Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4871/18.6T8VNF.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
ESTALEIROS TEMPORÁRIOS OU MÓVEIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
JUROS DE MORA
INICIO DA MORA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. A indemnização por danos não patrimoniais fixa-se por equidade, com observância, em todo o caso, das circunstâncias especificadas no art. 494.º do Código Civil.
II. Na fixação de tal indemnização sobressaem a proporcionalidade e o equilíbrio.

III. A contagem dos juros de mora, na indemnização por danos não patrimoniais, faz-se a partir da data da decisão atualizadora, e não a partir da citação.

IV. Tendo a indemnização sido fixada atualizadamente em acórdão, os juros de mora contam-se a partir da data do mesmo acórdão.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA instaurou, em 13 de julho de 2018, no Juízo Local Cível de …, Comarca de …, contra Organytema Engenharia e Construção, Lda., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 41 370,00 e ainda a quantia de € 720,00, por cada mês que se mantivesse o uso ilícito do estaleiro de construção civil, junto da sua habitação, em R…, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que a R., de segunda a sábado, mantém em funcionamento tal estaleiro, o que lhe afeta a vivência e o uso da sua habitação, com efeitos físicos, psíquicos e morais, causados pela entrada de veículos, que provocam ruídos, trepidações, cheiros e fumos, derivados das cargas e descargas, conferindo-lhe o direito a ser indemnizado pelos danos não patrimoniais sofridos.

Contestou a R., por exceção, arguindo a ilegitimidade ativa, e por impugnação, concluindo pela improcedência da ação.

Respondeu o A., pugnando pela improcedência da exceção.

Foi proferido o despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 11 de abril de 2019, a sentença, que, julgando a ação improcedente, absolveu a Ré do pedido.

Inconformado, o Autor apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão de 6 de Fevereiro de 2020, julgando parcialmente procedente o recurso, alterou a sentença, condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 3 500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do acórdão até efetivo e integral pagamento.


Ainda inconformado, o Autor interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:

a) A indemnização por danos não patrimoniais é meramente simbólica.

b) O acórdão recorrido fez errada interpretação dos arts. 496.º, n.º 1, e 805.º, n.º 3, do Código Civil.

c) A fixação dos juros de mora sempre teriam de ser fixados desde a citação.


Com o provimento do recurso, o Autor pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia peticionada, no valor de € 41 370,00, acrescida dos juros de mora desde a citação.


Contra-alegou a Ré, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, discute-se essencialmente o valor da indemnização por danos não patrimoniais e a data a partir da qual são devidos os respetivos juros de mora.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º 1…5/19…14, a aquisição a favor de BB, casado com CC, do prédio urbano situado no Lugar de … ou …, composto de edifício destinado a indústria com quintal com a área de 864 m2, por compra em execução a AA e DD.

2. O A. havia adquirido esse prédio, por escritura pública de compra e venda, celebrada em 28 de janeiro de 1981.

3. O mesmo prédio foi ocupado em 02/01/1983.

4. A R. dedica-se à atividade de construção civil, obras públicas, especializadas de construção diversas.

5. A R. utiliza como estaleiro um terreno sito na Rua de ..., n.º …, freguesia de ..., desde, pelo menos, 2013 (alterado pela Relação).

6. A R. utilizou esse terreno para depositar materiais de construção civil, consoante as dimensões e as necessidades das obras que tinha a seu cargo (alterado pela Relação).

7. O prédio e terreno referidos situam-se numa zona habitacional, composta por vivendas.

8. O prédio confronta com o terreno.

9. A R. apresentou na Câmara Municipal um pedido de legalização do estaleiro, que foi indeferido, de acordo com o despacho de 17/05/2018, do procedimento com registo LOE 4…2/2…7.

10. A Câmara Municipal de … ordenou que a R. fosse notificada, “para procederem à cessação voluntária da utilização do terreno, devendo restabelecer as suas condições originais, no prazo de 15 dias, findo o qual irão ser acionados os mecanismos coercivos previstos na lei.”

11. No ano de 2017, a R. depositou no aludido terreno/estaleiro, paralelos, guias e pavês de uma obra (alterado pela Relação).

12. Esse material esteve ali depositado, até, pelo menos, meados de julho de 2018 (alterado pela Relação).

13. O A. efetuou várias exposições à Câmara Municipal a fim de impedir o uso, pela R., do terreno como estaleiro.

14. À data da propositura da ação, o A. continuava a habitar o prédio, onde dormia, fazia as refeições, descansava e repousava, recebia a família e amigos, desfrutava de lazer e no qual detinha os seus móveis, utensílios e vida familiar (alterado pela Relação).

