Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2358/10.4TJLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NULIDADE
BOA FÉ
DEFESA DO CONSUMIDOR
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 06/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - INTERPRETAÇÃO DA LEI.
DIREITO COMERCIAL - CONTRATOS ESPECIAIS DE COMÉRCIO.
DIREITO COMUNITÁRIO - TRANSACÇÕES COMERCIAIS.
DIREITO DO CONSUMO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
Doutrina:
- Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 9ª reimpressão, pp. 182 e 183.
- Larenz, citado por Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª ed., p. 21.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º.
CÓDIGO COMERCIAL (C.COM.): - ARTIGOS 99.º, N.º3, 102.º.
DECRETO-LEI Nº 446/85 DE 25-10: - ARTIGOS 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 25.º.
DL N.º 32/2003, DE 17-12: - ARTIGO 2.º, N.º1 E N.º2, AL. A), 3.º, AL. G), 4.º, 5.º, 6.º, 7.º.
LEI N.º 5/2004, DE 10-02: - ARTIGO 3.º, AL. G).
LEI Nº 23/96, DE 16-07 (NA REDACÇÃO DADA PELA LEI Nº 12/2008, DE 26-02): - ARTIGO 1.º, N.º2, AL. D).
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA N.º 2000/35/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 29-06: - ARTIGOS 2.º E 3.º.
Sumário :
I - O DL n.º 32/2003, de 17-12, não teve por finalidade disciplinar transacções comerciais com consumidores.

II - Esse diploma legal teve em vista a transposição para o nosso ordenamento jurídico interno da Directiva n.º 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29-06, prevendo um regime de juros de mora mais favorável aos credores comerciais nas transacções referidas nos seus arts. 2.º e 3.º, em que as partes não podem ser consumidores.

III - Esse regime visando favorecer os comerciantes naquelas transacções em caso de mora dos seus devedores, em nada contendeu com a regulamentação das demais transacções comerciais, nomeadamente daquelas em que uma das partes é consumidor, que continuaram sujeitas ao regime anterior ao mesmo decreto-lei, salvo a alteração ligeira do art. 102.º do CCom, introduzida pelo mesmo decreto-lei, artigo esse que continuou aplicável aos devedores consumidores.

IV - Nas transacções comerciais celebradas com consumidores continua a ser possível a fixação de uma cláusula contratual geral em que em caso de mora o devedor incorre na responsabilidade de pagar juros comerciais, nos termos do art. 102.º do CCom, na redacção anterior a este artigo referido pelo DL n.º 32/2003.

V - O art. 2.º, n.º 2, al. a), deste decreto-lei, quando prescreve que são excluídos da aplicação deste diploma “os contratos celebrados com os consumidores” significa, e assim deve ser interpretado, que as transacções com os consumidores não são regulamentadas por aquele diploma.

VI - Esta conclusão não significa que a redacção dada ao art. 102.º do CCom pelo mesmo decreto-lei se integre naquele regime não aplicável aos consumidores.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

0 Ministério Público intentou, em 30-11-2010, no 4º Juízo Cível de Lisboa, a presente acção contra ... - Telecomunicações Móveis ... SA. e  contra ... - Soluções em Redes Informáticas Lda., em que se peticiona seja declarada nula a cláusula 18, do clausulado "Condições Gerais de Prestação de Serviços de Dados Aceites - Banda Larga", usada nos contratos que  primeira ré celebra e a consequente condenação da ré ... SA a abster-se de a utilizar, nos contratos que de futuro venha a celebrar, especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição.

Mais peticiona seja declarada nula a clausula 10.4, do clausulado "Contrato de Prestação de Serviços de Comunicações Electrónicas da ... - Condições Gerais", usada pela segunda ré nos contratos que celebra condenando-se a ré ... Lda. a abster-se de a utilizar, nos contratos que de futuro venha a celebrar, especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição.

Pede, ainda a condenação das rés a darem publicidade a tal proibição e a comprovar nos autos essa publicidade, em prazo a determinar na sentença, devendo a mesma ser efectuada em anúncio, de tamanho não inferior a 1/4 de página, a publicar em dois dos jornais diários de maior tiragem editados em Lisboa e no Porto, durante três dias consecutivos.

