Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
359/16.8T8PTG-B.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
ESCRITURA PÚBLICA
CONTRATO DE MÚTUO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CONFISSÃO
INVENTÁRIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
RECLAMAÇÃO
RELAÇÃO DE BENS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
OBJETO DO RECURSO
Data do Acordão: 02/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Uma coisa é a admissibilidade da revista (assunto que, em geral, é regulado pelo art. 671.º do CPC), outra coisa é aquilo que não pode ser objeto da revista. No primeiro caso o recurso não é admissível, não chega a ser aberto (no sentido de que não se chega a conhecer do seu objeto), no segundo caso o recurso é aberto, apenas acontece que improcede na parte em que o seu objeto não se contém dentro dos limites dos fundamentos legais da revista.
II - Não existe qualquer oposição, seja no plano naturalístico seja no plano jurídico, entre o facto provado do preço do imóvel ter sido pago anteriormente ao casamento pelo ex-cônjuge marido e o facto provado de ter sido depois, na constância do casamento, contraído empréstimo bancário alegadamente para tal pagamento.
III - Da mesma forma que não existe qualquer oposição entre a escritura (celebrada na constância do casamento) que formalizou o empréstimo contratado com instituição bancária, declaradamente para aquisição do imóvel, e o contrato-promessa de compra e venda (celebrado anteriormente ao casamento) que o ex-cônjuge marido celebrou, e do qual consta que o preço era pago na data da sua (contrato-promessa) outorga.
IV - O reconhecimento, exarado na escritura de mútuo, do facto do empréstimo significa uma confissão feita à parte contrária (a instituição bancária que concedeu o empréstimo) que esse empréstimo aconteceu, e nada mais que isso.
V - A declarada finalidade do empréstimo (aquisição de habitação própria permanente) nada tem a ver com essa confissão, nada provando plenamente no sentido de contender com o facto provado de que o preço do prédio foi pago anteriormente ao casamento pelo ex-cônjuge marido.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 359/16.8T8PTG-B.E1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação ...

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Na sequência da dissolução do casamento por divórcio do casal formado por AA e BB, requereu esta junto de Cartório Notarial inventário para partilha dos bens comuns.

Junta que foi a relação de bens pelo ex-cônjuge marido, cabeça de casal, apresentou-se a requerente a reclamar contra a mesma, acusando, e no que para aqui importa, a falta de relacionação do prédio urbano sito na Rua..., ..., ....

O cabeça de casal pronunciou-se no sentido e não haver lugar à relacionação de tal prédio.

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Os autos vieram depois a ser remetidos, nos termos dos art.s 12.º e 13.º da lei n.º 117/2019, para o Juízo Local Cível ....

Foi aí proferida decisão que julgou procedente a reclamação contra a relação de bens e determinou o aditamento à mesma do prédio em causa.

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Inconformado com o assim decidido, apelou o ex-cônjuge marido.

Fê-lo com êxito, pois que a Relação ... revogou a decisão da 1ª instância e julgou improcedente a reclamação contra a relação de bens.

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É agora a vez da ex-cônjuge mulher, insatisfeita com o decidido, pedir revista.

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Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões:

1. Na constância do matrimónio, os Recorrente e Recorrido celebraram junto do Cartório notarial do ... a 17/11/1994, escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, na qualidade de segundos outorgantes.

2. Da qual consta “Que pelo preço de oitocentos e vinte mil escudos que já receberam do segundo outorgante marido, a este vendem o prédio urbano que se destina a habitação, sito na Rua..., ..., ...…”

3. Da qual consta “Os segundos outorgantes constituem-se devedores à Caixa Geral de Depósitos da quantia de setecentos e quarenta mil escudos, por esta Instituição lhe foi emprestada para aquisição de casa própria e permanente adiante hipotecada e que se obriga a pagar no prazo de 25 anos a contar desta data.”

4. Em data anterior, ou seja, a 21/04/1994, o cabeça de casal ora Recorrido, celebrou um contrato de promessa de compra e venda com a ..., ..., relativamente ao mesmo prédio, atrás identificado, sito Rua..., ..., ..., no valor total de 820.000$00.

5. Para o pagamento emitiu cheque bancário àquela ..., ..., no valor de 759.626$00.

6. Resulta que dos supra factos assentes (1, 5, 6 e 9) definitivamente provados existe manifesta oposição, porquanto se o cabeça de casal ora recorrido já havia pago o preço para aquisição do prédio para habitação própria e permanente, tal como consta do contrato de promessa junto aos autos, não teria de ter contraído empréstimo para aquisição do mesmo prédio.

7. Não faz qualquer sentido que o cabeça de casal ora Recorrido e a requerente ora recorrente tenham contraído um empréstimo para pagar o preço da aquisição da casa própria e permanente, que já se encontrava pago.

8. Estamos perante dois documentos cujo teor é contraditório. Um e outro traduzem declarações incompatíveis. As declarações constantes num e noutro não podem coexistir, porque a verdade material dos factos só por um pode ser atestada.

9. Importa assim aquilatar da natureza de cada um dos referidos documentos, bem como do valor probatório de cada um deles.

10. A escritura pública supra aludida, tem a natureza de documento autêntico (art. 369º do Código Civil).

11. Nos termos do art. 371º do CC, nº 1, “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo…”, ou seja, tais documentos cuja autenticidade do ponto de vista formal se considera estabelecida salvo prova em contrário.

12. É sabido que no documento autêntico, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos, que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade.

13. A escritura pública de compra e venda e de mútuo com hipoteca, não faz prova plena que o mútuo contraído se destinou a pagar a aquisição do imóvel.

14. Porém, a declaração do mutuário, cabeça de casal, ora Recorrido, perante o Notário de que a quantia emprestada foi destinada à aquisição da casa própria e permanente, tem esse valor, constitui confissão desse mesmo facto, porquanto implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o art. 352.º do CC qualifica de confissão.

15. Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, o mutuário ora recorrido declarou que a quantia de 740.000$00 lhe foi emprestada para aquisição casa própria e permanente e que se obrigou a pagar no prazo de 25 anos a contar desta data) – cf. arts. 355.º, n.º s 1 e 4, e 358.º, n.º 2, do CC.

16. O Recorrido alega que pagou o preço da aquisição do imóvel a 21/04/1994, mediante contrato de promessa, assim impunha-se-lhe alegar a falsidade da escritura celebrada a 17/11/1994 e o ora Recorrido em parte alguma alega e ou nega que o empréstimo contraído pela escritura pública, não se destinou à aquisição da casa própria e permanente.

17. A força probatória dos factos narrados em documento autentico, praticados por autoridade e ou oficiais públicos que exerçam, para tanto dotados da necessária competência, só pode ser afastada com base na falsidade invocada por quem nele tiver interesse, através de processo próprio, salvo se houver qualquer elemento exterior que permita ao tribunal constatar a falsidade, isto é, que se deu como praticado facto que não se praticou, como ocorrido facto que não ocorreu, ou vice versa, hipótese em que a falsidade pode ser declarada ex officio.

18. Caso já tivesse pago o preço, cabia ao Recorrido alegar a falsidade do aludido documento autêntico (escritura pública) ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração constante desse documento, o que não fez.

19. Donde a força probatória da supra referida escritura não foi ilidida por falsidade, art. 372º do CC.

20. O tribunal também não conheceu oficiosamente da falsidade da escritura.

21. Assim o facto provado a 5, resultante do documento particular (contrato de promessa de compra e venda) junto aos autos e, o facto provado a 9, resultante do documento autêntico (escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca), estão em manifesta contradição.

22. Um e outro facto estão em contradição, ambos não podem coexistir, a verdade de um implica a falsidade do outro, porquanto algum deles está desconforme entre as declarações prestadas e a realidade dos factos.

23. Face à natureza probatória de um e outro documento (documento particular e escritura publica), vencerá o documento com força probatória plena ou seja, a escritura publica de compra e venda e mútuo com hipoteca, já que mesma não foi impugnada por qualquer forma pelo ora Recorrido, que não arguiu a sua falsidade, nem o mesmo fez prova da falta ou vício que possa ter inquinado a declaração constante no documento da escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, e também não foi conhecida oficiosamente a falsidade da mesma escritura, pelo Tribunal.

