Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
199-D/1982.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: INVENTÁRIO
EMENDA À PARTILHA
LEGATÁRIO
REPRESENTAÇÃO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 02/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 48
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário : 1 . À partida, no plano substantivo, os bens legados estão fora da partilha.
2 . Mas o legatário é “interessado” no inventário, ainda que não “interessado directo na partilha”.
3 . E os bens legados, com o seu regime próprio, devem constar do acervo dos bens relacionados.
4 . Neles podendo licitar qualquer interessado, se o legatário se não opuser.
5 . Abre-se, assim, caminho a que, derrogando-se a vontade de legar do testador, caiba o bem legado a pessoa diferente do legatário.
6 . Tem direito a obter emenda da partilha o legatário cujo bem legado foi relacionado, descrito e havido na conferência de interessados como bem integrante da herança, se não deu o seu acordo a tal integração na conferência de interessados.
7 . A dúvida sobre se a procuração que outorgou a quem o representou na conferência continha poderes para tal acordo pode ser dissipada com recurso a prova livre.
8 . A falta de poderes, a existir, só releva se os demais interessados a conheciam ou deviam conhecer.
9 . Estando em causa o êxito ou o malogro da acção, são de subsumir no n.º2 e não no n.º3 do artigo 508.º do Código de Processo Civil - com consequente vinculação - os poderes do juiz ali referidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I –
Na comarca do Montijo, AA instaurou a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra:
BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH.
Alegou, em síntese, que:
O seu avô, II, fez testamento, legando-lhe o prédio que identifica;
Daquele são herdeiros legitimários os filhos DD e FF.
O aludido legado não ofende a legítima.
Na conferência de interessados do dito inventário, tal prédio foi adjudicado a estes réus que o registaram a favor deles;
Em desrespeito pela deixa testamentária;
O que consubstancia um erro de partilha;
A qual possibilita a respectiva emenda, nos termos do artigo 1386.º do Código Civil;
Só em data posterior à sentença homologatória teve conhecimento deste erro da partilha;
De qualquer modo, o acto de licitação e adjudicação é ineficaz, por violação do artigo 1363.º do mesmo código;
Na dita conferência de interessados, foi representado por JJ, a quem não concedera poderes para renunciar a qualquer direito de propriedade;
Sendo, por abuso de representação, o negócio ineficaz relativamente a ele.
Pediu, em conformidade, que se:
Proceda à emenda da partilha;
Ordene o cancelamento do registo a favor dos referidos réus;
Reconheça o direito dos legatários sobre o referido prédio urbano.
Contestaram os réus.
KK e marido, para além de defenderem a ineptidão da p.i., por contradição entre a causa de pedir e o pedido, invocaram a excepção de ilegitimidade, impugnaram a maioria dos factos carreados pelo autor, afirmaram que o legado ofendia a legítima e negaram que o procurador do autor tenha agido com abuso dos poderes;
DD e EE invocaram a ilegitimidade, a caducidade do direito que o autor pretende fazer valer, impugnaram também a maior parte dos factos carreados por ele e negaram, do mesmo modo, que o procurador tenha agido com abuso de poderes.
Replicou AA, negando a verificação das apontadas excepções e, quanto à representação, acrescentando que o representante não tinha poderes para efectuar qualquer transacção.
Requereu, na circunstância, o chamamento de HH, a qual, admitida, veio contestar a folhas 152 e seguintes. Invocou a caducidade e, impugnando os factos constantes dos artigos 10.º e seguintes da p.i., defendeu, mesmo improcedendo tal excepção, o malogro da acção.
A esta replicou ainda o autor, mantendo, no essencial, o que dissera na anterior réplica.
II –
No despacho saneador, o Sr. Juiz:
Negou a ineptidão da p.i.;
Concluiu pela legitimidade das partes;
Reconheceu não existirem factos firmados que permitam o conhecimento da excepção da caducidade;
E conheceu de mérito, julgando a acção manifestamente improcedente.
Entendeu que:
Na conferência de interessados, os interessados podem acordar como quiserem, inclusive que os legados deixem de o ser;
Não são alegados factos donde se possa concluir pela existência de erro que tivesse podido viciar a vontade das partes;
O autor concedeu poderes ao representante para agir como agiu;
Em qualquer caso, não é alegado conhecimento pelos demais interessados, do invocado abuso de poderes.