Para o efeito invoca que as cláusulas em causa são proibidas, nos termos do art. 15º do D. L. n° 446/85.

Contestou a ré ... SA, alegando que o contrato em causa é um acto de comércio, sendo que o regime legal do D.L. n° 32/2003, de 17-02, não é aplicável a tais actos. Assim, estando os mesmos sujeitos ao regime legal que promana do C. Comercial, nos seus arts. 99° e 102°, a taxa de juros consagrada no contrato em causa é legal.

Termina peticionando a sua absolvição do pedido.

Regularmente citada, a ré ... Lda. não deduziu validamente contestação.

No despacho saneador foi proferida sentença a julgar a acção procedente e a condenar as rés no pedido.

Inconformada a ré ... interpôs recurso de apelação que veio a ser julgado improcedente.

Mais uma vez inconformada, a ré ... interpôs a presente revista excepcional que foi admitida.

Nas alegações da recorrente, esta formulou conclusões onde reproduz, praticamente, tudo o que havia exposto nas demais alegações, sem qualquer preocupação de nas conclusões se limitar à enunciação sintética ou abreviada dos fundamentos do recurso, tal como exige o disposto no art. 690º, nº 1 do Código de Processo Civil, e, por isso, não serão aqui transcritas.

Das mesmas conclusões resulta que a recorrente apenas levanta para conhecer neste recurso a seguinte questão:

A cláusula 18 das Condições Gerais dos contratos tipo usados pela recorrente no exercício da sua actividade empresarial, aqui em apreço, não viola qualquer valor fundamental de direito defendidos pela boa fé ou qualquer disposição legal imperativa ?

O recorrido contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.

Como é  sabido – arts. 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. de Processo Civil -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.

Já vimos acima a concreta questão que a aqui recorrente levantou.

Mas antes de mais há que especificar a matéria de facto que a Relação deu por provada e que é a seguinte:

A) A Ré ... - Telecomunicações Móveis Nacionais S.A. é uma sociedade anónima, com o NIPC n° ... e encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa.

B) A Ré ... - Telecomunicações Móveis Nacionais S.A. tem por objecto a actividade de "prestação de serviços de comunicações electrónicas, designadamente o serviço de telecomunicações móveis, o serviço telefónico fixo e o serviço de acesso à internet sem fios, bem como o desenvolvimento de serviços inovadores sobre a tecnologia IP, o estabelecimento, gestão e exploração de redes e infra-estruturas de comunicações electrónicas, a prestação de serviços nas áreas de tecnologias de informação, sociedade de informação, multimédia e comunicação, e ainda a exploração, gestão, representação e comercialização de produtos e equipamentos de comunicações electrónicas, tecnologias de informação e comunicação".

C) No exercício de tal actividade, a Ré ... - Telecomumcações Móveis Nacionais S.A. procede à celebração, com quaisquer interessados, de contratos de prestação de serviços de dados - Banda Larga ....

D) Para o efeito, a Ré ... - Telecomunicações Móveis Nacionais S.A. apresenta aos interessados/aderentes que com ela pretendam contratar um clausulado já impresso, previamente elaborado pela referida Ré, com o título "Adesão ao Serviço Banda Larga e.escola (3o escalão)".

E) O referido clausulado contém duas páginas impressas, no qual constam as "Condições Gerais de Prestação do Serviço de Dados Aceites - Banda Larga", que não incluem quaisquer espaços em branco para serem preenchidos pelos contratantes que em concreto se apresentem, com excepção dos espaços reservados aos dados do Encarregado de Educação/Representante Legal do Aluno, dados do Aluno e adesão ao débito directo, e dos destinados à data e às assinaturas.

F) A cláusula 1. das "Condições Gerais de Prestação do Serviço de Dados Aceites Banda Larga" estipula o seguinte: "O Contrato que venha a resultar da aceitação pela ... da proposta constante do rosto deste documento rege-se pelo aqui consignado, destinando-se a regular as relações entre o Cliente e a ..., no âmbito da prestação do Serviço de Dados Banda Larga ... permite efectuar comunicação de dados".