24. Desta feita, a escritura pública celebrada a 17/11/1994, pelos ora Recorrente e Recorrido, na constância do seu matrimónio, vence em desfavor do contrato de promessa de compra e venda, celebrado a 21/04/1994 pelo ora Recorrido no estado de divorciado.

25. As declarações do recorrido contidas da escritura pública de que a quantia emprestada de 740.000$00 lhe foi emprestada para a aquisição de casa própria e permanente, constitui a sua confissão do mesmo facto; o que de resto, é corroborado pela prova do facto nº 10, ou seja, só nesse sentido se aceita que o Recorrido pagou durante 25 anos o mútuo à Caixa Geral de Depósitos, encontrando-se o empréstimo totalmente pago.

26. Julgando procedente a Apelação, apesar da força probatória plena da escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca lavrada a 17/11/1994, o bem como a confissão dos factos pelo Recorrido, o Tribunal violou o disposto nos art.s 352º, 355º nº 1 e 4, 358º nº 2, 371º e 372 º do CC.

27. Donde a aquisição do imóvel ocorreu no dia 17/11/1994, ou seja, na constância do matrimónio dos Recorrente e Recorrido, data em que foi contraído mútuo para pagamento do preço, através da escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca.

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A parte contrária contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Mais suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

Quanto à questão prévia da inadmissibilidade do recurso

Diz o Recorrido que o recurso não é admissível pelo facto do seu objeto não respeitar o âmbito do recurso de revista tal como traçado nos art.s 674.º, n.º 3 e 682.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil.

Há aqui um equívoco do Recorrido, pois que essas normas nada têm a ver com a questão da admissibilidade do recurso de revista. É que uma coisa é a admissibilidade da revista (assunto que, em geral, é regulado pelo art. 671.º do CPCivil), outra coisa, muito diferente, é aquilo que não pode ser objeto do recurso de revista. No primeiro caso o recurso não é admissível, não chega a ser aberto (no sentido de que não se chega a conhecer do seu objeto), no segundo caso o recurso é aberto, apenas acontece que o seu objeto improcede na parte em que não se contém dentro dos limites dos fundamentos legais da revista[1].

Ora, no presente caso estão preenchidos todos os pressupostos do art. 671.º, n.º 1 do CPCivil, razão pela qual o recurso é admissível.

Termos em que se julga improcedente a questão prévia da inadmissibilidade do recurso.

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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São questões a conhecer:

- Se existe contradição entre os factos provados relativamente ao pagamento do preço do imóvel;

- Se há prova plena (documental e por confissão) que contrarie o facto do anterior pagamento do preço do imóvel por parte do Recorrido.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes:

1- Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 674/19... o prédio urbano sito na Rua..., ..., no ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da União de Freguesias de ... e ..., ... e ..., conforme certidão de ónus e encargos junta aos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;

2- Em 5 de Dezembro de 1981, o cabeça de casal celebrou contrato de cedência de habitação com a ..., ..., relativo ao prédio identificado supra, conforme documento junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

3- Mercê do supra exposto, o prédio identificado em 1 foi habitação própria permanente do cabeça de casal e da sua 1ª cônjuge;

4- O cabeça de casal dissolveu o casamento celebrado com a sua Ia cônjuge em 7 de Abril de 1994, conforme certidão do assento de nascimento do cabeça de casal e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

5- Em 21 de Abril de 1994, o cabeça de casal celebrou contrato promessa de compra e venda com a ..., ... relativamente ao prédio identificado em 1 pelo preço total de 820.000S00, conforme escritura pública[2] junta aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

6- Mercê do supra exposto, nesse mesmo dia 21 de Abril de 1994, o cabeça de casal entregou à ..., ... cheque bancário para pagamento do remanescente da quantia em dívida, no valor de 759.626S00, conforme documento junto aos autos;

7- Em 23 de Julho de 1994, o cabeça de casal e a Requerente celebraram casamento sem convenção antenupcial;

