art. 164.º e no art. 59.º, também do CIRE. Efetivamente, estabelece esta última norma, e nomeadamente, que o administrador da insolvência responde pelos danos causados aos credores pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem, sendo que a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado.

Pretende a Recorrente, contudo, que não agiu culposamente, por isso que a proposta do Autor se reportava à fração da verba n.º 95 do auto de apreensão (e, conforme o anúncio publicitado, ao lote 29), quando afinal a fração sobre que o Autor detinha o direito de retenção era a da verba n.º 97 (correspondente, conforme o mesmo anúncio, ao lote 30). Deste modo, teria sido o Autor o causador da desconsideração da proposta, sendo certo que a Ré não deixou de dar seguimento imediato à proposta relativa à verba n.º 95, dando dela conhecimento à comissão de credores para pronúncia e juntando-a aos autos.

Sobre esta matéria divergiram parcialmente as instâncias. Ambas as instâncias entenderam que a Ré agiu culposamente, mas a 1ª instância mais entendeu que também o Autor contribuiu para o dano. Já para o acórdão recorrido a culpa radica-se exclusivamente na Ré.

É esta última a solução que se nos afigura juridicamente correta.

Vejamos:

É verdade que a proposta do Autor se reportava à fração da verba n.º … do auto de apreensão de bens e ao lote … do anúncio, quando afinal a fração sobre que tinha direito de retenção era bem a da verba n.º …, que integrava o lote 30. Simplesmente, era a todos os títulos evidente que a proposta padecia de lapso de escrita, não fazendo sentido a menção à verba n.º …, fração esta a que correspondia a letra “…” e que nada tinha a ver com a pessoa do Autor. Pois que a proposta fazia claramente menção à pessoa do Autor e à fração autónoma designada pela letra “…”, que era a da verba n.º … e do lote … do anúncio, do mesmo passo que fazia menção ao reconhecimento do direito de retenção do Autor para garantia do crédito de €82.000,00 (que incidiu precisamente sobre a fração “…”) e ao apenso (apenso …) onde o direito fora declarado. E daqui que saltava à vista, pois que se revelava no próprio contexto da declaração (v. art. 249.º do CCivil), que existia um lapso na proposta quanto à identificação da verba e do lote.

A Ré estava assim em plenas condições de detetar a existência do lapso (a cuja retificação tinha o Autor direito, como, de resto, veio depois fazer, e nisto se esgotava a relevância do lapso), sendo ademais certo que não podia desconhecer, pois que contestou a ação e foi notificada da sentença (factos supra descritos sob os pontos 2 e 4), que no apenso … (verificação ulterior de créditos) fora reconhecido ao Autor um crédito no dito montante de 82.000 euros, garantido pelo direito de retenção sobre a fração autónoma identificada pela letra “…”.

Porém, a Ré omitiu o dever de diligência a que estava obrigada em termos de observância, como é exigido na lei, de uma administração criteriosa e ordenada. Efetivamente, uma administração que cumprisse tais exigências implicaria uma análise cuidadosa ou ponderada do conteúdo substancial da proposta, e não, como se confessa na conclusão 27ª, uma atuação pautada por automatismos. Claramente que a Ré foi negligente, alheando-se do lapso evidente que a proposta continha, avançando daí para uma venda da fração a terceiro sem ter em conta a proposta do Autor.

A circunstância de ter existido um lapso de escrita na proposta do Autor, a circunstância das frações estarem descritas no registo predial sob o mesmo número (…-C e …), a circunstância do artigo matricial de referência (o da unidade predial) ser o mesmo (...) e a circunstância da massa insolvente integrar mais de uma centena (102) de unidades prediais e de frações, tudo isto são circunstâncias que, contrariamente ao que pretende a Recorrente, não retiram da sua pessoa a causa e a culpa exclusivas na produção do dano do Autor. Tais circunstâncias apenas poderão relativizar o grau de culpa da Ré, que pode ser vista como leve, mas, na perspetiva legal (e salvas algumas exceções, que aqui não concorrem), o grau de culpabilidade (grave, leve e levíssima) não tem impacto na obrigação de reparação do dano[3].

Acresce dizer, aqui particularmente quanto à relevância do lapso de escrita constante da proposta do Autor (circunstância a que a Recorrente atribui a maior importância e essencialidade, como resulta das conclusões 29ª e 30ª), que o facto do lapso se revelar no próprio contexto da declaração necessariamente que implica que esse lapso esteja afastado do processo causal que levou ao dano. Isto é assim porque o nexo de causalidade adequada (tida pacificamente como estando consagrada na lei) postula que o facto tenha atuado como condição do dano e que, em abstrato, o facto seja uma causa adequada (hoc sensu) desse dano. Ora, não há entre tal lapso de escrita e o dano em questão uma ligação que, segundo a regra comum da vida, autorize a pensar que, posto o primeiro, provavelmente se daria o segundo. Logo, não existe qualquer nexo de causalidade adequada entre uma coisa e outra.

Do que fica dito resulta que não é de subscrever a pretensão da Recorrente a ver-se isenta de responsabilização perante o Autor. Da mesma forma que não é de subscrever a pretensão subsidiária da Recorrente à redução do montante do dano por contribuição do Autor para a sua produção.

Improcedem assim, em tudo o que vai contra o exposto, as conclusões 5ª a 36ª, sendo de confirmar o acórdão recorrido.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

A Recorrente é condenada nas custas do presente recurso.

                                                           +

Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil):

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Lisboa, 29 de outubro de 2019

José Rainho

Graça Amaral

Henrique Araújo

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[1] Dizem a propósito Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed., p. 617) que “Do que fundamentalmente se trata é de criar um procedimento peculiar de tutela do credor assistido de garantia, para, em primeira mão, melhor lhe permitir cuidar da satisfação do seu crédito, embora isso se possa traduzir na possibilidade de aquisição do bem onerado, para si próprio ou terceiro”.
[2] Dizem a propósito Carvalho Fernandes e João Labareda (ob. cit., p. 618) que, em termos práticos, a obrigação estabelecida em tal norma significa que o administrador da insolvência fica responsável perante o credor oferente pela diferença entre o preço oferecido e o preço do negócio, na medida em que essa diferença caiba na satisfação do direito de crédito garantido.
[3] V. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pp. 507 e 508.