Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
948/19.9TXLSB-D.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
PERDÃO
LEI ESPECIAL
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO O PEDIDO DE HABEAS CORPUS.
Indicações Eventuais: TRNSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. De acordo com o “regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19”, instituído pela Lei n.º 9/2020, de 10.04, no caso de condenação em pena de prisão superior a 2 anos só há lugar ao perdão parcial da pena se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a 2 anos e o recluso tiver cumprido pelo menos metade da pena;
II. O arguido, condenado numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão, levando cumprido 1 ano, 6 meses e 19 dias, não obstante lhe faltar para cumprimento integral da pena remanescente inferior a 2 anos, correspondendo a metade daquela pena a 1 ano e 9 meses e assim ainda não cumprida, não pode beneficiar do perdão;
III. Assim, porque a situação de prisão em que se encontra foi determinada por autoridade competente, foi motivada por facto pelo qual a lei permite, o qual se traduz na execução de uma pena de prisão resultante de uma condenação transitada em julgado e cujo prazo de cumprimento ainda se não esgotou, mesmo na perspectiva da concessão do perdão parcial introduzido pela Lei n.º 9/2020, não aplicável, dado não ter sido cumprida ainda metade da pena, não se verifica o fundamento legal invocado da alín. c) do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, nem qualquer outro.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 948/19.9TXLSB-D.S1

Habeas corpus

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA veio requerer, através de advogado, a concessão da providência de habeas corpus, com fundamento em prisão ilegal, nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, alegando o seguinte, que se transcreve:

1. O recluso encontra-se detido no Estabelecimento Prisional de ... em cumprimento de pena de prisão de 3 anos e 6 meses de prisão, o recluso nem sequer atingiu o meio da pena.

2. Actualmente, ao recluso faltam menos de 2 anos para o fim da pena de prisão.

3. O artigo 2.º n.º 2 da lei 9/2020 refere que: São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.

4. Ora, o crime pelo qual o recluso está condenado não está abrangido por nenhuma das alíneas do n.º 6 do artigo 2.º da lei 9/2020.

5. No entanto, o n.º 2 do artigo 2.º da lei n.º 9/2020 apenas serão perdoados refira que : “… os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos”.

6. Ora, nesta situação o recluso faltam-lhe menos de dois anos para o fim da pena, e o crime pelo qual está a cumprir pena de prisão não é de nenhum alínea do n.º 6 do artigo 2.º da lei 9/2020, já deveria ter sido concedido o perdão da pena em 11 de Outubro de 2020.

7. O recluso não tem culpa, que pelo facto de não ter defensor no processo de liberdade condicional, não fosse suscitada a questão do perdão da pena de prisão e o mesmo deveria ter sido averiguado oficiosamente, a pena de prisão deveria ter sido perdoada por força da lei n.º9/2020 e deveria estar em liberdade desde o dia 11 de Outubro de 2020.

8. Deste modo, o prazo máximo permitido à manutenção do cumprimento de prisão efectiva deveria ter sido respeitado, e deveria ter sido aplicado o perdão da pena de 2 anos e o recluso deveria ter sido posto em liberdade no dia 11 de Outubro de 2020.

9. Pelo exposto, consideramos que a manutenção da prisão é ilegal, uma vez que o prazo de cumprimento de pena de prisão efectiva deveria ter sido interrompido no dia 11 de Outubro de 2020, quando deveria ter sido aplicado o perdão de penas por força da lei 9/2020, e quando faltam 2 anos para o cumprimento definitivo da pena e deveria ter sido posto imediatamente em liberdade.

10. Nestes termos e nos melhores, de direito deve ser declarada ilegal a continuação da manutenção da prisão efectiva que o requerente se encontra sujeito, pelo facto de o recluso por força da lei 9/2020 no seu artigo 2.º n.º 2 da referida lei beneficiar do perdão da pena de 2 anos prisão, e deveria estar em liberdade desde o dia 11 de Outubro de 2020, e consequentemente a manutenção do cumprimento da pena de prisão efectiva é ilegal, nos termos do artigo 222.º n.º 2 alínea c) do CPP e o recluso ser restituído à liberdade”.