8- Em 17 de Novembro de 1994 o cabeça de casal celebrou, no estado de casado com a Requerente, escritura definitiva de compra e venda com a ..., ... relativa ao prédio identificado em 1 da matéria de facto;

9- Nessa mesma data foi celebrada pelo cabeça de casal e Requerente, na qualidade de mutuários e com a Caixa Geral de Depósitos, S.A., na qualidade de mutuante, escritura de mútuo com hipoteca pela qual a Caixa mutuou aos primeiros a quantia de 740.000S00 para aquisição do prédio identificado em 1 da matéria de facto;

10- Mercê do supra exposto, a CGD debitava, mensalmente, a partir de conta n° ...00, titulada pelo cabeça de casal, o valor correspondente às mensalidades relativas ao pagamento do crédito contratado.

Para além destes factos, o tribunal recorrido mais teve por provado (tal como decorre, aliás, de documento autêntico junto aos autos) que:

- Em 17 de junho de 1994 foi efetuado registo provisório de aquisição do prédio a favor do Recorrido;

- O qual foi convertido em definitivo em 22 de novembro de 1994, com a declaração “que o titular é atualmente casado com BB, na comunhão de adquiridos”.

De direito

Diz a Recorrente que existe “manifesta oposição” entre o facto provado do preço do imóvel ter sido anteriormente (anteriormente ao casamento) pago pelo Recorrido e o facto provado de ter sido posteriormente (na constância do casamento) contraído empréstimo alegadamente para tal pagamento.

Sustenta, dentro da mesma lógica, que há oposição entre a escritura (de 17 de novembro de 1994, celebrada na constância do casamento) que formalizou o empréstimo contratado com a Caixa Geral de Depósitos, S.A., declaradamente para aquisição do imóvel em causa, e o contrato-promessa de compra e venda (de 21 de abril de 1994, anteriormente ao casamento) que o Recorrido celebrou, e do qual consta que o preço era pago na data da sua (contrato-promessa) outorga.

A partir daqui embrenha-se nas temáticas da força probatória da escritura, da sua não falsidade e da confissão extrajudicial. Tudo isto para contraditar aquilo que está provado: que o preço da compra do prédio em questão foi pago, anteriormente ao casamento, exclusivamente pelo Recorrido.

Mas é por demais evidente que as teses da Recorrente estão condenadas a não prosperar.

Efetivamente, a circunstância de ter sido contratado o empréstimo em causa com a finalidade declarada de pagamento do preço do imóvel não contende, no plano naturalístico e no plano jurídico, com o facto de, como decorre do contrato-promessa, o preço dever ser pago (como se sabe que foi) na data da celebração deste último contrato. Basta admitir, como admite o acórdão recorrido, que se tratou de uma declaração falsa, com o objetivo de, defraudando desse modo a lei, obter crédito menos oneroso. Compreende-se, por isso, o que refere o acórdão recorrido, e passa-se a transcrever:

“Embora cause estranheza que em 17/11/1994, em conjunto com a escritura de compra e venda, se celebre uma escritura de mútuo com vista a obter fundos para aquisição do prédio, quando em 21/04/1994 o preço do prédio já havia sido pago na totalidade pelo requerido (cheque n.° ... da sua conta n,° ... Banco Português do Atlântico - Agência do Crato), tal facto não se mostra impeditivo da conclusão a que se chegou atenta a cronologia dos factos, sendo certo que o crédito à habitação tendo juros bonificados podia ter servido de atrativo para conseguir fundos menos onerados para outro tipo de investimentos. Nenhuma das partes se dignou esclarecer bem essa situação, limitando-se o ora recorrente a afirmar e a demonstrar que o pagamento das mensalidades referentes a tal mútuo foi retirado pela CGD de uma conta somente por si titulada, encontrando-se o empréstimo totalmente pago (cfr. facto provado no ponto 10).”

Consequentemente, inexiste qualquer contradição juridicamente relevante entre os supra referidos factos (oportuno pagamento do preço do imóvel e contração de empréstimo alegadamente para proceder a esse pagamento), bem como entre a escritura e o contrato-promessa, de sorte que não há que considerar exclusivamente o que consta declarado na primeira e desconsiderar o pagamento que o Recorrido fez nos termos previstos no contrato-promessa.

E bem se vê que este assunto em nada contende com a força probatória da escritura. O que a escritura prova é tão somente aquilo que se passou perante o notário e nela está atestado (art. 371.º, n.º 1 do CCivil): que a Recorrente e o então marido declararam constituir-se devedores à Caixa Geral de Depósitos, S.A. da quantia de setecentos e quarenta mil escudos que por esta Instituição foi emprestada para aquisição de casa própria permanente. Se tal declaração foi ou não verdadeira (e bem se vê que não pode ter sido), se o produto do mútuo serviu ou não para adquirir o imóvel em causa (e bem se vê que não pode ter servido), tudo isso passa à margem da força probatória da escritura ou da figura da falsidade. De resto, é a própria Recorrente que reconhece que assim é, como resulta do que escreve na conclusão 13ª.

Mais diz a Recorrente que a declaração do mutuário exarada na escritura “de que a quantia emprestada foi destinada à aquisição da casa própria e permanente, tem esse valor, constitui confissão desse mesmo facto, porquanto implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o art. 352.º do CC qualifica de confissão”. Acrescenta que “Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, o mutuário ora recorrido declarou que a quantia de 740.000$00 lhe foi emprestada para aquisição casa própria e permanente e que se obrigou a pagar no prazo de 25 anos a contar desta data)”.

A confissão extrajudicial feita em documento autêntico considera-se provada nos termos aplicáveis a este documento e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (art. 358.º, n.º 2 do CCivil). E por confissão entende-se o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária (art. 352.º do CCivil).

Ora, o reconhecimento (de facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária) que o Recorrido fez e que foi exarado na escritura traduziu-se no facto do empréstimo ali mencionado. Isto significa que perante a parte contrária (que é a Caixa Geral de Depósitos, S.A., e não a Recorrente) está plenamente provado que o Recorrido (e, aliás, também a Recorrente) recebeu de empréstimo da outra parte no contrato de mútuo o montante de setecentos e quarenta mil escudos. Tudo o que vai para além disto (a começar pela declarada finalidade do empréstimo ou pelo destino que não foi dado à quantia emprestada) nada tem a ver com a figura da confissão (não representa o reconhecimento de qualquer facto desfavorável ao Recorrido e que favoreça a aludida parte contrária, e muito menos a Recorrente), e daqui que nada prova plenamente no sentido de contender com o que está provado: que o preço do prédio fora pago anteriormente pelo Recorrido.

E sendo tudo isto assim, como é, vê-se com toda a facilidade que a pretensão da Recorrente tendente a quinhoar sobre o prédio em causa não podia proceder. Pois que os factos provados mostram à saciedade que o prédio - pese embora adquirido na pendência do casamento e pese embora da escritura não constar a real proveniência do dinheiro com que foi pago o preço respetivo[3] - foi pago com dinheiro do ex-marido, pelo que tem a natureza de bem próprio deste (art. 1723.º, alínea c) do CCivil).

O que significa que improcede o recurso, não sendo o acórdão recorrido passível das censuras que a Recorrente lhe endereça.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas

A Recorrente é condenada nas custas da revista, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

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Lisboa, 22 de fevereiro de 2022

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

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Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

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[1] Acórdão deste Supremo de 28-01-2020, Revista n.º 1288/16.0T8CSC.L1.S1, sumariado em www.stj/jurisprudência_sumários). “III - O art. 674.º do CPC não tem a ver com a questão da admissibilidade do recurso de revista ordinária, assunto que é regulado pelo art. 671.º do CPC, antes regula simplesmente sobre aquilo (o objeto, o fundamento) que é legalmente passível de ser tratado na revista, posto que esta seja admissível.”
[2] Esta menção a escritura pública parece padecer de lapso. O contrato-promessa em causa terá sido celebrado mediante escrito particular, nos termos do documento junto ao processo (fls. 117 e 118).
[3] V. a propósito o AUJ n.º 12/2015, que firmou a seguinte orientação, de que não há razão para dissentir: “Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal”.