Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99A121
Nº Convencional: JSTJ00036389
Relator: MARTINS DA COSTA
Descritores: DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
PARTILHA
CONTRATO-PROMESSA
Nº do Documento: SJ199903230001211
Data do Acordão: 03/23/1999
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N485 ANO1999 PAG423
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4209/98
Data: 10/08/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 410 N1 ARTIGO 1714.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1993/05/26 IN CJSTJ ANOI TII PAG134.
ACÓRDÃO RC DE 1995/11/28 IN RLJ ANO129 PAG279.
Sumário : É válido o contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal, celebrado pelos cônjuges na pendência de acção de divórcio por mútuo consentimento e subordinado à condição suspensiva do decretamento desse divórcio.
Decisão Texto Integral: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

I - A intentou a presente acção de processo comum, na forma ordinária, contra B, pedindo a declaração de nulidade de contrato-promessa de partilha e da consequente obrigação de restituição de tudo o que foi prestado.
Houve contestação e réplica.
No despacho saneador, julgou-se improcedente a acção bem como a pretensão da ré de condenação do autor como litigante de má fé, o que veio a ser confirmado, em recurso de apelação, pelo acórdão de fls. 105 e seguintes.
Neste recurso de revista, o autor pretende a revogação daquele acórdão com base, em resumo, nas seguintes conclusões :
- a promessa de partilha em causa, celebrada antes da decisão que decretou o divórcio, viola o disposto no artº 1714º do Cód. Civil, ao atentar contra o princípio da imutabilidade do regime de bens ;
- a não coabitação dos cônjuges não afasta, por si, o risco de um deles se aproveitar do ascendente psicológico adquirido sobre o outro ;
- a partilha prometida seria feita com vontade vinculada, porque declarada em momento em que os cônjuges não eram livres de se manifestar e obrigar livremente.
A ré, por sua vez, sustenta a improcedência do recurso.
II - Situação de facto :
O autor e a ré contraíram casamento, em 8-4-1962, sem convenção antenupcial, ou seja, segundo o regime de comunhão geral de bens .
Esse casamento foi dissolvido, em acção de divórcio por mútuo consentimento, por sentença de 14-5-1997, transitada em 26-5-1997.
Em 21-1-97, eles celebraram o contrato-promessa de partilha de fls. 9 e segtes , de que consta, em especial :
- requereram o prosseguimento de acção de divórcio litigioso, intentada pelo marido, como de divórcio por mútuo consentimento, "como tal pendendo presentemente", e houve "cessação de coabitação ... em 31 de Maio de 1990";
- "no pressuposto do decretamento de divórcio por mútuo consentimento e para valer unicamente após o decretamento desse divórcio", prometeram, reciprocamente, partilhar os bens do casal, por forma aí determinada ;
- e reconheceram, "reciprocamente, o direito à execução específica".
III - Quanto ao mérito do recuso :
A questão suscitada consiste apenas em determinar se é ou não válido o contrato-promessa de partilha de bens comuns do casal, celebrado pelos cônjuges na pendência de acção de divórcio por mútuo consentimento e subordinado à condição suspensiva do decretamento desse divórcio.
Têm sido proferidas decisões divergentes e este tribunal já se pronunciou no sentido da nulidade do contrato, com base em violação do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, porque tal contrato é "susceptível de levar, embora por via indirecta, ao mesmo resultado" de alteração da "situação concreta dos bens do casal" ou do regime de bens, e se configura a razão de ser daquele princípio, que é evitar que um dos cônjuges faça valer "o seu ascendente sobre o outro" (acórdão de 26-5-93, na Col. S. T. J. , I, 2º, p. 134).
Não é de seguir, porém, essa orientação, por fundamentos que se reconduzem aos da solução dominante na jurisprudência das Relações, e, em especial, aos expostos por Guilherme F.F. de Oliveira, na Rev. Leg. J., 129º, p. 279 e segtes , em anotação favorável a acórdão da R. C. de 28-11-95.
O contrato-promessa tem como objecto imediato uma simples prestação de facto, a celebração do contrato prometido, e, sendo este válido, também aquele o é, em princípio (artº 410º nº 1 do Cód. Civil).