G) É o seguinte o texto da cláusula 18., do mencionado clausulado: «O não cumprimento por parte do Cliente das suas obrigações contratuais relativamente ao pagamento das facturas confere à ... o direito à suspensão do Serviço e à rescisão do contrato, cumprindo um aviso prévio de dez dias, através de carta, correio electrónico ou SMS, com informação ao Cliente de que meios tem ao seu dispor para evitar a suspensão ou a rescisão, bem como à cobrança coerciva a(s) quantia(s) devida(s) e efectuar a retoma do serviço, ficando a ... constituída no direito de cobrar juros moratórios, a calcular sobre os montantes em dívida, contados por cada dia de atraso, à taxa legal aplicável às operações comerciais, nos termos do artigo 102.°, do Código Comercial.».

H) A Ré ... - Soluções em Redes Informáticas, Lda. é uma sociedade por quotas, com o NIPC n° ... e encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Sines.

I) A Ré ... - Soluções em Redes Informáticas, Lda. tem por objecto a actividade de "soluções em redes informáticas, consultoria e programação informática, serviços internet, comercialização de equipamento informático, investigação e desenvolvimento de novas tecnologias, assistência e formação em informática, oferta de redes ou serviços de comunicações electrónicas".

J) No exercício de tal actividade, a Ré ... - Soluções em Redes Informáticas, Lda. procede à celebração, com quaisquer interessados, de contratos de prestação de serviços de comunicações electrónicas.

L) Para tanto, a Ré ... - Soluções em Redes Informáticas, Lda. apresenta aos interessados que com ela pretendem contratar formulários de subscrição dos serviços de comunicações electrónicas e um clausulado já impresso e previamente elaborado pela referida Ré, análogo ao que consta junto, intitulado "CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÕES ELECTRÓNICAS DA ... - CONDIÇÕES GERAIS".

M) O formulário de subscrição dos serviços de comunicações electrónicas (Condições Particulares) contém duas páginas impressas, sendo uma o original e a outra o duplicado.

N) Tal formulário contém espaços em branco destinados apenas ao preenchimento: (1) dos dados do cliente; (2) dos serviços a subscrever; (3) dos contratos realizados "online"; (4) de outras condições, relativas a descontos adicionais, características técnicas específicas; (5) de disposições diversas; e da autorização do pagamento por débito directo em conta, bem como à aposição da data e da assinatura pelo cliente e pela Ré ....

O) O clausulado já impresso e previamente elaborado intitulado "CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE  SERVIÇOS  DE  COMUNICAÇÕES  ELECTRÓNICAS  DA  ...CONDIÇÕES GERAIS" que acompanha o formulário de subscrição dos serviços de comunicações electrónicas não contém quaisquer espaços em branco para serem preenchidos pelos contratantes/aderentes que em concreto se apresentem a contratar com a Ré ....

P) A cláusula 2.2. do "CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÕES ELECTRÓNICAS DA ... - CONDIÇÕES GERAIS", estipula o seguinte: "Fazem parte integrante do presente contrato o Anexo I - Requisitos do Equipamento, o Anexo II - Regras de Utilização do Serviço, Tarifário em Vigor e Formulário de Subscrição dos Serviços (Condições Particulares)".

R) É o  seguinte o texto da cláusula 10.4., sob a epígrafe "Facturação, preços e pagamento": «Em caso de mora no pagamento de quaisquer quantias devidas pelo Cliente à ..., ao abrigo do presente contrato, esta cobrará sobre essas quantias, e pelo período de duração em mora, os juros comerciais à taxa máxima aplicável.». contratual encetada nessa área.

Vejamos agora com estes factos a questão acima apontada como objecto do recurso.

Está aqui em causa a apreciação da legalidade da cláusula contratual geral que a recorrente usa nos seus contratos tipo de prestadora de serviços de telecomunicações que celebra com os consumidores finais, tal como os define o art. 3º, al. g) da Lei nº 5/2004 de 10/02.

Entende o autor recorrido que tal cláusula é nula por força do disposto no art. 15º do Decreto-Lei nº 446/85 de 25/10, por prever uma taxa de juros de mora ao consumidor aderente prevista na lei para as operações comerciais, quando a lei apenas permite a imposição ao consumidor de taxa de juros de mora prevista na lei civil.

