Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
Descritores: | RECURSO DE REVISTA INSOLVÊNCIA ADMISSIBILIDADE PRESSUPOSTOS OPOSIÇÃO DE JULGADOS ACÓRDÃO RECORRIDO ACORDÃO FUNDAMENTO QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO IDENTIDADE DE FACTOS RECLAMAÇÃO REJEIÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 09/23/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
Decisão: | INDEFERIDA | ||
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Sumário : | O recurso de revista que tem por objeto acórdão proferido no incidente de exoneração do passivo restante (tramitado nos autos da insolvência) é disciplinado pelo regime específico previsto no artigo 14.º do CIRE. Não existindo uma oposição frontal entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento sobre a mesma questão jurídica (no caso concreto: o modo de contagem do início do período de cessão de rendimentos), por tais arestos assentarem em factualidades decisivamente distintas, não se encontra justificada a admissibilidade do recurso de revista. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. O Banco Comercial Português, S.A. pediu a declaração de insolvência de AA, alegando, em síntese, ser titular de um crédito sobre o requerido, no montante de € 622.394,19, e a insuficiência do património deste para cumprir a correspondente obrigação, bem como as suas demais obrigações vencidas. 2. Na sua contestação, o requerido admitiu encontrar-se em situação de insolvência, e pediu a exoneração do passivo restante. 3. Por sentença, de 03.12.2019, foi declarada a insolvência do requerido e nomeado administrador da insolvência, dispensada a realização da assembleia de credores e fixado em trinta dias o prazo para a reclamação de créditos. 4. Em janeiro de 2020, o administrador da insolvência apresentou o relatório previsto no artigo 155.º do CIRE, no qual, além do mais, sugeriu o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. 5. Seguiram-se diligências várias, até que, em 02.05.2024, foi proferido, nos autos principais, despacho no qual, depois de ter consignado que “[a]tendendo a que os autos prosseguiram para liquidação do ativo apreendido, sem que até à data tenha sido apreciado liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado nos autos e resultando do disposto nos artigos 235º e 239º, nº 2 do CIRE que para efeito de cessão de rendimento disponível o período relevante são os 3 anos posteriores ao encerramento do processo, que não foi declarado nos autos, impõe-se, desde já, tomar posição quanto a tal pretensão, não obstante a pendência da ação instaurada, com vista à recuperação de bens, transmitidos em 2012/2013, que não obsta ao conhecimento liminar do pedido de exoneração aqui formulado” e que “[o]s autos prosseguem para liquidação do ativo apreendido e a apreender, pelo que, por força do disposto no art. 230º n.º 1 al. e), há que declarar encerrado o processo de insolvência, o que, in casu, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível (art. 233º n.º 7 do CIRE)”, o tribunal de 1.ª instância decidiu admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante. Declarou, então, que “(…) a exoneração do passivo restante será concedida ao insolvente uma vez que sejam observadas as condições previstas no artigo 239º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, nos três anos subsequentes ao encerramento do presente processo de insolvência.” Determinou que: “(…) nos três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (“período de cessão”), o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir (determinado nos termos constantes do artigo 239.º, n.º 3) seja cedido ao fiduciário designado, com exclusão do montante mensal corresponde a 1,5 salário mínimo nacional, que para cada ano seja legalmente determinado, sendo o cálculo efectuado anualmente.” Nomeou o administrador da insolvência para exercer o cargo de fiduciário. Declarou ainda “(…) encerrado o processo de insolvência (…), nos termos do art. 230º n.