Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04P230
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: REENVIO DO PROCESSO
ADMISSIBILIDADE
COMPETÊNCIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200403170002303
Data do Acordão: 03/17/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Sumário : I -   O acórdão da Relação que determinou o reenvio (parcial) para novo julgamento (art. 426.º do CPP), por ter sido identificado o vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, impõe a continuidade processual na parte respectiva, com a realização de novo julgamento, não tendo, consequentemente, posto termo à causa, pelo que não é recorrível para o STJ.

II - Tal não afecta o princípio da igualdade das partes, já que o modelo de recursos e a sua concretização no caso está constituída em termos de paralelismo relativamente a ambas as "partes", sendo-lhe estranha a opção da lei, ditada por razões de lógica e de eficácia na realização das finalidades do processo, quanto à irrecorribilidade das decisões que não ponham termo ao processo.

III -                                                                                             E também não viola o direito ao recurso previsto no art. 32.º, n.º 1, da CRP, dado que a garantia constitucional, salvaguardados os limites que definem o núcleo do direito, não impõe, nem um determinado modelo de recursos (por exemplo, um segundo grau de recurso), nem a recorribilidade total, estratificada e avulsa, de todas as decisões, nomeadamente as que não definem a culpabilidade ou a pena, como são todas as que, impondo a continuidade da discussão processual, não ponham termo à causa.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. "AA", identificada no processo, vem interpor recurso do acórdão do tribunal da relação que, concedendo provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público de acórdão do tribunal colectivo que havia absolvido a recorrente, determinou o reenvio (parcial) do processo para novo julgamento, por existir vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP).
Motivou o recurso, terminando com as seguintes conclusões:
1ª- A decisão recorrida considerou, para tanto, que o tribunal de 1ª instância aplicou indevidamente o princípio in dubio pro reo, dado que a prova permitia percepcionar a existência de conduta ilícita, não sendo necessário a caracterização do estupefaciente, para se dar como verificado o tipo de crime, tendo também em consideração as transcrições apontadas pelo M. Público, no seu recurso.
2ª- Porém, por outro lado, considerou-se que o recurso do M. Público não deu cumprimento ao exigido pelo art° 412º, n° 3 e 4, do C.P.P., uma vez que impugnou matéria de facto, sem satisfazer o requisito legal decorrente da norma indicada.
3ª- Efectivamente, verificando-se que o recurso do M. Público, impugna matéria de facto - prova - que serviu a convicção do julgador, sem ter dado cumprimento ao disposto no artigo 412º, n° 3, alíneas a), b) e c) e 4, do C.P.P., deveria o mesmo recurso ter sido rejeitado.
4ª- Sendo, consequentemente, a decisão de absolvição da recorrente imodificável, pelo que a decisão recorrida violou o disposto nos artºs. 412º, n° 3, alíneas a), b) e c) e 4, 414º, n° 2 e 3, e 420º, n°1, do C.P.P.
5ª- Por outro lado, muito embora a decisão de anulação seja consubstanciada no art° 410º, n° 2, alínea a) do C. P.P., verifica-se, em concreto, que a mesma assenta o seu ponto de discórdia, não na insuficiência da matéria de facto para a decisão, mas na fundamentação da decisão de 1ª instância para a absolvição da recorrente, por se discordar da apreciação da prova.
6ª- O que não podia ser considerado, dada a imodificabilidade da decisão de facto, face à falta de requisitos legais no recurso do M. Público para que o Tribunal pudesse exercer cognoscibilidade.
7ª- Considerando, também, que na decisão de 1ª instância não foram dados como provados quaisquer dos actos ilícitos pelos quais vinha pronunciada, e dados como não provados os actos ilícitos pelos quais vinha pronunciada, não existe qualquer insuficiência da matéria de facto para a decisão.
8ª- Tendo assim existido errada aplicação da norma do art° 410º, n° 2, alínea a), do C.P.P., violando-se assim este preceito legal.
Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e mantendo a decisão da 1ªinstância.
O magistrado do Ministério Público, respondendo à motivação da recorrente, considera que não é admissível recurso para o Supremo Tribunal do acórdão que determina o reenvio do processo para novo julgamento, por ter sido verificada a insuficiência da matéria de facto para a decisão, uma vez que tal decisão não põe termo à causa (artigos 432º, alínea b), e 400º, nº 1, alínea b), do CPP).

