Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14/06.7TBCMG.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
NEGÓCIO FORMAL
ARRENDAMENTO URBANO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
ATRASO NA RESTITUIÇÃO DA COISA
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / NEGOCIO JURIDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ CONTRATOS
Doutrina:
- José Alberto Vieira, Negócio Jurídico, Anotação ao Regime do Código Civil (artigos 217º a 295º), pág. 43.
- Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, II, 2ª edição, pág. 435.
- Paulo Mota Pinto em Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 208.
- Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, 2ª edição, pág. 203.
- Pereira Coelho, Arrendamento – Lições ao Curso do 5º ano de ciências jurídicas de 1986/87, pág.192.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 237.º, 238.º, 473.º, 1043.º, N.º1, 1045.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 469.º, Nº 1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28/10/97, BMJ 470, 597;
-DE 09/05/2011, PROCESSO N.º 6275/07.7TBVFX.L1.
Sumário :



I - O apuramento da vontade real das partes, no quadro da interpretação dos negócios jurídicos, apenas constitui matéria de direito – sujeita ao controle do STJ – quando, sendo ela desconhecida, devam seguir-se, para o efeito, os critérios fixados nos arts. 236.º a 238.º do CC.
II - As regras constantes dos arts. 236.º a 238.º do CC constituem directrizes que visam vincular o intérprete a um dos sentidos propiciados pela actividade interpretativa, e o que basicamente se retira do art. 236.º é que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor). No entanto, a lei não se basta com o sentido realmente compreendido pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objectivo para o declaratário).
III - Em termos práticos, o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição do declaratário real.
IV - Se não se afigurar viável chegar a um resultado suficientemente claro sobre a interpretação do negócio jurídico, pois tanto a 1.ª como a 2.ª instâncias, raciocinando sobre os mesmos dados de facto e aplicando-lhes idênticas regras de direito, tiraram consequências opostas - sendo certo que de nenhuma delas se pode dizer, com segurança, não ter captado o sentido objectivo correspondente à impressão do destinatário - há que lançar mão do art. 237.º do CC, que dispõe para os casos duvidosos.
V - Se, em concreto, subsistir a dúvida acerca do sentido com que deve valer a estipulação contratual respeitante ao cumprimento por parte do locatário do dever de restituição do imóvel arrendado, é ajustado atender ao que a lei, supletivamente, dispõe sobre esta obrigação do locatário no art. 1043.º, n.º 1, do CC.
VI - No quadro do art. 1045º do CC há três hipóteses a considerar, consoante a causa da não restituição pontual do imóvel, findo o contrato: a) tratando-se de causa imputável ao inquilino, este constitui-se em mora e fica obrigado a pagar o dobro da renda até ao momento da restituição: é a hipótese do n.º 2 daquele preceito; b) tratando-se de causa imputável ao senhorio, há razão para a consignação em depósito do prédio: é a hipótese prevista na parte final do n.º 1 do mesmo artigo c) por fim, devendo-se a não restituição a qualquer outra causa, aplica-se a solução da 1ª parte do nº 1: o locatário é obrigado a continuar a pagar a renda acordada, a título de indemnização, até ao momento da restituição do prédio.



Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Síntese dos termos essenciais da causa e dos recursos

Advogando em causa própria, o Dr. AA propôs uma acção ordinária contra a Câmara Municipal de C..., pedindo a condenação da ré a repor e a restituir-lhe no exacto estado em que se encontrava o prédio que identifica na petição inicial (al. a), a pagar-lhe a indemnização líquida correspondente ao dobro da renda estipulada desde a data em que operou a denúncia do contrato até à restituição do imóvel no estado inicial (al. b), c), d) e e), com juros legais e sanção compulsória de 5% a partir do trânsito em julgado da sentença, e, por último, a pagar-lhe uma indemnização a liquidar posteriormente em relação aos danos cuja quantificação não é ainda possível (al. f). 

Resumidamente, alegou que em 30/11/99, mas com efeitos desde 1/9/99, deu de arrendamento à ré o prédio identificado no processo, convencionando-se que, findo o contrato, o imóvel devia ser entregue ao autor tal como foi recebido. Porém, tendo o contrato cessado em 31/8/05, a ré pretendeu entregar o prédio com uma configuração interna e num estado diferente do que apresentava na altura da celebração do arrendamento, motivo pelo qual o autor recusou a entrega.

A ré contestou, afirmando que o contrato previu a realização de obras de adaptação do locado aos fins do arrendamento, que foram realizadas mediante autorização do autor e ficaram, segundo o estipulado, a fazer parte integrante do imóvel. Não há, assim, obrigação de repor o local como estava à data da celebração do arrendamento nem, consequentemente, que indemnizar qualquer prejuízo, sendo ilícita e abusiva a recusa do autor, por contrariar todo o comportamento anteriormente adoptado.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida em 18/12/10 sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.