Mais defende o autor que o art. 2º, nº 2, al. a) do Decreto-Lei nº 32/2003, de 17/02, limitou a aplicação do art. 102º do Cód. Comercial, excluindo deste regime de juros especial a mora dos contratantes consumidores.

E conclui o recorrido que a imposição daquele regime de taxas de juros de mora mais gravoso do que o regime da lei civil desequilibra as posições contratuais, o que viola a boa fé.

A sentença de 1ª instância dá acolhimento a esta opinião e julgou os pedidos procedentes.

De igual entendimento foi o acórdão recorrido ao confirmar aquela decisão.

Tendo em conta o disposto no art. 721º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil, foi admitida a presente revista como excepcional, nos termos do art. 721º-A, nº 1, al. c) do mesmo diploma legal, com o fundamento na existência de pelo menos um acórdão da Relação de Lisboa onde a mesma questão jurídica fundamental foi decidida de forma oposta e sem que haja sido sobre a mesma fixada jurisprudência por este STJ concordante com o acórdão aqui recorrido.

A fls. 210 e segs. consta a certidão com nota de trânsito do acórdão fundamento deste recurso.

Analisando cuidadosamente os fundamentos da sentença de 1ª instância aqui proferida e do acórdão recorrido, ambos estes arestos em confronto com o douto acórdão fundamento, e interpretando pormenorizadamente as disposições legais aqui aplicáveis, temos de concordar com este último acórdão e desaprovar as decisões tomadas nos presentes autos.

E vejamos porquê.

Tal como está aceite pelas partes e pelas decisões em apreço, a cláusula em causa tem a natureza de cláusula contratual geral, nos termos do Decreto-Lei nº 446/85 de 25/10 e os destinatários da mesma podem ser consumidores, tal como os define o art. 3º, al. g) da Lei nº 5/2004 de 10-02.

Também está assente sem oposição das partes que a actividade onde a referida cláusula contratual é usada versa um serviço público essencial, tal como o define o art. 1º, nº 2, al. d) da Lei nº 23/96 de 16/07 – na redacção dada pela Lei nº 12/2008 de 26/02.

A mesma cláusula tem a redacção seguinte:

“O não cumprimento por parte do Cliente das suas obrigações contratuais relativamente ao pagamento das facturas confere à ... o direito à suspensão do Serviço e à rescisão do contrato, cumprindo um aviso prévio de dez dias, através de carta, correio electrónico ou SMS, com informação ao Cliente de que meios tem ao seu dispor para evitar a suspensão ou a rescisão, bem como à cobrança coerciva a(s) quantia(s) devida(s) e efectuar a retoma do serviço, ficando a ... constituída no direito de cobrar juros moratórios, a calcular sobre os montantes em dívida, contados por cada dia de atraso, à taxa legal aplicável às operações comerciais, nos termos do artigo 102.°, do Código Comercial.».

O art. 25º do referido Decreto-Lei nº 446/85 – na redacção introduzida pelos diversos diplomas legais que o alteraram, nomeadamente o decreto-lei nº 220/95 de 31/01 – prescreve que as cláusulas contratuais gerais elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos arts. 15º, 16º, 18º, 19º, 21º e 22º podem ser proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares.

Por seu lado, o art. 15º referido estipula que são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé.

E o art. 16º mencionado prescreve que na aplicação da norma do artigo anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e, especialmente:

a) A confiança suscitada nas partes pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;

b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.

Segundo o recorrido e as decisões proferidas nestes autos, o Decreto-lei nº 32/2003 de 17 de Fevereiro veio proibir a fixação da taxa de juros comerciais prevista no art. 102º do Cód. Comercial em contratos de adesão em que esteja em causa o fornecimento de um serviço público essencial e quando o aderente possa ser um consumidor.