III –
Apelou o autor, mas sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão.
No essencial, reiterou a argumentação da primeira instância.
IV -
Ainda inconformado, pede revista.
Conclui as alegações do seguinte modo:
1 . O de cujus deixou, por conta da quota disponível, aos seus netos o prédio urbano sito no Largo …, em Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n° …, freguesia de Alcochete, e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 1311, sendo que podia dispor validamente daquele bem.
2 . O recorrido DD - que exerceu funções de cabeça-de-casal - levou aquele bem à relação de bens não tendo referido que o mesmo constituía um legado para os netos do de cujus.
3 . O imóvel supra descrito foi relacionado como se tratasse de um bem a partilhar entre os herdeiros legítimos, pelo que à partilha está subjacente um erro de direito.
4 . Tal erro é susceptível de viciar a vontade das partes uma vez que as mesmas estavam convictas de que determinado bem era partilhável, quando o mesmo constituía um legado.
5 . O erro de direito é fundamento do pedido de emenda da partilha.
6 . O procurador do recorrente não tinha poderes para renunciar ao direito de propriedade do bem legado.
7. A transmissão da propriedade de um legado opera com a abertura da sucessão do de cujus, não estando dependente da formalização da partilha, pois ainda antes deste momento o legatário conhece o objecto ou o valor com o qual foi contemplado pelo testador.
8. Outro entendimento não poderá ser admissível pois o legatário apesar de poder intervir no âmbito do processo de inventário como interessado não dispõe de legitimidade para o requerer, como decorre do disposto no art. 1327.° n.º1 do Cpc.
9. O recorrente nunca renunciou ao legado.
10. Tendo o direito de propriedade do imóvel legado sido transmitido no momento da abertura de sucessão do de cuius, como ficou amplamente demonstrado, é forçoso concluir que ao actuar como actuou o procurador, JJ, renunciou inequivocamente ao direito de propriedade sobre o legado.
11. Da procuração de fls. 295-296 dos autos principais e junta sob o n° 3 com a petição inicial, decorre inequivocamente que o ora recorrente não conferiu poderes ao procurador para renunciar ao direito de propriedade do legado; mas apenas para intervir no processo de inventário, na qualidade de interessado, uma vez que a sua presença é obrigatória em sede de conferência de interessados.
12. O procurador agiu para além dos limites da procuração que lhe foi outorgada, pelo que o negócio celebrado é ineficaz, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 490º.
13 . Caso assim não se entenda - o que não se concede, mas se pondera por mero dever de patrocínio - sempre se dirá que o procurador agiu em abuso de representação, por um lado, porque actuou em claro afastamento objectivo das directrizes impostas pelo representado e, por outro lado, porque a sua actuação não serviu os seus interesses.
14 . Ao afastar-se das directrizes que lhe foram dadas o procurador incorreu numa situação de abuso de representação, pelo que o negócio é ineficaz, nos termos do disposto nos artigos 268° e 269°, ambos do CC.
15 . Considerando o Tribunal que o ora recorrente não alegou qualquer facto "demonstrativo de erro e por parte dos réus de que conheciam ou deviam conhecer o abuso de representação susceptível de conduzir à emenda da partilha" devia ter convidado aquele a suprir as alegadas deficiências da petição inicial, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 265º, 265-A, 266º e 508º, todos do Código de Processo Civil.
16 . O convite ao aperfeiçoamento dos articulados destina-se, por um lado, a suprir as irregularidades, designadamente, quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa (n.º 2 do art. 508° do CPC); e, por outro lado, a suprir as insuficiências ou imprecisões da causa de pedir na exposição ou concretização da matéria de facto (n° 3 do art. 508º do CPC).
17 . A sentença recorrida viola os artigos 265°, 265° A, 266°, 508°, 1386° e 1387° do CPC e os artigos 268°, 269° e 2030° do CC.
Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que ordene a selecção da matéria de facto dada como provada e base instrutória.
Caso assim não se entenda - o que não se concede, mas se pondera por mero dever de patrocínio - deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que convide o autor, ora recorrente, a aperfeiçoar a petição inicial, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 508.º do Código de Processo Civil.