Por acórdão de 16/6/11 a Relação de Guimarães, dando provimento parcial ao recurso do autor, revogou a sentença e, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré nos seguintes termos:

a) A repor e a restituir ao autor o local arrendado no exacto estado de manutenção e com a compartimentação existentes aquando da celebração do contrato;

b) A pagar-lhe a título de indemnização a quantia mensal de 2.936,04 € desde Setembro de 2005 até ao momento em que a ordenada restituição se mostre feita;

c) A pagar juros de mora, à taxa de 4% ou outra que venha a ser estabelecida por lei, sobre tal quantia mensal;

d) A pagar juros compulsórios, à taxa de 5%, a partir do trânsito em julgado do acórdão proferido, sobre as quantias indemnizatórias que estiverem em dívida.

O autor requereu e viu indeferida pela conferência a aclaração deste acórdão.

Depois, ambas as partes recorreram para o STJ, concluindo, resumidamente, do seguinte modo:

Revista do autor:

1ª) O pedido formulado nas alíneas c) e d) é subsidiário em relação ao formulado em b);

2ª) Se a ré, não tendo restituído o prédio quando devia, tivesse continuado a pagar a renda, agora a título de indemnização, não se teria constituído em mora;

3ª) É aplicável à situação dos autos o disposto no artº 1045º, nº 2, do CC, dado que a ré ficou em mora ao não ter pago a indemnização em cada mês de vencimento da renda e ao não restituir o imóvel arrendado quando devia;

4ª) Só por lapso manifesto a Relação não aplicou o regime previsto no artº 1045º, nº 2, do CC, o qual teria levado à condenação da ré no pagamento da indemnização de 2.936,04 € - elevada ao dobro em razão da mora - por cada um dos meses em que deixou de pagar e até que se mostre feita a restituição do prédio.

Revista da ré:

1ª) O acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia, pois na sua apelação o autor não se insurgiu contra a absolvição da ré no tocante aos pedidos de indemnização formulados nas alíneas b), c) e d) da petição;

2ª) Contrariamente ao decidido pela Relação, as normas dos artºs 236º e 237º do CC não podem aplicar-se ao caso em apreço porque estamos perante um negócio formal;

3ª) A interpretação do contrato feita pela Relação - no sentido de que haveria uma convenção obrigando a inquilina a restituir o imóvel no estado anterior às obras - viola o disposto no artº 238º do CC;

4ª) Não resultou provado que as alterações da configuração e disposição interna do imóvel levadas a cabo pela ré configurem modificação das suas potencialidades naturais e jurídicas e, menos ainda, que lhe tenham retirado valor;

5ª) O comportamento da ré também não viola o disposto no artº 1043º do CC, dado que as obras efectuadas não se incluem na obrigação de restituir o prédio no estado em que se encontrava e o desgaste do pavimento e das paredes resultou do uso corrente do locado;

6ª) Ao recusar-se a receber o imóvel arrendado o autor entrou em mora, o que exclui o direito à indemnização prevista no artº 1045º do CC.

Autor e ré responderam ao recurso da parte adversa, defendendo a sua improcedência.

O processo foi distribuído no STJ em 2/5/12.

Tudo visto, cumpre decidir.     

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

1) Por escritura pública celebrada em 30/11/99, no Notário Privativo da Câmara Municipal de C..., o autor declarou dar de arrendamento à ré, que declarou tomar de arrendamento, com efeitos a partir de 1/9/99, o prédio urbano composto de duas lojas no rés-do-chão, primeiro e segundo andares, sito na Rua Ricardo Joaquim de Sousa e Travessa do Tribunal, desta vila, a confrontar do norte com a referida Travessa, do sul com José da Costa Alegria, do nascente com Rua Dr. Luciano de Amorim e Silva e do poente com a dita Rua Ricardo Joaquim de Sousa, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 164, a fim de a ré proceder no mesmo à instalação dos seus serviços técnico-administrativos (A);

2) A renda mensal convencionada foi inicialmente de 500.000$00 (2.500,00 €), a qual, por virtude de sucessivas actualizações, ascende actualmente a  2.936,04 € (B);

3) Do acordo mencionado em 1) consta ainda o seguinte: “Sem prejuízo das deteriorações resultantes da sua utilização normal, a arrendatária compromete-se a entregar o prédio arrendado, no fim deste contrato, tal como o recebe neste momento, devoluto, sem deteriorações e em bom estado de conservação, com todas as chaves, vidros, louças sanitárias e acessórios, e tudo o mais que nele se encontra à data do presente contrato” (C);

4) Aquando do mencionado em 1) o prédio encontrava-se em bom estado de manutenção (D);

5) Em 7/10/98 a Câmara Municipal de C... concedeu a licença de utilização de tal prédio com o nº 184/98 (E);

6) Por carta datada de 24/2/05, a ré comunicou ao autor o seguinte: “(…) Tendo em conta o contrato de arrendamento de 30 de Novembro de 1999, outorgado entre V. Exa. e esta Câmara Municipal (…). Vimos, por este meio, denunciar (revogar) o mesmo contrato de arrendamento, com efeitos a partir de 31 de Agosto de 2005, data a partir da qual lhe entregaremos o arrendado livre de pessoas e coisas (…)” (G);

7) A última renda paga pela ré ao autor foi a correspondente ao mês de Agosto de 2005 (H);

8) Por carta datada de 7/7/05, o autor comunicou à ré o seguinte: “(…) Com vista a verificar e avaliar tal bom estado de manutenção, exijo que, através de competente vistoria a ser efectuada por essa Câmara, (…), e por mim próprio, (…), seja elaborado documento onde seja descrito o estado do prédio ao tempo da entrega, (…), sem o qual me reservo o direito de não receber o prédio em causa (...)” (I);

9) Em 22/9/05 foi efectuada vistoria ao prédio (J);

10) Actualmente o prédio apresenta o seguinte estado e compartimentação:

Rés-do-chão:

- Um só estabelecimento, atendendo a que foi demolida a parede de separação entre os dois estabelecimentos anteriormente existentes;

- Todo este espaço do rés-do-chão foi compartimentado em vários gabinetes, sendo, para o efeito, utilizada uma estrutura que foi revestida, em ambas as faces, com placas de gesso cartonadas, não tendo rodapé de remate com o pavimento;

- Foi aberta uma porta de comunicação entre o hall da caixa de escadas de acesso ao 1º andar e o dito estabelecimento;

- No alçado lateral, Travessa do Tribunal, foram retiradas duas portas de acesso aos dois estabelecimentos anteriormente existentes;

- Foram removidos os acessórios e instalados vidros fixos;

- No estabelecimento, com entrada pela rua Dr. Luciano de Amorim e Silva, os degraus de acesso entre o exterior e o interior, que eram em lanço recto, foram alterados, tendo sido construído um patamar de entrada e depois os degraus;

- No pavimento do mesmo foi colocada tijoleira 30x30, tipo Maronagrés, na cor azul;

- Dado que há diferença de cotas de soleira entre o estabelecimento e a caixa de escadas, foram executados degraus com revestimento em tijoleira de marca e qualidade igual ao pavimento;

- Na execução do pavimento não foram mantidas as cotas das instalações sanitárias;

- Estas encontravam-se acabadas quer quanto ao pavimento quer quanto às paredes;

- Existe um pequeno degrau de cerca de 0,03m (três centímetros) entre os pavimentos dos estabelecimentos e as mesmas;

- Nos locais onde existiam as portas de acesso à Travessa do Tribunal foram suprimidos os degraus que permitiam vencer a diferença de cotas entre o exterior e o interior;

- Algumas armaduras de iluminação foram deslocadas do local inicial em função das divisórias construídas;

- Em todos os compartimentos foram colocadas calhas técnicas de instalações eléctricas quer ao nível do rodapé, nos tectos e, nalguns casos, na parede entre o rodapé e o tecto;

- Em comunicação com os três pisos foi construída uma courette técnica, tendo sido utilizada uma estrutura que foi acabada com o emprego de placas de gesso cartonadas;

- Os estores agora existentes não fazem parte da obra inicial;

- Há paredes interiores pintadas a cores completamente diferentes das que existiam aquando da entrega do prédio à R;

- Assim como os mesmos panos de paredes pintados a cores diferentes;

- Também há paredes interiores deterioradas, com supressão de argamassa e de tinta;

1º andar:

- No patamar das escadas foram retiradas as duas portas corta-fogo;

- Uma dava acesso ao escritório e a outra à habitação;

- Ao retirar as portas também foram removidas as respectivas paredes;

- O escritório foi compartimentado em vários gabinetes;

- Para a execução dos mesmos, foi utilizada uma estrutura que foi revestida, em ambas as faces, com placas de gesso cartonadas;

- Estas foram assentes directamente sobre o pavimento flutuante existente, prevendo-se que, aquando da remoção das mesmas, deixem o mesmo pavimento, paredes e tectos com marcas profundas da sua existência;

- A instalação sanitária aqui construída foi demolida pelo que não há qualquer vestígio da mesma;

- Em todos os compartimentos foram colocadas calhas técnicas de instalações eléctricas quer ao nível do rodapé, nos tectos e, nalguns casos, na parede entre o rodapé e o tecto;

- Algumas armaduras de iluminação foram deslocadas do local inicial em função das divisórias construídas;

- O pavimento flutuante é o da obra inicial, mas encontra-se em mau estado;

- A porta decorativa da habitação, tendo corno desenho a divisão em vários vidros, entre o hall de entrada e a sala comum, foi retirada;

- Foi construída uma outra parede, com vão de porta, à entrada da sala comum;

- Não há qualquer leitura da cozinha da habitação antes existente;

- Foram removidos todos os móveis da mesma, quer inferiores quer superiores;