*

2. De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 223.º do CPP o Exmo. Juiz prestou a seguinte informação:

O recluso AA vem interpor nos presentes autos uma providência de habeas corpus, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222º, do Código de Processo Penal.

Fundamenta o seu pedido no facto de, mostrando-se preso, em cumprimento da pena de 3 anos e 6 meses de prisão, “(…) nem sequer atingiu o meio da pena (…)”, sic., faltando-lhe menos de 2 anos para o termo da pena, meta que atingiu desde 11/10/2020. Desde essa data devia ter beneficiado do perdão de pena concedido pelo artigo 2º, nº 2, da Lei nº 9/2020, de 10/04, concluindo que, não tendo tal sido determinado, o arguido está ilegalmente preso.

Antes do mais, importa referir que tal não é o entendimento seguido nos presentes autos.

Assim:

O recluso foi condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 21º e 25º, do Dec.-Lei nº 15/93, de 22/01.

Numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão.

Segundo a liquidação de pena desses autos, o recluso atinge o meio da pena em 11/01/2021 e o termo da pena em 11/10/2022.

Assim, apesar de terminar o cumprimento da pena em menos de 2 anos, a verdade é que o recluso não cumpriu ainda metade da pena, condição imposta pelo artigo 2º, nº 2, da Lei nº 9/2020, de 10/04.

Aliás, no ponto 3, do seu requerimento de habeas corpus, o recluso cita tal norma, transcrevendo-a correctamente e na íntegra.

Não poderá, consequentemente, por ora, beneficiar do perdão dos autos.

Em vez de requerer a aplicação do perdão, nos termos vertidos na petição de habeas corpus, o requerente entendeu dar entrada da providência requerida.

Não lhe assistia razão, dado que o recluso não se encontra privado da liberdade ilegalmente mas em cumprimento de uma pena de prisão, virtude de uma condenação, em pena de prisão efectiva, transitada em julgado.

Até que a pena fosse julgada perdoada e o recluso se mantivesse preso, sempre inexistiria fundamento para a presente providência.

No entanto, conforme se verifica do despacho supra, não assiste razão ao requerente no requerimento que faz, porquanto o recluso não se encontra em condições de beneficiar do perdão concedido pela Lei nº 9/2020, de 10/04, pelas razões supra aduzidas.

Deve, assim, improceder a requerida providência de habeas corpus, interposta pelo recluso AA, por total falta dos seus pressupostos.

Com relevo para a decisão da questão sub judice é o que cumpre informar.

Instrua os autos com certidão integral do apenso A, onde constam todos os elementos relevantes para o cumprimento de pena ora em execução”.

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3. Convocada a Secção Criminal e notificado o M.º P.º e o I. Defensor teve lugar a audiência, nos termos dos art.ºs 223.º, n.º 2 e 435.º, do CPP.

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II. Fundamentação

1. O circunstancialismo factual relevante para julgamento da presente providência é o que resulta quer da petição, quer da informação prestada pelo Exmo. Juiz, quer ainda da certidão junta e que assim se resume:

a) – O requerente foi condenado por acórdão transitado em julgado em 04.02.2019 pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade do art.º 25.º, alín. a), do DL n.º 15/93, de 22.01, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão;

b) – Iniciou o cumprimento da pena em 11.04.2019 e de acordo com a liquidação da pena, devidamente homologada, atinge o meio da pena em 11.01.2021 e o seu termo em 11.10.2022.

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2. Na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, pág. 508) essa medida “consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos art.ºs 27.º e 28.º (…). Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.

Como providência excepcional, o habeas corpus, constitui um mecanismo expedito que visa pôr termo imediatamente às situações de prisão manifestamente ilegais, tendo a ilegalidade da prisão que ser manifesta, ostensiva, grosseira, inequívoca e ser directamente verificável a partir dos factos documentados no respectivo processo.