2. Neste Supremo Tribunal, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto retomou a questão prévia suscitada na resposta do Ministério Público junto do Tribunal da Relação, considerando, também, que o recurso não é admissível, uma vez que a decisão de que se recorre não põe termo à causa.
Notificada nos termos do artigo 417º, nº 2 do CPP, a recorrente respondeu defendendo que o recurso deve ser admitido, já que se trata de recurso de uma decisão desfavorável; e a impossibilidade de recurso de uma decisão que lhe é «manifestamente desfavorável», «colocaria em crise o princípio da igualdade das partes e o direito a um processo equitativo», considerando que o Ministério Público pode recorrer da decisão que a absolveu, enquanto que a recorrente não pode recorrer da decisão que revogou a da 1ª instância.
A recorrente invoca, também, a inconstitucionalidade da norma do artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP, «enquanto veda a possibilidade de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pelo arguido, de acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa, quando o recurso da decisão de 1ª instância que pôs termo à causa, tenha sido interposto apenas pelo Ministério Público e a decisão proferida pela Relação for desfavorável ao arguido, por clara violação do disposto nos artigos 20º, n° 4, e 32º, n° 1, da CRP».

3. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
A conjugação directa das normas de processo aplicáveis aponta, como referem os magistrados que suscitaram a questão prévia, no sentido da inadmissibilidade do recurso.
Com efeito, segundo dispõe o artigo 432º do CPP ao definir o âmbito dos recursos para o Supremo Tribunal, recorre-se para este Tribunal, entre outros casos, «de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, nos termos do artigo 400º»; nesta disposição, por seu lado, prescreve-se que «não é admissível recurso» «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa» - nº 1, alínea c).
A decisão de que a recorrente pretende interpor recurso, que determinou o reenvio (parcial) para novo julgamento (artigo 426º do CPP), por ter sido identificado o vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), do CPP, impõe a continuidade processual na parte respectiva, com a realização de novo julgamento, não tendo, consequentemente, posto termo à causa.
Não é, assim, recorrível para o Supremo Tribunal, não estando este tribunal superior vinculado à decisão que admitiu o recurso no tribunal a quo (artigo 414º, nº 3, do CPP).

