Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | ABRANTES GERALDES | ||
Descritores: | BEM COMUM DO CASAL PATRIMÓNIO COLECTIVO PATRIMÓNIO DE MÃO COMUM INDIVISIBILIDADE PROCURAÇÃO CONJUNTA | ||
Data do Acordão: | 03/28/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / REPRESENTAÇÃO / REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA – DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO ÀS PESSOAS E AOS BENS DOS CÔNJUGES. DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS. | ||
Doutrina: | - Antunes Varela, Direito da Família, 5ª ed., p. 455 a 457; - Heinrich Hörster, A Parte Geral do CC Português, p. 196; - Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., p. 350; - Pedro Leitão P. de Vasconcelos, A Autorização, p. 389; - Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 4ª ed., p 507. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 269.º E 1689.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 631.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 11-10-05, PROCESSO N.º 05B2720, IN WWW.DGSI.PT; - ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 12/15, IN DR, 13-10-15. | ||
Sumário : |
1. Interposta ação declarativa com vista à declaração da ineficácia de um contrato de compra e venda realizado pelo procurador com abuso dos poderes de representação, nos termos do art. 269º do CC, o procurador demandado tem legitimidade para interpor recurso da decisão que reconheceu a ineficácia, atento o disposto no art. 631º, nº 1, do CPC, uma vez que tem a qualidade de parte principal. 2. Numa ação em que se discute a ineficácia da alienação de um imóvel em resultado do abuso de representação por parte do procurador de ambos os cônjuges, nos termos do art. 269º do CC, deve assumir-se, no recurso de revista, onde a questão foi pela primeira vez suscitada, que o imóvel em causa era bem comum do casal, perante a prova documental de que o casamento foi celebrado no regime de comunhão de adquiridos. 3. Os bens comuns do casal integram um património coletivo ou um património de mão comum que se mantém indiviso enquanto persistir o casamento (art. 1689º do CC), não podendo nenhum dos cônjuges, por si ou através de procurador, dispor de qualquer quota ideal relativa aos bens comuns ou a algum dos bens da comunhão. 4. Uma procuração subscrita por ambos os cônjuges conferindo ao procurador poderes para, além do mais, proceder à venda de imóveis comuns, constitui um instrumento de representação do “casal” assim formado, não podendo ser utilizada de forma a conduzir à alienação de alguma quota ideal sobre bens especificados 5. Reconhecida, relativamente a um dos cônjuges, a ineficácia da venda de um imóvel comum, por abuso dos poderes de representação, nos termos do art. 269º do CC, tal ineficácia afeta o contrato na sua globalidade, não sendo conciliável a ineficácia relativamente a um dos cônjuges com a produção de efeitos relativamente ao outro, por tal redundar na verificação de uma situação de contitularidade com um terceiro relativamente ao património comum do casal. A.G. | ||
Decisão Texto Integral: |
I - AA intentou a presenta ação contra BB e CC pedindo que se reconheça que é a única herdeira de seu defunto marido, DD, e que, com fundamento em abuso de poderes de representação, se declare a ineficácia da venda, com reserva de usufruto, de um prédio misto, que era bem comum do casal, efetuada pelo 1° R., ao abrigo de uma procuração subscrita pela A. e pelo seu falecido marido. Em termos subsidiários, pediu que se declarasse a nulidade da mesma venda com fundamento em simulação ou por abuso de direito. Comum a ambos os pedidos é ainda o de cancelamento do correspondente registo de aquisição a favor do 2º R. e eventuais registos subsequentes. Segundo a A., ela e o seu falecido marido nunca quiseram subscrever a procuração para a venda de imóveis nem, em particular, autorizaram o 1° R. a efetuar a venda daquele concreto imóvel ao seu filho, agindo ambos os RR. com conhecimento desses factos. O 1° R. contestou e invocou a inexistência de qualquer vício de vontade dos subscritores da procuração e alegou ter atuado de acordo com os poderes de representação que lhe foram conferidos. O 2º R. foi citado por éditos e, em sua representação, o Ministério Público impugnou os factos articulados pela A. Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os RR. dos pedidos. A A. apelou a A. e a Relação, depois de modificar a decisão da matéria de facto, revogou a sentença recorrida e declarou a ineficácia da compra e venda e ordenou o cancelamento dos registos subsequentes. O 1º R. interpôs recurso de revista. Conformando-se com a declaração de ineficácia da venda do imóvel relativamente à A., impugnou o acórdão da Relação na parte em que nele se considerou que a referida venda também era ineficaz em relação ao falecido marido da A. Alegou para o efeito, em síntese, que: a) Para efeitos de aplicação dos arts. 1682º-A, nº 1 e 1687º do CC, não está demonstrado o regime de bens do casamento que existia; b) O art. 1687º, nº 1, do CC, comina a falta de consentimento conjugal com a anulabilidade que não foi arguida pela A.; c) Em relação ao falecido marido da A., deve considerar-se eficaz a venda que foi realizada. O Ministério Público, em representação do 2ª R., deu a sua adesão ao recurso de revista. Foram apresentadas contra-alegações, suscitando a A. a ilegitimidade do 1º R. para a interposição do recurso de revista, uma vez que o acórdão recorrido não importou para si qualquer prejuízo, já que agiu como representante do seu falecido marido e não no interesse próprio. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - Questões prévias: 1. Quanto à alegada ilegitimidade do 1º R. para interpor recurso de revista: Considera a A., ora recorrida, que o acórdão da Relação não se projetou negativamente na esfera jurídica do 1º R. recorrente, faltando-lhe, assim, legitimidade para a interposição de recurso. Alega que o 1º R. interveio no contrato de compra e venda como procurador, de modo que a ineficácia desse ato que foi declarada pela Relação apenas produz efeitos na esfera patrimonial do 2º R. adquirente e não na do 1º R. que no ato interveio na qualidade de procurador dos vendedores. Não colhe esta argumentação. É verdade que o resultado declarado no acórdão recorrido, a respeito da apreciação do pedido principal de declaração de ineficácia da compra e venda, não o afeta diretamente. Mas o 1º R., ainda que na sua qualidade de procurador, foi demandado como parte principal, qualidade em que foi confrontado com o acórdão recorrido no qual se decidiu que o contrato de compra e venda era ineficaz em relação a ambos os subscritores da procuração. Tendo a ação sido dirigida não apenas contra o 2º R., adquirente do imóvel, mas também contra o 1º R., a quem, aliás, foi reconhecida legitimidade passiva, a sua legitimidade recursória advém do simples facto de ter ficado vencido em face do teor do acórdão recorrido, nos termos do art. 631º, nº 1, do CPC. Por conseguinte, considera-se verificado o pressuposto da legitimidade ativa do 1º R. para a interposição do presente recurso de revista.
2. Quanto à prova do regime de bens do casamento: 2.1. No campo da matéria de facto a considerar para a resolução do litígio, alegou o 1º R. que não está demonstrado o regime de bens do casamento que unia a A. ao seu falecido marido DD. Tal objeção também não procede. Na verdade, embora não tenha sido junta aos autos qualquer certidão de casamento da A. e de DD, tal facto mostra-se documentalmente comprovado por via do averbamento à margem do assento da certidão que está junta a fls. 87 e 88, documento demonstrativo de que ambos casaram em 1971, numa altura em que o regime de bens supletivo era o de comunhão de adquiridos. Ao longo do processo nenhuma das partes questionou a natureza jurídica do bem, a qual estava conexionada com o regime de bens em vigor no casamento, questão que apenas surgiu nas alegações do presente recurso de revista. Acresce que a ação nem sequer foi sustentada na norma do art. 1682º-A, nº 1, al. a), do CC (anulabilidade da alienação de bem comum sem o consentimento do outro cônjuge), antes no abuso dos poderes de representação por parte de um terceiro, nos termos do art. 269º. Se tal não retira utilidade à questão do regime de bens que, aliás, é de conhecimento oficioso, os elementos que relevam dos autos permitem a este Supremo Tribunal de Justiça resolvê-la.
2.2. O casamento, assim como o regime de bens entre os cônjuges, constituem factos sujeitos a registo e, como tal, carecem, em regra, de prova documental, traduzida na junção da certidão de casamento (art. 364º do CC). Todavia, relativamente a estes factos, não deixa de ser legítima uma distinção consoante a natureza da ação em que são invocados. É sempre exigível a demonstração documental quando os factos sejam invocados em ações de estado, v.g. ações de investigação da paternidade, de adoção ou de divórcio. Já quando respeitem a ações cujo objeto seja exclusivamente patrimonial, será possível distinguir os casos em que tal facto é questionado pela contraparte – sendo a controvérsia resolvida mediante a junção de prova documental - dos demais em que nem sequer é questionado, ou seja, em que o litígio se desenvolve em torno de um eixo diverso, como o é o regime de bens em ações do género daquela de que emerge este recurso. São estas as razões que têm levado a jurisprudência a considerar demonstrado o casamento, independentemente da apresentação da respetiva certidão, em ações intentadas contra ambos os cônjuges com vista a obter a sua condenação solidária no pagamento de dívidas contraídas apenas por um deles, quando tal facto não é questionado. Assim se decidiu nos Acs. do STJ de 15-3-05, CJ, t. I, p. 132 e de 12-1-06, 05B3227, em www.dgsi.pt. A mesma solução foi assumida por este mesmo coletivo no recentíssimo Ac. do STJ de 7-3-19, 32063/15 (www.dgsi.pt), num caso em que apenas se discutia o despejo de um prédio que fora arrendado pela sua usufrutuária que entretanto faleceu, determinando a caducidade do contrato.