Ora, o Decreto-Lei 32/2003 referido teve por finalidade a transposição da “Directiva nº 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho que veio estabelecer medidas de luta contra atrasos de pagamento em transacções comerciais. Esta Directiva regulamenta todas as transacções comerciais, independentemente de terem sido estabelecidas entre pessoas colectivas privadas - a estas se equiparando os profissionais liberais – ou públicas ou entre empresas e entidades públicas, tendo em conta que estas últimas procedem a um considerável volume de pagamentos às empresas. Por conseguinte, regulamenta todas as transacções comerciais entre os principais adjudicantes e os seus fornecedores e subcontratantes. Não se aplica, porém, às transacções com os consumidores, aos juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efectuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou aos pagamentos efectuados a titulo de indemnização por perdas e danos, incluindo os efectuados por companhias de seguros.

(… )   Nestes termos, estabelece-se um  valor mínimo par a taxa de juros legais de mora, por forma a evitar que eventuais baixas tornem financeiramente atraente o incumprimento. Uma vez que os juros comerciais previstos na legislação portuguesa não se aplicam actualmente a todas as situações cobertas pelo âmbito da directiva, e para evitar a duplicação de regimes, opta-se por sujeitar todas estas transacções ao regime comercial, prevendo-se o referido limite mínimo de taxa de juro legal de mora no Código Comercial” – relatório do citado decreto-lei nº 32/2003.

Daqui decorre que este diploma legal e a Directiva que o mesmo visou transpor para o nosso ordenamento jurídico interno destinou-se a proteger as empresas contra situações de mora dos seus devedores, facultando-lhe uma exigência de melhores juros de mora com vista a desencorajar a entrada dos devedores em mora.

Tal como parece decorrer quer da petição inicial quer das decisões proferidas nestes autos, antes da entrada em vigor do citado decreto-lei 32/2003, nada obstava a que nos contratos do tipo dos usados pela recorrente aqui em apreço, mesmo celebrado com consumidores, fosse incluída uma cláusula como a aqui em apreciação e foi a entrada em vigor daquele diploma legal que veio tornar aquela cláusula inaceitável – isto na opinião do recorrido e das decisões tomadas nos autos.

E assim vemos a incoerência da pretensão do recorrido aceite nas referidas decisões.

A adopção pelo legislador de um diploma legal destinado a proteger as empresas em matéria de juros de mora com vista a desincentivar a mora dos devedores acabava por retirar às mesmas empresas um direito de exigir uma taxa de juros de mora mais favorável quando estivesse em causa um devedor consumidor, consumidor este que o referido diploma legal não visou de modo algum proteger – e nem sequer modificar de qualquer maneira a legislação que o protege.

Daqui que a interpretação que foi seguida no acórdão recorrido, na falta de lei clara nesse sentido, viola o disposto no art. 9º do Cód. Civil que rege a interpretação das leis.     

E o texto da citada lei 32/2003 está longe de ser claro no sentido de vedar a possibilidade de em relação aos consumidores ser-lhes exigível a taxa de juros moratórios prevista no art. 102º do Cód. Comercial.

Com efeito, o artº 2, nº 1 do citado decreto-lei 32/2003 estipula que o referido diploma legal se aplica a todos os pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais.

E o seu nº 2 acrescenta que são excluídos da sua aplicação, entre outros, os contratos celebrados com consumidores – al. a) do referido nº2.

O seu art. 3º especifica quais concretas transacções comerciais previstas no nº 1 do art. 2º referido às quais se aplica o regime do mesmo decreto-lei.

O art. 4º do mesmo diploma, regulamenta o regime de prazos de vencimento da dívida e dos juros aplicáveis aos atrasos de pagamento das transacções previstas naquele diploma legal mandando aplicar-lhes os estabelecidos no Código Comercial, prevendo, ainda, a possibilidade de ser exigida pela mora uma indemnização suplementar correspondente a um dano superior que seja provado

O artigo 5º prevê a existência de cláusulas abusivas, cominando-as com a nulidade.  

Já o art. 6º do mesmo diploma dá nova redacção ao art. 102º do Cód. Comercial que se resume, essencialmente, a introduzir um novo parágrafo, o 4º em que se estabelece um mínimo à taxa de juro fixada nos termos estabelecidos no parágrafo 3º.

Finalmente o art. 7º prevê a possibilidade de as empresas credoras obterem um mais célere título executivo facultando o recurso à injunção independentemente do valor da dívida em causa.  