Contra-alegaram os réus CC e mulher, rebatendo, ponto por ponto, a alegação do recorrente e louvando-se no entendimento plasmado na decisão recorrida.
IV –
Face às conclusões das alegações, importa tomar posição sobre se:
Se verifica qualquer dos pressupostos de emenda da partilha exigidos pelo n.º1 do artigo 1386.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do n.º1 do artigo seguinte;
O procurador do autor, ao renunciar, na conferência de interessados, à propriedade da quota do prédio referido que havia sido legada a este agiu sem poderes, de modo a proceder a pretensão de declaração de ineficácia do acto.
Devia ter sido proferido despacho convidando o autor a alegar factos donde pudesse concluir-se ter havido erro na descrição dos bens e ter sido alegado que os interessados sabiam ou deviam saber que o representante do autor não tinha poderes para acordar como acordou na conferência de interessados.
V- 1
Vem provada a seguinte matéria de facto:
A - Procedeu-se a inventário por óbito de LL e II e em que foi cabeça-de-casal DD, doc que constitui fls 73 a 77 – Acta de Conferência.
B – Em 17/12/1992, o cabeça de casal levou à relação de bens, sob a verba n.º 64, o prédio urbano sito no Largo …, no concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial da Alcochete sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 1311, freguesia de Alcochete, que havia sido deixado, por testamento outorgado pelo de cujos II aos seus netos AA, EE e MM, doc n.º 1 junto com a p.i.
C - Na conferência de interessados o A. foi representado por JJ, que juntou procuração outorgada em 07/12/2003, doc n.º 3 junto com a p.i
E - Na conferência por acordo de todos os interessados foi feita a adjudicação dos bens e proferida sentença homologatória.
F - O prédio referido encontra-se inscrito a favor dos RR. DD e FF, doc n.º 2 junto doma p.i
G - A presente acção foi intentada pelo A., AA em 15/12/2006, pedindo a emenda da partilha.
V – 2
Interessando também o teor da petição inicial e da réplica, nas partes que abaixo, a propósito da construção jurídica que temos como adequada, se vão referir.
VI –
Os artigos 1386.º, n.º1 do Código de Processo Civil dispõe que:
A partilha, ainda depois de passar em julgado a sentença, pode ser emendada no mesmo inventário por acordo de todos os interessados ou dos seus representantes, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes.
Dispondo o artigo seguinte, também no n.º1, que:
Quando se verifique algum dos casos previstos no artigo anterior e os interessados não estejam de acordo quanto à emenda, pode esta ser pedida em acção proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença.
Temos, então, que, para que tenha lugar, no nosso caso, a emenda pretendida é necessária a verificação de uma das seguintes hipóteses:
Que tenha havido erro de facto na descrição dos bens;
Que tenha havido erro de qualificação dos bens;
Que tenha havido qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes.
VII –
No presente caso, tudo se radica na existência dum legado constituído por um prédio que não teria sido – segundo pretende o autor – considerado como tal para efeitos de partilha.
O legado tem um regime diferente do dos bens que compõem a herança.
No que aqui nos importa, vem logo ao de cima a exclusão daquele, da partilha, no plano substantivo.
Com a instituição do legado, sabe-se logo o que cabe ao legatário, de sorte que fica prejudicada a ideia de partilha. Por isso, o n.º1 do artigo 2101.º do Código Civil exclui os legatários do direito de exigir a partilha. “Compreende-se que este direito caiba apenas aos herdeiros e não aos legatários, que recebem bens ou valores determinados e, por isso, já sabem que bens virão a pertencer-lhes independentemente da partilha” (Pereira Coelho, Direito das Sucessões, ed. Policopiada de 1992, 87). Ou, como refere Galvão Teles, nos legados dispositivos (e, na distinção que este autor faz entre legados dispositivos e legados obrigacionais, o do presente caso é dispositivo) “o direito passa recta via do falecido para o legatário.”(Direito das Sucessões, 173).
VIII –
Mas, no plano adjectivo, o legatário não passa totalmente à margem da partilha.