º 1 al. e) do CIRE, o que no caso dos autos determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível, com a consequente obrigação do devedor entregar o rendimento disponível ao fiduciário.” 6. Inconformado com essa decisão, na parte em que foi decidido que “a exoneração do passivo restante será concedida apenas após o decurso do prazo de 3 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, determinado naquela mesma data, e que, apenas com tal encerramento, se inicia o período de cessão”, o insolvente interpôs recurso de apelação, o qual veio a ser julgado improcedente. 7. Inconformado com o acórdão do TRG, de 20.02.2025, que confirmou a decisão da primeira instância respeitante ao início do prazo de três anos para efeitos daquela exoneração (período de cessão do rendimento disponível), o insolvente veio interpor recurso de revista, invocando o artigo 14.º, n.º 1 do CIRE e os artigos 629.º, n.º 2, alínea d) e 671º do CPC. Nas suas alegações o recorrente formulou as seguintes conclusões: «Da admissibilidade da Revista: I. A presente Revista deve ser admitida porquanto se verifica e se prova contradição entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/11/2017, proferido no Processo nº 21508/10.4T2SNT-E.L1), no domínio da mesma legislação e sobre as mesmas questões fundamentais de direito, no que respeita à necessidade, elencada no primeiro mas dispensada no segundo, de o período da cessão do rendimento disponível se iniciar apenas com o despacho inicial de exoneração do passivo restante (art. 14º, nº1 do CIRE). II. Contradição que, de igual modo, se verifica entre aqueles dois arestos quando o Acórdão Recorrido vem tratar a não prolação no tempo devido do despacho inicial de exoneração do passivo restante como uma nulidade agora insindicável, ao passo que o Acórdão Fundamento julgou, sem outras considerações, o Recurso ali interposto em matéria em tudo idêntica – prolação do despacho inicial em desrespeito manifesto do prazo legalmente previsto. Das razões da discordância com o Douto Acórdão Recorrido. III. O respeito pela filosofia, natureza, finalidades e regime do Instituto de Exoneração do Passivo Restante exige não apenas que o período de cessão do rendimento disponível se tenha por iniciado quando, por lei, o despacho inicial deveria ter sido proferido, como também que nada obste à consideração do decurso do respectivo prazo quando o Insolvente venha, de uma só vez, proceder à entrega daquele rendimento, ainda que, por decorrência naturalística, apenas após ser notificado sobre o quantum a ceder. IV. Sem tibiezas deve afirmar-se que o Acórdão Recorrido é de uma absoluta clareza e compreende uma cuidada e correcta análise jurídica do regime do CIRE quanto à fixação de quando deve ser proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante e o despacho de encerramento do processo de insolvência (este nos termos da alínea e) do n.º 1 do art. 230º do CIRE). V. Porém quando, não obstante reconhecer o manifesto desrespeito pela Primeira Instância dos prazos legais em que aqueles despachos haviam sido proferidos, o Tribunal Recorrido sacrificou injustamente o Recorrente ao não retirar daquela falha as necessárias consequências, quais sejam a de que o início do período da cessão se deve contar da data em que aqueles despachos deveriam ter sido proferidos e não da data em que, em atropelo à lei, o foram. VI. Dito de outra forma, o Tribunal da Relação da Guimarães definiu com mestria o quadro legal, mas, apesar disso, aplicou-o incorrectamente não fazendo retroagir os efeitos à data legal antes, inutilmente, projectando-os no futuro e com isso violou os arts. 130º do Código de Processo Civil, 230º, nº 1, al. e), 235º a 239º 244º e 245º do CIRE. VII. As finalidades do Instituto da Exoneração do Passivo Restante, quais sejam a reinserção do insolvente na vida económica, o manifesto interesse deste em poder encontrar bem estar na reforma e nos últimos anos de vida livre do anátema de uma insolvência para a qual nada contribuiu, demanda uma interpretação finalística daqueles preceitos que permita considerar que o período da cessão do rendimento disponível