- O lava-loiças, torneiras, passadores e todos os demais acessórios existentes foram removidos e a instalação eléctrica foi alterada;

- Este espaço de cozinha está actualmente adaptado a instalação sanitária;

- A porta de comunicação entre a cozinha e a sala comum foi removida e o vão fechado com a construção de uma parede em alvenaria de tijolo;

- Foi aberta urna porta entre esta nova instalação sanitária e o hall de entrada;

- Em todos os vãos exteriores, os estores aí colocados na execução da obra, tipo plissado com comando manual da Vitória, foram retirados, procedendo-se à colocação de outros constituídos por lâminas verticais, apresentando-se degradados;

- Nos compartimentos foram colocadas calhas técnicas de instalações eléctricas quer ao nível do rodapé, nos tectos e, nalguns casos, na parede entre o rodapé e o tecto;

- O pavimento flutuante é o do projecto, mas encontra-se em mau estado;

- Há paredes interiores pintadas a cores completamente diferentes das que existiam aquando da entrega do prédio à ré;

- Assim como os mesmos panos de paredes pintados a cores diferentes;

- Também há paredes interiores deterioradas, com supressão de argamassa e de tinta;

2º andar/vão do telhado:

- Existência de calhas técnicas para instalação eléctrica;

- Nas clarabóias, quer na caixa de escadas quer no arrumo, os estores aí existentes são os do projecto, mas em muito mau estado;

- Há paredes interiores pintadas a cores completamente diferentes das que existiam aquando da entrega do prédio à ré;

- Assim como os mesmos panos de paredes pintados a cores diferentes;

-Também há paredes interiores deterioradas, com supressão de argamassa e de tinta (L);

11) Por carta datada de 10/10/05, o autor comunicou à ré o seguinte: “(…) Como bem pode ser constatado, pelo confronto entre aquele projecto e a vistoria agora realizada, o prédio em questão não se encontra no estado em que foi recebido por essa Câmara, nem sequer no âmbito das deteriorações existentes, que nada têm de inerente a uma prudente utilização, pelo que não aceitei nem aceitarei o mesmo prédio enquanto não seja reposto no exacto estado em que foi entregue a essa Câmara” (M);

12) O prédio mencionado em 1) quando foi dado de arrendamento à ré tinha a seguinte compartimentação:

Rés-do-chão:

- Dois estabelecimentos independentes, com as respectivas instalações sanitárias, um virado a poente, com entradas pela Rua ... e pela Travessa ...l, e outro a nascente, com entradas pela Rua ... e pela Travessa ...l;

- Os pavimentos dos mesmos não tinham qualquer acabamento de revestimento, estando em betonilha;

- Caixa de escada de acesso exclusivo ao 1º andar;

1º andar:

- Escritório com respectiva instalação sanitária;

- Uma habitação do tipo T1 (hall de entrada, sala comum, cozinha, totalmente mobilada e equipada, e escada de acesso ao segundo andar/vão do telhado);

- 2º andar/vão do telhado:

- Quarto, instalação sanitária completa e terraço (1º);

13) O prédio mencionado em 1) foi dado de arrendamento à ré completamente concluído, mostrando-se equipado no que respeita a armaduras de iluminação, tomadas, interruptores e quadros, assim como móveis de cozinha, superiores e inferiores, lava-loiças e misturadora (2º e 3º);

14) Com vista a adaptar o local arrendado ao fim específico a que se destinava - instalação de serviços técnico-administrativos da ré - a ré procedeu às obras mencionadas em 10). O autor sabia que a ré pretendia destinar o local arrendado à instalação dos seus serviços técnico-administrativos e autorizou-a a realizar obras com vista a adaptar o local para esse fim (4º);

15) A ré ocupou o prédio no exacto estado, compartimentação incluída, a que se refere o respectivo processo de obra, com o nº 84/94 (4º/a);

16) Depois da realização da vistoria a que se alude em 9), a ré pretendeu entregar ao autor as chaves do local arrendado, tendo este recusado a entrega com fundamento no facto de o local não se encontrar no estado em que foi recebido pela ré (5º e 6º);

17) A concepção inicial do licenciamento previa a construção de quatro unidades individualizadas autónomas, distintas e isoladas entre si, em propriedade horizontal:

a) estabelecimento, com 71,50 m2, no piso zero;

b) estabelecimento, com 71 m2, no piso zero;

c) escritório, com 63 m2, piso um;

d) apartamento, no piso um e vão do telhado, com 48,20 m2 (7º);

18) A realidade descrita em 17) era incompatível com o normal funcionamento dos serviços técnico-administrativos de uma Câmara Municipal, que se reveste de uma unidade em termos de organização administrativa:

a) impondo-se a comunicação e circulação constantes de pessoas e documentos entre os diferentes sectores e departamentos;

b) com necessidade de, a todo e qualquer momento, desde as chefias até aos diferentes funcionários, estarem em contacto permanente (8º);

19) Por isso, aquelas quatro unidades, se fossem a manter-se como tinham sido construídas, apresentariam permanentes “barreiras físicas” a tais propósitos (9º).