2.3. O caso concreto integra-se neste quadro, já que nenhum dos RR. questionou, quer o regime de bens quer a natureza de bem comum do imóvel a que os autos se reportam, questão que apenas foi suscitada pelo 1º R. neste recurso de revista. Para além de estar suficientemente demonstrado que o casamento foi celebrado numa altura em que já era supletivo o regime de comunhão de adquiridos, a indicação deste regime consta explicitamente da escritura de compra e venda (fls. 21) e também da procuração que na ocasião foi exibida (fls. 16). Por conseguinte, para efeitos de integração do caso, considerar-se-á não só que a A. foi casada com o falecido DD no regime de comunhão de adquiridos, como ainda que, por força desse regime de bens, o imóvel a que os autos se reportam era bem comum do casal.
III - Factos provados:
IV – Quanto ao mérito do recurso de revista: 1. Na presente ação a A., em nome próprio e simultaneamente na sua qualidade de herdeira universal do seu falecido marido, DD, formulou o pedido de declaração de ineficácia de um contrato de compra e venda de um prédio misto que constituía bem comum do casal celebrado pelo 1º R. com o 2º R., seu filho, por verificação de uma situação de abuso dos poderes de representação que lhe foram conferidos mediante uma procuração que foi subscrita por ambos os cônjuges. Tal ação foi julgada improcedente na 1ª instância, mas a Relação introduziu modificações na matéria de facto provada que a levaram a considerar provado que a A. nunca pretendeu realizar aquele contrato de compra e venda, sendo este ineficaz em relação à A. por verificação de abuso de representação, nos termos do art. 269º do CC. Além disso, concluiu ainda que a ineficácia também era extensiva à representação no mesmo ato, pelo referido procurador, do falecido marido da A., embora por via do preceituado no nº 4 do art. 1687º do CC, com base no pressuposto de que a venda incidiu sobre um bem imóvel que era comum. O 1º R. não questiona nesta revista a verificação da situação de abuso de representação relativamente à A. e a ineficácia em relação a esta, mas apenas a extensão da ineficácia a todo o contrato, mais concretamente ao segmento em que o 1º R. agiu em representação do falecido marido da A.
2. Os elementos de facto relevantes são os seguintes: - Em 22-6-2001, a A. e o falecido marido subscreveram uma procuração em que designavam como seu procurador o 1º R. DD, a qual englobava poderes para a venda de imóveis; - A causa próxima dessa procuração foi a representação de DD e da ora A. numa escritura de compra e venda de um apartamento sito na ... que ocorreu em 20-7-2001, pretendendo-se que, para além daquele ato, a procuração valesse para o que no futuro fosse preciso; - Em 6-5-2009 DD emitiu nova procuração em que designou seu procurador o 1º R., a qual já não envolvia a venda de imóveis, mas não foi revogada a procuração de 22-6-2001; - Em 13-5-2011, o 1º R., ao abrigo da primeira procuração de 22-6-2001, outorgou em representação de ambos os subscritores a escritura de compra e venda do prédio dos autos, sendo comprador o seu filho; - Esse imóvel era bem comum do casal composto pela A. e DD; - DD veio a falecer em 11-5-2012, no estado de casado com a A., sem filhos ou ascendentes, sendo a A. a sua única herdeira.
3. O objetivo imediato da procuração que a A. e o seu marido outorgaram conjuntamente em 22-6-2001 foi a realização da venda de um prédio do casal concretizada em 20-7-2001. Porém, tal procuração não foi revogada nem foi devolvida aos mandantes, mantendo-se na posse do 1º R. que, deste modo, em termos formais, continuou investido dos poderes de representação que aqueles lhe concederam por via de tal instrumento notarial. Como se assentou, está definitivamente estabelecido que, aquando da outorga da venda do imóvel dos autos, a representação formal do 1º R. não correspondia à vontade da A., o que era do conhecimento de ambos os intervenientes na escritura de compra e venda. As dificuldades emergem apenas do facto de relativamente ao falecido marido da A., DD, não se ter provado essa divergência entre a sua vontade e a atuação do 1º R., sendo de notar que o mesmo se manteve no prédio dos autos, até falecer, local onde recebeu cuidados prestados pela mulher do 1º R., enquanto a A. se ligou a uma sobrinha, com quem foi viver. Apesar do diferencial que se verificou nesse campo, a Relação concluiu que a ineficácia da representação relativamente à A., por via do referido art. 269º do CC, também se projetava na esfera jurídica do seu falecido marido, por via do disposto no nº 4 do art. 1687º do CC. Sendo correta a solução, a mesma não encontra, no entanto, acolhimento nessa disposição legal que regula os efeitos jurídicos decorrentes da alienação, por um dos cônjuges, de bens próprios do outro cônjuge, remetendo para o regime jurídico da venda de bens alheios (art. 892º do CC), sendo que no caso concreto está em causa um contrato de compra e venda que incidiu sobre um imóvel que era bem comum do casal. A solução é encontrada através de uma via diversa que atenda, quer à natureza indivisível da procuração quer à natureza indivisível do bem imóvel que integrava o acervo comum do casal.
4. A procuração que foi subscrita por ambos os cônjuges conferia poderes ao 1º R. para, além do mais, alienar bens imóveis, o que nos reconduz à alienação de bens imóveis integrados no património comum do casal cuja alienação, nos termos do art. 1682ºA, nº 1, al. a), do CC, exigia a intervenção de ambos os cônjuges (ou, com o mesmo efeito, a intervenção de procurador por ambos designado) ou a intervenção de apenas um deles com o consentimento do outro. Atenta a natureza e a finalidade de uma tal procuração, os poderes foram atribuídos ao 1º R. pelos subscritores, enquanto elementos que formavam um casal, não podendo ser subdivididos de modo a determinarem efeitos jurídicos diversos para cada um dos cônjuges. Ainda que esse “casal” e os respetivos bens comuns não constituíssem uma entidade autónoma, o regime de bens que vigorava no casamento e a natureza do bem imóvel que foi alienado permitem concluir que a procuração não poderia ser utilizada apenas no interesse de um dos cônjuges ou de cada cônjuge individualmente considerado, mas apenas no interesse conjunto de ambos, enquanto contitulares do património de afetação especial integrado pelos bens comuns do casal.
5. Explicitando melhor: É consensual que no casamento (seja no regime de comunhão geral, seja no regime supletivo de comunhão de adquiridos) os bens comuns do casal integram um património coletivo que pertence em bloco e globalmente a ambos os cônjuges (assim Ac. do STJ de 11-10-05, 05B2720, em www.dgsi.pt e ainda as considerações feitas na motivação do AUJ nº 12/15, DR, 13-10-15, em torno da interpretação do art. 1723º do CC). Como refere Mota Pinto, em Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., p. 350, “individualmente nenhum dos sujeitos tem direito a qualquer quota ou fração; o direito sobre a massa patrimonial em causa cabe ao grupo no seu conjunto. Daí que nenhum dos membros da coletividade titular do património coletivo possa alienar uma quota desse património ou requerer a divisão, enquanto não terminar a causa geradora do surgimento do património coletivo”. Vai no mesmo sentido Heinrich Hörster, em A Parte Geral do CC Português, p. 196, quando refere que o acervo comum do casal constitui uma realidade patrimonial que pertence em bloco, e só em bloco, a ambos os titulares. Estamos, na versão de Pereira Coelho e de Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 4ª ed., p 507, perante um género de propriedade coletiva, ou seja, perante um “património que pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como a compropriedade”. Em tal contexto jurídico-patrimonial, “os vários titulares do património coletivo são sujeitos de um único direito e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal. Não tem, pois, cada um deles algum direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão do património comum. Esta particular fisionomia do património coletivo radica no vínculo pessoal que liga entre si os membros da coletividade e que exige que o património subsista enquanto o vínculo perdurar”. No mesmo sentido recolhemos de Antunes Varela, Direito da Família, 5ª ed., p. 455, o seguinte: os bens comuns do casal formam um “património autónomo, sujeito a regime especial”, mantendo-se a comunhão “por imperativo da lei, enquanto persistir a sociedade conjugal a cuja sustentação económica os bens comuns se encontram adstritos”. Assim, nenhum dos cônjuges “pode alienar ou onerar bens determinados, nem parte especificada de qualquer dos bens comuns, nem dispor de qualquer quota ideal de participação no direito comum”. Trata-se enfim, de uma propriedade coletiva ou propriedade de mão comum (p. 456), cujos sujeitos “são ambos os cônjuges, sem que seja correto falar, enquanto persiste a comunhão, numa repartição de quotas entre eles”. Fazendo a distinção relativamente à compropriedade, conclui que os bens comuns do casal constituem um “património de afetação especial” em que “há um direito uno”, “uma comunhão una, indivisível, sem quotas” (p. 457). Neste contexto, considerando que o contrato incidiu sobre um bem comum do casal e que foi para representar o casal na sua venda que foi subscrita a procuração conjunta, a ineficácia que foi reconhecida quanto à representação voluntária da A., por via do abuso de representação, abarcou de igual modo a representação que no mesmo ato foi assumida pelo 1º R., procurador comum.
6. É verdade que, nos casos de alienação por parte de um dos cônjuges de um bem comum do casal (ou de um bem cuja alienação exija o consentimento de ambos), sem o consentimento do outro, a lei estabelece a anulabilidade do ato, nos termos do art. 1682º-A, nº 1, al. a), do CC. Por outro lado, o reconhecimento deste vício deve ser promovido pelo outro cônjuge num prazo limitado de 6 meses, nos termos do nº 2 do art. 1687º do CC, e não é de conhecimento oficioso. Tal significa que, na ausência de iniciativa do cônjuge interessado ou por via do decurso do prazo de caducidade, se convalida a alienação feita por um dos cônjuges que não tenha sido precedida do consentimento conjugal. Só que, ao invés do que pretende o recorrente, não é esta a realidade que emerge dos factos provados, nem a ação foi dirigida à verificação daquela anulabilidade do contrato de compra e venda. Afinal, não foi o falecido marido da A. que, à revelia desta, alienou um imóvel comum. A intervenção de um terceiro procurador agindo em representação de ambos os cônjuges modificou substancialmente a situação que se verificaria se acaso a venda do imóvel fosse feita diretamente por um dos cônjuges sem o consentimento do outro. Na prática, a situação com que nos defrontamos é equivalente a uma outra em que o falecido marido da A. tivesse intervindo diretamente na escritura de compra e venda, alienando a um terceiro uma quota ideal (por exemplo, o direito a metade) de um bem imóvel comum do casal. Com efeito, os bens que integram a massa patrimonial comum do casal mantêm-se imperativamente indivisos enquanto perdurarem as relações patrimoniais entre os cônjuges, nos termos do art. 1689º do CC, de modo que, enquanto persistir o casamento, nenhum dos cônjuges se pode arrogar a titularidade de qualquer direito sobre bens específicos que integram o património comum do casal. Por este motivo, na pendência do casamento, é vedado a qualquer dos cônjuges transferir para terceiro uma quota ideal sobre um bem que integra a comunhão. Como refere Pedro Leitão P. de Vasconcelos, A Autorização, p. 389, “a comunhão é um tipo de contitularidade qualitativa, por oposição à contitularidade típica que é quantitativa. Na comunhão, todos os contitulares – ou titulares em comunhão – são titulares de uma única posição jurídica que incide sobre a totalidade quantitativa do objeto dessa posição”, de tal modo que “não é possível quantificar a posição de cada titular – ela incide sobre a totalidade”. E, continuando, acrescenta que “a posição de cada contitular não é quantificável, pelo que não é possível proceder a uma especificação de um bem atribuindo uma parte real do mesmo a um contitular em comunhão por conta dessa quota, sem que isso importe a extinção da comunhão de mão comum. Mas mantendo-se a comunhão, não é possível como regra proceder à especificação do bem e atribuição de parte do mesmo” (p. 394). Diversamente do que acontece na compropriedade, nenhum dos cônjuges tem direito a qualquer quota ou fração sobre bens concretos, não podendo dispor de uma quota ideal sobre bens integrantes da comunhão. Formando os bens comuns do casal um tipo de propriedade coletiva, corresponde a uma situação de comunhão sem quotas, sendo os titulares do património coletivo são sujeitos de um único direito que não comporta divisão. Não pode nenhum dos cônjuges dispor do seu direito sobre os bens comuns ou requerer a divisão enquanto o vínculo perdurar, semelhante efeito não pode produzir-se por via da representação voluntária através de procurador. Ora, a mera avaliação do resultado pretendido pelo recorrente revela, por si, a falta de sustentação da sua pretensão, na medida em que o efeito pretendido, ou seja, a entrada do 2º R. na comunhão de um bem imóvel que, à data da celebração da compra e venda, integrava o património comum do casal, colidiria com a natureza una e indivisível dessa massa patrimonial e com a inviabilidade de se operar uma segmentação de direitos relativamente ao bem imóvel alienado.
IV – Face ao exposto, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido. Custas da revista a cargo dos RR. Notifique. Lisboa, 28-3-19
Abrantes Geraldes (Relator)
Tomé Gomes
Maria da Graça Trigo |