se iniciou em 15 de Fevereiro de 2020 (dia seguinte àquele até ao qual deveriam ter sido proferidos o despacho inicial de exoneração e de encerramento do processo de insolvência) e terminou em 14 de Fevereiro de 2023, desde que este proceda à entrega ao fiduciário, para satisfação dos credores, dos rendimentos disponíveis por si auferidos naquele que deveria ter sido o período da cessão. VIII. Ou, subsidiariamente, que tal período se iniciou no dia seguinte à apreensão de bens para a massa insolvente, 01 de Julho de 2020, e terminou em 30 de Junho de 2023. IX. O Insolvente está convencido que, com a recuperação da sua liberdade económica, obterá crédito que lhe permita fazer aquela entrega assim que seja notificado para o efeito e desde que seja definitivamente exonerado do passivo restante com efeitos à data em que a decisão final sobre a exoneração deveria ter sido proferida (24 de Fevereiro de 2023). X. Do regime da exoneração do passivo restante, extrai-se que, além de uma postura correcta merecedora do benefício, o devedor, fundamentalmente, deverá cumprir para com os credores, entregando-lhes, via fiduciário, o rendimento disponível obtido durante determinado período de tempo. XI. Mas o que o princípio do fresh start, a celeridade desejada do processo de insolvência e do recomeço de vida não admitem nem consentem é que os valores cedidos tenham de ser aqueles obtidos pelo devedor a partir de determinada decisão judicial, independentemente do tempo que a mesma demore a ser proferida, e ainda que o seja muito para lá dos prazos fixados na lei, como erradamente decidiu o Acórdão Recorrido. XII. A interpretação finalística e não formal do instituto exige que se permita compatibilizar os direitos dos credores a receberem o que for determinado nos termos da lei, com o direito do devedor de se exonerar das demais dividas em tempo útil de poder iniciar uma nova vida. XIII. A reabilitação do Insolvente, os princípios da igualdade e do tratamento equitativos das pretensões trazidas a juízo, a uniformização dos efeitos da insolvência e os impactos positivos de ordem geral e especial, reclamam uma interpretação material do instituto da exoneração do passivo restante que se adequem ao caso concreto, diferente da encontrada pelo Tribunal Recorrido. XIV. Largamente incumprido o prazo para prolação do despacho após o que se iniciaria o período da cessão, tendo sido verificado pelo mesmo (ainda que tardiamente) que o Recorrente não estava em nenhum dos casos em que o pedido deveria ser rejeitado e desde que tenha cumprido materialmente as obrigações impostas pelo nº 4 do art. 239º do CIRE, o que igualmente sucedeu como, aliás, decorre daquele despacho (e que, nessa parte, não sofreu impugnação), deveria ter-se tido por findo aquele período e ser-lhe concedida a exoneração final do passivo restante na condição da cessão a efectuar agora do que foi o seu rendimento disponível no período em que, por lei, o mesmo deveria ter ocorrido. XV. Apenas assim sucedendo, o Recorrente não sofrerá as consequências do atraso para que nada contribuiu e que nada podia fazer para evitar, desta forma se compatibilizando os incontornáveis direitos dos credores a receberemos seus créditos (por via da cessão do rendimento disponível) com os direitos do devedor à sua liberdade económica, produtividade e bem estar, no fundo, à retoma plena da sua dignidade como pessoa humana. XVI. Ao contrário do decidido, perante inaceitável morosidade da Primeira Instância, o importante não são, pois, as datas em que determinado período temporal (o da obtenção e cessão do rendimento disponível) ocorreram. O importante é que decorra um período, um hiato temporal e existia por referência ao mesmo, obtenção e cessão do rendimento disponível, ou seja, “o período temporal que o legislador entendeu adequado para lhes ser assegurada (aos credores) uma razoável satisfação dos seus créditos.” XVII. Em favor da interpretação substantiva e finalística do instituto, em caso com manifesta semelhança, ditou esse Venerando Supremo Tribunal de Justiça “Não se