Nesse contexto não é um recurso de uma decisão processual. Enquanto garantia fundamental de tutela da liberdade destina-se exclusivamente a salvaguardar o direito à liberdade e jamais a reapreciar vicissitudes processuais ocorridas no processo da condenação.

Tão-somente lhe compete apreciar se há privação ilegal da liberdade e, em consequência, ordenar, ou não, a libertação do preso (sobre toda esta temática, v. Maia Costa, Cód. Proc. Penal Comentado, Almedina, 2016, pp. 847 e 853).

No respeitante à ilegalidade da prisão, o seu tratamento processual decorre do art.º 222.º do CPP, cujo elenco taxativo o n.º 2 faz derivar do facto de: (a)ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; (b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; (c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

O requerente fundou o pedido no constante da alínea c), ou seja, de a situação de prisão se manter para lá do prazo máximo legalmente fixado, na medida em que, faltando-lhe cumprir menos de 2 anos de prisão para o fim da pena e não constando o crime perpetrado do elenco do n.º 6 do art.º 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10.04, já lhe deveria ter sido concedido o perdão do remanescente da pena em 11.10.2020.

A Lei n.º 9/2020 que instituiu um “regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19”, estabeleceu na alín. a) do n.º 1do art.º 1.º um perdão parcial de penas de prisão, limitando o n.º 1 do seu art.º 2.º a duração dessas penas a quantum igual ou inferior a 2 anos.

Em desenvolvimento, dispôs no n.º 2 desse normativo que “[s]ão também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena”.

É este o preceito legal convocado para análise da pretensão exposta, cujo teor integral o requerente transcreveu, mas cuja parte final depois ignorou para sustentar o respectivo pedido, ou seja, não atendeu à copulativa “e” reportada ao cumprimento de metade da pena de prisão.

Como se referiu, o requerente foi condenado por crime que não integra qualquer das alíneas, excludentes, do n.º 6 do art.º 2.º da mencionada Lei, v.g., a alín. k), numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão e à data em que requereu a providência de habeas corpus (30.10.2020) levava cumprido 1 ano, 6 meses e 19 dias de prisão, o que significa q ue lhe falta, para cumprimento integral da pena, remanescente inferior a 2 anos.

Todavia, sendo de 1 ano e 9 meses de prisão a metade da pena que tem para cumprir, já se não verifica a condição legal do cumprimento de metade da pena, o que impede que, para já, possa beneficiar do perdão em causa.

Em suma, tendo em conta que o cumprimento da pena se iniciou a 11.04.2019 e que de acordo com a liquidação homologada o meio da pena só em 11.01.2021 se verifica (e cujo termo se prevê para 11.10.2022), o requerente ainda não pode beneficiar do perdão introduzido pela mencionada Lei n.º 9/2020.

Assim, porque a situação de prisão em que se encontra foi determinada por autoridade competente, foi motivada por facto pelo qual a lei permite, o qual se traduz na execução de uma pena de prisão resultante de uma condenação transitada em julgado e cujo prazo de cumprimento ainda se não esgotou, mesmo na perspectiva da concessão do perdão parcial introduzido pela Lei n.º 9/2020, não aplicável, dado não ter sido cumprida ainda metade da pena, não se verificando o fundamento legal invocada da alín. c) do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, nem qualquer outro, há que julgar infundada a pretensão requerida.

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III. Decisão

Face ao exposto, por falta de fundamento bastante, acordam em indeferir o pedido de habeas corpus formulado pelo requerente AA, cuja petição julgam manifestamente infundada.

Custas pelo requerente, com a taxa de justiça de 3 UC, acrescida da soma de 6 UC nos termos do n.º 6 do art.º 223.º do CPP.

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Supremo Tribunal de Justiça, 5 de Novembro de 2020

Francisco Caetano (Relator)

António Clemente Lima

Manuel Braz