Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2835
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI NO ESPAÇO
LEI APLICÁVEL
LEI ESTRANGEIRA
REGIME DE BENS DO CASAMENTO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200311060028352
Data do Acordão: 11/06/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 1328/02
Data: 02/19/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Sumário : I - Tendo sido declarada inconstitucional pelo tribunal constitucional do respectivo ordenamento jurídico determinada norma que, de acordo com as regras do direito internacional privado, seria a aplicável pelo ordenamento jurídico português, não pode ela ser aplicada pelos tribunais portugueses, uma vez que o direito estrangeiro tem de valer com a força que tem no respectivo ordenamento.
II - Por isso, essa declaração de inconstitucionalidade torna necessário saber qual a posterior solução legal ou jurisprudencial para o caso.
III - Desconhecendo-se qual é, impõe-se considerar o conteúdo da norma estrangeira indeterminado, para os efeitos do artº. 23º do C. Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
"A", na sequência do divórcio, veio requerer contra B a instauração de processo de inventário para partilha dos bens do casal.
Nomeada cabeça de casal, prestou declarações em que indicou que o regime de bens era o da separação.
O interessado B alegou, então nos autos que, sendo o regime de bens o imperativo da separação, não existiam bens a partilhar, uma vez que, quer os que estão na sua posse, quer os que foram relacionados no processo são sua propriedade exclusiva.
A cabeça de casal veio então dizer que o regime de bens era o da comunhão de adquiridos. Com efeito, sendo ela de nacionalidade espanhola e o requerido de nacionalidade portuguesa, casaram em Espanha, em 18.3.78, casamento este transcrito nos Registos Centrais de Portugal . No mesmo país estabeleceram a residência conjugal. Logo, de acordo com o artº. 53º, nº. 2 do C. Civil, a lei aplicável ao regime de bens é a da primeira residência do casal, portanto a lei espanhola que determina um regime idêntico ao da comunhão de adquiridos. Há, pois, a partilhar os bens adquiridos na constância do matrimónio.
Respondeu o interessado alegando que a lei aplicável seria o regime estabelecido no artº. 53º, nº. 2 do C. Civil, na sua anterior redacção, onde se determinava que a lei aplicável seria a lei pessoal do marido, ou seja, a lei portuguesa. A actual redacção do preceito é posterior ao casamento dos interessados - entrou em vigor em 1.04.78 -.
A ser assim, sendo o casamento celebrado entre um português e uma estrangeira, deveria ser precedido do processo de publicações. Não tendo tal processo existido, o regime aplicável será imperativamente o da separação, não havendo bens comuns a partilhar.
De seguida foi proferido despacho em que se entendeu que a lei aplicável era a espanhola e que os autos deveriam prosseguir a fim de se proceder à partilha.
Recorreu o requerido, tendo o Tribunal da Relação dado provimento ao agravo e ordenado o arquivamento dos autos.

Recorre agora a requerente, a qual nas suas alegações de recurso apresenta as seguintes conclusões:
1) Por aplicação do nº. 2 do artº. 53º do C. Civil, na sua versão à data do casamento, que é a aplicável ao caso dos autos, "não tendo os nubentes a mesma nacionalidade, é aplicável a lei da sua residência habitual comum à data do casamento".
2) E portanto a lei espanhola.
3) Pelo que lançando mão do regime supletivo previsto nesta lei, deveria declarar-se que o regime de bens era o da "sociedad de gananciales".
4) Esta referida disposição, ao dispor que, no caso dos autos e no que toca a convenções antenupciais e regime de bens, a lei aplicável é a espanhola, não permite que, depois, se venha a deferir a competência à lei de qualquer outro Estado.
5) A segunda parte do nº. 2 do artº 9º do C. Civil espanhol (na redacção de 1974) é inconstitucional por conter uma discriminação em razão do sexo.
6) O douto Acórdão recorrido violou, entre outras, as disposições contidas nos artºs. 51º, 53º e 1.720º do C. Civil e artº. 13º da Constituição.
II
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
As instâncias deram por assentes os seguintes factos:
1. Recorrente e recorrido contraíram casamento católico no dia 18.03.78, em Salamanca, Espanha,
2. sendo ela de nacionalidade espanhola e ele de nacionalidade portuguesa.
3. Não foi estipulado regime de bens.
4. O casamento foi inscrito por documento lavrado no dia 20.03.78 nos serviços do Registo Civil de Salamanca (2ª Repartição).
5. No dia 27.04.78, efectuou-se a transcrição do documento comprovativo do casamento no Consulado de Portugal em Salamanca.
6. O registo efectuou-se sem o decurso de qualquer processo de publicações em Portugal ou nos serviços consulares portugueses.
7. Os cônjuges residiam habitualmente, no momento da celebração do casamento, em Salamanca.
8. Esta residência habitual comum manteve-se posteriormente, passando, porém, a determinada altura, a terem residência comum em Portugal, até à dissolução do casamento.
9. Os bens que a recorrente quer ver partilhados situam-se todos em Portugal e, como resulta da relação de bens que apresentou, são constituídos por quotas de sociedades e bens das mesmas.
III
Apreciando
1 - As regras reguladoras do regime de bens nos casamento são as constantes da lei nacional do cônjuges. Se estes não tiverem a mesma nacionalidade, aplica-se a lei da sua residência habitual comum à data do casamento. É o que dispõe o artº. 53º, nºs. 1 e 2 do C. Civil.
Desta forma, o direito português começa por remeter para as normas do direito interno espanhola a regulamentação do regime de bens no casamento em causa.
Esta última ordem jurídica determinava, aquando da celebração do casamento em apreço, nos nºs. 2 e 3 do artº. 9º do C. Civil espanhol, que as relações patrimoniais entre os cônjuges de diferente nacionalidade, na falta de convenção, reger-se-iam pela lei nacional do marido, na altura do casamento.
Estamos, assim, perante uma hipótese de reenvio para a lei portuguesa, que esta aceita, conforme o disposto no artº. 18º, nº. 1 do C. Civil.
Só que, como se assinala no Acórdão recorrido, as aludidas disposições do artº. 9º do C. Civil espanhol estarão feridas de inconstitucionalidade uma vez que fazem uma discriminação baseada no sexo, proibida pelo artº. 14º da Constituição Espanhola de 1978. E, na realidade a Lei 11/1990 de 15.10, veio substituir o critério da "ley nacional del marido al tiempo de la celebración" pelo da "ley da residencia habitual común inmediatamente posterior a la celebración" e, na sua falta, pelo da lei "del lugar de celebración del matrimónio".
Mais recentemente, o Plenário do Tribunal Constitucional Espanhol, em 14.2.02,
decidiu "Estimar la presente cuestión de inconstitucionalidad y, em virtude de ello, declarar inconstitucional y derogado por la Constitución el artº. 9º.2 del Código Civil según la redacclón dada por el texto articulado aprobado por el Decreto 1836/1874, de 31 se mayo, en el inciso "por la ley nacional del marido al tiempo de la celebración"" - BOE nº. 63 de 14.03.02, Suplemento 113 a 120 -.
Considerada inconstitucional no seu ordenamento jurídico a norma estrangeira não pode ela ser atendida, uma vez que, de acordo com o artº. 23º do C. Civil, a lei estrangeira é aplicada dentro do sistema a que pertence. Para além de que seria igualmente inconstitucional face à Constituição portuguesa, por admitir uma discriminação em razão do sexo.
No caso de se considerar que estamos perante uma lacuna do sistema de normas de conflito, não nos repugnaria a aplicação retroactiva do actual regime do artº. 9º do C. Civil espanhol, que determina, neste caso, a competência da lei espanhola, ao fixar o critério da lei da residência habitual comum, imediatamente posterior ao casamento. A ratio decidendi, a similitude da evolução dos direitos nacionais de ambos os cônjuges, a isso aconselharia.
Estamos, porém, no campo do direito internacional privado em que é difícil falar de imediato em lacunas, mas apenas depois de haver-se esgotado o sistema sequencial ou subsidiário de determinação do ordenamento jurídico ou da norma prevalente.
O referido artº. 23º, no seu nº. 2, dispõe que, na impossibilidade de averiguar o conteúdo da lei estrangeira aplicável, recorrer-se-á à lei que for subsidiariamente competente, devendo adoptar-se igual procedimento sempre que não for possível determinar os elementos de facto ou de direito de que depende a designação da lei aplicável.
Ora, "se, de harmonia com o direito conflitual do foro, a norma de conflitos não tem sucedâneo, deve o juiz, em primeiro lugar, estabelecer uma conexão para o negócio jurídico e, não o conseguindo, aplicará a lex fori ... É nestes termos que deve interpretar-se a segunda parte do nº. 2 do artº. 23º" - Ferrer Correia, Lições de 1969 720 722 -.
Ou seja
Remetendo a lei portuguesa para um determinado ordenamento jurídico estrangeiro e não sendo possível averiguar se este aceita a competência, o julgador, ou determina um ordenamento conexo com o acto jurídico em apreciação, ou aplica a lei nacional..
No caso sub judice, para declarar a competência da lei espanhola seria necessário saber como é que o respectivo ordenamento, nomeadamente a sua jurisprudência, interpreta a declaração de inconstitucionalidade a que atrás nos referimos e qual é o regime de conflitos que entende aplicável aos casamentos anteriores à Constituição de 1978. Recorde-se aquilo que consignámos sobre a necessidade da lei estrangeira ser interpretada dentro do sistema a que pertence, de acordo com o nº. 1 do artº. 23º.
"A regra do nº. 1 deste artº. significa que o juiz que aplica o direito estrangeiro há-de interpretá-lo de conformidade com a jurisprudência e doutrina dominantes no país de origem, sendo de observar, antes de mais, as regras estrangeiras sobre interpretação, e devendo, além disso, uma e outra ser observadas e seguidas com o mesmo respeito que no respectivo Estado lhes for tributada ..." - Ferrer Correia, ob cit 704 708 -.
Não ocorrendo isto, a norma estrangeira fica indeterminada.
Tal facto legitima que se procure estabelecer uma conexão entre um certo ordenamento e o acto jurídico a apreciar. No caso, tratando-se da partilha de bens regulados pela lei portuguesa - situam-se em território português -, a conexão com a nossa ordem jurídica é total.
Tendo em conta o que consignámos, é, por isso, competente para a determinação do regime de bens em causa a lei portuguesa.
O regime imperativo de separação de bens previsto no nº. 1, alínea a) do artº. 1720º do C. Civil aplicável, porque o casamento entre a recorrente e o recorrido não foi precedido do processo de publicações, não resulta, portanto, duma imposição de ordem pública, como efectivamente ocorreria se a lei aplicável fosse a estrangeira, mas sim do facto de que a lei reguladora deste casamento e do seu regime de bens é, directamente, a lei portuguesa.
Hipótese em que não há uma meação a separar, não havendo lugar ao respectivo inventário
Impõe-se, desta maneira, confirmar o Acórdão recorrido.

Pelo exposto, acordam em negar a revista, confirmando o Acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 6 de Novembro de 2003
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
Ferreira de Almeida