vislumbra substancial razão para, em função até da protecção do devedor insolvente a quem foi concedida a segunda oportunidade, não se admita que, declarada a insolvência, tendo sido concedida a exoneração do passivo restante, o prazo da cessão não comece de imediato. XVIII. A cessão a efectuar agora dos montantes em que foram calculados os rendimentos disponíveis do Recorrente não prejudica os credores e impõe agora ao devedor exactamente o mesmo sacrifício a que teria estado sujeito se o período da cessão se tivesse iniciado quando devia. XIX. Receber agora, de uma só vez um montante liquidado e certo, representa até um benefício dos credores não apenas pela antecipação do mesmo como, fundamentalmente, por ficarem a coberto das incertezas que o futuro sempre acarreta (não sendo, aliás, expectável, com a idade do Recorrente, que os seus rendimentos venham a aumentar na reforma). XX. O Tribunal Recorrido decidiu também erradamente quanto a uma pretensa nulidade, que entendeu ora insindicável, do despacho de 07/02/2020 que relegou para momento posterior a decisão sobre a exoneração, tanto mais que, se o despacho de 02/05/2024, na esteira do Acórdão Fundamento, tivesse contado o período do início da cessão desde a data legal, não existiriam razões de discordância que motivassem reacção XXI. O Recorrente não se encontrava em nenhuma das razões pelas quais o pedido de Exoneração do Passivo Restante podia ser rejeitado. Nem em 2019, nem desde então até à presente data. Como, de resto, foi pressuposto do Despacho da Primeira Instância, mas que, nessa parte, não apenas não merece censura como tem o efeito de confirmar que o mesmo cumpriu as condições para a prolação Decisão Final de Exoneração, atento o período de tempo já decorrido (o período da cessão), o que deve ser declarado XXII. Não pode manter-se o entendimento do Tribunal Recorrido de que a entrega agora proposta efectuar do rendimento disponível seria sempre tardia e, como tal, constituiria um incumprimento da obrigação prevista na alínea c) do nº 4 do art. 239º do CIRE, desde logo, por ser apodíctico que o Recorrente não podia ceder sem antes saber o respectivo quantum (o que desde logo, afasta o dolo ou o comportamento gravemente negligente) mas também por, ao invés, a solução proposta inclusive antecipar essa cessão, recebendo os credores de uma vez o que receberiam no futuro durante 3 anos com o que, em vez de prejudicados, saem beneficiados (retenha-se que o Recorrente tem procedido à cessão do rendimento disponível desde que mesmo foi fixado). XXIII. Peca por demasiado formal e literal o entendimento de que, para o efeito da exoneração final, se deveria ficcionar a verificação de todos os pressupostos e condições de que a mesma depende por ontologicamente ser impossível cumprir com obrigações ainda não determinadas. XXIV. Pelo contrário, além da cessão do rendimento disponível, a decisão de exoneração deve bastar-se com o cumprimento daquelas obrigações que não dependam da prolação do despacho inicial de exoneração, ou seja, aquelas que um devedor honesto sempre cumpriria, a saber, o não ocultar ou dissimular património, exercer profissão remunerada, não tratar desigualmente credores. Como o Insolvente afirmou que faria no requerimento inicial e assim fez. XXV. O montante a ceder computa-se em € 32.281,83 se o período da cessão for considerado entre 15 de Fevereiro de 2020 e 14 de Fevereiro de 2020, ou seja, entre a data em que o Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante e de Encerramento do processo deveria ter sido proferido ou, subsidiariamente, salvaguardando o entendimento de que tal período de 3 anos apenas se iniciou com a apreensão de bens, entre 01 de Julho de 2020 e 30 de Junho de 2023 e que se calcula em € 30.411,64. XXVI. Mesmo que se considerasse tardia a entrega ora proposta, sempre mereceria censura a Decisão Recorrida por, ao demitir-se de adoptar mecanismos de simplificação, agilização e cooperação processual em atenção à Justiça na composição da causa, não ter imposto como condição da exoneração final do passivo