4. Na resposta à intervenção do Ministério Público, a recorrente defende, porém, que semelhante interpretação afecta, no caso, o seu direito a recorrer de uma decisão que lhe é desfavorável, «colocando em crise» o «princípio da igualdade das partes» e «o direito a um processo equitativo».
O processo equitativo - noção acolhida na Constituição no artigo 20º, nº 4 - é noção que tem sido densificada a partir das definições dos elementos integrantes da garantia inscrita em instrumentos de protecção de direitos fundamentais, nomeadamente o artigo 6º, par. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
O processo equitativo, no sentido de processo justo, "fair trial", "due process", supõe a conjugação de elementos orgânicos e elementos funcionais (relativos ao tribunal - independente e imparcial, mas também à organização e à dinâmica do processo -prazo razoável de decisão da causa) e elementos propriamente processuais ou intra-processuais. A enunciação descritiva dos elementos do processo equitativo, como meio de realização da boa justiça, permite afirmar tanto a complexidade deste direito fundamental, como a estruturação referida ao processo tomado no seu conjunto.
Na estruturação do direito podem destacar-se os elementos ou mecanismos de garantia; o domínio da garantia e respectivo conteúdo geral; e também especialmente alguns elementos do conteúdo específico que apresenta em matéria de processo penal.
As exigências especificamente processuais da garantia do processo equitativo (igualdade ou equilíbrio, causa apreciada publicamente e em prazo razoável) têm, por seu lado, que ser apreciadas, não numa perspectiva estratificada do processo, mas essencialmente na consideração do conjunto, ou da totalidade do processo
A consideração do processo como um todo (diversas fases e instâncias de recurso) pode justificar uma modulação na compreensão de alguns elementos da garantia, de tal modo que a falta de algum dos elementos numa fase do processo pode ser corrigida numa fase posterior, se o órgão próprio dispuser de competência de reapreciação tal que permita compensar um determinado vício. Será essencial uma perspectivação global, tomando o processo no seu conjunto.
Mas a consideração do conjunto do processo, permitindo uma apreciação relativa da modulação das garantias, tem de satisfazer as exigências verdadeiramente caracterizadoras, de igualdade, de publicidade e de razoabilidade do tempo de decisão.
A apreciação e o controlo da efectividade da garantia do processo equitativo no domínio do processo penal deve operar por meio da análise dos chamados "reactivos" ou "detectores de iniquidade": o respeito dos direitos de defesa, a igualdade de armas, a imposição de debate contraditório, a presunção de inocência, a audiência pública.
A igualdade (ou equidade em sentido estrito) requer que cada uma das partes no processo possa sustentar a sua posição em condições tais que a não coloquem em desvantagem em relação à parte adversa; sendo uma das grandes aporias do moderno processo penal, a igualdade processual, ou a "igualdade de armas", deve assumir-se como instrumento de realização dos direitos estabelecidos a favor da acusação e da defesa, ganhando conteúdo a ideia de que a igualdade de armas significa a atribuição á acusação e à defesa de meios jurídicos igualmente eficazes para tomar efectivos aqueles direitos.
A igualdade de armas só pode ser entendida «quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico-material global da acusação e da defesa e da sua dialéctica. O que quer dizer que uma concreta conformação processual só poderá ser recusada, como violadora daquele princípio da igualdade, quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável ou arbitrária, como ainda quando possa reputar-se substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programa político-criminal que aquele está assinado ou dos referentes axiológicos que o comandam». Cfr., Figueiredo Dias, "Sobre os sujeitos processuais no Novo Código de Processo Penal", Jornadas de Processo Penal, 1988, pág. 30.
Os elementos de integração da garantia do processo equitativo e a natureza equitativa do processo devem, pois, ser apreciados na consideração do conjunto do processo, e não estratificadamente, acto a acto ou fase a fase: sendo o credor da garantia essencialmente o acusado, não revelará afectação da garantia alguma disfunção processual interna em certo momento ou fase do processo se, a final, o acusado for absolvido.
Por isso, os elementos integrantes da garantia não ganham autonomia na fase de recurso, devendo ser apreciados na consideração do conjunto do processo. Também no recurso, as partes devem poder apresentar as suas pretensões e defender as suas posições de maneira tal que uma não seja colocada em desvantagem em relação à outra.
Porém, a igualdade afere-se processualmente pelos momentos paralelos, e as modalidades de concretização do direito ao recurso próprias dos diversos sistemas não integram, por si e apenas enquanto tais, o direito ao processo equitativo, salvo se as soluções da lei na concretização do direito forem desrazoáveis, arbitrárias ou substancialmente discriminatórias em vista das finalidades do processo.
Sendo estes os princípios e os elementos da noção, a recorrente, no entanto, para além da invocação genérica do «processo equitativo», apenas num ponto se refere a um "detector de iniquidade": a não admissibilidade do recurso afectaria o princípio da igualdade das partes.
Nos modelos e na fase de recurso a "igualdade de armas" apenas pode ter sentido se for avaliada no interior de cada fase e de cada instância de recurso.
No caso, como se vê pelos termos em que as posições foram apresentadas, a igualdade foi inteiramente assegurada, uma vez que os interessados, e particularmente a recorrente, tiveram as mesmas possibilidades (a recorrente na reposta e na audiência de recurso) de apresentar os seus pontos de vista e a pertinente argumentação em defesa das posições respectivas.
A igualdade estaria afectada apenas se o modelo de recursos oferecesse alguma vantagem processual a uma das "partes" em relação à outra, fosse sobre os pressupostos processuais de admissibilidade e de recorribilidade das decisões, as condições de apresentação, ou na previsão de legitimidade ou do interesse em agir.
Não é o que sucede; o modelo de recursos e a sua concretização no caso está constituída em termos de paralelismo, sendo-lhe estranha a opção da lei, ditada por razões de lógica e de eficácia na realização das finalidades do processo, quanto à irrecorribilidade das decisões que não ponham termo ao processo. A interpretação defendida pela recorrente, estratificada e fragmentária, não realizaria a igualdade, mas, em diverso, atribuir-lhe-ia um desequilíbrio de favor.

4. A recorrente requer ainda, em modelo de prevenção para "memória futura", a recusa da aplicação do norma do artigo 400º, nº1, alínea c), do CPP «com fundamento na sua inconstitucionalidade», por violação dos artigos 20º, nº 4, e 32º, nº 1 da Constituição.
Não justifica, porém, em que é que a dimensão normativa que identifica (ponto 8 da resposta, a fls. 13421) afectaria as normas da Constituição invocadas.
Logo por aqui se veria que a posição da recorrente não tem auto-sustentabilidade argumentativa, não podendo concitar, por isso, a pronúncia deste Tribunal.
Estando referidas normas constitucionais, sempre e embora ex abundanti, se poderá deixar dito que o conteúdo efectivo das normas da Constituição que a recorrente identifica, não pode ser tocado pelo modo como as disposições sobre a recorribilidade das decisões resolvem a questão e foram aplicadas no caso.
O artigo 20, nº 4 garante a natureza equitativa do processo - equidade em geral e não especificamente referida ao processo penal.
Disse-se já, em formulação prestável para o plano de apreciação constitucional, que o processo equitativo se apresenta conceitualmente densificado pela integração e concorrência de vários elementos - os "referentes" ou "detectores de iniquidade": tribunal imparcial; prazo razoável; audiência publica, contraditório; presunção de inocência; igualdade de armas.
Dos elementos que integram a noção, a recorrente apenas se refere, genericamente, à «igualdade das partes». Porém, como já se salientou, a «igualdade das partes» foi inteiramente respeitada, nada havendo que lhe acrescentar no plano constitucional de apreciação.
A recorrente chama também o artigo 32º, nº 1, da Constituição.
Não identifica o conteúdo da disposição supostamente afectado, mas querer-se-á referir ao direito ao recurso, enquanto especificação de uma das garantias de defesa.
A garantia constitucional do direito ao recurso, como uma das garantias de defesa, significa e impõe que o sistema processual penal deve prever a organização de um modelo de impugnação das decisões que possibilite, de modo efectivo, a reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e a medida da pena, ou a reapreciação das decisões proferidas num processo que afectem, directa, imediata e substancialmente, direitos fundamentais, como sejam as decisões relativas à aplicação de medidas de coacção privativas da liberdade.
Salvaguardados estes limites que definem o núcleo do direito, a garantia constitucional não impõe, nem um determinado modelo de recursos (por exemplo, um segundo grau de recurso), nem a recorribilidade total, estratificada e avulsa, de todas as decisões, nomeadamente as que não definem a culpabilidade ou a pena, como são todas as decisões que, impondo a continuidade da discussão processual, não ponham termo à causa.
No caso, e não obstante a perda não definitiva, em recurso, de uma situação processual favorável, a continuidade processual determinada vai impor que, em novo julgamento, seja proferida decisão que defina a questão da culpabilidade. O resultado do julgamento permitirá, então, nos termos próprios da legitimidade e do interesse em agir, o exercício que couber do direito ao recurso, assim garantindo a plenitude da satisfação e respeito do direito constitucional.

5. Nestes termos, por não ser admissível (artigos 400º, nº 1, alínea c) e 432º, alínea b) do CPP), rejeita-se o recurso - artigo 420º, nº 1 do CPP.
Taxa de justiça: 2 Ucs.

Lisboa, 17 de Março de 2004
Henriques Gaspar (relator)
Antunes Grancho
Silva Flor