20) Foi ainda clausulado na referida escritura pública que o custo das obras executadas pela ré em função do fim específico do contrato (serviços técnico-administrativos da ré) não tinham que ser indemnizadas pelo senhorio, ficando a fazer parte integrante do arrendado (cláusulas 8ª e 9ª);

21) Mais foi clausulado que a título de comparticipação do senhorio no custo das obras com vista a adaptar o arrendado ao fim específico a que se destinava, ficava a ré dispensada de pagar as rendas de Setembro e Outubro de 1999, correspondendo assim tal comparticipação a esc. 1.000.000$00 (cláusula 10ª).

b) Matéria de Direito

1. A fim de evitar inúteis repetições e tornar o mais clara possível a decisão a adoptar apreciaremos ambos os recursos conjuntamente, uma vez que as questões a resolver num e noutro interpenetram-se e, além disso, coincidem no seu núcleo essencial, dependendo a respectiva solução da análise e aplicação das mesmas normas jurídicas.

Encontra-se assente que as partes celebraram um contrato de arrendamento a que foi posto termo por denúncia da ré no prazo e demais condições estipuladas na escritura pública que o titula, de 30/9/1999. Deste modo, o litígio que as divide centra-se exclusivamente na questão de saber se a ré, locatária, cumpriu ou não a obrigação a que aludem os artºs 1038º, i), e 1043º, nºs 1 e 2, do CC, de restituir a coisa locada findo o contrato.

Interpretando este à luz do critério estabelecido nos artºs 236º a 238º do CC, disse-se o seguinte a dado passo da sentença: “No caso dos autos...julgamos que todo o texto do contrato (onde é patente a constante alusão à necessidade das obras a que o locado seria sujeito para a reordenação interna das suas divisões) e os interesses de ambas as partes (que tornam evidente que à ré só interessava o prédio se este fosse sujeito àquela reordenação) permitem concluir que as referidas estipulações contratuais se harmonizam e compatibilizam da seguinte forma: a ré ficou obrigada a restituir o prédio no estado em que o recebeu do autor mas com ressalva das obras necessárias à adaptação do mesmo ao fim específico do contrato, ou seja, com a configuração e disposição interna decorrentes da sua adaptação ao fim visado pela inquilina [este tipo de acordo é, aliás, frequente na prática pois permite alcançar uma solução que satisfaz os interesses de ambas as partes: do inquilino, porque lhe possibilita adaptar totalmente o prédio às necessidades do fim do arrendamento; do senhorio, porque consegue a ocupação do prédio por um arrendatário que, em princípio, não estaria interessado nele por falta de condições do prédio].

De qualquer forma, e ainda que os elementos de interpretação não conduzissem ao resultado atrás indicado, restaria então concluir que não era de todo possível descortinar a intenção real das partes. E, nesse caso, sempre haveria que recorrer à regra do artº 342º, nº 1, CC e decidir que o autor não logrou a demonstração do direito que se arroga – receber o prédio no estado anterior às obras.

Resta dizer que o estado actual do prédio (com as obras de adaptação que nele foram feitas, como já vimos) resulta do seu uso corrente à luz daquilo que foram os fins do contrato e também do desgaste do tempo” (fls 375/376).

A Relação viu as coisas de modo diverso, tendo ponderado, além do mais, o seguinte:

“Passemos agora ao sentido que um declaratário normal, dispondo dos elementos de que o Autor e Ré dispunham, iria deduzir de tais declarações cruzadas. Para o efeito há que ver que se tratava de um prédio que estava em bom estado de manutenção (aliás, sabe-se que tinha sido recentemente reconstruído); que estava licenciado para habitação, escritório e comércio (v. fls. 51); que a concepção do licenciamento previa a construção de quatro unidades individualizadas autónomas, distintas e isoladas entre si, em propriedade horizontal; e, finalmente, que as obras a realizar pela Ré eram de adequação do local aos seus idiossincráticos fins funcionais (fins específicos, como se diz no contrato) e não a fins que pudessem servir posteriormente para uma generalidade de afectações. Perante estas circunstâncias ou coeficientes, haverá de concluir-se, até mesmo por actuação do vector da boa fé (que se presume ter sido adoptado pelas partes), que as partes não pretenderam que o prédio fosse devolvido ao dono em contrário de tudo o que era, ou seja, modificado (rectius, descaracterizado) na sua compartimentação e potencialidades naturais e jurídicas. Ao invés, é de concluir que esteve imanente ao pensamento e à vontade das partes, no essencial, a ideia de reposição do prédio, justamente porque a sua afetação à Ré era específica, no seu estado e configuração anteriores. Ideia essa a que a cláusula décima quarta dá expressamente corpo. Nesta medida, o sentido que a cláusula nona comporta não é aquele que o seu elemento literal imporia sem mais, mas necessariamente o de que pretenderam as partes que aquilo que a Ré incorporasse no prédio com as obras de adaptação e que de alguma forma o beneficiasse ou acrescentasse relativamente ao estado e configuração anteriores (ou seja, relativamente ao seu destino normal, que era de habitação e comércio) reverteria a favor do senhorio, integrava-se no prédio. Mas não o mais, ou seja, aquilo que fosse irrelevante para o prédio como era antes. No fundo, do que se tratou, como nos parece evidente, foi de regular a questão da mais-valia ou benfeitorização que as obras de adaptação pudessem acaso trazer ao prédio (fls 444/445).