restante o pagamento de juros moratórios sobre a obrigação pecuniária em que consiste a da cessão dos rendimentos disponíveis no período que, por lei, deveria ter sido o considerado (art. 806º do Código Civil) XXVII. Na condição de entrega ao fiduciário de qualquer daqueles montantes nos termos atrás calculados, ou de outro próximo que melhor seja determinado, em que o Recorrente está convicto se conseguirá financiar, esse Venerando Tribunal está em condições de substituir Acórdão Recorrido e declarar terminado o período da cessão do rendimento disponível com prolação de Decisão Final de Exoneração do passivo restante, com efeitos à data em que deveria ter sido proferida (24/03/2023) Termos em que Vossas Excelências, Venerandos Conselheiros, Revogando o Acórdão Recorrido nos segmentos de que se recorre, dando Provimento à presente Revista, declarando o início e o termo do período da cessão do rendimento disponível por referência às datas em que o mesmo deveria ter tido lugar (entre 15 de Fevereiro de 2020 e 14 de Fevereiro de 2023) e, na condição da efectiva entrega do rendimento disponível nos termos acima calculados e/ou melhor supridos, exonerando definitivamente o Recorrente do passivo restante com efeitos a 24 de Fevereiro de 2023, farão costumada e sã Justiça.» 8. Distribuídos os autos no STJ, e prefigurada a não admissibilidade da revista, por não existir oposição de acórdãos sobre a mesma questão jurídica, foram as partes notificadas, nos termos do artigo 655.º do CPC (ex vi do artigo 17.º do CIRE) para, facultativamente, se pronunciarem. 9. O insolvente respondeu, reiterando o seu entendimento no sentido de que a revista devia ser admitida. 10. Em 18.06.2025, foi proferida decisão, nos termos do artigo 652º, n.º 1 alínea h), ex vi do artigo 679º do CPC e artigo 17º do CIRE, que julgou findo o recurso por não haver que conhecer do seu objeto. 11. Discordando de tal decisão, o insolvente veio requerer a intervenção da Conferência e a prolação de acórdão que revogue a decisão singular e admita a revista. Reafirma o recorrente, na sua tese, que o acórdão recorrido estaria em oposição com o acórdão fundamento e que as hipóteses fácticas subjacentes a tais decisões seriam equiparáveis. Cabe apreciar em Conferência. * II. FUNDAMENTOS 1. A questão prévia da admissibilidade da revista. 1.1. Está em causa uma decisão proferida em processo de insolvência, pelo que o regime do recurso de revista é o previsto no artigo 14.º do CIRE, o qual, pela sua especificidade, afasta a aplicação do regime do CPC. Assim, para efeitos deste regime específico do processo de insolvência, o recorrente tem o ónus de demonstrar a clara existência de oposição entre o acórdão recorrido e um acórdão fundamento, sobre a mesma questão jurídica, proferidos no mesmo quadro legal e em hipóteses fácticas equiparáveis, como a jurisprudência do STJ tem reiteradamente afirmado. Só feita a demonstração dessa oposição se justifica, nos termos do artigo 14.º do CIRE, a intervenção orientadora da jurisprudência do STJ sobre o modo como os tribunais devem aplicar as normas em causa. 1.2. Entende o recorrente, para efeitos de admissibilidade do recurso, que o acórdão recorrido estará em oposição com o acórdão do TRL de 07.11.2017 (relatora Higina Castelo), proferido no processo n.º 21508/10.4T2SNT-E. L1, que indica como acórdão fundamento. 1.3. O insolvente havia interposto recurso de apelação contra o despacho proferido no incidente de exoneração do passivo restante (em 02.05.2024), na parte em que determinou que a exoneração do passivo restante fosse concedida após o decurso do período de 3 anos que entendeu ter-se iniciado apenas com aquele despacho. Nesse despacho, a primeira instância declarou encerrado o processo de insolvência «(…) nos termos do art.º 230º n.º 1 al. e) do CIRE, o que no caso dos autos determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível, com a consequente obrigação do devedor entregar o rendimento disponível ao fiduciário.» Entendia o insolvente que o processo de insolvência devia ter sido encerrado em 15.02.2020, e devia ter sido iniciado, nessa mesma data, o período da cessão do rendimento disponível. 