15. No exercício da sua atividade, a R. usa o terreno referido depositando e carregando a céu aberto materiais de construção civil, como pedra, paralelos, ferro, implicando essas cargas e descargas a entrada de camiões pesados, máquinas retroescavadoras, trabalhadores e respetivas viaturas (alterado pela Relação).

16. Até à data da entrada da petição inicial, a R. não procedeu nos termos ordenados pela Câmara Municipal (alterado pela Relação).

17. Pelo menos, de meados de junho de 2017 a meados de julho de 2018, entre as 7h30 e as 8h00, de 2a a 6a s feiras (com particular incidência no início da manhã e no fim da tarde), a regular laboração de veículos pesados no estaleiro, as cargas e descargas de materiais de construção, provocou a emissão de ruídos, trepidações, cheiros a combustível e fumos, e a poeira que se levantava propagava-se aos prédios vizinhos, designadamente àquele onde morava o A. (alterado pela Relação).

18. As situações descritas em 15. e 17. afetaram gravemente a tranquilidade, sossego, qualidade de vida do A., provocando-lhe ansiedade e nervosismo (alterado pela Relação).



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, com as alterações introduzidas pela Relação e expurgação de redundâncias, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas respetivas conclusões, nomeadamente o valor da indemnização por dano não patrimonial e a data a partir da qual são devidos os respetivos juros de mora.

O acórdão recorrido, dissentindo da sentença que não determinou qualquer indemnização, fixou uma, nomeadamente por danos não patrimoniais, no valor de € 3 500,00, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, a partir da data do acórdão, isto é, 6 de fevereiro de 2020.

O Recorrente, porém, insiste na indemnização no valor de € 41 370,00, considerando a fixada no acórdão recorrido meramente simbólica, e nos juros de mora a partir da citação para a ação.

Por sua vez, a Recorrida, tendo a indemnização por justa e equitativa, entende ser improcedente o fundamento da revista.

Assim, sumariados os termos da controvérsia jurídica emergente dos autos, importa então proceder à sua análise e decisão, nomeadamente à luz do direito aplicável.


A questão da indemnização dos danos não patrimoniais começou por suscitar uma grande controvérsia, a qual, porém, foi superada há muito no tempo, sendo hoje consensual a admissibilidade de tal indemnização, como forma de contribuir para atenuar, minorar ou compensar os danos sofridos pelo lesado, para além de constituir uma sanção adequada em benefício da vítima, o que lhe confere uma natureza mista (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª edição, 2004, págs. 603, 604 e 608).

Os danos não patrimoniais a indemnizar dependem da sua gravidade, como decorre, expressamente, do disposto no art. 496.º, n.º 1, do Código Civil (CC).

A sua gravidade afere-se, objetivamente, em função da tutela do direito, com exclusão de qualquer subjetivismo.

A indemnização por danos não patrimoniais é fixada por equidade, em conformidade com o disposto no art. 496.º, n.º 3, do CC, com observância, em todo o caso, das circunstâncias especificadas no art. 494.º do CC.

Neste âmbito, ANTUNES VARELA nota, com todo o propósito, que “o montante da reparação deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida” (Ibidem, pág. 604, nota 4).

Assim, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, sobressaem as ideias de proporcionalidade e de equilíbrio, tão difíceis como necessárias na sua aplicação concreta.


Como se referiu, o acórdão recorrido fixou a indemnização pelos danos não patrimoniais no valor de € 3 500,00, pretendendo que seja fixada em € 41 370,00, tal como peticionara na ação.

Embora o Recorrente reporte a utilização do terreno, contíguo à sua habitação, como estaleiro, a 2013, a situação mais gravosa, no entanto, aconteceu a partir de meados de junho de 2017 a meados de julho de 2018, com particular incidência no início da manhã e no fim da tarde (de segunda a sexta-feira), em que a regular laboração de veículos pesados (incluindo máquinas retroescavadoras) e as cargas e descargas de materiais de construção provocou a emissão de ruídos, trepidações, cheiros a combustível e fumos, e o levantar de poeiras que se propagaram aos prédios vizinhos, designadamente àquele onde mora o Recorrente, situação que afetou, gravemente, a sua tranquilidade, sossego e qualidade de vida, provocando-lhe ansiedade e nervosismo.

Deste modo, o Recorrente viu afetado, de modo grave, o seu direito de personalidade, nomeadamente o direito à saúde, cuja situação foi prolongada no tempo, por uma atuação exclusivamente imputada à Recorrida, que nem sequer logrou obter a respetiva autorização administrativa.