....

....

Ora, visto o objectivo do contrato no seu todo, mas com destaque para a circunstância de se ter tratado de um arrendamento que implicou, em atenção exclusivamente aos fins funcionais da Ré e não também aos fins intrínsecos do prédio de acordo com a sua conformação pré-existente, obras que de outra forma não se antolha que houvessem de ser realizadas, o que é mais equilibrado e justo é que ao Autor seja restituído aquilo que tinha e deu, e não que seja entregue aquilo que a Ré tem para dar “ (fls 446).

Como se pode ver das conclusões dos recursos a posição sustentada pelo autor, quanto a esta questão, é de inteiro apoio ao acórdão recorrido; a da ré, por seu turno, coincide com a da sentença.

Vejamos.

Os factos concretos apurados no processo não permitem afirmar com certeza qual foi a comum vontade real das partes no que respeita à correcta determinação do conteúdo da obrigação que se discute; comum vontade, dissemos, porque se está em presença dum contrato, no qual, por definição, existe um mútuo acordo de vontades diversas que se ajustam em ordem à obtenção de uma finalidade também comum; e vontade real, como de igual modo referimos, porquanto o seu apuramento no quadro da interpretação dos negócios jurídicos apenas constitui matéria de direito - e sujeita, portanto, ao controle do STJ enquanto tribunal de revista quando, sendo ela desconhecida, devam seguir-se para o efeito os critérios fixados nos artºs 236º/238º do CC (neste preciso sentido cfr. o acórdão desta conferência proferido em 26/10/10 na Revª nº 447/2001.C1.S1, cujo texto integral pode ser consultado em www.stj.pt).

Assim sendo, em ordem a determinar o sentido juridicamente relevante das declarações negociais que no caso ajuizado autor e ré produziram, há que interpretar o estipulado na escritura que formalizou o contrato de arrendamento concluído obedecendo às directrizes fixadas naqueles preceitos, como as instâncias, aliás, fizeram, chegando embora a resultados não coincidentes. E isto porque a função de tais directrizes, como refere José Alberto Vieira (Negócio Jurídico, Anotação ao Regime do Código Civil (artigos 217º a 295º, pág. 43) é precisamente a de vincular o intérprete a um dos sentidos propiciados pela actividade interpretativa. Ora, como pusemos em relevo noutro acórdão desta conferência (Revª nº 6275/07.7TBVFX.L1, de 9/5/11), os princípios essenciais a ter em consideração nesta matéria são os seguintes:

- A declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário - artº 236, nº2, CC;

- Não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário) - artº 236, nº1;

- Nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto - artº 238, nº1; dito doutra forma: para que possa valer, o sentido atribuído pelo “declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento que corporiza a garantia prestada;

- O sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade - artº 238º, nº2.

Estas regras, no fundo, não são mais do que critérios interpretativos dirigidos ao juiz e às partes contratantes. E o que basicamente se retira do artº 236º é que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor). A lei, no entanto, não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objectivo para o declaratário) – acordão deste Tribunal de 28.10.97, BMJ 470, 597. Há que imaginar - escreve o Prof. Paulo Mota Pinto em Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 208 - uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este efectivamente conheceu (mesmo que um declaratário normal delas não tivesse sabido - por exemplo, devido ao facto de o real declaratário ser portador de uma cultura invulgarmente vasta e superior à média) e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo. Ainda segundo este mesmo autor,  “… a interpretação da declaração negocial não tem em vista apurar a vontade do declarante ou um sentido que este tenha querido declarar, estando antes em causa o sentido objectivo que se pode depreender do seu comportamento”. Importa por fim acrescentar que estando-se no caso sub judice em presença dum contrato, e dum contrato tipicamente sinalagmático, há que atender, simultaneamente, às declarações de ambas as partes porque ambas são, também simultaneamente, declarante e declaratário (neste sentido, Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, II, 2ª edição, pág. 435). Tudo isto significa em termos práticos que o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição de declaratário real.

No caso dos autos estipulou-se - cláusula 8ª - que as obras executadas pela arrendatária em função do fim específico do contrato (serviços técnico-administrativos da ré) ficavam totalmente a seu cargo; que - cláusula 9ª - o senhorio não teria que indemnizar a arrendatária no fim do contrato pelo custo dessas obras (as mencionadas na cláusula 8ª), ficando as mesmas a fazer parte integrante do arrendado; que – cláusula 10ª - a título de comparticipação do senhorio no custo obras com vista a adaptar o arrendado ao fim específico do contrato “fica a arrendatária dispensada de pagar as rendas de Setembro e Outubro de mil novecentos e noventa e nove, correspondendo, assim, a comparticipação do senhorio ao montante de escudos – 1.000.000$00 (um milhão de escudos”; e que - cláusula 14ª - “sem prejuízo das deteriorações resultantes da sua utilização normal, a arrendatária compromete-se a entregar o prédio arrendado, no fim deste contrato, tal como o recebe neste momento, devoluto, sem deteriorações e em bom estado de conservação, com todas as chaves, vidros, louças sanitárias e acessórios, e tudo o mais que nele se encontra à data do presente contrato”.

Perante estas estipulações contratuais, e tendo presente tudo quanto se expôs, a conclusão que retiramos é a de que, colocado na posição das partes, um declaratário normal tanto poderia extrair o sentido negocial apurado pela 1ª instância, como aquele a que chegou a Relação. A favor do primeiro concorre fundamentalmente o facto assaz relevante e muito significativo de o senhorio ter expressamente dado o seu acordo à realização das obras de adaptação do arrendado aos fins específicos do contrato e comparticipado, até, no seu custo, além de ter ficado estabelecido que essas mesmas obras passariam a fazer parte do imóvel, no qual se integrariam sem direito da arrendatária a qualquer indemnização. Mesmo tendo em conta a norma do artº 238º, nº 1, que nos negócios formais restringe a prevalência do sentido negocial correspondente à impressão do destinatário aos casos em que este tenha um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, no texto do contrato, afigura-se que da conjugação das cláusulas apontadas pode razoavelmente extrair-se em sede interpretativa a ilação de que os contraentes pretenderam, findo o contrato, dispensar a locatária da obrigação de repor o locado no estado em que se encontrava à data da sua celebração. A favor do segundo temos essencialmente o texto da cláusula 14ª, que não permite, salvo melhor opinião, outro entendimento que não seja o de que as partes quiseram vincular a ré à obrigação de entregar o arrendado no final do contrato no estado em que o recebeu antes de proceder às obras de adaptação (sem prejuízo, naturalmente, como de resto também ficou ressalvado na mesma cláusula, das deteriorações resultantes da utilização normal do arrendado, atendendo ao fim estipulado – instalação dos serviços técnico administrativos da locatária). Importa ter presente, neste contexto, que os contraentes foram, respectivamente, um advogado e uma Câmara Municipal (esta última com toda a probabilidade, e como é normal em circunstâncias semelhantes, assessorada e aconselhada por um advogado); e também não pode deixar de ser levado em conta que a escritura de arrendamento, como dela consta, foi realizada na presença do notário privativo da ré, que explicou o seu conteúdo a todos os intervenientes. Atendendo, portanto, ao nível de instrução e cultura dos contraentes, e, mais precisamente, à sua qualificação e experiência profissional, deve presumir-se que sopesaram com atenção e cuidado o significado e o alcance das palavras utilizadas na redacção do contrato, medindo as suas consequências, designadamente ao afirmar, preto no branco, que a ré se comprometia a entregar o imóvel, no fim do contrato, “tal como o recebe neste momento”.

Entende-se, em suma, que no ponto considerado - definição do conteúdo do dever de restituição da coisa locada, findo o contrato - não é viável chegar a um resultado suficientemente claro sobre a interpretação do negócio, pois tanto a 1ª como a 2ª instância, raciocinando sobre os mesmos dados e aplicando-lhes idênticas regras de direito, tiraram consequências opostas, sendo certo que de nenhuma delas se pode dizer com segurança não ter captado o sentido objectivo correspondente à impressão do destinatário. Assim sendo, há que lançar mão do artº 237º do CC, que dispõe para os casos duvidosos: “Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações”. Ora, sendo inegável que estamos perante um negócio oneroso (mais exactamente, um contrato oneroso, por isso que importou sacrifícios económicos para as duas partes), consideramos que, ponderado o negócio concluído na sua globalidade, o sentido (interpretação) conducente ao maior equilíbrio das prestações é o adoptado pela Relação. Na verdade, o princípio da equivalência das prestações tem que ser entendido em termos cautelosos. Por isso, regra geral o tribunal não interfere, exceptuando as situações enquadráveis nos vícios da vontade ou determinantes da nulidade do objecto negocial, naquilo que as partes livremente pactuaram no exercício da sua autonomia privada. Daí que só em casos excepcionais - e, oficiosamente, apenas perante situações de abuso do direito - o juiz intervenha para repor o equilíbrio contratual. Na situação ajuizada, contudo, torna-se difícil, senão impossível, tirar uma conclusão segura acerca do ponto exacto onde se situa o equilíbrio entre as prestações, por isso que, como já se viu, subsiste a dúvida acerca do sentido com que deve valer a estipulação contratual respeitante ao cumprimento por parte da locatária do dever de restituição do imóvel arrendado. Por ser assim, parece-nos ajustado prestar atenção ao que a lei, supletivamente, dispõe sobre esta obrigação do locatário no artº 1043º, nº 1, do CC. É o seguinte: “na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização em conformidade com os fins do contrato”. Esta norma revela que a solução legalmente adoptada quando não haja convenção das partes - e afigura-se que o caso ajuizado deve equiparar-se ao da inexistência de convenção, uma vez que em sede interpretativa não se obteve um resultado concludente - é, justamente, aquela por que a Relação enveredou ao decidir que o autor tem direito a que o prédio lhe seja restituído no estado em que a ré dele o recebeu.