Sem preocupação de exaustão, temos, do Código de Processo Civil, os artigos 1340.º, n.º1 b) (identificação, por parte do cc, dos legatários), o artigo 1341.º, n.º1 (citação destes para os termos do inventário) 1343.º, n.º3 (direito de impugnação), 1359.º, n.º1 (deliberação sobre o passivo) e 1366.º (licitação e avaliação dos bens legados).
Daqui resultando duas consequências:
O legatário é “interessado” no inventário, ainda que, como se vê, claramente, do artigo 1341.º, não seja “interessado directo na partilha”;
Os bens legados, ainda que com o seu regime próprio, devem constar do acervo dos bens relacionados.
Quanto a esta segunda parte, assim deve ser interpretada a expressão “bens que integram a herança” do artigo 1345.º, n.º1, não se tendo aqui a palavra “herança” como oposição a legado e, portanto em acepção mais lata do que a usada, por exemplo, no artigo 2237.º do Código Civil.
IX –
Feitas estas considerações, atentemos no caso concreto.
O autor, mesmo enquanto legatário, era interessado no inventário.
Foi para ele citado e, por aqui, nada há a apontar.
A relação de bens devia incluir o bem que a ele - juntamente com mais duas pessoas – foi legado. E, como logo o autor afirma no artigo 2.º da petição inicial, tal bem foi, efectivamente incluído. Depois, como se vê da acta de conferência de interessados (folhas 297 e seguintes), foi o mesmo descrito – ao tempo ainda havia a fase processual da “descrição de bens” – sob o n.º64.
O autor alega que tal bem foi adjudicado aos interessados DD e FF e que tal constitui erro de direito, porquanto, não atingindo a legítima, devia ter sido adjudicado a ele e aos demais legatários.
Esta alegação pode ser encarada num sentido a que podemos chamar estrito, com o entendimento de que se pretende agora infirmar a construção jurídica que permitiu que, com o acordo de todos, o bem perdesse o destino fixado pelo testador e fosse adjudicado a pessoas diferentes dos legatários.
Essa infirmação estaria condenada ao malogro. Logo no artigo 1366.º, n.º3 do Código de Processo Civil se estatui que, pretendendo algum interessado licitar sobre bens legados e não se opondo o legatário, os bens entram em licitação, tendo este direito ao valor respectivo. Não teve o legislador, pois, como valor inderrogável a vontade de legar vertida no testamento, abrindo caminho a que funcione a regra geral da autonomia da vontade do legatário.
Mas o texto da petição inicial pode encerrar uma interpretação mais ampla, no sentido de que o bem agora em causa não foi relacionado e descrito como bem legado e que, consequentemente, foi encarado, na conferência de interessados, como mais um bem dos muitos que integravam a herança, partindo, relativamente a ele, todos (herdeiros e legatários) em pé de igualdade.
A opção por esta segunda interpretação e respectivas consequências na hipótese de se acolher, levanta questões de índole processual. As quais têm estreitas afinidades com as que surgem a propósito dos poderes de representação, pelo que, por ora, remetemos a respectiva apreciação.
XII –
No que respeita aos poderes de representação, o autor fundamenta-se na falta de poderes de representação.
A procuração está a folhas 290 e confere ao JJ poderes, além do mais que agora não interessa, para “proceder ao processo de partilhas em que o outorgante é interessado, por morte do seu avô paterno…”. Esta expressão, além de incorrecta – porque não são os particulares que “procedem ao processo de partilhas” - deixa a dúvida sobre se inclui alguma decisão sobre o bem legado.
Vem aqui ao de cima a dessintonia entre a vertente substantiva e processual que aflorámos em VII e VIII. Num entendimento, o bem legado já se encontrava no património do agora autor e não havia que conceder ou exercer poderes para ser partilhado. No outro, ele tinha que ser incluído – ainda que em regime próprio – em eventual inventário e neste havia que sobre ele fazer incidir manifestações de vontade relevante.
De qualquer modo, fica aqui uma dúvida sobre os poderes que, na realidade, foram concedidos e essa dúvida – sendo de interpretação – pode ser dissipada com recurso a prova, incluindo prova testemunhal.
XIII –
Relativamente aos demais interessados, o abuso de poderes só releva se a parte o conhecia ou devia conhecer. É o que dispõe o artigo 269.º do Código Civil.
O autor refere este regime (artigo 21.º e seguintes da petição inicial), embora não diga, expressamente, que os demais interessados sabiam ou deviam saber da míngua de poderes. Como referem A. Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra (Manual de Processo Civil, 676, nota de pé de página) e tem sido entendimento deste Tribunal (por todos o Ac. de 3.2.1999, no BMJ 484.º, 384) a alegação implícita deve ser tida em conta. Mas no presente caso, não é líquido que a tenha havido assim como não é o contrário.
Esta míngua de poderes é invocada na réplica, com o acrescento à causa de pedir, consistente em defender que se tratou duma transacção e que, para ela, de acordo com o regime geral, o procurador do autor não tinha os necessários poderes (artigos 71.º e seguintes). Poderá estar ou não estar aqui também o erro de direito que exige o mencionado artigo 1386.º, n.º1. Esta última parte implicará apenas uma discussão jurídica – que as instâncias não levaram a cabo – mas as demais demandarão uma precisão factual que sempre faltou ao autor.
XIV –
Perante esta falha e a que referimos em IX, impõe-se-nos uma atenção sobre o artigo 508.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil.
Estas disposições divergem, logo à partida:
No primeiro caso, o juiz tem um poder vinculado e, no segundo, um poder discricionário.
Esta diferença conduz-nos, decisivamente, a uma interpretação, no sentido de que, no primeiro caso, está em causa o malogro da acção ou da defesa e, no segundo, apenas a clareza com que o juiz pretende que a acção seja conduzida. A entender-se que no segundo caso estariam contemplados os casos em que a acção ou a defesa podem naufragar, teríamos uma violação, quiçá mesmo inconstitucional, do princípio da igualdade, porquanto, com um juiz que convidasse as partes, a acção ou a defesa teriam hipóteses de seguir validamente e com outro juiz que não usasse da faculdade daquele n.º3, dar-se-ia, logo ali, o naufrágio. A decisão duma demanda está nas mãos do juiz relativamente aos actos de julgamento e não como resultado do seu maior ou menor rigor processual. E tanto assim é, que Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, em anotação a esta artigo, referem que:
“No primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma excepção, por não serem alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada. No segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a alguns desses elementos de facto, de modo conclusivo (abstracto ou jurídico) ou equívoco.”
Esta interpretação deve ainda, a nosso ver, ser complementada tendo em conta as modernas bases ideológicas do processo civil (Cfr-se Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 59).
Na verdade, foi o próprio legislador que, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, delineou o que chama as “linhas mestras de um modelo de processo”, entre as quais as que aqui nos importam:
“Distinção entre o conjunto de princípios e de regras, que, axiologicamente relevantes, marcam a garantia do respeito pelos valores fundamentais típicos do processo civil, e aquele outro conjunto de regras, de natureza mais instrumental, que definem o funcionamento do sistema processual.
“Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, compensado pela previsão do princípio de cooperação, por uma participação mais activa das partes no processo de formação da decisão.”
Nessa conformidade, surgiram os princípios da adequação formal (artigo 265.º A) – que o próprio legislador refere, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25.11, ser a “expressão do carácter funcional e instrumental da tramitação relativamente à realização do fim essencial do processo” -, o princípio da cooperação (artigo 266.º) e a imposição ao juiz relativa ao suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação (artigo 265.º, n.º2).
A lei processual civil tem agora de ser encarada, não como um fim em si mesma, mas com subordinação da sua vertente disciplinadora à finalidade da justa composição do litígio.
XV –
Na presente acção, pode-se almejar esta finalidade com recurso ao convite a que alude o n.º2 do artigo 508.º do Código de Processo Civil, em ordem a que o autor carreie, se for caso disso:
Os factos em que assenta o erro consistente em – segunda alega - se ter tido um bem legado como bem herdado;
Os factos necessários para que a irregularidade – que diz existir – no modo como o mandato conferido ao JJ foi exercido, projecte os seus efeitos nos demais interessados.
XVI –
Assim, em provimento parcial do recurso, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se a baixa do processo à Relação, a fim de diligenciar para que se proceda em conformidade com o referido no número anterior.
Custas a final.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2010

João Bernardo (relator)
Oliveira Rocha
Oliveira Vasconcelos