A referida inaplicabilidade do regime introduzido pelo decreto-lei nº 32/2003 aos contratos celebrados com os consumidores implica que estes contratos não possam prever uma taxa de juros de mora prevista no referido art. 102º ?

Pensamos que não.

O referido decreto–lei alterou a redacção do art. 102º do Cód. Comercial, mas deixou intocado o art. 99º do mesmo diploma legal onde se prevê que os actos comerciais que o sejam apenas em relação a uma das partes será regulado pela lei comercial quanto a todos os contraentes.

Por outro lado, quando o decreto-lei nº 32/2003 fala em excluir da sua aplicação dos consumidores, está a dizer o que já resultava do conceito de transacção comercial abrangida pelo mesmo diploma legal onde não entram as transacções comerciais em que uma das partes seja consumidor, tal como resulta do art. 3º do mesmo diploma legal.

Na falta de alteração do disposto no referido art. 99º se tem de entender que o regime previsto no decreto-lei nº 32/2003 não é aplicável aos consumidores, mas o disposto no art. 102º do Cód. Comercial na nova redacção dada pelo mesmo diploma legal se aplica a todos os actos comerciais previstos em geral na lei comercial, em que se incluem as transacções em que uma das partes sejam um consumidor.

Em face da redacção deficiente do texto do decreto-lei nº 32/2003, no aspecto de não mexer na redacção do art. 99º referido e dizer que o regime do mesmo se não aplica aos consumidores, a finalidade do legislador que justificou o referido diploma legal atrás exposta levaria a fazer uma interpretação restritiva daquele art. 2º, nº 2 al. a) no sentido de que o art. 102º mencionado continua a aplicar-se em geral aos actos comerciais e mesmo àqueles em que uma das partes reveste a natureza de consumidor.

Interpretação restritiva consiste em o legislador haver adoptado um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que pretendia dizer.

E para se aferir desse pensamento legislativo, um dos elementos de interpretação da lei prevista no art. 9º do Cód, Civil, consiste no elemento racional ou teleológico que “consiste na razão de ser da lei ( ratio legis ), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias ( políticas, sociais, económicas, morais, etc. ) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura político-económico-social que motivou a “decisão“ legislativa ( occasio legis ) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido das normas”- Baptista Machado, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, pág.182 e 183, da 9ª reimpressão.

Ora tendo em conta a acima exposta intenção do legislador ao introduzir o decreto-lei 32/2003 referido no nosso ordenamento, de modo algum se poderá dizer que o mesmo quis restringir a adopção da taxa de juros comerciais prevista no art. 102º do Cód. Comercial aos contratos em que uma das partes é consumidor que expressamente foram afastado da regulamentação introduzida por aquele decreto-lei.   

Assim, o regime legal deste decreto-lei é aplicável às transacções comerciais elencadas nos seus arts. 2º e 3º, em que se não compreende as transacções celebradas com consumidores, mas a alteração do art. 102º do Cód. Comercial também levada a cabo naquele decreto-lei, porém, aplica-se a todas as transacções comerciais, pois este art. 102º é aplicável a essa generalidade de transacções e não apenas às transacções previstas no referido decreto-lei.

A não alteração do disposto no art. 99º do Cód. Comercial apontam para a mesma interpretação.

Não adoptar esta interpretação, salvo o respeito devido a opiniões em contrário, implica violar a regra do art. 9º, nº 3 do Cód. Civil.

Além disso, aponta no mesmo sentido a razão de ser da existência de uma taxa de juros de mora especial para as actividades comerciais que consiste numa protecção do comerciante credor, mas nada tem a ver com a protecção do consumidor que entrando em mora, se vê na situação de qualquer devedor de actos comerciais, nos termos do art. 99º referido. O decreto-lei em apreço não visou proteger os consumidores, mas tão somente proteger os comerciantes em  determinadas transacções comerciais - que se não estabelecem com consumidores -, mas sem ter qualquer intenção de adoptar meios proteccionistas dos consumidores inexistentes no regime legal anterior.

Também, a pequena diferença entre os juros comerciais e os juros civis aponta para a mesma interpretação.