1.4. No acórdão recorrido a pretensão do insolvente apelante não foi atendida. Apesar de se ter entendido que o despacho inicial sobre o pedido de exoneração do passivo restante devia ter sido proferido até ao dia 14.02.2020 (declarando-se aí o encerramento do processo para se iniciar a contagem do período, de 3 anos, de cessão do rendimento), decidiu-se não ser possível ficcionar retroativamente o início da contagem do prazo a esse momento, como pretendia o apelante (que invocava decisões em sentido alegadamente oposto). Afirma-se no acórdão recorrido: «Aqui, ademais de não haver um desfasamento temporal entre o despacho inicial e o encerramento do processo (os dois foram proferidos uno acto), não ocorreu qualquer apreensão de rendimentos auferidos pelo insolvente. Mais concretamente, não ocorreu qualquer apreensão (ou entrega) de rendimentos nos três anos subsequentes ao momento em que devia ter sido proferido o despacho inicial. Isto revela-nos uma fragilidade da tese do Recorrente: se o início do período de cessão retroagisse até ao dia 15 de fevereiro de 2020, então, coerentemente, levando a ficção que é proposta às suas últimas consequências, teríamos de concluir, retrospetivamente, que não foi cumprido um dos deveres que recaem sobre o insolvente no período de cessão: o de entregar imediatamente ao fiduciário os rendimentos por si (confessadamente) auferidos (e gastos), na parte em que excederam o rendimento indisponível fixado na decisão recorrida. A entrega que o Recorrente agora se propõe fazer não supriria a omissão deste comportamento. Seria, desde logo, tardia.» E acrescenta-se no acórdão recorrido: «O que temos mais dificuldade em compreender, em termos dogmáticos, é que se faça retroagir o início do período de cessão a um momento anterior àquele em que foi proferido o despacho inicial. Para além de a letra da lei não suportar este entendimento, temos que é apenas com este despacho que o devedor fica sujeito aos deveres que são característicos do período de cessão, designadamente o de proceder à imediata entrega do rendimento disponível ao fiduciário. E é também com este despacho que os credores ficam a saber qual é a parte do rendimento do insolvente que, por ser indisponível, fica isenta da cessão. No fundo, é ele o elemento que define os direitos e os deveres do insolvente e, bem assim, as expectativas dos credores no período, pelo que os seus efeitos têm de se repercutir no tempo futuro. Nunca no tempo passado (…)» Afirma-se ainda no acórdão recorrido: «(…) bem vistas as coisas, essa dilação não resultou da lei, mas forma como ela foi aplicada pelo Tribunal de 1.ª instância em dois momentos anteriores ao despacho recorrido: num primeiro, quando, no despacho de 5 de fevereiro de 2020 relegou a apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo restante para o momento em que ficassem “resolvidas (…) as questões suscitadas no relatório apresentado pelo administrador da insolvência”; num segundo em que, resolvidas aquelas questões com a apreensão das quotas sociais, cujo auto foi apresentado no dia 7 de julho de 2020, omitiu a prolação do despacho inicial, ato previsto na normal tramitação da causa. Esta omissão prolongou-se até 2 de maio de 2024 e, há que dizê-lo, com a complacência do Recorrente. Aquele despacho de 5 de fevereiro de 2020 devia ter sido impugnado pelo Recorrente por via de recurso, que teria subida imediata e em separado (art. 14/5); a omissão da prática do segundo, geradora de uma nulidade processual atípica (art. 195/1 do CPC, ex vi do art. 17 do CIRE), devia ter sido arguida, por via de reclamação, perante o Tribunal de 1.ª instância (art. 196, parte final, do CPC), com eventual interposição de recurso do despacho que a indeferisse (…)» 1.5. Entende o recorrente que o acórdão recorrido está em oposição com o acórdão fundamento (acórdão do TRL de 07.11.2017, no processo n.