Um dos efeitos do divórcio, decretado por sentença transitada em julgado, é a cessação da comunhão de bens e o consequente direito à partilha desses bens, por via judicial ou extrajudicial (artºs 1788º e segtes do cit. Código).
Assim, no domínio dos princípios gerais, nada se opõe à validade de contrato-promessa de partilha dos bens do casal, destinado a ser cumprido ou executado apenas em momento posterior à dissolução do casamento, por divórcio.
Pelo artº 1714º do cit. Cód. Civil, "fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados" (nº 1) e "consideram-se abrangidos pelas proibições do número anterior os contratos de compra e venda ... entre os cônjuges ..." (nº 2).
A principal razão que tem sido invocada para esta proibição é "a necessidade de prevenir o risco sério de um dos cônjuges se prevalecer do ascendente psicológico adquirido com o tempo sobre o seu consorte, para dele extorquir alterações favoráveis aos seus interesses" (A. Varela, em Direito de Família, p. 418), mas essa razão não pode fundamentar a nulidade deste contrato-promessa : as proibições previstas no cit. artº 1714º revestem carácter excepcional, por serem contrárias ao princípio da liberdade contratual consagrado no artº 405º nº 1 do cit. Código, e por isso devem limitar-se às hipóteses contempladas pelo legislador; este interveio em domínio que considerou particularmente sensível ou melindroso e, se a apontada razão dessa intervenção pudesse aplicar-se a outros casos, acabaria por se concluir pela nulidade da generalidade dos negócios entre os cônjuges, o que seria inadmissível, por prejudicial aos seus interesses; aliás, os cônjuges não estão inibidos da prática de actos com efeitos porventura mais graves, como será a alienação dos bens do casal, por acordo entre ambos, com a consequente aplicação do produto dessa alienação para os mais diversos fins.
De resto, os efeitos deste contrato-promessa em nada interferem, directa ou indirectamente, com os mencionados no cit. artº 1714º, uma vez que não é alterado o regime de bens nem afectado o estatuto patrimonial dos cônjuges. Como se diz na citada anotação na Rev. Leg. J. "... todos os bens comuns do casal continuam bens comuns...; e todos os bens próprios de cada cônjuge continuam como dantes" ; neste contrato, "os cônjuges apenas combinam o modo de preencher os direitos que ambos têm a metade do valor dos bens comuns" e "o modo como esta repartição é projectada não parece merecer um controlo específico da ordem jurídica..., deve ficar apenas submetido aos mecanismos gerais de defesa de um contraente contra o outro".
Esta solução da validade do contrato-promessa é ainda a mais razoável, por permitir aos cônjuges desavindos ou determinados a pôr termo à vida conjugal uma solução conjunta dos seus diversos interesses de modo mais seguro, rápido e económico, uma vez que, através do divórcio por mútuo consentimento e do projecto de partilha dos bens, garantem a dissolução do casamento em curto prazo, evitam discussão sobre as causas do divórcio e os riscos inerentes à declaração de culpa e podem organizar a sua vida na perspectiva do gozo de determinados bens.
Aliás, se a lei lhes permite a solução consensual do problema do próprio divórcio, sem preocupações sobre o possível ascendente psicológico de algum dos cônjuges, por manifesta maioria de razão lhes deve permitir a celebração de um acordo vinculativo para a solução dos aspectos patrimoniais.
Assim, a validade do contrato não tem sequer de ficar dependente, como se considerou no acórdão recorrido, de a sua outorga ter "ocorrido após cessada a coabitação ..., e desde que seja de concluir já não haver risco de aproveitamento de ascendente psicológico de um dos cônjuges sobre o outro para obtenção de vantagens patrimoniais, à custa deste, na futura partilha", uma vez que não está aqui em causa o princípio, consignado no artº 1714º do Cód. Civil, que tem como subjacente esse risco, sendo antes tal validade compatível com a própria coabitação dos cônjuges.
Em conclusão :
É válido o contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal, celebrado pelos cônjuges na pendência de acção de divórcio por mútuo consentimento e subordinado à condição suspensiva do decretamento desse divórcio (artº 410º nº 1 do Cód. Civil).
Pelo exposto :
Nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 23 de Março de 1999.
Martins da Costa,
Pais de Sousa,
Afonso de Melo.