Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B32
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: TRANSACÇÃO JUDICIAL
Nº do Documento: SJ2008030600322
Data do Acordão: 03/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário :
A declaração de nulidade da transacção judicial não atinge a sentença que a homologou.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I – Nesta acção ordinária movida por AA contra BB Lda:
Houve transacção após os articulados;
Seguida de sentença homologatória;
Em execução desta sentença, foram deduzidos embargos de executado;
Que foram julgados procedentes por ter sido declarado nulo o contrato de transacção;
Esta decisão transitou em julgado.

II – Por ter sido proferida sentença homologatória da transacção, o Sr. Juiz da 1ª instância, já na fase de julgamento, considerou a tramitação, após ela, inócua e esgotado o poder jurisdicional, tendo ordenado o arquivamento dos autos.

III – Agravou a Massa Falida da ré e o Tribunal da Relação do Porto, entendeu que:
A sentença proferida nos embargos de executado projectou os seus efeitos neste processo principal;
Tendo-se nela considerado nula a transacção, ficou sem objecto a sentença que a homologou.
Consequentemente, concedeu provimento ao agravo determinando que a acção principal prosseguisse.

IV – Inconformados, agravam agora os autores para este Supremo Tribunal.
Por despacho do relator, considerando estarmos perante uma das ressalvas do artigo 754.º, n.º2 do Código de Processo Civil (Diploma a que pertencem também os preceitos que abaixo se vão referir, sem menção de inserção), foi tal recurso admitido.

Concluem os agravantes as alegações do seguinte modo:

1 . A transacção judicial declarada nula e a sentença homologatória que sobre ela recaiu não revogada por recurso ordinário ou extraordinário são realidades distintas e inconfundíveis;
2 . A declaração de nulidade da transacção nos embargos apensos a estes autos não destrói os efeitos da sentença homologatória transitada em julgado;
3 . Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão recorrido e proferindo-se Acórdão que perfilhe o entendimento subjacente aos Acórdãos fundamento.

Não houve contra-alegações.

V – A matéria a ter em conta, como factual, já foi sumariada em I, mas, em mais pormenor e como nos chega da Relação, é a seguinte:

1) Em 06/10/95 AA e esposa CC intentaram acção declarativa com processo ordinário contra BB, Lda, pedindo a condenação da Ré:
a) a ver declarado resolvido o contrato promessa celebrado em 7 de Outubro de 1992, com a consequente perda a favor dos AA. de todas as benfeitorias realizadas nos lotes.
b) a reconhecer o direito de propriedade dos AA sobre os lotes de terreno identificados no artº 4º da p.i. bem como de todas as benfeitorias identificadas no artº 58º da p.i.
c) A pagar aos AA a quantia de 1.500.000$00, acrescido de juros à taxa legal anual de 15% desde a citação até integral pagamento.
2) A Ré contestou por impugnação, pedindo a final a improcedência da acção.
3) Após a fase dos articulados, compareceram o mandatário dos AA., sem poderes especiais para o acto, bem como o legal representante da Ré, acompanhado da mandatária, e consignaram por termo o acordo a que chegaram sobre o litígio – cfr. fls. 73 a 75.
4) Tal transacção foi homologada por sentença de 19 de Março de 1996 e transitou em julgado uma vez notificada às partes em 11 de Abril de 1996 sem que tivesse sido objecto de reclamação ou de recurso ordinário– cfr. fls 76, 77, 78, 80 e 81.
5) Em 06 de Fevereiro de 1997 a sociedade Ré veio suscitar recurso extraordinário de revisão alegando ser nula a transacção efectuada, já que nos termos do art.º 6º do pacto social, esta apenas se obrigava com a assinatura dos dois sócios gerentes – ou seja, a do referido DD e a de EE, tendo a transacção sido efectuada tão-somente com a participação do primeiro.
6) Tal recurso foi julgado improcedente, com fundamento na verificação do prazo de caducidade para a sua interposição, tendo sido mantida a decisão recorrida.
7) Sentença essa que transitou em julgado por confirmação da mesma em sede de recurso de agravo – fls. 82 do apenso.
8) Em 11 de Novembro de 1996 vieram os AA a instaurar execução de sentença para entrega de coisa certa, com base na transacção homologada, a que se seguiu a dedução pelos executados de embargos de executado com fundamento em que a transacção homologada pela sentença dada à execução foi celebrada em nome da embargante, por quem não tinha poderes para a representar, tendo sido pedido, por consequência a declaração de nulidade da transacção efectuada.
10) Foi proferido saneador sentença que julgou procedentes os embargos de executado, acolhendo a fundamentação dos embargantes de que para a vinculação da sociedade embargante na aludida transacção e uma vez que se estabeleceu no pacto social a gerência plural, seria necessária a intervenção dos dois sócios gerentes, e por consequência foi declarado nulo o negócio de transacção celebrado.
11 ) Tal decisão transitou em julgado.
12) Na sequência os autos de acção declarativa prosseguiram os seus termos com prolação de despacho saneador, selecção dos factos assentes e base instrutória, tendo sido produzida prova e realizada audiência de julgamento.
13) O despacho sob agravo foi proferido após ter sido dada resposta à matéria de facto.

VI – A transacção vem definida no artigo 1248.º do Código Civil e é “o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões.” No primeiro caso, a transacção é extrajudicial e no segundo judicial.
Sendo judicial, exige uma intervenção do juiz no sentido de proferir sentença homologatória – artigo 300.º, n.º 3 e 4.
Passam, então, a coexistir duas realidades:
A transacção em si;
A sentença que a homologou.

VI – Nos termos do artigo 301.º, n.º 1, a transacção pode ser declarada nula ou anulada como os outros actos da mesma natureza, ou seja, como a generalidade dos contratos.
Dispondo o n.º2 que o trânsito em julgado da sentença proferida sobre a transacção não obsta a que se intente a acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação desta, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento.
O legislador consignou aqui a possibilidade de ataque à transacção, mesmo depois do trânsito em julgado da sentença sobre ela proferida, através de acção que vise esse fim.
Mais consignou que se pode pedir a revisão da sentença com esse fundamento.

VII – Na sua melhor interpretação, este preceito aponta um ataque duplo:
Um, visando a transacção em si;
Outro a sentença.
“Esta duplicidade de meios (acção e recurso) funda-se na distinção entre os efeitos (negociais) do acto de…transacção e os efeitos (processuais) da sentença que os homologa” - Lebre de Freitas e Outros, Código de Processo Civil Anotado, 1.º, 536.
Podendo ver-se no sentido da duplicidade ainda Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, II, 80 e III, 319 e, bem assim, o Acórdão deste tribunal de 4.11.1993, no BMJ 431, 417.

VIII – Este regime “puro” de duplicidade pode traduzir, contudo, um acrescentar de procedimentos judiciais desfasado relativamente ao que, afinal, em termos práticos, constitui um todo.
Disso se deu conta o legislador, admitindo a unificação do procedimento judicial no artigo 771.º, n.º1 que dispõe sobre a revisão de sentença.
Numa primeira fase, distinguindo, nas alíneas d) e e), os casos em que tenha sido declarada nula ou anulada, por sentença já transitada, a transacção em que a sentença se fundasse, dos casos em que esta seja nula por violação dos artigos 37.º e 297.º. Naqueles, temos a estatuição clara das duas etapas a seguir: primeiro a acção, depois, a revisão da sentença. Nestes, temos a possibilidade de ir logo para a revisão.
Esta possibilidade de unificação de procedimento foi, numa segunda fase, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º38/2003, de 8.3, alargada a todos os casos. Dispõe agora a alínea d) que a revisão é admitida quando se verifique a nulidade ou anulabilidade da transacção em que a decisão se fundasse.
Quis, assim, o legislador evitar, agora sem restrições, a duplicidade de procedimentos. (1)

IX – Para o nosso caso, não interessa saber se já é aplicável a alteração daquele Decreto-Lei n.º38/2003.
O que de relevante fica, perante a redacção anterior, é a tomada de posição do legislador, no sentido da duplicidade de procedimentos e, no sentido – já patente também na redacção anterior, mas acentuado na actual – de que a ruptura com essa duplicidade se traduzia na absorção da declaração de nulidade ou anulação da transacção pela acção de revisão de sentença e não vice-versa. Foi ele, na verdade, centrando tudo na revisão.
Daqui resulta que a declaração de nulidade da transacção levada a cabo nos embargos – ainda que, como quer a Relação, projecte os seus efeitos no processo principal – não beliscou a sentença fundada em tal transacção. Só a revisão – se tivesse procedido - a atingiria.

X – Decerto que há aqui algo que dá que pensar. Decide-se que a transacção é nula e fica a valer a sentença que nela se fundou. Mas assim quis o legislador, dando preferência ao valor do aresto em detrimento da base em que assentou, de modo a só pela via da revisão ser posto em causa. Aliás, se repararmos nos vários casos do artigo 771.º, vemos, precisamente, um falecer – em alguns casos declarado por sentença - das bases em que assentou a sentença revidenda e nem por isso esta cai automaticamente, dispensando a acção de revisão.
XI - Termos em que se concede provimento ao agravo, revogando-se a decisão recorrida para valer a da 1.ª instância.
Sem custas, atenta a alínea g) do n.º1 do artigo 2.º do Código das Custas Judiciais.

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Março de 2008

João Bernardo (Relator)
Oliveira Rocha
Oliveira Vasconcelos
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(1) -Veja-se Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 292 e 646.