Mas de qualquer modo, repete-se, não consta do relatório do citado decreto-lei nº 32/2003 ou da Directiva que aquele visou transpor para o nosso ordenamento jurídico, qualquer intenção de proteger os consumidores, mas tão somente favorecer os credores comerciais em determinadas transacções comerciais a que os consumidores são estranhos.

A circunstância de a cláusula contratual em causa versar o fornecimento de um serviço público essencial em nada altera a solução.

Com efeito, o estabelecimento de uma taxa de juros de mora em nada altera o fornecimento do serviço, mas apenas contende com a penalização decorrente de um acto ilícito do devedor: mora no seu cumprimento por parte, eventualmente, de um devedor que reveste a natureza de consumidor.

Deste modo, não vemos que os ditames decorrentes da boa fé sejam afectados pela referida cláusula.

A boa fé é um dos princípios fundamentais do Direito Civil que tem um sentido moral profundo e pode exprimir-se pelo mandamento de que “cada um fique vinculado em fé da palavra dada, que a confiança que constitui a base imprescindível de todas as relações humanas não deve ser frustrada nem abusada e que cada um se deve comportar como é de esperar de uma pessoa honrada”, de uma pessoa de bem – Larenz, citado por Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 21 da 7ª ed.

Ora, a cláusula em causa de modo algum viola qualquer dever derivado da boa fé tal como a definimos.

E é preciso relembrar que a referida cláusula tem em vista sancionar um acto voluntário ilícito – omissão – do devedor.

Procede desta forma os fundamentos do recurso.

Pelo exposto, concede-se a revista excepcional pedida, revogando-se, consequentemente, o acórdão recorrido e, por isso, se absolve o recorrente do pedido contra si deduzido – único em causa neste recurso.

Como o recorrido a quem caberia a responsabilidade de custas nos termos do art. 446º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, está isento delas – art. 4º, nº 1 al. a) do Regulamento das Custas Processuais –, ficam os recursos de apelação e de revista isentos de custas.

As custas da primeira instância ficam a cargo da co-ré em metade, sendo isenta a outra metade por causa da apontada isenção, nos termos do art. 446º, nº 2 e 446º-A, nº 4 do mesmo código.


*

Nos termos do art. 713º, nº 7 do mesmo código, sumaria-se o acórdão da seguinte forma:

Cláusula Contratual Geral. Nulidade de Cláusula. Boa Fé. Protecção do Consumidor. Juros de Mora.

I.  O Decreto-Lei nº 32/2003 de 17/12 não teve por finalidade disciplinar as transacções comerciais com os consumidores.

II. Esse diploma legal teve em vista a transposição para o nosso ordenamento jurídico interno da Directiva nº 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho, prevendo um regime de juros de mora mais favorável aos credores comerciais nas transacções referidas nos seus arts. 2º e 3º, em que as partes não podem ser consumidores.

III. Esse regime visando favorecer os comerciantes naquelas transacções em caso de mora dos seus devedores, em nada contendeu com a regulamentação das demais transacções comerciais, nomeadamente daquelas em que uma das partes é consumidor, que continuaram sujeitas ao regime anterior ao mesmo decreto-lei, salvo a alteração ligeira do art. 102º do Cód. Comercial introduzida pelo mesmo decreto-lei, artigo esse que continuou aplicável aos devedores consumidores.

IV. Nas transacções comerciais celebradas com consumidores continua a ser possível a fixação de uma cláusula contratual geral em que em caso de mora o devedor incorrer na responsabilidade de pagar juros comerciais, nos termos do art. 102º do Cód. Comercial, na redacção dada a este artigo pelo referido Decreto-Lei nº 32/2003.

V. O art. 2º, nº 2, al. a) deste decreto-lei, quando prescreve que são excluídos da aplicação deste diploma “ os contratos celebrados com os consumidores ” significa, e assim deve ser interpretado, que as transacções com os consumidores não são regulamentadas por aquele diploma.

VI. Esta conclusão não significa que a redacção dada ao art. 102º do Código Comercial pelo mesmo decreto-lei se integre naquele regime não aplicável aos consumidores.

2013-06-04.

João Moreira Camilo ( Relator )

António da Fonseca Ramos

José Salazar Casanova.