º 21508/10.4T2SNT-E. L1), porquanto, tendo havido em ambos os casos incumprimento (pela primeira instância) dos prazos legais para a prolação dos despachos de encerramento do processo de insolvência e inerente marcação do início do período de cessão, no acórdão fundamento a contagem desse período foi feita retroativamente (ao momento em que o despacho devia ter sido proferido) e no acórdão recorrido esse efeito retroativo não foi decidido. Porém, tal não é suficiente para se concluir que os arestos em confronto fizeram uma aplicação frontalmente oposta de alguma norma do CIRE, nomeadamente do seu artigo 239.º, pois, como a jurisprudência do STJ tem reiteradamente afirmado, em matéria de oposição de acórdãos, há sempre que atender à ratio decidendi de cada uma das decisões. 1.6. O acórdão fundamento apresentava o seguinte sumário: «I. Nos termos da lei, o despacho inicial sobre a exoneração do passivo restante deve ser proferido na assembleia de apreciação do relatório ou nos dez dias posteriores, devendo, nesse mesmo despacho, ser encerrado o processo. II. Se o juiz não profere aqueles despachos no momento legalmente determinado, vindo a fazê-lo com mais de seis anos de atraso, tendo o insolvente, no decurso daqueles anos, cedido, mensalmente, os seus rendimentos no que ultrapassava € 700, não deve ser obrigado a ceder rendimentos durante mais cinco anos. III. Nestas circunstâncias, o insolvente não deve sofrer as consequências do atraso, devendo reportar-se o despacho inicial sobre a exoneração do passivo restante à data em que devia ter sido proferido, para que o insolvente não fique privado do rendimento que ultrapassa o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno por mais de cinco anos.» E afirma-se na fundamentação desse acórdão: «No caso dos autos (…) foi entendido em 1.ª instância que, para ambos os insolventes, o valor de duas vezes e meia o salário mínimo nacional mensal é razoavelmente suficiente para o sustento minimamente digno daqueles. Os recorrentes não puseram em causa esta parte do despacho. Discordam apenas do facto de, estando a ceder rendimento há cerca de seis anos, não se considerar desde já definitivamente concedida a exoneração, pois não lhes é imputável que o tribunal tenha levado sete anos a para encerrar o processo. E acrescentou-se: «(…) o tribunal a quo, apenas veio a proferir o despacho inicial do incidente de exoneração e a declaração de encerramento do processo cerca de seis anos decorridos, em 2017. E desde 2011 a 2017, foi sendo apreendida parte dos rendimentos dos insolventes. Pode ser-lhes agora imposto que continuem a ceder rendimento por mais cinco anos, como decidiu o juiz a quo? Ou deve, como pretendem, ser considerado findo o período de cessão uma vez que, de facto, cederam rendimento durante cinco anos (até mais)? Foi determinado aos insolventes que cedessem os seus rendimentos no que excedesse € 700, o que fazem desde 2011. Afirma o tribunal a quo que tal cessão foi feita ao abrigo do art. 149 do CIRE, pretendendo que a partir de agora tenham mais cinco anos de cessão de rendimentos ao abrigo do art. 239 do mesmo Código. Não podemos concordar.» 1.7. Na decisão singular, agora alvo de reclamação para a Conferência, entendeu-se não admitir a revista, essencialmente, com os fundamentos que se transcrevem: «Do confronto entre as substanciais razões que justificaram o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, facilmente se concluiu que, entre eles, não existe qualquer divergência frontal quanto à interpretação e aplicação das mesmas normas. Efetivamente, a ratio decidendi do acórdão fundamento consistiu no facto de os insolventes terem cumprido a obrigação de cedência do rendimento ao fiduciário (durante cerca de 6 anos), apesar de o despacho não ter sido proferido, e que, por isso, não deviam ser sujeitos a novo para de 5 anos (que era o vigente a essa data), atribuindo, assim, relevo normativo a uma obrigação que já tinha sido cumprida em termos fácticos. Ora, no caso dos presentes autos não se verificou uma situação equiparável, dado que o recorrente nada pagou. Como se diz no acórdão recorrido: «(…) se o início do período de cessão retroagisse até ao dia 15 de fevereiro de 2020, então, coerentemente, levando a ficção que é proposta às suas últimas consequências, teríamos de concluir, retrospetivamente, que não foi cumprido um dos deveres que recaem sobre o insolvente no período de cessão: o de entregar imediatamente ao fiduciário os rendimentos por si (confessadamente) auferidos (e gastos), na parte em que excederam o rendimento indisponível fixado na decisão recorrida. A entrega que o Recorrente agora se propõe fazer não supriria a omissão deste comportamento.» As razões normativas em que assentam os arestos em confronto são, assim, bem distintas, porque distintas são as configurações factuais dos dois casos, não assentando na interpretação divergente de uma determinada norma, que pudesse justificar a intervenção do STJ para orientar a jurisprudência sobre o modo como a norma deveria ser interpretada e aplicada. Na resposta à notificação prevista no artigo 655.º do CPC, vem o recorrente reiterar o seu entendimento no sentido da admissibilidade do recurso, sustentando, essencialmente, razões de justiça material que levariam a tratar o caso dos presentes autos de modo idêntico ao caso do acórdão fundamento. Todavia, na presente fase processual, não pode estar em causa a consideração de razões respeitantes ao mérito da causa, pois tal constituiria uma inversão metodológica. Tendo presente que, em regra, o tribunal da relação é a última instância em matéria de insolvência, e que o acesso ao STJ visa, primordialmente, a orientação da jurisprudência, o que releva, para efeitos de admissibilidade da revista, é a inequívoca oposição de decisões sobre a mesma questão jurídica, revelada em divergentes interpretações das mesmas normas. Não podem, assim, ser antecipadas, a este nível, razões de justiça material, porque não foi esse o propósito do legislador ao estabelecer o regime específico do artigo 14.º do CIRE, como se depreende claramente do teor desta norma. Dada a especificidade deste recurso de revista, não pode estar em causa, a este nível, a questão de saber se a decisão recorrida decidiu bem ou mal. A única matéria que pode ser apreciada é a de saber se existe uma frontal oposição entre dois acórdãos que se tenham pronunciado sobre a mesma questão normativa, aplicando uma mesma disposição em sentido divergente sobre factualidades tipologicamente equiparáveis. Só depois de se responder afirmativamente a esta questão objetiva se poderia passar à fase da admissibilidade da revista, e consequente apreciação do mérito. Porém, como ficou demonstrado, não se encontram reunidos os pressupostos para que, nos termos do artigo 14.º do CIRE, a revista pudesse ser admitida.» 1.8. Na sua reclamação para a Conferência, o recorrente insiste em tentar demonstrar a existência de oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, sublinhando, sobretudo, o seu entendimento no sentido de a factualidade subjacente aos dois acórdãos em confronto ser equiparável, o que justificaria decisões normativas idênticas. Todavia, não lhe assiste razão. Como se explanou na decisão recorrida, não existe nenhuma oposição frontal entre o modo como o direito foi interpretado e aplicado no acórdão recorrido e no acórdão fundamento. O diferente sentido decisório desses arestos assentou, como é manifesto, na diversidade factual subjacente a essas decisões. Efetivamente, se num caso (o do acórdão fundamento) existiu cedência do rendimento disponível do insolvente e no outro caso (o do acórdão recorrido) essa cedência não existiu, não há como considerar equiparáveis tais factualidades para lhes atribuir equivalente relevo normativo. Concluiu-se, portanto, que não se encontrado preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 14.º do CIRE, a revista não é admissível, não sendo, assim, censurável a decisão reclamada. * DECISÃO: Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pelo recorrente, confirmando-se a decisão impugnada. Custas: pelo recorrente-reclamante. Lisboa, 23.09.2025 Maria Olinda Garcia (Relatora) Cristina Coelho Graça Amaral |