Resulta do que antecede a improcedência do recurso da ré.

2. No seu recurso o autor sustenta que tem direito, não apenas àquilo que obteve em resultado da procedência parcial da apelação que interpôs, mas ainda à indemnização prevista no artº 1045º, nº 2, do CC.

Mas não tem razão.

Este preceito dispõe o seguinte:

1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.

2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.

Temos assim que, conforme refere o Prof. Pereira Coelho (Arrendamento – Lições ao Curso do 5º ano de ciências jurídicas de 1986/87, pág.192), há três hipóteses a considerar, conforme a causa da não restituição pontual. Tratando-se de causa imputável ao inquilino, este constitui-se em mora, nos termos do artº 804º, nº 2, e fica obrigado a pagar o dobro da renda até ao momento da restituição: é a hipótese do citado nº 2. Tratando-se de causa imputável ao senhorio, há razão para a consignação em depósito do prédio, conforme o artº 841º, nº 1: é a hipótese prevista na parte final do nº 1 do citado artº 1045º, caso em que, logicamente, o inquilino nada deve ao senhorio a título de indemnização pelo atraso na restituição do arrendado. Por fim, devendo-se a não restituição a qualquer outra causa, aplica-se a solução da 1ª parte do nº 1 do artº 1045º: o locatário é obrigado a continuar a pagar a renda acordada, “a título de indemnização”, até ao momento da restituição do prédio.

Na situação ajuizada, como decorre da matéria de facto apurada, a ré pretendeu restituir o arrendado no final do contrato. A restituição apenas não se consumou porque o autor, legitimamente embora, como já se concluiu, recusou a entrega (factos 6, 8 e 11). Foi esta, verdadeiramente, a única causa da não restituição. A causa não foi a mora da ré. De mora da ré só poderia falar-se se porventura, findo o contrato, o autor a tivesse interpelado para lhe restituir o imóvel e a ré se abstivesse de o fazer (neste sentido cfr. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, 2ª edição, pág. 203). Mas não houve tal interpelação. A hipótese dos autos, por consequência, é a terceira e última a que se aludiu – não restituição do prédio devida a “qualquer outra causa”, diversa da mora do senhorio ou do locatário. Portanto, nada a censurar à decisão do acórdão recorrido neste ponto. E não faz sentido, salvo o devido respeito, a conclusão do autor no sentido de que o pedido que formulou baseado no artº 1045º, nº 2 (indemnização correspondente ao dobro da renda até à efectivação da entrega) é subsidiário do apresentado na alínea a) da petição, respeitante à condenação da ré na entrega do imóvel no estado anterior às obras de adaptação realizadas. Isto porque o pedido subsidiário, por definição, é para ser considerado pelo tribunal no caso de não proceder um pedido anterior (artº 469º, nº 1, CPC), sendo certo que, como resulta de todo o exposto, esse “pedido anterior”, no caso, foi atendido. De resto, independentemente do que já se disse, parece que semelhante pretensão nunca poderia proceder, na medida em que se traduziria numa cumulação de indemnizações que a lei não autoriza – a do nº 1 e a do nº 2 do artº 1045º. Este preceito deve ser interpretado no sentido de que as indemnizações nele previstas a favor do senhorio não se cumulam: se houver mora do locatário a indemnização devida é a fixada no nº 2 – dobro da renda; se a causa da não restituição for outra qualquer a indemnização é a do nº 1 – a renda estipulada. A interpretação e aplicação da lei no sentido preconizado pelo recorrente daria origem, na prática, a uma situação de enriquecimento ilegítimo, porque sem causa, que o artº 473º, nºs 1 e 2, não consente ao dispor, por um lado, que aquele que sem causa justificativa enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou e, por outro, que a obrigação de restituir tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido.

Improcedem, assim, ou mostram-se deslocadas as conclusões de ambos os recursos.

III. Decisão

Nos termos expostos acorda-se em negar as revistas e em condenar cada um dos recorrentes nas custas do recurso que interpôs.


Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira