Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P1090
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ200305080010903
Data do Acordão: 05/08/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 240820
Data: 01/08/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : I - A especificidade dos crimes sexuais contra menores reside como que numa obrigação de protecção de castidade e virgindade, sejam eles de que sexo forem.
II - Quando, como hoje, se assiste com uma frequência preocupante ao autêntico escárnio dos mais sagrados sentimentos de crianças indefesas, tantas vezes transformadas sem escrúpulo em meros instrumentos de satisfação libidinosa, não raro por actuação perversa e cobarde, até, dos próprios progenitores, ou de quem, acobertado pelo recato do lar, e em regra, por isso, portador da sua inocente confiança total, não hesita em conspurcar esse sacrário de inocência no seu próprio chafurdo sexual, não pode o sistema jurídico-penal dar outra resposta que não seja um inequívoco sinal de segurança, enfim, proporcionando porto de abrigo a quem dele tão veementemente mostra necessitar: as crianças.
III - Em regra, nesse tipo de criminalidade a defesa do ordenamento jurídico e os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais que urge satisfazer, não se bastarão com uma pena situada no limiar inferior da moldura penal abstracta, impedindo assim a sua compatibilização formal com a pena suspensa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No 4.º Juízo Criminal de Matosinhos respondeu perante o colectivo o arguido JMGC, devidamente identificado, acusado pelo MP da prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal.
A final, na procedência da acusação, foi condenado na pena de seis anos de prisão.
Inconformado, recorreu à Relação do Porto, envolvendo na impugnação matéria de facto e de direito, nomeadamente, imputando àquela o vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e, quanto a esta, por entender dever considerar-se «diminuída a imputabilidade» do arguido e, em consequência, a pena deveria ser, não a aplicada, mas de prisão por 3 anos, suspendendo-se a execução por um período de 5 anos com as obrigações que se entendessem adequadas.
Em lacónica resposta, o MP junto do tribunal recorrido opinou pela rejeição do recurso baseado em razões de mera forma alegadamente não satisfeitas pelas conclusões da motivação.
Mas já na Relação a mesma entidade, ora pela pena do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto naquele tribunal superior foi pelo provimento parcial do recurso já que, não obstante lhe parecer que a matéria de facto não enfermaria dos vícios que lhe apontava o recorrente, a subsunção jurídica se mostrar correcta, «algumas das suas zonas cinzentas iluminam a complexidade de quem, sendo imputável, é, contudo, incapaz de uma conceptualização mais exigente sobre valores morais reclamados por uma convivência social, tidos como elementos básicos do nosso meio cultural, e pressupostos no homem comum, com limitações de carácter intelectivo, sem esquecer que o arguido é trabalhador, funcionalmente integrado e supra-ordenado (...), auferindo um salário compatível com esse estatuto profissional» implicam que a pena aplicada, «por severidade, ofende o artigo 72.º do Código Penal que em sua opinião não permitiria uma pena de medida superior a 4 anos de prisão.
Em provimento parcial do recurso, aquele tribunal superior, negando existir o alegado vício da matéria de facto, confirmou a condenação do arguido pelo crime do artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal, mas reduziu a pena a 5 anos de prisão.
Ainda inconformado, recorre agora o condenado ao Supremo Tribunal de Justiça, resumindo assim conclusivamente o âmbito da sua discordância com a decisão recorrida [transcrição]:
1. A medida da pena determinada pelo Tribunal da Relação do Porto, ofende, por severidade, o disposto no artigo 72.º do Código Penal.
2. Por isto, deve o recorrente ser condenado numa pena de prisão por 3 anos, suspendendo-se a sua execução por um período de 5 anos, sendo que ao recorrente, neste período, seriam impostas as obrigações que V. Ex.as entendessem por adequadas ao caso em apreço, bem como o tribunal determinaria a sujeição do arguido a tratamento médico ou a cura em instituição psiquiátrica adequada, para o que desde já tem o consentimento do arguido.
Sem prescindir, e no caso de V.Ex.as assim o não entenderem, deverão
3. E na sequência do douto parecer do Sr. Procurador da República junto do Tribunal da Relação do Porto, condenar o recorrente numa pena que não deverá ultrapassar os 4 anos de prisão.
Em resposta, o mesmo MP junto do tribunal ora recorrido evoluiu para uma «reponderação sobre as consequências jurídicas dos factos em apreço», sugerindo que «uma expressão benevolente da justiça do caso», poderia apontar para a redução da pena e sua suspensão por prazo dilatado, nomeadamente por cinco anos, ainda que sob a imposição de deveres, rectius o de contribuição monetária para pagamento de eventual apoio psicológico de que o ofendido careça (...)».
Subidos os autos, promoveu o Ex.mo Procurador-Geral adjunto que se designasse data para julgamento.
A questão a decidir reside tão só na determinação da medida concreta da pena e, triunfando a pretensão de a ver reduzida a limite legalmente compatível, a possibilidade de aplicação ao caso de pena substitutiva - pena suspensa.
2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.
Vejamos, antes de mais, os factos dados como provados pelas instâncias.
1.º O RMFT nasceu no dia 27-02-85.
2.º O arguido é tio do R, um dos companheiros da escola do ofendido.
3.º Desde os tempos da escola primária que o RF conhece o arguido, por ele frequentar a casa do R, de quem é vizinho.

4.º O arguido, aproveitando as relações de confiança que estabelecia com os amigos do sobrinho R, convidava-os para ver filmes pornográficos, na sua residência.

5.º Neste contexto, no período compreendido entre 1995 e meados de 1998, em datas não concretamente apuradas, o arguido convidou o RF, por várias vezes, para ver os aludidos filmes em sua casa.

6.º Por vezes o R ia sozinho, tendo ido algumas vezes com o H e o T.

7.º Em data indeterminada, mas certamente no ano de 1997 ou 1998, num dia ao fim da tarde, depois de entrar na casa do arguido, este fechou a porta da entrada à chave e, aproveitando-se de se encontrarem sozinhos e da inexperiência do menor, mandou que tirasse as calças, após o que lhe introduziu o pénis erecto no ânus do ofendido, RM, friccionando-o com movimentos de vai-vem.

8.º Como o menor, RM se recusasse, o arguido ameaçou-o que o matava se o não fizesse.

9.º Atemorizado e envergonhado o menor, RM nunca disse nada a ninguém.

10.º O arguido agiu livre e conscientemente, com o propósito conseguido de se satisfazer sexualmente, à custa do sofrimento do menor, RM.

11.º Não ignorava o arguido a idade do mesmo a quem apesar da sua oposição lhe causou muitas dores, vergonha e medo de ser descoberto, tão só para satisfazer a sua lascívia.

12.º Assim como não desconhecia que o seu comportamento era censurável e punido por lei.

13.º O arguido demonstra ter capacidades de se situar no âmbito normativo não muito diferenciadas. Na escala ascensional: normativo concreto (estrato das aprendizagens de costumes, fruto da educação e da experiência), normativo jurídico (o saber acerca das leis) e normativo ético (plano do elaborar de categorias ideais, da dialéctica Bem/Mal), pode afirmar-se que se move bem no plano do concreto, quanto baste no jurídico, não mostrando capacidade para elaboração ética. Isto é, o arguido tem o conceito do que é proibido mas não tem capacidade para em termos conceptuais e em abstracto distinguir o bem do mal.

14.º O arguido a nível da sua personalidade demonstra os seguintes traços estruturais: global imaturidade impulsivo/afectiva, hipersensibilidade emocional, dotação intelectiva fraca (ainda dentro de variação normal). Neste aspecto, o arguido tem um rendimento intelectivo abaixo da normalidade, que se situa no grau 100, sendo que o arguido tem um QI entre o 75 e 85. Demonstra dificuldade de socialização.

15.º Face a situações novas, tendo presente a sua menor capacidade intelectiva, o arguido reage com uma não reacção, isto é, desiste. Por outras palavras, o arguido perante uma situação de rotina ou mecanizada, não demonstra qualquer dificuldade, no entanto, se o arguido for confrontado com a necessidade de conceptualização, a sua reacção é quase nula.

16.º O arguido teve uma infância marcada por situações de afecto e de violência, afecto perante a figura maternal, quase protectora, e de violência perante a figura paternal, o qual aliada ao seu fraco desenvolvimento intelectual, lhe provocaram instabilidade. O seu ambiente conjugal actual é marcado pela violência, designadamente, em relação à sua actual mulher. A figura maternal, muito protectora, ainda hoje se mantém muito forte junto do arguido.

17.º O arguido iniciou o seu percurso laboral aos 15 anos de idade, exercendo actualmente as funções de chefe de secção na Serralharia Leixões, auferindo mensalmente a quantia de € 500, a sua mulher trabalha, auferindo cerca de € 100, tem uma filha de 19 meses de idade e tem como habilitações literárias o 1.º ano do ciclo preparatório, antigo regime.

18.º O arguido é primário.

Importa ainda, para esclarecimento completo do acervo fáctico com que importa lidar, dar conta da solução dada pelo tribunal recorrido à invocada contradição factual que o recorrente invocava:

«Em face dos factos provados o tribunal teve por preenchido pela conduta do recorrente o crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal.

Os factos provados relativos ao modo de execução do crime comportam uma, pelo menos aparente, contradição que releva no aspecto da correcção da qualificação jurídica dos factos a que o tribunal procedeu.

Com efeito, enquanto nos factos descritos sob o n.º 7.º se descreve um modo de execução do crime que indubitavelmente situa a actuação do recorrente no âmbito dos crimes contra a autodeterminação sexual, o facto descrito sob o n.º 8.º aparenta oposição àqueles, conformando uma conduta típica de coacção da vítima enquadrável no artigo 164.º do Código Penal, a reclamar a integração dos factos nesse tipo de ilícito com a agravação do n.º 4 do artigo 177.º do mesmo diploma.

Todavia, a análise do acórdão, na sua globalidade, e sem prejuízo da evidente falta de cuidado e rigor posta na enunciação da matéria de facto provada, permite ultrapassar o que se apresenta como uma incoerência quanto ao modo de execução do crime a suscitar perplexidade quanto à qualificação jurídica dos factos.

Por um lado, o acto de coacção descrito no ponto 8.º não surge imediatamente dirigido à prática do coito anal, não permitindo estabelecer entre ele e o acto sexual uma relação meio/fim.

Por outro lado, o modo de execução do crime aparece esgotantemente descrito no ponto 7.º e o ponto 8.º, seguindo-o, já não se ligará à conduta típica mas, antes, ao que se vem a afirmar a seguir. Ou seja, a ameaça de morte não aparece ligada à execução do crime (realizada com abuso da inexperiência do menor) mas antes à imposição de silêncio (1). Neste ponto, releva a motivação da decisão de facto na qual se refere que o menor afirmou simplesmente «que o arguido lhe tirou as calças e lhe foi ao rabo» e que «o arguido lhe disse que se contasse a alguém o matava».

Neste entendimento, ultrapassamos a aparente contradição que se verifica entre os pontos 7.º e 8.º da matéria de facto e afirmamos a correcção da qualificação jurídica da conduta do recorrente a que se procedeu no acórdão».

Com este aclaramento da matéria de facto, onde avulta, pois, a circunstância de a ameaça de morte haver sido dirigida à imposição de silêncio ao ofendido e não à imposição do acto sexual em causa, há então que prosseguir.

Não sem antes se alinharem os factos dados como não provados que a Relação omitiu mas que aqui se entende deverem ser enunciados, quanto mais não seja para aquilatar do necessário esgotamento do thema probandum.

Assim são factos não provados os seguintes:

1.º - Nessas ocasiões, referidas nos pontos 5.º e 6.º dos factos dados como provados, depois de entrar na casa do arguido, este fechava a porta da entrada à chave e, aproveitando-se de se encontrarem sozinhos e da inexperiência do menor, mandava que tirasse as calças, após o que introduzia o pénis erecto no ânus do ofendido, friccionando-o com movimentos de vai-vem.

2.º - Como o menor se recusasse, o arguido ameaçava que o matava se o não fizesse.

3.º - Enquanto isso, não obstante a recusa do menor, o arguido não se coibiu de repetir o acto descrito em 7.º dos factos provados e em 1.º dos factos dados como não provados, umas cinco ou seis vezes até ejacular.

4.º- Após, repetia os mesmos actos com o H e com o T, ou com os meninos que estivessem no local.

5.º - Depois de terminar dizia aos menores para não contarem a ninguém, e que, caso o fizessem, matá-los-ia.

6.º - Atemorizados e envergonhados, os menores nunca disseram nada a ninguém.

7.º - Esta relacionamento manteve-se pelo menos até finais de 1998, altura em que o R se zangou com o H e contou à mãe deste.

8.º - Confrontado com os factos denunciados pela mãe do H, o R foi inquirido como testemunha no processo n.º 3498/98, vindo a confirmar serem verdadeiros.

Neste quadro de facto, devidamente aclarado, não se vislumbram vícios que o invalidem, nomeadamente os referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pelo que o temos como definitivamente adquirido.

Assim sendo, há que enfrentar a sumariada questão de direito.

Depois de ter afastado a pretensão de aqui ter lugar qualquer hipótese de imputabilidade diminuída, e com o qual o recorrente o confrontara, o tribunal recorrido discorreu assim no que tange à medida da pena:

«(...) Valorada em concreto a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, a culpa funciona como limite máximo da pena, dentro da moldura assim encontrada, que as considerações de prevenção geral, quer positiva ou de integração, quer negativa ou de intimidação, não podem ultrapassar.

Por último, devem actuar considerações de prevenção especial, de socialização ou de suficiente advertência.

Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.

No caso, os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada, pela frequência com que estão a ser conhecidas violações do bem jurídico em causa e pelos «sentimentos» que essas violações causam na comunidade, reclamam uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena, no seu quantum, responda às necessidades de tutela do bem jurídico, assegurando a manutenção, apesar da violação da norma ocorrida, da confiança comunitária na prevalência do direito.

À culpa do recorrente deve assinalar-se uma função de limite à medida da pena; a aplicação da pena não pode ter lugar numa medida superior à suposta pela culpa, fundada num juízo autónomo de censura ético-jurídica.

O que se censura em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto - no facto que é expressão da personalidade - uma atitude de contrariedade ou de indiferença (no tipo-de-culpa doloso) ou de descuido ou leviandade (no tipo-de-culpa negligente) perante a violação do bem jurídico protegido. O agente responde, na base desta atitude interior, pelas qualidades jurídico-penalmente desvaliosas da sua personalidade que se exprimem no facto e o fundamentam (2).

O recorrente expressou uma atitude contrária ao direito no plano de um bem jurídico que não requer especiais capacidades de elaboração ética porque se situa, com fortíssima coloração ética e, até, moral, ao nível das aprendizagens básicas decorrentes da educação e da experiência de vida. Não se mostra, por isso, procedente, toda a linha argumentativa do recorrente no sentido da diminuição - que quer acentuada -, da culpa assente na falta de capacidade para a elaboração de categorias ideais na dialéctica Bem/Mal e no rendimento intelectivo médio-baixo.

O recorrente, não obstante demonstrar, ao longo da vida, capacidades para cumprir as exigências que se lhe depararam de integração social, a elas respondendo adequadamente (escolaridade, integração no mundo do trabalho, casamento, paternidade), é portador de traços estruturais de personalidade e de uma experiência de vida susceptíveis de relevar, no caso, ao nível do juízo de censura ético-jurídica.

Com efeito, a imaturidade impulsivo/afectiva aliada a uma infância marcada pela violência paterna, é de molde a criar tensões favoráveis à expressão de violência, que se evidencia no relacionamento conjugal, e de que o crime em causa é também, afinal, expressão.

Só neste limitado e estrito âmbito é que a personalidade do recorrente poderá ser considerada para efeitos de uma ligeira atenuação do juízo de censura.

Não se detectam particulares exigências ao nível da prevenção especial. Ao recorrente não são conhecidos antecedentes (ou, o que leva ao mesmo, não foram dados por provados) e os traços da sua personalidade não comportam por necessidade desvios no plano sexual, designadamente, dimensão pedófila.

O dolo directo e o grau de ilicitude contêm-se na média comum ao tipo-de-ilícito.

Ao contrário do que se faz no acórdão, no momento da determinação da medida concreta da pena, não podem ser consideradas quaisquer consequências do crime que não foram dadas por provadas (influência do crime na concreta alteração do desenvolvimento da personalidade do RM).

Tudo ponderado, temos por justa e adequada, no caso, a pena de 5 anos de prisão, a qual, satisfazendo as exigências de prevenção, não ultrapassa a medida da culpa.»

É do acerto desta conclusão que importa conhecer.

A aplicação de qualquer pena tem em vista a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade - art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal - sendo certo que o segundo objectivo é secundário em relação ao primeiro e só será atingível na medida do possível.

O bem jurídico tutelado com a incriminação de abuso sexual de crianças - art.º 172.º do Código Penal - visa, nomeadamente, "proteger a autodeterminação sexual, mas sob uma forma muito particular: não face a condutas que representam a extorsão de contactos sexuais de forma coactiva ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade. A lei presume (...) que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor", (3) sendo de salientar que "a plasticidade do instinto sexual faz com que o livre exercício da sexualidade, [mormente nos primeiros estádios da vida], revista uma importância fundamental para o desenvolvimento da personalidade individual, justificando assim a sua especificidade no seio dos crimes contra a liberdade em geral", (4) e que «os tipos de experiências sexuais que uma pessoa tem, especialmente durante a adolescência, são importantes na direcção ou reforço do fluxo da sua preferência sexual» (5), "sendo por isso importante que nesta fase da formação da personalidade se procure de sobremaneira um desenvolvimento adequado da sexualidade, no sentido de proteger a liberdade do menor no futuro, para que decida, em liberdade, o seu comportamento sexual", (6) ou, ainda, que "a especificidade destes crimes reside como que numa obrigação de castidade e virgindade quando estejam em causa menores, seja de que sexo forem". (7)
Tendo em conta, nomeadamente, o disposto no citado artigo 40.º n.º 1, do Código Penal, na determinação da medida da pena há um limite mínimo que nenhuma consideração de socialização pode ultrapassar: a defesa do ordenamento jurídico.
"Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para que se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais." (8)-(9)-(10)
Aqui chegados, a resposta satisfatória à questão que se nos coloca importa, assim, a resposta a esta pergunta: no contexto social em que nos inserimos, os sentimentos de confiança e segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais, bastar-se-ão, no caso, com uma pena igual à proposta pelo recorrente - 3 anos de prisão - ou seja, o mínimo previsto numa moldura abstracta de 3 a 10 anos, e, nesse caso, suspensa na sua execução? Dito de outro modo: uma pena de 3 anos de prisão satisfaria in casu o objectivo de protecção do específico bem jurídico, tendo em conta que ela representa a limiar mínimo da moldura abstracta?
A questão tem uma resposta afoitamente negativa.
Quando, como hoje, se assiste com uma frequência preocupante ao autêntico escárnio dos mais sagrados sentimentos de crianças indefesas, tantas vezes transformadas sem escrúpulo em meros instrumentos de satisfação libidinosa, não raro por actuação perversa e cobarde, até, dos próprios progenitores, ou de quem, acobertado pelo recato do lar, e em regra, por isso, portador da sua inocente confiança total, não hesita em conspurcar esse sacrário de inocência no seu próprio chafurdo sexual, não pode o sistema jurídico-penal dar outra resposta que não seja um inequívoco sinal de segurança, enfim, proporcionando porto de abrigo a quem dele tão veementemente mostra necessitar: as crianças.
No caso, portanto, essa resposta não pode ficar-se pelo limiar mínimo de 3 anos, como reclama o recorrente. A isso se opõem inequivocamente os falados sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.
Mas se a pena não pode ficar-se pelos cobiçados 3 anos de duração, então, atingimos logo, pela negativa, outra vertente das pretensões do recorrente: a almejada pena suspensa.
Com efeito, constituindo pressuposto formal inultrapassável da aplicação daquela medida de substituição, que a pena de prisão aplicada o seja em medida não superior a 3 anos - art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal - nada mais é necessário acrescentar para concluir que também esta pretensão soçobra.
Não obstante o exposto, sobeja no âmbito do recurso a questão de saber se a pena aplicada obedece, no seu concreto quantum, aos critérios dosimétricos do artigo 71.º do Código Penal que o recorrente tem por violado, embora, certamente por lapso, faça alusão ao artigo 72.º
Neste aspecto, impetra o recorrente uma pena de 4 anos de prisão, baseado na alegação subsidiária de que «a censura jurídico-penal em termos de culpa, carece de maior adequação, nomeadamente numa atenuação da pena aplicada e fixada agora pelo Tribunal da Relação do Porto».
Mas o Supremo Tribunal de Justiça tem nesse concreto ponto uma intervenção assaz limitada, uma vez que, como é sabido, e aqui vem sendo exaustivamente repetido, os recursos são meios de repor a legalidade e não, processos de refinamento das decisões judiciais, não sendo por isso, instrumento adequado a alcançar «melhor justiça». Neste sentido se vem aqui entendendo (11) que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada" (12).
Ou, dizendo por outras palavras, "como remédios jurídicos, os recursos (salvo o caso do recurso de revisão que tem autonomia própria) não podem ser utilizados com o único objectivo de uma "melhor justiça". (...) A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação do direito material". (13)
No caso, porém, como resulta do extracto supra transcrito do acórdão recorrido, se é certo que não pode dizer-se que não tenham sido tidos em conta os critérios dosimétricos do citado dispositivo legal, não é menos verdade que pode concluir-se que não terá sido suficientemente valorada uma circunstância que a lei expressamente enumera no seu elenco exemplificativo: a conduta anterior e posterior ao facto, nomeadamente a ausência de antecedentes criminais.
Com efeito, se é certo que não ter antecedentes criminais é afinal o dever de todo o cidadão, e por isso essa ausência não é, verdadeiramente, algo que, em geral, deva merecer qualquer tipo de «prémio», o certo é que ela assume algum relevo atenuativo quando enquadrada no conjunto da conduta do arguido, sobretudo quando tratando-se afinal da primeira «escorregadela», ela se verifica já numa vivência de um homem de meia idade, como é o caso do arguido ora recorrente, nascido em 20/5/1958, portanto perto de perfazer os 45 anos.
Essa circunstância, assim enquadrada, leva a que se considere que para uma primeira condenação, para mais em prisão efectiva, se tenha por desnecessária, para os fins visados com a sua aplicação, uma duração tão acentuada como a decidida no acórdão recorrido, de resto esmeradamente fundamentado e desenvolvido.

E por isso, se tem por mais ajustada ao caso a pena de 4 anos de prisão tal como, em primeira mão, defendeu o MP junto da Relação do Porto.

Procede assim, nesta estrita medida, a impugnação do recorrente.

3. Termos em que, concedendo parcial provimento ao recurso, revogam em parte o acórdão recorrido e reduzem a 4 anos de prisão a pena aplicada ao arguido, pena em que agora fica condenado.

Mas negando-o no mais, confirmam a decisão recorrida.

Pelo decaimento parcial o recorrente vai condenado nas custas, com taxa de justiça que se fixa em 5 unidade de conta.

Honorários de tabela pela defensora oficiosa.

Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Maio 2003

Pereira Madeira

Simas Santos

Santos Carvalho

Costa Mortágua

___________________
(1) Em negrito agora.
(2) Figueiredo Dias, «Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime» cit., p. 14.
(3) Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial Tomo I, págs. 541.
(4) Cfr. Karl Prelhaz Natscheradetz O Direito Penal Sexual, págs. 158
(5) Weinberg, Williams e Prior, citados por José Mouraz Lopes, Os Crimes Contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal, Coimbra Editora, 1998, 2.ª edição, págs. 81.
(6) José Mouraz Lopes, ibidem.
(7) Figueiredo Dias, in Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, págs. 261
(8) Figueiredo Dias, Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime § 330
(9) Se nalgum caso faz sentido falar em protecção de bens jurídicos - e faz sempre - art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal - então, quando está em causa, como aqui sucede, o livre desenvolvimento sexual de indefesas crianças de tenra idade, esse objectivo de protecção atingirá os píncaros do que é prioritário.
(10) Em itálico agora
(11) Cfr. por todos, Ac. STJ de 9/11/2000, in Sumários STJ disponível em http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html, e muitos outros que se lhe seguiram.
(12) Cfr. a solução que, para o mesmo problema, aponta Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 197, § 255
(13) Cfr. Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387.