Não dispondo esta última de autorização legal para a instalação do estaleiro no local, é despropositada a alusão à colisão de direitos.

Nas circunstâncias referidas, a indemnização pelos danos não patrimoniais, fixada no acórdão recorrido, afigura-se bastante reduzida, justificando-se assim a sua fixação, atualizada, em montante superior, nomeadamente no valor de € 9 000,00, mais proporcional à imputabilidade da Recorrida, sem esquecer ainda a natureza sancionatória de que se reveste a indemnização por danos não patrimoniais.

Ao invés, a indemnização em que o Recorrente insiste, correspondente ao pedido formulado na petição inicial (€ 41 370,00), apresenta-se manifestamente exagerada, para além de nem sequer se ter logrado demonstrar toda a matéria de facto alegada naquele articulado, não podendo, assim, ser levada em consideração.


Por sua vez, o Recorrente pretende que os juros de mora sejam fixados a partir da citação, alegando, como fundamento, o disposto no art. 805.º, n.º 3, do CC, quando o acórdão recorrido os fixou a partir da data da sua prolação.

Numa leitura literal da norma, poder-se-ia afirmar que os juros de mora se contariam a partir da citação, nomeadamente quanto à indemnização por danos não patrimoniais, por estar em causa a responsabilidade civil por facto ilícito, nos termos do art. 483.º, n.º 1, do CC.

Acontece que o acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de maio de 2002 (Diário da República – I Série-A, 27 de junho de 2002), fixou como jurisprudência:


 “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do art. 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora e não a partir da citação”.


Nesta perspetiva, a questão da contagem dos juros de mora prende-se com a decisão atualizadora da indemnização, designadamente da correspondente à indemnização por danos não patrimoniais.

Sendo a indemnização fixada por equidade, é a mesma atualizada ao momento da sua fixação, como geralmente sucede, não se justificando, nesse caso, a retroação da mora consagrada no art. 805.º, n.º 3, do CC, que teve como finalidade combater o poder corrosivo da inflação, especialmente em épocas de taxas elevadas.

Assim, numa interpretação restritiva, assumida pelo referido acórdão uniformizador de jurisprudência, a contagem dos juros de mora faz-se a partir da data da decisão atualizadora da indemnização, e não a partir da citação.

No caso vertente, tendo a indmnização por danos não patrimoniais sido fixada atualizadamente no presente acórdão, os juros de mora contam-se a partir desta data.

Se a indemnização fixada no acórdão recorrido tivesse sido mantida, os juros de mora contar-se-iam a partir da data da sua prolação, por corresponder à decisão atualizadora, excluindo-se sempre a contagem a partir da citação.

A restrição ao momento da decisão atualizadora não pode equiparar-se ao momento do seu trânsito em julgado. Com efeito, entre a decisão e o trânsito em julgado pode decorrer um lapso de tempo, mais ou menos alargado, que, não vencendo os juros de mora, prejudicaria fatalmente o fim visado pela norma do art. 805.º, n.º 3, do CC. Por outro lado, esta interpretação está em inteira conformidade com a doutrina perfilhada pelo acórdão uniformizador de jurisprudência de 9 de maio de 2002.

  

Em face do que precede, deve a Recorrida pagar ao Recorrente a indemnização no valor de € 9 000,00, acrescida dos juros de mora legais, a partir da data deste acórdão, concedendo-se assim revista parcial.


2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante: 

I. A indemnização por danos não patrimoniais fixa-se por equidade, com observância, em todo o caso, das circunstâncias especificadas no art. 494.º do Código Civil.

II. Na fixação de tal indemnização sobressaem a proporcionalidade e o equilíbrio.

III. A contagem dos juros de mora, na indemnização por danos não patrimoniais, faz-se a partir da data da decisão atualizadora, e não a partir da citação.

IV. Tendo a indemnização sido fixada atualizadamente em acórdão, os juros de mora contam-se a partir da data do mesmo acórdão.


2.4. O Recorrente e a Recorrida, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento proporcional das custas, em todas as instâncias, por efeito da regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil, sem prejuízo da sua inexigibilidade, quanto ao Recorrente, em resultado do benefício do apoio judiciário concedido.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Conceder a revista parcial e, em consequência, condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 9 000,00 (nove mil euros), acrescida dos juros de mora legais, a partir da data deste acórdão.

2) Condenar o Recorrente (Autor) e a Recorrida (Ré) no pagamento proporcional das custas, em todas as instâncias, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao Recorrente.

Lisboa, 24 de setembro de 2020


Olindo dos Santos Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

Oliveira Abreu


O Relator atesta que os Juízes Adjuntos votaram favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.