Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P1127
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: NAVALHA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
POSSE
ILICITUDE
PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO TEMÁTICA
ABSOLVIÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: SJ200804230011273
Data do Acordão: 04/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I - A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, a que se refere o art. 410.°, n.º 2, al. a), do CPP como um dos “vícios” em matéria de facto, consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis, e que impede que sobre a matéria da causa seja proferida uma decisão segura; a “insuficiência” relevante não pode ser considerada apenas em relação a uma concreta decisão que esteja em causa.
II - A suficiência dos factos tem também de ser considerada dentro da vinculação da acusação, que definirá, por regra, os limites da tipicidade.
III - O crime de detenção de arma branca (navalha), previsto no art. 86.°, n.º 1, al. d), da Lei 5/2006, de 23-02, apresenta uma descrição compósita e relativamente complexa: à detenção do objecto classificado como “arma branca” acrescenta-se um elemento condicional, pois a detenção só será ilícita desde que «o portador não justifique a sua posse».
IV - A não justificação da posse tem de ser pensada e caracterizada em relação aos fins, nas circunstâncias e no contexto da detenção do instrumento que pode ser usado como arma. Não pode, por isso, a ausência de justificação ser apenas uma espécie de “omissão branca”, devendo antes resultar da inexistência quer de explicação razoável para a posse quer de uma desadequação, segundo a experiência das coisas, entre a natureza do objecto, a actividade do sujeito, os usos comuns do objecto e as circunstâncias específicas da posse.
V - De qualquer modo, a ausência de justificação para a posse de um instrumento que, pelas características, é de uso comum, e que é condição de verificação da ilicitude, tem pelo menos de ser referida enquanto elemento factual da construção complexa dos elementos da infracção na relação entre a tipicidade da detenção e a ausência de ilicitude, desde que a posse seja justificada.
VI - No caso, os factos provados, delimitados também pelo quadro factual que constava da acusação, referem apenas que o arguido «trazia no interior dos bolsos da roupa» «uma navalha medindo 11 cm. de lâmina e 11 cm. de cabo metalizado de cor castanha» e que «o arguido sabia que não se encontrava autorizado a deter a navalha que lhe foi apreendida». Ora, esta conjugação de factos não permite a integração de todos os elementos do crime de detenção de arma.
VII - Na verdade, a delimitação processual traçada, e tematicamente vinculada pelos termos da acusação, e os factos que o tribunal julgou provados dentro de tais limites, permitindo aceitar a tipicidade (detenção de um objecto com as características assinaladas), não são suficientes para a revelação externa da ilicitude (a não justificação da posse), nem a ausência de justificação se pode inferir, por presunção, de outros factos provados.
VIII - Entre a acção típica, apenas materialmente considerada (a detenção), e uma possível leitura de culpa na formulação que consta dos factos provados («sabia que não se encontrava autorizado a deter a navalha») interpõe-se um espaço logicamente vazio ou neutro, que constitui um prius metodológico na aplicação da teoria da infracção relativamente à apreciação da culpa: a fórmula que consta dos factos provados referida à culpa vai longe demais sem a concorrência dos pressupostos (a demonstração da ilicitude – a não justificação da posse) que lhe permitiriam dar suporte e sentido.
IX - Porém, a não suficiência não constitui, no contexto, “insuficiência” com o sentido que assume na caracterização como “vício” da matéria de facto no n.º 2 do art. 410.º do CPP: por um lado, porque a vinculação temática da acusação impede que a não suficiência seja reconstruída; por outro, porque os factos ainda permitem uma decisão segundo uma das várias soluções possíveis e plausíveis, qual seja a solução negativa sobre a integração do crime, que é uma das possíveis soluções no processo penal.
X - A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») da decisão.
XI - Com efeito, as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289). A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial (o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio magistrado); a sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão (o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito).
XII - A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui, pois, uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.
XIII - A determinação e aplicação da pena criminal tem de constituir o resultado da complexa ponderação de vários elementos que a lei manda considerar em apertados critérios normativos definidos na lei.
XIV - Não se mostra devidamente fundamentada a decisão que, no segmento da determinação da pena, entre a enunciação abstracta dos parâmetros legais (por transcrição da norma) e a afirmação quantificada sobre a fixação da pena, não contém qualquer referência que permita compreender quais, em concreto, os critérios da lei de que se socorreu, e, de entre aqueles que porventura terá considerado, em que medida contribuíram para encontrar a medida concreta escolhida.
XV - Tal decisão é, em consequência, nula, nesta parte, por falta de fundamentação – art. 379.°, n.º 1, al. a), do CPP.
Decisão Texto Integral: