Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
648/22.2PHAMD.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
HOMICÍDIO QUALIFICADO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Sumário :
I - Constitui motivo fútil, a que alude a al. e), n.º 2 do art. 132.º do CP, tirar a vida a outra pessoa na sequência de uma discussão com a vítima sobre o posicionamento do grelhador da comida para uma festa, pois, pelo seu pouco relevo, à luz dos padrões éticos da nossa comunidade, surge como não expectável e, ilógica, a desproporcionalidade, flagrante, entre a atitude da vítima e a conduta do arguido de lhe tirar a vida.
II - O arguido que na sequência de uma discussão entra na cozinha da residência da vítima, pega numa faca de cozinha, com 20 cm de comprimento de lâmina e, de seguida, no exterior da mesma residência, com ela desfere dois golpes incisos, corto-perfurantes, na zona anterior do tórax, vindo com esta conduta a causar a morte da vítima, bem sabendo que a detenção e uso da faca do modo descrito, era penalmente censurável, preenche todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), do RJAM, por referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m) e 3.º, n.os 1 e 2, al. ab), do mesmo diploma.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 648/22.2PHAMD.L1.S1


Recurso Penal


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.


I- Relatório


1. Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção de tribunal coletivo, o arguido AA, devidamente identificado nos autos, e realizada a audiência de julgamento o Tribunal Coletivo, por acórdão proferido a 7 de julho de 2023, decidiu julgar parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, consequentemente (transcrição parcial):


“- Condenar AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio, p. e p. pelo art.131.º do Código Penal, agravado pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no art.86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 14 (catorze) anos de prisão; de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1, al. d), com referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), e 3.º, n.ºs 1 e 2, al. f), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 1 (um) ano de prisão; e, em cúmulo jurídico destas penas, nos termos do art.77.º do Código Penal, condenar o mesmo arguido na pena única de 14 (catorze) anos e 3 (três) meses de prisão;


- Absolver AA da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e) e h), do Código Penal, agravado pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no art.86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02; (…).”


2. Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso, para o Tribunal da Relação de Lisboa, o assistente BB, em representação dos 2 filhos menores do ofendido – CC e DD, concluindo a sua motivação do modo seguinte:


concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):


A. O Tribunal a quo efetuou uma deficiente valoração da prova incorrendo, assim, em vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, assim como incorreu no vício de erro notório de apreciação da prova, nos termos respectivamente das al. a) e c) do nº 2 do art.º 410º do CPP


B. No acórdão recorrido o Tribunal a quo afasta a especial censurabilidade da conduta do arguido, e com ela a não qualificação do homicídio, por referência à existência de desentendimentos anteriores.


C. A eventual existência de desentendimentos não é bastante para afastar a especial censurabilidade da conduta do arguido.


D. O homicídio não ocorreu na residência da vítima, pelo que o “carácter impulsivo da actuação levada a cabo pelo arguido” que é equacionada pelo Tribunal como circunstância que leva ao afastamento da qualificação do crime, não pode colher.


E. O motivo fútil é considerado especialmente censurável em razão da desproporção entre a conduta concreta do agente e os motivos que a ela levaram


F. As circunstâncias em que o crime ocorreu revelam premeditação na prática dos factos por parte do arguido.


G. O Tribunal a quo tinha o dever de proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, enquadrando os mesmos, também, nos termos da al. j) do nº 2 do art.º 132º do Código Penal.


H. O acórdão recorrido deve ser revogado e deve o arguido ser condenado pela prática do crime de homicídio por referência às al. e) e j) do art.º132º do Código Penal.


Nestes termos, e mos mais de Direito que V. Exas Venerandos Juizes Desembargadores doutamente suprirão, deverá o arguido ser condenado pela prática do crime de homicídio Qualificado.”


3. Também irresignado com o acórdão proferido, dele interpôs recurso o arguido AA, para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo do seguinte modo (transcrição):


“1. Discordamos quer da condenação pelo crime de detenção de arma proibida quer da consequente agravação do crime de homicídio pelo uso de arma proibida.


2. Se assim não fosse, verificar-se-ia um alargamento da punibilidade a condutas que não representam qualquer perigo para o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora em causa, levando a que qualquer pessoa que saísse à rua com uma faca de cozinha de lâmina com um comprimento igual ou superior a 10 cm estivesse a cometer um crime de detenção de arma proibida.


3. Somos assim do entendimento que nas armas brancas o que contribui decisivamente para o preenchimento do quadro incriminatório é a natureza indefinida da sua funcionalidade e que uma faca de cozinha, ainda que não justificada a sua detenção, tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas) que não é a de meio de agressão contra pessoas, pelo que o uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida, impondo-se assim a absolvição do Recorrente pelo crime de detenção de arma proibida.


4. Igualmente, não havendo detenção de arma proibida, não pode operar o agravamento da pena quanto ao crime de homicídio simples p.p art 131º CP pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02.


5. Ainda que assim se não entendesse, o que por mero dever de patrocínio se concebe, entendemos que deve o Recorrente ser absolvido do crime de detenção de arma proibida por que vinha acusado, por se encontrar em concurso aparente com o crime de homicídio em que foi condenado, uma vez que apesar de ambos os crimes acautelarem bens jurídicos de diversa natureza a detenção ilegal de arma foi um crime meio relativamente ao crime-fim, o homicídio, e nele se esgotando.


6. Devendo assim o Recorrente ser condenado apenas pelo crime de homicídio p.p. art 131º CP numa pena nos seus limites mínimos atenta a ausência de antecedentes criminais.


7. Ainda que assim se não entenda, devemos aferir da justiça da espécie e medida das penas parcelares, bem como da pena única porque foi o Recorrente condenado.


8. Não considerou o tribunal à quo adequada à condenação pelo crime de detenção de arma proibida a pena de multa prevista na parte final do art.86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02.


9. Dos autos, da matéria de facto dada como provada no douto acórdão ora recorrido e das regras da experiência comum, parece-nos que a pena de multa colmatará as necessidades de prevenção geral e especial.


10. Pelo que a substituição da pena de prisão em que o recorrente foi condenado pelo crime de detenção de arma proibida por uma pena de multa ajustada em função da actuação e resultados obtidos pela actuação do recorrente, será o suficiente para precaver as necessidades de prevenção geral e especial no caso em concreto.


11. Caso assim se não entenda, sempre haverá que se aferir da medida das penas parcelares e da pena única aplicadas ao recorrente, as quais considera o Recorrente serem excessivas e prejudiciais à sua ressocialização.


12. É certo que o arguido praticou o crime, mas independentemente do alcance que o douto tribunal à quo deu à confissão do arguido, este confessou o mesmo e demonstrou o seu arrependimento.


13. Por todas estas razões, estamos em crer que deverão ser inferiores as penas parcelares a serem impostas ao recorrente, não devendo as mesmas ultrapassarem os limites mínimos legais


14. Devendo igualmente ser inferior a pena única aplicada em cúmulo jurídico.


15. O Tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 40° n.°s 1 e 2, 42° n.° 1, 50° n° 1, 53° 1, 43 n° 1 al. b), 70° e 71°, 379.º, n.º 1, alínea b), todos do CP , 27 n° 1, 1ª parte, e 13° n° 1, ambos da CRP.


TERMOS EM QUE, CONTANDO O INDISPENSÁVEL SUPRIMENTO DE VªS EXAS., DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, FAZENDO- SE DESTARTE A MAIS RECTA E SÃ JUSTIÇA.”


4. O Ministério Público junto do Juízo Central Criminal de ... respondeu ao recurso interposto pelo assistente, concluindo (transcrição):


“1. O acórdão proferido nestes autos condenou AA pela prática, em autoria material e em concurso real, de:


● um crime de homicídio, p. e p. pelo art.º 131.º do Código Penal, agravado pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no art.º 86.º, n.º 3, a Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 14 (catorze) anos de prisão;


● um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d), com referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), e 3.º, n.ºs 1 e 2, al. f), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 1 (um) ano de prisão.


➡Em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 14 (catorze) anos e 3 (três) meses de prisão.


2. Tendo-o absolvido da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts.º 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e) e h), do Código Penal, agravado pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no art.º 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02.


3. Os vícios do art.º410.º, n.º 2 são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.


4. Neste caso, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.


5. Ora, do texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação dos vícios apontados pelo Recorrente - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova - posto que daquele decorre que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e dele não resulta qualquer incompatibilidade entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, assim como nele não se detecta qualquer equívoco ostensivo contrário a facto do conhecimento geral ou ofensivo das leis da física, da mecânica, da lógica ou de conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos.


6. Na doutrina, ao motivo fútil tem sido atribuído o alcance de uma razão incompreensível para a generalidade das pessoas, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime, revelando o facto, inteiramente desproporcionado, repudiado pelo homem médio, profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana (cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, págs. 32-33 e Maia Gonçalves, CP Anotado).


7. A circunstância frieza de ânimo, traduz-se numa actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto (Cf. Figueiredo Dias, obra supra citada, 32).


8. No caso dos autos e tendo em consideração a factualidade dada como provada, não se pode concluir que o arguido tenha agido com frieza de ânimo.


9. De facto, não obstante, se ter deslocado à cozinha da vítima, onde foi buscar uma faca, não se pode concluir que o fez de acordo com um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo de preparação e execução do crime, que maquinou, por forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humanas.


10. Efectivamente, o arguido agiu de forma impulsiva e não de acordo com um plano que havia preparado.


11. Também não se pode considerar que o motivo tenha sido fútil, apesar de não ser justificado.


12. Efectivamente, já tinham ocorrido discussões entre ambos, em momento anterior.


13. Sendo que o arguido acabou por desferir os golpes com a faca na sequência de uma outra discussão.


14. Embora se possa considerar o motivo da discussão como insignificante, o facto é que a conduta do arguido resulta de uma discussão gerada pela localização de um grelhador.


15. Face ao exposto, bem andou o tribunal a quo ao desqualificar o crime de homicídio pelo qual veio a condenar o arguido.


16. No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito.”.


5. O Ministério Público no Tribunal de 1.ª instância respondeu, ainda, ao recurso interposto pelo arguido, concluindo (transcrição):


1.O Arguido/Recorrente AA foi condenado pela prática, em autoria material e em concurso real, de:


● um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131.º do Código Penal, agravado pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 14 (catorze) anos de prisão;


● um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), com referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), e 3.º, n.ºs 1 e 2, al. f), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 1 (um) ano de prisão.


➡ Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, pena única de 14 (catorze) anos e 3 (três) meses de prisão.


2. Com a alteração introduzida pela Lei n.º 50/2019, de 24.07 à Lei n.º 5/2006, de 23.02, o legislador passou a englobar na incriminação do art.º 86.º “a posse de objectos com idêntica potencialidade lesiva aos que já se mostravam incluídos na norma incriminatória, nomeadamente as armas brancas com aplicação definida, quando encontradas fora dos locais destinados à sua utilização e cuja posse não seja justificada”, seguramente por ter entendido, serem “igualmente susceptíveis de provocar lesão ou perigo de lesão dos bens jurídicos tutelados” por aquela norma (neste sentido vd. Acórdão do TRL, de 15.03.2022, disponível em dgsi.pt).


3. Ora, os factos dos autos foram praticados em 24.07.2022 e a faca utilizada pelo Recorrente tinha 33,5 cm (trinta e três centímetros e meio) de comprimento, sendo 20 cm (vinte centímetros) de comprimento de lâmina.


4. Foi trazida para a rua e aí utilizada, por ser o local onde se encontrava a vítima.


5. Não justificando o Recorrente a sua posse.


6. Mostram-se, assim, preenchidos os elementos do tipo de crime.


7. Pelo que bem andou o tribunal a quo ao condenar o Recorrente pela prática de um crime de detenção de arma proibida.


8. Como se defendeu no Acórdão do STJ, de 11.02.2016 (disponível em dgsi.pt) na consideração de que, tutelando um e outro dos ilícitos bens jurídicos distintos (ali, no crime de homicídio, a vida humana, aqui, no crime de detenção de arma proibida, a segurança das pessoas em geral, face aos riscos decorrentes da livre circulação, detenção, e uso de armas proibidas), verifica-se uma situação de concurso efectivo entre os referidos tipos legais quando os factos concretos determinativos da qualificação do crime de homicídio preenchem o crime de detenção de arma proibida, objecto de previsão no artigo 86.º, número 1, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 17/2009, de 06.05, n.º 26/2010, de 30.08, n.º 12/2011, de 27.04, e 50/2013, de 24.07.


9. Integrando a faca utilizada pelo Recorrente o conceito de arma proibida e não se verificando, na situação em apreço, nenhuma das excepções previstas na parte final do n.º 3 do art.º 86.º (porque o uso e porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo fundamental encontra-se previsto no artigo 131.º do Código Penal), a pena aplicável, pelo crime de homicídio cometido com a aludida arma, haverá que ser agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do disposto no n.º 4.


10. Pelo que bem andou o tribunal a quo ao condenar o Recorrente pelo crime de homicídio, p. e p. pelo art.º 131.º do Código Penal, agravado pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no art.º 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02.


11. O crime de homicídio, p. e p. pelo art.º 131.º do CP, com a agravação a que alude o art.º 86.º, nº 3 da Lei 5/2006, de 23.02, é punível com a pena de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses de prisão.


12. O crime de detenção de arma proibida previsto no art.º 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, é punível com pena de prisão de 1 mês até 4 anos ou com pena de multa de 10 até 480 dias.


13. De acordo com o disposto nos arts.º 70.º e 40.º do Cód. Penal, o juiz deve dar prevalência à pena não privativa da liberdade, desde que ela se mostre suficiente para a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. A escolha da pena depende assim exclusivamente de considerações de natureza preventiva, na sua dupla vertente positiva, geral (de integração: a proteção dos bens jurídicos) e especial (reintegração do agente na sociedade).


14. No vertente caso,


↪ as necessidades de prevenção geral a satisfazer com a punição pelo crime de detenção de arma proibida, são muito elevadas, dada a muita frequência com que este tipo de ilícito é cometido e a elevada quantidade de armas proibidas que são utilizadas na prática de crimes violentos e, designadamente, em situações como a dos persentes autos em que o arguido era portador na via pública de uma arma – faca – que utilizou para desferir facadas na vitima que foram causa directa e necessária da sua morte;


↪ as necessidades de prevenção especial a satisfazer com a sua punição, visando a sua ressocialização, são muito elevadas, considerando que cometeu um crime muito grave, a despeito dos seus antecedentes criminais por crimes de furto, furto qualificado e tráfico de menor gravidade, sendo que demonstrou indiferença pelas oportunidades que lhe foram concedidas pelo sistema judiciário através das penas não privativas da liberdade que anteriormente lhe foram aplicadas.


15. Face ao exposto, afigura-se necessário aplicar-se uma pena privativa da liberdade do Recorrente, o que se afigura proporcional em face da culpa muito intensa que foi assumida no cometimento dos factos.


16. Razão pela qual bem andou o tribunal a quo ao decidir que, no que respeita ao crime de detenção de arma proibida, apenas uma pena privativa da liberdade se mostrava adequada e suficiente às finalidades de punição.


17. Na determinação da medida da pena há que ter em consideração:


↪ a pluralidade de crimes cometidos pelo Recorrente;


↪o dolo, directo e muito intenso no que respeita aos crimes de homicídio e de detenção de arma proibida;


↪o grau de ilicitude dos factos que é extremamente elevado atentos os bens jurídicos violados e o modo de execução dos crimes – com recurso a uma faca, que desferiu os golpes de surpresa, colocando a vitima numa situação de impossibilidade de resistir, o que demostra indiferença pela vida humana;


↪ o grau de culpa, que é muito elevado, tendo utilizado uma faca e ultrapassando a barreira ética, que deve ser inultrapassável, da inviolabilidade da vida humana;


↪ a motivação do arguido: querer tirar a vida;


↪ as necessidades de prevenção geral, que são muito elevadas nos tipos criminais em causa;


↪ as necessidades de prevenção especial atentos os actos que cometeu e a personalidade que revela quem assim procede;


↪ que já regista antecedentes criminais, não obstante por crimes diferentes;


↪ reduzido juízo critico e que não revelou arrependimento;


↪ a sua inserção social e familiar.


18. Tudo ponderado, entendeu o tribunal a quo por adequada a aplicação da pena de:


➡ 14 anos e 6 meses de prisão quanto ao crime de homicídio p. e p. pelo art.º 131.º do Código Penal, agravado pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no artº. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02; e


➡ 1 ano de prisão pelo crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d), com referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), e 3.º, n.º 2, al. f), da Lei n.º 5/2006, de 23.02.


19. E, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, entendeu o tribunal a quo condenar o Recorrente na pena única de 14 (catorze) anos e 3 (três) meses de prisão.


20. Tendo em consideração que o limite mínimo é de 14 anos de prisão, a pena única aplicada, que se encontra muito perto do limite mínimo, mostra-se justa e adequada.


21. Face ao exposto, concorda-se inteiramente com o veredicto condenatório, por se entender que foi feita justiça e o direito bem aplicado;


22. No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito.


6. Por Decisão Sumária de 22/11/2023, o Ex.mo Desembargador relator no Tribunal da Relação de Lisboa, excecionou a incompetência desse e atribuiu-a ao Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no art. 42º, nºs 1 e 3, da LOSJ, e nos arts. 427º e 432º, nº 1, al. c) e nº 2, 1ª parte, do C.P.P. e, em consequência, determinou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, para apreciação dos recursos interpostos nos autos.


7. O Ex.mo Procurador-geral adjunto, neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido:


- Da competência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer dos recursos;


- Da procedência parcial do recurso do assistente, no que concerne à qualificação do homicídio pela verificação da circunstância «motivo fútil» prevista no art.132.º, n.º 2, al. e), parte final, do Código Penal;


- Da condenação do arguido na pena de 18 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, p. e p. pelos arts. 131.º, e 132.º, n.º 2, al. e), do Código Penal, e 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições e, em cúmulo jurídico com a pena de 1 ano de prisão aplicada pela prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pena única de 18 anos e 4 meses de prisão; e


- Da improcedência total do recurso do arguido, embora o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1, al. d), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, deve ser feita por referência á alínea ab), n.º2 do art.3.º, do mesmo diploma.


8. Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2 do C.P.P. , não houve resposta.


9. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.


II- Fundamentação


10. A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes do acórdão recorrido é a seguinte (transcrição):


1. Factos provados


1º. No dia 24 de Julho de 2022, cerca das 12h00, o arguido AA, conhecido pela alcunha “CJ”, deslocou-se para a Avenida ..., junto ao n.º 42, na ..., concelho da ..., a fim de participar num churrasco para celebrar o aniversário de uma amiga.


2º. Essa festa de aniversário começou à hora do jantar, mas o arguido e outras pessoas chegaram mais cedo para começar os preparativos.


3º. EE (adiante designado por EE) residia na ... do n.º 42, estava na sua habitação e, apesar de não ter participado na festa, esta teve lugar junto à sua porta.


4º. EE e o arguido conheciam-se há vários anos e o arguido era frequentador habitual da residência daquele, local onde também residia FF, primo de EE.


5º. A festa de aniversário teve início, e a determinada altura, em hora não concretamente apurada, ao fim da noite, EE e o arguido desentenderam-se por causa do posicionamento do grelhador utilizado para grelhar a comida para a festa e começaram a discutir.


6º. Na sequência dessa discussão, cerca das 02h30/03h00 do dia 25 de Julho de 2022, o arguido deslocou-se ao interior da residência de EE, entrou na cozinha, pegou numa faca com 33,5 cm (trinta e três centímetros e meio) de comprimento, sendo 20 cm (vinte centímetros) de comprimento de lâmina, deslocou-se para o exterior, junto ao parque da Mina, situado nas traseiras da residência, e aí abordou EE.


7º. Acto contínuo, e sem que nada o fizesse prever, o arguido empunhou a faca de cozinha de que previamente se munira, aproximou-se de EE e desferiu-lhe dois golpes incisos, corto-perfurantes, na zona anterior do tórax, um deles no centro e o outro ligeiramente à esquerda, tendo abandonado o local de imediato, levando consigo a referida faca, que escondeu, uns metros mais à frente, no interior de uma sarjeta.


8º. Perante tais factos, FF, que se encontrava no local, prestou auxílio a EE, ajudando-o a ir até à porta da residência, local onde solicitaram ajuda e a presença de ambulância VMER.


9º. Nessa mesma ocasião, EE foi encaminhado para o Hospital ....


10º. Como consequência directa da conduta do arguido e em face dos ferimentos graves que sofreu, nomeadamente um trauma com arma branca na região torácica anterior, com duas feridas incisas profundas, sem hemorragia activa, EE veio a falecer no Hospital ..., pelas 04h08.


11º. Em consequência das agressões, EE sofreu duas feridas que perfuraram o tórax no nível do 1.º espaço intercostal anterior esquerdo, atingindo ambas o pulmão homolateral numa profundidade estimada entre os 7 e os 9 cm, as quais determinaram directa e necessariamente a sua morte.


12º. Ao agir da forma descrita, desferindo dois golpes incisos, corto-perfurantes, na zona anterior do tórax de EE, utilizando uma faca com as dimensões acima mencionadas, o arguido agiu com o propósito, que concretizou, de tirar a vida a EE, bem sabendo que a sua actuação era idónea a tanto, tendo em conta os meios usados e que as áreas por si visadas continham órgãos essenciais à vida.


13º. O arguido conhecia as características da referida faca e bem sabia que a mesma, quando usada contra outrem, tinha capacidade de causar não só lesões graves, mas também a morte, o que representou e concretizou quanto a EE.


14º. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei criminal.


15º. Em consequência directa dos factos praticados pelo arguido, EE sofreu traumatismos, tendo necessitado de receber assistência hospitalar, cuidados médicos que foram prestados pelo HOSPITAL ..., E.P.E., no valor global de 173,86 € (cento e setenta e três euros e oitenta e seis cêntimos).


16º. BB e GG são pais de EE.


17º. CC e DD (adiante designados por CC e DD), actualmente com 12 anos e 7 anos de idade, são filhos de EE, encontrando-se ao cuidado e sob a responsabilidade dos avós paternos.


18º. Aquando do referido no ponto 8.º dos factos provados, EE teve consciência da sua morte iminente e nessa sequência gritou “vou morrer, vou morrer” e disse “foi o AA”, nos braços do seu pai, que assistiu impotente ao seu desfalecimento.


19º. CC viu o pai ensanguentado e desfalecido nos braços do avô.


20º. O dia do falecimento do pai ficou marcado nas memórias de CC e DD, tendo ocorrido a dois dias do aniversário do CC e a menos de um mês do aniversário do DD, alturas estas que deixaram de ser de celebração e passaram a ser de tristeza e desespero.


21º. EE tinha 27 anos à data da sua morte, era muito estimado pela família e pelos amigos e um pai extremoso, e a sua morte provocou-lhes choque e sentimentos de vazio, angústia e preocupação pelo futuro dos seus filhos.


22º. O arguido já foi condenado:


- por sentença proferida em 13.07.2017, transitada em julgado em 26.01.2018, no Proc. n.º 1294/16.5... do Juízo Local Criminal de Albufeira – Juiz 2, pela prática, em 07.07.2016, de um crime de furto e de um crime de furto na forma tentada, nas penas parcelares de 130 dias e de 60 dias de multa, à taxa diária de 5 €; em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 160 dias de multa, à taxa diária de 5 €; esta pena foi declarada extinta, pelo pagamento, em 14.10.2019;


- por sentença proferida em 25.01.2018, transitada em julgado em 18.03.2019, no Proc. n.º 429/17.5... do Juízo Local de Pequena Criminalidade de ... – Juiz 2, pela prática, em 29.07.2017, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a), com referência ao art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, e à tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo; esta pena foi declarada extinta, com fundamento no disposto no art. 57.º do Código Penal, em 18.05.2020;


- por sentença proferida em 21.04.2022, transitada em julgado em 23.05.2022, no Proc. n.º 302/22.5... do Juízo Local Criminal da ... – Juiz 1, pela prática, em 14.04.2022, de um crime de furto qualificado, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo.


23º. O arguido, de nacionalidade portuguesa, nasceu em ........1993, na Guiné-Bissau, sendo o mais velho de quatro filhos.


24º. Desde os quatro anos de idade o seu processo evolutivo decorreu em Portugal, tendo acompanhado os pais no processo de emigração para este país, estadia que se manteve durante cerca de oito anos, após o que o agregado optou por fixar residência em Inglaterra, na cidade de ..., procurando melhores condições de vida.


25º. O seu crescimento decorreu em ambiente coeso e marcado por alguma intervenção pedagógica por parte da figura materna, ainda que com algum abaixamento no controlo do seu quotidiano, devido aos compromissos laborais do casal constituído pelos pais, do pai como trabalhador na construção civil e da mãe como empregada de limpezas.


26º. AA iniciou os estudos em Portugal e prosseguiu-os em Inglaterra, onde concluiu o equivalente ao 11.º ano de escolaridade.


27º. Vendo-se então “forçado” a abandonar esse país, em circunstâncias que não quis explicar, regressou a Portugal, onde contou com o apoio de familiares que o acolheram, tendo prosseguido os estudos e terminado o 12.º ano de escolaridade, a que se seguiu o ingresso no 1.º ano do curso superior de Tecnologias de Informação e Comunicação, na universidade de Braga, de que, contudo, desistiu nesse mesmo ano, optando por se deslocar para o ....


28º. Teve um trajecto laboral marcado por desempenhos indiferenciados em vários sectores profissionais, no nosso país e, posteriormente, na Holanda, na Bélgica e em França; o seu percurso laboral até ao presente foi pouco significativo, marcado por desempenhos curtos e indiferenciados.


29º. Num curto período de férias em Portugal, vindo da Holanda, esteve privado da liberdade no E.............. ......... .. ......, após o que regressou à Holanda, deslocando-se de seguida para a Bélgica.


30º. Regressou a Portugal em 2019, tendo ficado alojado em casa de uma tia, na Praceta ..., ... -..., e realizando tarefas indiferenciadas e sem qualquer vínculo laboral no sector da construção civil.


31º. Deslocou-se novamente a França, onde esteve cerca de um mês, após o que regressou a Portugal, indo viver com HH, seu amigo, que veio a falecer vítima de circunstâncias descritas noutro processo judicial.


32º. AA iniciou-se no consumo de canabinóides aos catorze anos de idade, consumindo também, pontualmente, ecstasy; no período em que ocorreram os factos supra descritos a que se refere este processo, consumia habitualmente haxixe e, ocasionalmente, procedia à ingestão abusiva de bebidas alcoólicas.


33º. No âmbito dos presentes autos, foi detido em 25.07.2022 e está sujeito a prisão preventiva desde 27.07.2022.


34º. Ao tempo estava a residir há cerca de três meses na habitação da tia e das primas, na morada referida no ponto 30.º, mantendo com esses familiares um bom relacionamento, e já tivera outro desentendimento com EE.


35º. Não tinha qualquer actividade laboral estruturada, realizando apenas trabalhos ocasionais no sector da construção civil.


36º. No futuro, logo que lhe seja permitido, tenciona deslocar-se para França e aí fixar residência.


37º. Tem um discurso organizado e assertivo e uma postura só aparentemente calma, evidenciando dificuldades na capacidade de controlo pessoal, especialmente na gestão de impulsos em contextos de adversidade, revelando tendência para agir de forma reactiva e de acordo com a sua carga emotiva, sem reflexão sobre os seus comportamentos.


38º. No presente contexto prisional, tem mantido uma postura adequada, ocupando o tempo na sua cela ou em actividades recreativas junto de companheiros de reclusão.


39º. Revela falta de motivação para a sua reorganização pessoal, especialmente em termos do seu investimento formativo, sobrepondo-se uma conduta pessoal direccionada para o presente, sem grande ponderação no plano futuro, o que está associado a falta de responsabilidade pessoal e social.


40º. O arguido, pese embora ciente da gravidade das implicações dos factos supra descritos a que se refere este processo, revela reduzido juízo crítico e não manifestou arrependimento quanto aos mesmos.


2. Factos não provados


Não se provou que:


a) EE e o arguido eram amigos;


b) EE faleceu nos braços do seu pai;


c) CC e DD viviam com o pai em casa deste;


d) CC e DD presenciaram o desfecho das descritas acções do arguido;


e) DD viu o pai ensanguentado e a desfalecer nos braços do avô;


f) CC e DD escutaram as últimas palavras que o seu pai proferiu;


g) EE era uma pessoa saudável e alegre;


h) EE era solteiro;


i) EE trabalhava numa empresa de segurança privada e auferia um salário mensal de cerca de 1100 €;


j) EE era um trabalhador aplicado e tido em grande consideração pelos superiores hierárquicos e demais colegas de trabalho.


3. Motivação da matéria de facto


A convicção do tribunal quanto à matéria de facto provada vertida nos pontos 1.º a 21.º resultou da análise crítica e conjugada, de acordo com as regras da experiência e da lógica, de toda a prova produzida, nomeadamente:


- das declarações do arguido em audiência de julgamento e em primeiro interrogatório judicial de arguido detido - realizado em 27.07.2022, cujo auto consta de fls. 139 a 144, estando gravadas no sistema Citius, e de que o arguido, o assistente e o Ministério Público afirmaram em audiência de julgamento estarem inteirados, considerando-as reproduzidas nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 357.º, n.º 1, al. b), com referência ao art.141.º, n.º 4, al. b), e 355.º do Código de Processo Penal;


- das declarações do assistente BB, pai de EE;


- do depoimento da testemunha FF;


- das declarações prestadas por FF, perante a Polícia Judiciária, constantes das linhas 18 a 21 do auto a fls. 63, lidas em audiência de julgamento a requerimento do arguido e com respeito pelo disposto no art.356.º, n.ºs 2, al. b), e 5, do Código de Processo Penal;


- do teor do auto de notícia constante de fls. 155 e 156, no que toca à data, às horas da ocorrência e da sua comunicação, ao local e à identificação das pessoas nele mencionados;


- do respectivo aditamento constante de fls. 159, datado de 25.07.2022, pelas 18h40, dando conta de que então o arguido compareceu na 60.ª Esquadra da PSP;


- da comunicação de notícia de crime constante de fls. 45 a 47;


- do relatório de inspecção judiciária nessa sequência realizada, constante de fls. 24 a 44, com ortofotomapas e fotografias do percurso subsequentemente aos factos feito por EE até à sua residência, no qual foram encontrados vestígios hemáticos, do acesso para o ... através da Av. ..., do primeiro vestígio hemático ali localizado e recolhido, do percurso efectuado pela vítima com sinalização do segundo vestígio hemático recolhido, dos pormenores dos vestígios hemáticos que sinalizavam o caminho percorrido pela vítima desde o local das facadas até à sua casa, do portão da casa da vítima onde eram visíveis vestígios hemáticos (cfr. fls. 27 a 34), das lesões que a vítima apresentava – verificando-se a presença de duas feridas incisas profundas na região torácica anterior do seu corpo e ainda uma lesão de defesa na mão esquerda (cfr. fls. 35 a 37) –, da sarjeta onde foi encontrada a faca utilizada pelo arguido e dessa faca (cfr. fls. 39 a 41);


- do auto de apreensão dessa faca e do calçado e de roupa entregues pelo arguido à Polícia Judiciária, constante de fls. 103;


- da reportagem fotográfica relativa ao arguido, constante de fls. 126 a 129, sem sinal de qualquer lesão;


- da documentação clínica constante de fls. 6 e 7 e 78 a 83, reveladora do local e da hora do falecimento de EE e das respectivas lesões, a que se refere o ponto 10.º dos factos provados;


- dos autos de visionamento de conteúdos multimédia (imagens de videovigilância referidas a fls. 315 e 320 e gravadas nos DVD e CD juntos a fls. 185 e 187) constantes de fls. 315 a 319 e de fls. 320 a 323, que, em conjugação com a restante prova produzida - entre ela as imagens da roupa pelo arguido entregue à Polícia Judiciária e a faca apreendida -, permitem verificar o trajecto que o mesmo fez, em passo acelerado, em direcção à porta do prédio onde residia EE, referido no ponto 3.º dos factos provados, e depois, com a referida faca, a correr na direcção descendente da Avenida onde ficava aquele prédio, aparentemente na direcção do ...;


- do auto de reconhecimento pessoal constante de fls. 366 e 367, feito pelo ora assistente relativamente ao arguido, que reconheceu, para além de toda a dúvida, como “frequentador da casa do seu filho EE”;


- do auto de reconhecimento pessoal constante de fls. 368 e 369, feito por FF relativamente ao arguido, que reconheceu, para além de toda a dúvida, como “autor das agressões que vitimaram o seu primo EE”;


- do relatório de exame pericial constante de fls. 191 a 200, referente à reportagem fotográfica e recolha de vestígios efectuada no dia 25.07.2022, nos locais ali mencionados;


- do relatório de exame pericial constante de fls. 204 e 205, referente à mencionada faca;


- do relatório de exame pericial (inspecção judiciária) constante de fls. 217 a 231;


- do relatório de autópsia médico-legal constante de fls. 356 a 363, que evidencia o especificamente plasmado no ponto 11.º dos factos provados;


desse relatório se extrai, também, que EE revelou uma taxa de alcoolemia, reportada ao tempo da morte, de um grama e trinta e nove centigramas por litro, bem como a presença de cocaína e seus metabolitos;


- da factura constante de fls. 472 v.º, que reflecte o valor dos cuidados médico-hospitalares a que se refere o ponto 15.º dos factos provados;


- das cópias, constantes sob a referência Citius .......54, de 07.06.2023, dos documentos de identificação dos netos do assistente, filhos de EE, por aquele exibidos em audiência de julgamento, na sequência do que, por deliberação do tribunal, ao abrigo do disposto no art.340.º do Código de Processo Penal, foram juntas aos autos;


- da certidão da acta de acordo de promoção e protecção junta sob a referência Citius .......63, de 28.06.2023.


Importa referir que:


As declarações prestadas pelo arguido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido e em audiência de julgamento têm idêntico conteúdo.


Nelas o arguido revelou que os factos ocorreram nos termos plasmados na factualidade provada, com a ressalva de que já tinham ocorrido desentendimentos anteriores com EE - que, segundo referiu, era um “bully”, que ali sempre teve problemas com toda a gente, que previamente lhe deu uma cabeçada e cujo cão também se encontrava agressivo -, e de que


pensava que o tinha atingido no ombro/braço, não tendo pretendido matá-lo e só tendo sabido do falecimento deste no dia seguinte - depois de acordar, comer qualquer coisa e tomar café -, quando um amigo lhe disse que a polícia andava à sua procura.


Referiu que foram II, primo de EE, e JJ quem lhe disse que tinha sido EE a partir o grelhador e que foi nessa sequência que (o arguido) foi ter com este último e acabou por, naquele contexto de agressividade por parte de EE, lhe desferir as duas facadas.


Revelou que tinha conhecimento das câmaras existentes no local e da possibilidade de II ter assistido ao momento em que desferiu as facadas em EE.


Referiu que, na sequência destas, saiu do local, em fuga, tendo então colocado a faca na sarjeta onde, depois, quando se entregou, após falar com a família sobre o sucedido e porque não podia/queria andar fugido, disse à polícia que aquela se encontrava.


Em momento algum o arguido demonstrou qualquer empatia relativamente à vítima, comoção ou arrependimento pela sua conduta.


II revelou ter assistido à “conversa” entre o arguido, que claramente já conhecia, e EE, bem como à descrita agressão por aquele a este com a faca, tendo visto o arguido a encetar fuga de seguida, após o que FF levou EE para casa, tendo este dito “me ajuda, que eu vou morrer”.


Revelou também que, aquando daquela “conversa”, EE não agrediu o arguido, nem o cão daquele ali se encontrava (estava em casa), e que já tinha visto o arguido e EE nessa noite, cerca da meia-noite, sentados no sofá em casa do EE, na sala; referiu ainda que o arguido “era o menino de confiança do EE”.


BB, pai de EE, revelou que só viu o filho quando o mesmo já tinha sido agredido, tendo este então apenas dito “vou morrer, vou morrer” e que tinha sido “o CJ” (“DJ”/”CJ”, percebeu), “o AA”; mais revelou que ligou para “o INEM” mas que foi o filho mais velho de EE, actualmente com 12 anos, quem falou, porque BB, com a emoção, muito nervoso, não o conseguia fazer; o outro neto estava “lá em cima” a dormir; EE vivia na cave e os pais no rés-do-chão.


À parte isso, as declarações de BB - claramente em sofrimento pelo falecimento do filho e pelo respectivo impacto também para a mãe e para os filhos deste -, foram convincentes no que tange à relação afectuosa deste para com a família, nomeadamente para com os filhos – revelando que o mesmo era um pai presente, ia buscar os filhos à escola, dava-lhes banho e passava-lhes a roupa a ferro –, mas, atendendo ao conteúdo vago do que afirmou e ao modo praticamente evasivo e não convicto como o fez, não o foram no que tange ao conhecimento da actividade profissional e dos rendimentos do filho, tendo ainda revelado que não conhecia pessoas com quem o mesmo trabalhasse.


BB referiu que o filho EE era uma pessoa sempre bem-disposta e amável.


Quanto à família isso revelou-se claramente convincente, pelo tom sentido e pelo pormenor da descrição.


Também disse que “o AA nunca foi lá a casa por ser amigo do filho” e descreveu o filho como uma pessoa que “não tinha nada contra ninguém”, que “gostava de pessoas” e que “iam muitas a casa dele”.


Verificou-se, todavia, pelo depoimento de FF – que também revelou gostar muito de EE, não pretender prejudicar o arguido e, tudo analisado, incluindo o a respeito declarado pelo arguido, saber que foi o próprio FF quem disse ao arguido que fora EE quem partira “o fogareiro” e o colocara no lixo e que foi nessa sequência que o arguido foi confrontar EE, o que explica (por um injustificado sentimento de culpa pela subsequente actuação do arguido contra EE) o carácter evasivo, apenas no que a isso concerne, do seu depoimento –, que o arguido “era o menino de confiança do EE” (o que não significa que a respectiva relação fosse de amizade) e que por vezes dormia em casa deste, que por sua vez não fora convidado para a festa e que estava, pelas 02h30/03h00, no referido parque/jardim.


E o relatório de autópsia de EE revela que o mesmo tinha consumido álcool e cocaína, como supra referido.


Tudo evidencia, assim, que EE tinha um lado conhecido e um modo de estar para a família e outros, distintos, relativamente a outras pessoas, tendo nomeadamente com o arguido uma relação que oscilava entre entendimentos e desentendimentos cuja concreta natureza/razão de ser não foi possível apurar.


Das referidas fotografias do arguido (cfr. fls. 126 a 129) e do seu vestuário (cfr. fls. 41) resulta claro que o mesmo não apresentava qualquer lesão na sequência dos factos em causa - nem marcas de luta, nem de defesa -, e que o seu casaco (que referiu ter sido agarrado por EE no contexto que descreveu) não se encontrava rasgado.


A mencionada documentação clínica, o teor do relatório de autópsia médico-legal, as duas feridas na região torácica anterior do corpo de EE e ainda a lesão, evidentemente de defesa, na mão esquerda deste, visíveis nas fotografias constantes de fls. 35 a 37, permitiram ao tribunal concluir, sem actos.


Os factos ocorreram na via pública; a testemunha FF presenciou-os, tendo identificado o arguido, que também conhecia como “CJ”, como o autor da agressão; do ..., onde ocorreram, como revelado por FF, até à casa da vítima, a Polícia Judiciária localizou diversos vestígios hemáticos, reveladores de que, após a agressão, EE caminhou apeado até à respectiva residência (cfr. relatório de inspecção judiciária); da mencionada documentação clínica resultou que, tendo nessa sequência sido transportado para o referido Hospital, com duas feridas incisas na região torácica anterior, foi verificado o óbito de EE aquando da sua admissão na Sala de Reanimação, às 04h58 do dia 25.07.2022; nas imagens de videovigilância vê-se o arguido a fugir com a faca; ciente de que estava identificado como autor dos factos, o arguido entregou-se à polícia e identificou a sarjeta onde escondera a faca, que dali foi recolhida; nas fotografias do mesmo nessa sequência captadas não se observa qualquer lesão decorrente de agressões que alegou terem sido por EE contra si cometidas, verificando-se que tal não ocorreu nos momentos que precederam as facadas de que este foi vítima; no relatório de autópsia médico-legal conclui-se que constituíram causa adequada da morte de EE as duas feridas corto-perfurantes na região do tórax, tendo ambas atingido o pulmão, numa profundidade entre os 7 cm e os 9 cm, feridas essas que se vêem a fls. 35 e 36.


Verificou-se, pelas razões supra expostas, a falta de verdade do alegado pelo arguido na parte em que negou os factos que se provaram e apresentou distinta versão do sucedido, tendo evidentemente procurado aligeirar a verificação da sua responsabilidade, referindo-se a um pretenso contexto de reacção sua a agressões por parte de EE, acompanhado do respectivo cão, e à inexistência de intenção de o matar ou da percepção de que desferira as facadas onde se verificou que as desferiu, sustentando que lhas dirigiu para o ombro ou para o braço e que o fez para se defender.


Importa ainda realçar que resultou claro que houve, em diversas ocasiões anteriores àquela em que verdadeiramente ocorreram as facadas, desentendimentos entre o arguido e a vítima e que, apesar disso, o arguido fez questão de se dirigir a esta, EE, e de a confrontar, tendo-se para tal munido de uma faca de cozinha com uma lâmina com cerca de 20 cm de comprimento, que efectivamente contra ele então usou, como descrito, manifestando até ao presente, pelo conteúdo das suas declarações em conjugação com a atitude carecida de emoção com que as prestou, a ausência de remorso pelo resultado das suas acções, procurando falsamente imputar à vítima a respectiva causa.


Do exposto decorre, assim também, que a actuação do arguido não resultou apenas de uma discussão relacionada com o posicionamento de um grelhador numa festa de aniversário, mas igualmente de desavenças anteriores com EE, já pelo arguido considerado como uma pessoa com personalidade belicosa.


E foi nesse contexto que, tendo-lhe sido dito por FF que tinha sido EE a partir o grelhador e a colocá-lo no lixo, o arguido se muniu da mencionada faca de cozinha, que se encontrava na cozinha da habitação de EE, e se dirigiu ao ... para o confrontar, tendo então sido seguido por FF, que assim só teve tempo de ver o arguido


(conhecido por “CJ”), com a faca que empunhou, a desferir duas facadas no peito de EE e a fugir de seguida, também como se extrai das linhas 18 a 21 do auto a fls. 63, cuja leitura foi realizada em audiência de julgamento com respeito pelo disposto no art. 356.º, n.ºs 2, al. b), e 5, do Código de Processo Penal, como supra referido.


O número de golpes efectivamente desferidos pelo arguido na vítima é superior ao número daqueles que o arguido alegou ter desferido, uma vez que, conforme consta do relatório de autópsia médico-legal, a vítima apresentava quatro ferimentos corto-perfurantes: três na região do tórax e um no 4.º dedo da mão esquerda, típico de defesa.


Por tudo o exposto, pela análise crítica e conjugada, de acordo com as regras da experiência e da lógica, de toda a prova produzida, o tribunal concluiu, sem qualquer dúvida, que se verificou o descrito nos pontos 1.º a 21.º da factualidade provada.


O descrito no ponto 22.º resultou provado com base no teor do CRC do arguido, junto sob a referência Citius 23605711, de 21.06.2023.


Quanto aos factos provados relativos à situação pessoal do arguido, plasmados nos pontos 23.º a 40.º, o tribunal atendeu ao teor do respectivo relatório social, constante sob a referência Citius 23508497, de 06.06.2023, na medida em que se revelou credível, em face dos elementos que suportaram a elaboração desse documento e da sua análise crítica e conjugada, de acordo


com as regras da experiência e da lógica, com toda a prova produzida no que concerne à restante factualidade provada, a que nesta sede o tribunal também atendeu, cabendo ainda referir que a apreensão sentida pelo arguido pela privação da sua liberdade ou a preocupação quanto às implicações da prática dos factos para o próprio em medida nenhuma se confundem com qualquer arrependimento, que em momento nenhum o mesmo revelou sentir.


Não foi produzida prova do vertido nos factos não provados (als. a) a j)), sendo de realçar que, pelas razões a respeito supra expostas, resultou duvidoso o vertido nas respectivas als. a), c), g), e i) e infirmado o vertido nas als. b), d), e) e f).


A restante matéria alegada é conclusiva, genérica, meramente argumentativa, de direito ou referente a elementos probatórios, razão pela qual não foi considerada como factualidade provada ou não provada.


*


11. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 1 e de 24-3-1999 2 e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103).


São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar 3, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.


Como bem esclarecem Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art.684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).


No caso dos autos, face às conclusões da motivação do assistente BB as questões a decidir são as seguintes:


I – Da existência dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório de apreciação da prova, a que aludem, respetivamente, as alíneas a) e c), n.º 2, do art.410.º do Código de Processo Penal; e


II – Da verificação das qualificativas do homicídio previstas nas alíneas e) e j), n.º2 do art.132.º do Código Penal.


Tendo em consideração as conclusões da motivação do recurso interposto pelo arguido AA, as questões a decidir são, por sua vez, as seguintes:


A) – Do não preenchimento do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1, al. d), com referência aos artigos 2.º, n.º 1, al. m), e 3.º, n.ºs 1 e 2, al. f), da Lei n.º 5/2006, de 23.02,


B) Do não agravamento do crime de homicídio pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no art.86.º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02;


C) Do concurso aparente entre os crimes de detenção de arma proibida e de homicídio;


D) Da escolha da pena de multa no que respeita ao crime de detenção de arma proibida; e


E) Do excesso das medidas das penas parcelares e única aplicadas.


*


12. Apreciando.


12.1 Previamente ao conhecimento do objeto do recurso, impõe-se fazer uma breve consideração sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça para o conhecimento dos recursos, na medida em que o assistente e o arguido dirigiram o mesmo ao Tribunal da Relação de Lisboa e, tendo a 1.ª instância remetido os autos para a Relação de Lisboa, o Ex.mo Desembargador relator Ex.mo Desembargador relator, por Decisão Sumária de 22/11/2023, excecionou a incompetência desse Tribunal e atribuiu-a ao Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no art.42.º, n.ºs 1 e 3, da LOSJ e artigos 427.º e 432.º, n.ºs 1, al. c) e 2, 1ª parte, do C.P.P. e, em consequência, determinou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, para apreciação dos recursos interpostos nos autos.


Vejamos.


O art.432.º do Código de Processo Penal, estabelecendo taxativamente os casos em que tem lugar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, dispõe atualmente e com interesse para esta questão :


«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:


(…)


c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;».


(…)


2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º.».


O n.º 2 do artigo 432.º do CPP, evidencia claramente a obrigatoriedade do recurso per saltum, desde que o recorrente tenha em vista a reapreciação de pena aplicada em medida superior a 5 anos de prisão e vise exclusivamente a reapreciação da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.


A Relação só tem competência para o conhecimento do recurso de pena aplicada em medida superior a 5 anos de prisão se o recorrente, ao provocar a reapreciação do caso penal, quiser abranger a chamada impugnação ampla da matéria de facto.


O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2017, decidiu, ainda, com interesse para a presente questão, fixar jurisprudência no sentido de que «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.».4


No caso em apreciação, o objeto do recurso, proferido por um tribunal coletivo, em que foi aplicada ao recorrente uma pena única de 14 anos e 3 meses de prisão – e a essa dimensão se deve atender para definir a competência material –, pelo que, estando em equação uma deliberação final de um tribunal coletivo, visando o recurso o reexame de matéria de direito (circunscrito à qualificação do homicídio, ao conhecimento da agravante prevista no art.86.º, n.º3 do RGAM, subsunção dos factos provados ao crime de detenção de arma proibida e à escolha e determinação de penas parcelares e única), bem como aos vícios a que aludem as alíneas a) e c), n.º 2, do art.410.º do Código de Processo Penal, cabe efetivamente ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer do recurso.


Conclui-se assim que, neste caso, os recursos interpostos pelo assistente e pelo arguido são diretos, per saltum, sendo o Supremo Tribunal de Justiça o competente para os conhecer, nos termos do art.432.º, n.ºs 1, alínea c) e 2, do Código de Processo Penal.


13. Do recurso do assistente BB


13.1. Dos vícios das alíneas a) e c), n.º 2, do art.410.º do Código de Processo Penal


O art.410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:


a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;


b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou


c) O erro notório na apreciação da prova.


Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P., que são de conhecimento oficioso, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.


As normas da experiência comum são, na lição de Cavaleiro de Ferreira «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.».5


O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) deste preceito, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.


Como bem anota Pereira Madeira “Se se constatar que o tribunal averiguou toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objecto do Processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de «não provado», então o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão”6.


Para afirmação deste vício importa, pois, perspetivar o objeto do processo, fixado pela acusação e/ou pela pronúncia, complementada pela pertinente defesa.


Só existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto provada se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes que integram o objeto do processo e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.7


O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, a qual resulta da convicção do julgador e das regras da experiência ( art.127.º do C.P.P.).


Quanto ao erro notório na apreciação da prova, a que alude a alínea c), n.º 2, do art.410.º do C.P.P., verifica-se o mesmo quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.


No dizer de Leal-Henriques e Simas Santos, existirá este vício, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. 8


O erro notório na apreciação da prova tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média, e nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento.


14.1.2. O assistente BB sustenta que o acórdão recorrido incorreu nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, dado que “o Tribunal a quo efetuou uma deficiente valoração da prova” (conclusão A) da motivação).


Neste sentido alega, em síntese: (i) do depoimento da testemunha FF e das declarações do arguido, que constam da fundamentação do acórdão recorrido, resulta que não se fez prova da existência de desentendimentos anteriores entre a vítima EE e o arguido, factualidade esta em que o acórdão recorrido se sustentou para afastar a especial censurabilidade da conduta do arguido e, com ela, a desqualificação do homicídio; (ii) a eventual existência de desentendimentos também não é bastante para afastar a especial censurabilidade da conduta do arguido, que entrou na casa da vítima e dela retirou a faca com que cometeu o crime, por causa do posicionamento do grelhador.


14.1.3. Vejamos.


Quanto à existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.


É perante os factos imputados ao arguido na acusação e alegados pela defesa, sem esquecer os que eventualmente resultarem da discussão da causa, que se impõe decidir se o Tribunal investigou ou não todos os elementos relevantes para a decisão da matéria de facto provada e, assim, se esta é insuficiente para a decisão de direito do ponto de vista das várias soluções que se perfilham em face do objeto do processo.


No caso, o arguido AA vem acusado pelo Ministério Público da prática de factos pelos quais teria praticado, em autoria material e concurso real, um crime de homicídio qualificado e um crime de detenção de arma proibida.


O assistente/recorrente BB não alega, porém, nem nas conclusões da motivação, nem na motivação, que existe carência de factos para a decisão de direito que foi tomada pelo Tribunal a quo, quer quanto ao crime de homicídio qualificado, quer quanto ao crime de detenção de arma proibida e, consequentemente, também em lado algum especifica os concretos factos que, no seu entender, ficaram por apurar e sem os quais não é possível proferir-se uma decisão justa.


O que o assistente invoca, em primeiro lugar, é uma carência de prova para o Tribunal a quo poder considerar como provada a existência de desentendimentos anteriores entre a vítima EE e o arguido AA (ponto n.º 34 do acórdão recorrido) e que, por isso, deveria ter sido dada como não provada essa factualidade.


Também a subsunção do direito à factualidade dada como provada, a que o Tribunal a quo procedeu para desqualificar o crime de homicídio por “motivo fútil”, e que de que o assistente/recorrente discorda, não respeita ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, mas sim ao enquadramento jurídico-penal da factualidade.


Paralelamente, defender que a existência de desentendimentos anteriores entre a vítima EE e o arguido AA, constitui, de todo o modo, matéria de facto bastante para não ser afastada a especial censurabilidade da conduta do arguido, uma vez que se deu ainda como provado que este entrou na casa da vítima e dela retirou a faca com que cometeu o crime, por causa do posicionamento do grelhador, mais não é do que afirmar que o Tribunal a quo errou na aplicação do direito aos factos provados - o que nada tem que ver com o vício em análise, nos termos que se deixaram definidos.


Em suma, o Tribunal a quo apreciou todos os factos constantes da acusação (o arguido não apresentou defesa através de contestação) e os factos dados como provados permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, pelo que não se vislumbram do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que factos ficaram por apurar.


Pelo exposto, não temos por verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.


Quanto ao arguido vício do erro notório na apreciação da prova, por deficiente valoração da prova, adiantamos, desde já, não se vislumbrar, igualmente, a sua existência.


Senão vejamos.


Do texto da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido resulta que o Tribunal a quo, para dar como provada a factualidade realçada pelo recorrente (pontos n.ºs 5, 6, 7 e 34 do acórdão recorrido), teve em consideração, nomeadamente, as declarações prestadas pelo arguido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido e que em audiência de julgamento tiveram idêntico conteúdo, onde “…revelou que os factos ocorreram nos termos plasmados na factualidade provada, com a ressalva de que já tinham ocorrido desentendimentos anteriores com EE - que, segundo referiu, era um “bully”, que ali sempre teve problemas com toda a gente, que previamente lhe deu uma cabeçada e cujo cão também se encontrava agressivo …”, e o depoimento da testemunha II, que “…revelou ter assistido à “conversa” entre o arguido, que claramente já conhecia, e EE, bem como à descrita agressão por aquele a este com a faca, tendo visto o arguido a encetar fuga de seguida, após o que FF levou EE para casa, tendo este dito “me ajuda, que eu vou morrer”, e que “aquando daquela “conversa”, EE não agrediu o arguido, nem o cão daquele ali se encontrava (estava em casa), e que já tinha visto o arguido e EE nessa noite, cerca da meia-noite, sentados no sofá em casa do EE, na sala; referiu ainda que o arguidoera o menino de confiança do EE”.


Da mesma fundamentação da matéria de facto consta que para o Tribunal a quo a vítima EE tinha “… com o arguido uma relação que oscilava entre entendimentos e desentendimentos cuja concreta natureza/razão de ser não foi possível apurar”, resultando ainda “…claro que houve, em diversas ocasiões anteriores àquela em que verdadeiramente ocorreram as facadas, desentendimentos entre o arguido e a vítima (…)”.


Confrontando a matéria de facto dada como provada, particularmente a realçada pelo assistente na motivação do recurso (pontos n.ºs 5, 6, 7 e 34 ), com a convicção do Tribunal a quo, expressa na fundamentação da matéria de facto, não vemos que o mesmo Tribunal, ao dar como provada esta matéria de facto, tenha seguido um raciocínio ilógico, arbitrário ou contraditório, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, de onde se possa concluir pela existência de um erro notório, ostensivo, na apreciação da prova.


Se o assistente/recorrente BB entende que a decisão de facto proferida, designadamente, quanto à existência de anterior desentendimento entre o arguido e a vítima (ponto n.º 34) não está em conformidade com a prova produzida em audiência de julgamento, deveria ter optado pela impugnação ampla da matéria de facto ao abrigo do disposto no art.412.º, n.º2, alínea c) do Código de Processo Penal e, não pela invocação do meio mais limitado de impugnação da matéria de facto traduzido na existência dos vícios a que alude o art.410.º, n.º2 do Código de Processo Penal.


Em suma, não se reconhecendo a existência dos vícios a que aludem as alíneas a) e c), n.º2 do art.410.º do Código de Processo Penal, improcede esta primeira questão colocada pelo assistente.


14.2. Da verificação das qualificativas do homicídio previstas nas alíneas e) e j), n.º2 do art.132.º do Código Penal


O assistente BB discorda da absolvição do arguido pela prática do homicídio qualificado de que vinha acusado.


Embora aceitando que no caso não se verifica a circunstância prevista na alínea h), n.º2 do art.132.º do Código Penal – «utilização de meio particularmente perigoso» -, de que vinha o arguido vinha acusado, entende que este deve ser condenado pela prática do crime de homicídio qualificado, por referência à alínea e) – «motivo fútil» –, do n.º2, do art.132.º do Código Penal, de que vem acusado, e ainda, por referência à alínea j) – «premeditação» –, do mesmo tipo penal, devendo o Tribunal a quo ter procedido a uma alteração da qualificação jurídica dos factos uma vez que o arguido não vem acusado de premeditação na prática dos mesmos factos (conclusões B) a H) da motivação do recurso).


Argumenta para o efeito e em síntese: (i) o motivo fútil é considerado especialmente censurável em razão da desproporção entre a conduta concreta do agente e os motivos que a ela levaram; (ii) a existência de desentendimentos anteriores entre a vítima EE e o arguido AA (ponto n.º 34 dos factos provados), quando se deu ainda como provado que este entrou na casa da vítima e dela retirou a faca com que cometeu o crime, por causa do posicionamento do grelhador (pontos n.ºs 5, 6 e 7 dos factos provados), constitui matéria de facto bastante para não ser afastada a especial censurabilidade da conduta do arguido; (iii) o homicídio não ocorreu na residência da vítima, pelo que o “carácter impulsivo da actuação levada a cabo pelo arguido” que é equacionada pelo Tribunal a quo como circunstância que leva ao afastamento da qualificação do crime, não pode colher; (iv) o facto do objeto utilizado para a prática do crime ter sido retirado da residência da vítima e de o crime ter ocorrido na rua, revelam premeditação na prática dos factos por parte do arguido.


Vejamos se assim deve ser.


14.2.1. A proteção jurídico-penal da vida das pessoas assenta no tipo fundamental do art.131.º do Código Penal, que dispõe que « quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.».


Os outros crimes dolosos tipificados sob a epigrafe de «crimes contra a vida» são casos especiais de homicídio, que o legislador pune com penas mais pesadas ou mais leves consoante as circunstâncias relativas ao ilícito ou à culpa, e que se conexionam com o art.131.º do Código Penal através de uma relação de especialidade.


O art.132.º do Código Penal prevê o homicídio qualificado estabelecendo, nomeadamente, e com interesse para a presente questão:


«1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade , o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.


2. É suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior , entre outras , a circunstância de o agente:


(…)


e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;


(…)


j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas; (…).»


Consagra-se neste tipo a técnica da agravação através de exemplos padrão, em vez da qualificação típica que existia no anterior Código Penal português em que o homicídio qualificado se espalhava descrito por vários tipos.


É pacífico na jurisprudência e na doutrina, que estas circunstâncias exemplificativas não são de funcionamento automático. Pode verificar-se qualquer dos exemplos-padrão referidos nas várias alíneas do n.º2 do art.132.º do Código Penal e, ainda assim, não se concluir pela “especial censurabilidade ou perversidade do agente”.


A diferença entre o tipo fundamental e o homicídio qualificado do art.132.º do Código Penal repousa na ideia da “especial censurabilidade ou perversidade do agente”, a qual se mostra suscetível de apreender nas circunstâncias, não taxativas, enumeradas no n.º 2 deste tipo.9


No dizer de Teresa Serra, a especial censurabilidade a que alude o art.132.º do Código Penal verifica-se quando as circunstâncias em que a morte foi causada “… são de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida , pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto , ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.


Com referência à especial perversidade , tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável , no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto , pois um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se à atitude má , eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder.».10


Enquanto a “especial censurabilidade” se reporta à forma especialmente desvaliosa como o ato criminoso foi cometido, a “especial perversidade” refere-se às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente.


Perante o objeto do presente recurso impõe-se caraterizar as circunstâncias qualificativas do homicídio descritas nas alíneas e)motivo fútil – e j) – premeditação –, do n.º2, do art.132.º do Código Penal.


A respeito da caraterização do exemplo-padrão “motivo fútil”, a doutrina e a jurisprudência vem apresentando os seguintes entendimentos:


Para Figueiredo Dias/Nuno Brandão, “o exemplo-padrão constante da alínea e) é, diferentemente do que sucede com os anteriores, estruturado com apelo a elementos estritamente subjetivos, relacionados com a especial motivação do agente.” (…) Ser determinado a matar (…) por “ qualquer motivo torpe ou fútil significa que o motivo da atuação avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.”.11


Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque o «motivo tope ou fútil» é o “motivo incompreensível ou inexplicável à luz do modo de agir do homem médio ou mesmo revelador de um baixo carácter.”.12


Já na definição de Maia Gonçalves, motivo fútil é, “um motivo sem relevo, sem importância mínima ou manifestamente desproporcionado segundo as conceções da comunidade, incapaz portanto de razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta.”.13


Na doutrina, referimos ainda, a título exemplificativo, Leal Henriques e Simas Santos, para quem «Motivo fútil é o motivo de importância mínima», os quais adiantam ainda o entendimento de Nelson Hungria, no sentido de que “O motivo é fútil (…) quando notavelmente desproporcionado ou inadequado, do ponto de vista do homo medius, e em relação ao crime de que se trata. Se o motivo torpe revela um grau particular de perversidade, o motivo fútil traduz o egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral».14


A jurisprudência, particularmente do Supremo Tribunal de Justiça, não se dissocia deste entendimento doutrinal, identificando o motivo fútil não tanto pelo seu pouco relevo ou importância, mas sim pela desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal em que ela se objetivou: no fundo o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade.


Assim, o acórdão do S.T.J. de 02-02-2022 (proc. 74/21.0GBRMZ.S1), consigna que, “Motivo fútil é o motivo de importância mínima, o motivo sem valor, insignificante para explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a atuação do agente do crime, desproporcionado e sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente. O motivo é fútil quando, pela sua insignificância ou frivolidade, é notavelmente desproporcionado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime. A desproporcionalidade de que se fala é a que se evidencia face ao motivo de “importância mínima”, “sem valor”, dotado de “insignificância” ou “frivolidade”; refere-se à relação entre o motivo e o facto, não caracteriza o motivo que determina o facto.”


Seguindo aqui o recente acórdão do S.T.J. de 29 de fevereiro de 2024 (proc. n.º 2257/21.4JABRG.G1.S1)15, são ainda exemplos desta orientação, entre muitos outros, as decisões dos acórdãos a seguir indicados:


- «Na doutrina, tem sido atribuído ao motivo fútil o alcance de uma razão incompreensível para a generalidade das pessoas, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime, revelando o facto, inteiramente desproporcionado, repudiado pelo homem médio, profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana. (…) A nossa jurisprudência, a tal respeito, não se dissocia desse entendimento, identificando o motivo fútil não tanto pelo seu pouco relevo ou importância, mas sim pela «desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal em que ela se objectivou: no fundo o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade» – Ac. do STJ de 04-10-2001, Proc. n.º 1675/01 - 5; motivo fútil é «o notoriamente desproporcionado ou inadequado aos olhos do homem médio, denotando o agente, com isso, o egoísmo, intolerância, prepotência, mesquinhez» – Ac. do STJ de 25-06-97, Proc. n.º 96P1253; motivo fútil será o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática do crime, na inteira desproporção entre o motivo e a reação homicida – Ac. do STJ, de 15-12-2005, Proc. n.º 05P2978» (Ac. STJ de 17-01-2007; Proc. n.º 3845/06 - 3.ª Secção).


- «(…) sendo motivo fútil aquele que não se pode razoavelmente explicar ou justificar, sem qualquer tipo de valor ou em que este se mostre insignificante ou irrelevante» (Ac. STJ de 07-12-2011, CJ/STJ, 2011, t. III, p. 227);


- «Motivo fútil é o motivo de importância mínima. Será também o motivo “frívolo, leviano, a ninharia” que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida, o que se apresenta notoriamente desadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática» (Ac. STJ de 18-01-2012);


«O motivo fútil tem sido caracterizado pela jurisprudência como o motivo frívolo, leviano, ou mesmo o motivo que não tem qualquer relevo, o que não chega sequer a ser motivo» (Ac. STJ de 18-09-2013);


«O conceito de «motivo fútil» assenta numa ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça, com os padrões éticos geralmente aceites na comunidade.


O vector fulcral que identifica o «motivo fútil» não é, pois, tanto o que imprime a ideia de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou: no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dela e por ela se envolva.


Motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, fundado num profundo desprezo do valor da vida humana, que não pode razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta, sendo frívolo e revelador da desproporcionalidade entre o que impulsiona a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que aquela se objectivou» (Ac. STJ de 19-02-2014).”.


Em suma, os motivos do crime são as razões subjetivas que impulsionam o agente a praticar o crime e, são de considerar como fúteis, quando pela sua insignificância ou pouco significado são desproporcionados com a reação do homicida, não podendo razoavelmente explicar, e muito menos justificar, o homicídio.


Vejamos, ainda, em termos sucintos, como a doutrina e a jurisprudência vem caraterizando a premeditação, enquanto circunstância qualificativa do homicídio prevista na alínea j), n.º2 do art.132.º do Código Penal.


Para Paulo Pinto de Albuquerque: “A premeditação revela uma atitude de elaboração mental e reflexão no propósito criminoso do agente, que merece uma censurabilidade acrescida da conduta. São indícios dessa atitude a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e a persistência na intenção de matar por mais 24 horas.”.16


No dizer de Maia Gonçalves a premeditação pode agora existir independentemente de reflexão e de persistência no tempo durante um período definido. “Basta, para que ela exista, que o agente atue com frieza de ânimo ou com reflecção sobre os meios empregados. Nisto se encontra a essência da premeditação. (…) existe, no entanto, na parte final da al. g), uma concessão ao entendimento que era feito no domínio do Cód. Anterior (protelamento, em alternativa, da intenção de matar por mais de 24 horas.”.17


Tal como se sumariou no acórdão deste Supremo Tribunal de 15-12-2022 (proc. n.º 367/21.7PCPDL.L1.S1), “I - A frieza de ânimo vem sendo definida pela doutrina e pela jurisprudência como a atuação a sangue-frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana, constituindo frieza de ânimo o processo reflexivo, lento, ponderado e calmo na preparação do projeto criminoso, nomeadamente na seleção dos meios a utilizar e na escolha daquele que menos possibilidade de defesa deixa à vítima.(…) IV- Mas para a verificação da circunstância qualificativa da frieza de ânimo não se exige que a vontade de cometer o crime de homicídio se tenha formado com grande planificação ou com grande antecipação temporal porque esses atributos já são os pertinentes ao preenchimento dos outros dois indícios da premeditação, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. Basta o hiato temporal suficiente para o agente se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a poder desistir dos seus desígnios.”.18


Não ocorrendo circunstâncias de agravação (art.132.º) ou de atenuação/privilegiamento (art.133.º), o homicídio reconduzir-se-á, então, à previsão do tipo fundamental do art.131.º do Código Penal.


14.2.2. Retomando o caso presente.


Com relevância para a decisão importa considerar, particularmente, a seguinte factualidade dada como provada:


- EE (a vítima) e AA (o arguido) conheciam-se há vários anos e o arguido era frequentador habitual da residência daquele (ponto 4.º);


- Durante a festa de aniversário de uma amiga do arguido, que teve lugar junto à porta do EE, a determinada altura, este e o arguido “desentenderam-se por causa do posicionamento do grelhador utilizado para grelhar a comida para a festa e começaram a discutir” (ponto 5.º);


- “Na sequência dessa discussão, o arguido deslocou-se ao interior da residência de EE, entrou na cozinha, pegou numa faca com 33,5 cm (trinta e três centímetros e meio) de comprimento, sendo 20 cm (vinte centímetros) de comprimento de lâmina, deslocou-se para o exterior, junto ao parque da Mina, situado nas traseiras da residência, e aí abordou EE” (ponto 6.º);


- “Ato contínuo, e sem que nada o fizesse prever, o arguido empunhou a faca de cozinha de que previamente se munira, aproximou-se de EE e desferiu-lhe dois golpes incisos, corto-perfurantes, na zona anterior do tórax, um deles no centro e o outro ligeiramente à esquerda, tendo abandonado o local de imediato , (…)” (ponto 7.º):


Antes do dia 25 de julho de 2022 – data dos factos em causa – o arguido “já tivera outro desentendimento com EE” (ponto n.º 34).


O acórdão recorrido considerou não verificada a circunstância qualificativa referida na alínea e) do n.º 2 do art.132.º do Código Penal, segundo a qual, é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância do agente ser determinado por qualquer «motivo fútil», apresentando a seguinte fundamentação:


Motivo fútil é o móbil da actuação despropositada do agente, sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente.


Ora, não se apurou que tal tivesse sucedido no caso em análise, sem prejuízo da constatação do carácter impulsivo da actuação levada a cabo pelo arguido, desencadeada pelo desentendimento tido com EE por causa do grelhador, mas num contexto em que já anteriormente se tinham desentendido.


Assim, também não se pode concluir pelo preenchimento da qualificativa prevista na al. e) do n.º 2 daquele art.132.º.


Em face da globalidade dos factos provados não se pode concluir, com rigor, como se impõe, que o arguido actuou com um excepcional grau de culpa face ao pressuposto pelo art. 131.º do Código Penal, designadamente com a especial censurabilidade ou perversidade pressupostas pelo n.º 1 do respectivo art. 132.º; com efeito, o que os factos revelam é que o arguido actuou com o grau de censurabilidade e perversidade inerentes à prática de crime de homicídio nas apontadas circunstâncias, em que o desentendimento referente ao grelhador se veio enquadrar numa situação de anterior disputa.


Ora, o desconhecimento do concreto cabal motivo da sua actuação ou a sua aparente insignificância não permitem qualificá-lo.”.


Perante os elementos da doutrina e da jurisprudência que se consignaram, terá sido correta a desqualificação do homicídio «por motivo fútil», efetuada pelo Tribunal a quo?


O Tribunal a quo é medianamente claro que não deu como verificada a existência do exemplo-padrão «motivo fútil», porquanto da factualidade resultou que o desentendimento havido entre o arguido e o EE insere-se “num contexto em que já anteriormente se tinham desentendido”, ou seja, porque “o desentendimento referente ao grelhador se veio enquadrar numa situação de anterior disputa” e, consequentemente, perante “o desconhecimento do concreto motivo da sua atuação [do arguido]”, não se pode qualificar o homicídio.


Se é verdade que o arguido e a vítima já tinham tido um desentendimento anterior à data dos factos, também é um facto provado que o arguido era frequentador habitual da residência da vítima.


Da leitura da factualidade provada, não resulta, como o devido respeito, que o desentendimento referente ao grelhador estivesse ligado ao facto de anteriormente o arguido e a vítima terem tido um desentendimento.


O que resulta, expressamente, dos factos provados, é que o arguido e a vítima, na festa de aniversário de uma amiga do arguido, desentenderam-se e começaram a discutir , “por causa do posicionamento do grelhador utilizado para grelhar a comida para a festa”, e é nessa sequência que o arguido entra na cozinha da residência da vítima, pegou numa faca de 20 cm de comprimento de lâmina e, ato contínuo, “sem que nada o fizesse prever”, aproximou-se do EE e desferiu-lhe com ela dois golpes incisos na zona anterior do toráx (ponto n.º7 dos factos provados), vindo a causar-lhe, como consequência necessária e direta, a morte.


O motivo que esteve na origem das facadas desferidas pelo arguido – uma discussão sobre o posicionamento do grelhador da comida para a festa –, é claramente desproporcionado e incompreensível para a generalidade das pessoas, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime de homicídio.


Constitui motivo fútil tirar a vida a outra pessoa, na sequência de uma discussão com a vítima sobre o posicionamento do grelhador da comida para uma festa, pois, pelo seu pouco relevo, à luz dos padrões éticos da nossa comunidade, surge como não expectável e ilógica a desproporcionalidade, flagrante, entre a atitude da vítima e a conduta do arguido de lhe tirar a vida.


A conduta particularmente censurável do arguido AA, reveladora de profundo desprezo pela vida de outrem, impõe que se dê como preenchida a circunstância qualificativa do homicídio prevista na alínea e), n.º2 do art.132.º do Código Penal.


Já quanto à premeditação, importa clarificar que o arguido AA não se encontra acusado pelo Ministério Público do preenchimento deste exemplo-padrão previsto na alínea j), n.º2 do art.132.º do Código Penal e, como bem refere o recorrente/assistente, não foi comunicada ao arguido pelo Tribunal a quo qualquer alteração da qualificação jurídica a este propósito.


Não foi comunicada essa alteração ao arguido, nem tinha de o ser, pois da factualidade provada não resulta que a decisão do arguido de matar o EE tenha sido premeditada, na medida em que surge imediatamente após um momento de exaltação com a discussão sobre a posição do grelhador da comida para a festa, e não em resultado de um cálculo frio do arguido, com reflexão sobre os meios empregados ou com passagem de um intervalo de tempo superior a 24 horas.


De todo o modo, os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer de questões novas não apreciadas pelo Tribunal recorrido, mas sim a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso.19 Não resultando do acórdão recorrido que tenha sido debatido em julgamento o preenchimento da premeditação como qualificativa do homicídio, não pode em recurso analisar-se criticamente a premeditação, por inexistência de objeto de apreciação.


Em conclusão, procede parcialmente o recurso interposto pelo assistente, na parte em que se tem como verificada a circunstância qualificativa da alínea e), n.º2 do art.132.º do Código Penal.


As consequências desta parcial procedência na medida da pena parcelar e na pena conjunta fixada ao arguido na decisão recorrida, serão abordadas oportunamente, no âmbito do conhecimento da medida da pena que constitui um dos objetos do recurso interposto pelo arguido AA.


-


15. Do recurso do arguido AA


15.1. Da inexistência do crime de detenção de arma proibida


O Tribunal a quo condenou o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1, al. d), com referência aos artigos 2.º, n.º 1, al. m), e 3.º, n.ºs 1 e 2, al. f), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, com a seguinte fundamentação de direito (transcrição parcial):


Comete um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, usar ou trouxer consigo arma branca sem aplicação definida que possa ser usada como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.


Para efeito do disposto na Lei n.º 5/2006, de 23.02, entende-se por «Arma branca», entre os demais ali mencionados na al. m) do n.º 1 do art.2.º, todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm. (…).


Uma vez que, sem qualquer justificação juridicamente atendível, o arguido pegou na referida faca, com 20 cm (vinte centímetros) de lâmina, que se encontrava na cozinha da residência de EE, e com ela se deslocou para o exterior, junto ao parque da Mina, situado nas traseiras da residência, onde abordou EE, empunhou tal faca de cozinha, de que previamente se munira, e a usou para nele desferir os mencionados golpes, verifica-se que está preenchido o tipo objectivo da incriminação em apreço.


Conhecendo o arguido as mencionadas características dessa faca e querendo actuar da forma descrita, actuou com dolo directo (art.14.º, n.º 1, do Código Penal), pelo que praticou, como autor material, por ter executado os factos por si mesmo (art. 26.º do Código Penal), um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), com referência aos arts. 2.º, n.º1, al. m), e 3.º, n.º 2, al. f), da Lei n.º 5/2006, de 23.02.”.


O arguido AA defende que não praticou este crime e dele deve ser absolvido, apresentando, no essencial, os seguintes argumentos:


(i) segundo a lei, é considerada «arma branca» todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou de outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;


(ii) nas «armas brancas» o que contribui decisivamente para a tipificação como crime de detenção de arma proibida é a natureza indefinida da sua funcionalidade;


(ii) uma faca de cozinha, ainda que não justificada a sua detenção fora do seu local de uso, tem como aplicação definida as lides domésticas;


(iii) assim, embora a detenção pelo arguido de uma faca de cozinha, com 12 cm de cabo e 20 cm de lâmina, em plena via pública, seja considerada uma «arma branca», por ter uma lâmina de comprimento superior a 10 cm, a sua aplicação definida não é a de meio de agressão contra pessoas, apesar de poder, uma vez subtraída ao contexto normal de utilização, ser utilizada como tal;


(iv) pese embora a jurisprudência não seja pacífica, este entendimento corresponde à sua corrente maioritária, de que são exemplos, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no proc. n.º 875/12.0GBBCL.G1; o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19-10-2016, no proc. n.º 116/15.9PASXL.L1-3; o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-12-2011, no proc. n.º 1246/08.9TASNT.L1-5; o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6-11-2012, no proc. n.º 121/11.4SHLSB.L1-5; o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 4-3-2008, no proc. n.º 169/08-1; o acórdão do Tribunal da Relação o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12-9-2012, no proc. n.º 815/11.4PAVCD.P1; o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6-6-2011, no proc. n.º 305/09. 5GAPTL-G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt; e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 8-10-2009, no proc. n.º 279/03.6GBBNV-9ª Secção, disponível na página da PGDL.


15.1.1. Vejamos, pois, se a utilização de uma faca de cozinha com uma lâmina de 20 cm, por parte do arguido, para matar EE, constitui, ou não, um comportamento suscetível de integrar o cometimento de um crime de detenção de arma proibida.


Em primeiro lugar, importa trazer à colação, as normas relevantes para a decisão que constam da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, que aprovou o Regime Jurídico das Armas e suas Munições (RJAM), entretanto objeto de diversas alterações e aditamentos.


O art.86.º do RJAM, na redação vigente à data dos factos e atualmente em vigor - dada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, e entrada em vigor a 24 de janeiro de 2020 (art.120.º) -, estatui, sob a epígrafe «Detenção de arma proibida e crime cometido com arma», com interesse para a decisão:


«1- Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo:


(…)


d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, (…) , é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias;».


A definição legal do que seja uma «arma branca» é fundamental para o entendimento deste tipo penal.


O art.2.º, n.º 1, al. m), define para efeitos do RJAM, a «arma branca», como «todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;».


Na definição de «armas brancas» cabem, assim:


- O objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm;


- As facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, e os estiletes, independentemente do cumprimento do objeto ou instrumento, pois a perigosidade está nas suas características específicas e facilidade de manuseamento; e


- Os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões.


No caso concreto, dúvidas não existem de que a faca de cozinha, utilizada pelo arguido , sendo um instrumento portátil dotado de uma lâmina de comprimento superior a 10 cm constitui, nos termos da primeira parte da alínea m), n.º1 do art.2.º, do RJAM, uma arma branca.


Decorre, porém, da descrição do art.86.º, n.º1, alínea d), do RJAM, na redação ora transcrita que não são todas as «armas brancas» que relevam para a tipificação do crime de detenção de arma proibida.


Com particular relevância para esta questão, importa considerar a referência no tipo penal “a outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”, e às “armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º”.


O art.86.º, nº 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na redação originária e nas que sucessivamente lhe foi dada pelas Leis n.ºs 17/2009, de 6 de maio, 12/2011, de 27 de abril e 50/2013, de 24 de Julho – portanto anteriores à redação atualmente em vigor – o tipo penal considerava como elemento do tipo, nomeadamente, o uso e detenção de «…outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse,…», mas não fazia referência às “armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º”.20


Perante a redação do art.86.º, nº 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23/02, anterior à atualmente vigente, a jurisprudência entendia que para o uso ou a detenção das “outras armas brancas” descritas no tipo constituírem crime, era necessária a verificação cumulativa de três requisitos:


a) que essas armas não tenham aplicação definida;


b) que revelem aptidão para serem usadas como arma de agressão e;


c) que o portador não tenha justificação para a sua posse.


A jurisprudência, pelo menos maioritária, dos Tribunais da Relação, interpretava esta norma, no sentido de que o uso ou detenção de uma arma branca, que tenha uma aplicação definida, não constituía crime, mesmo que essa detenção ocorresse fora do âmbito da atividade doméstica, agrícola ou industrial em que normalmente era utilizada e o seu portador não justificasse a sua posse no local.


Toda a jurisprudência indicada pelo ora recorrente, e que decidiu que uma faca de cozinha com uma lâmina de comprimento igual ou superior a 10 cm, sendo uma arma branca, que podia ser usada como arma de agressão, não integra a prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º1 , al. d), da RJAM, por tal arma não poder ser considerada como “sem aplicação definida”, tem subjacente a redação anterior à que lhe foi dada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho.


Uma vez que o art.86.º, n.º1, al. d) do RJAM, na redação vigente à data dos factos e atualmente em vigor, dada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, integra como elemento constitutivo do tipo objetivo, designadamente e ainda, o uso e detenção, das «armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º», importa atender ao que se estabelece no art.3.º.


Com interesse para a presente questão, estabelece o art.3.º do RJAM:


«1 - As armas e as munições são classificadas nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização.


2 - São armas, munições e acessórios da classe A:


(…)


f) As armas brancas sem afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objeto de coleção;


(…)


ab) As armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse;


(…).».21


Com a atual redação do art.86.º, n.º1, alínea d), do RJAM, o uso e detenção, de armas brancas, sem aplicação definida, sem afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, continuou a ser elemento do tipo objetivo do crime de detenção de arma proibida.


Mas com o aditamento da expressão “armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º”, ao art.86.º, n.º1, alínea d), do RJAM, também o uso e detenção de armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, passou a ser tipificado como crime de detenção de arma proibida.


Neste particular, são elementos do tipo objetivo de ilícito:


- O uso ou detenção de armas brancas, com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção;


- quando ocorra fora dos locais do seu normal emprego; e


- os seus portadores não justifiquem a sua posse.


Os locais normais de seu normal emprego, não suscitam, em geral, grandes dificuldades.


Se está em causa uma faca de cozinha, o local do seu normal emprego é a cozinha.


Já a justificação da posse da arma branca depende do contexto dos factos, conjugado com as regras da experiência comum.


Sendo uma faca de cozinha com mais de 10 cm de lâmina detida numa situação de transporte da loja em que foi adquirida, para a residência do seu detentor, a sua posse estará justificada.


Já se uma arma branca, com afetação ao exercício de uma das práticas descritas na alínea ab), n.º2 do art.3.º do RJAM, é detida e utilizada fora dos locais do seu normal emprego, como meio de agressão, não existe causa que justifique essa posse.


Considerando que o arguido, no dia 24 de julho de 2022, na sequência de uma discussão, entra na cozinha da residência da vítima, pega numa faca de cozinha, com 20 cm de comprimento de lâmina e, de seguida, no exterior da mesma residência, com ela desfere dois golpes incisos, corto-perfurantes, na zona anterior do tórax, vindo com esta conduta a causar a morte da vítima, bem sabendo que a detenção e uso da faca do modo descrito, era penalmente censurável, encontram-se preenchidos todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1 alínea d), do RJAM, por referência aos artigos 2.º, n.º 1, al. m) e 3.º, n.ºs 1 e 2 alínea ab), do mesmo diploma.


Assim, mantem-se a condenação do arguido/recorrente pela prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1, al. d), do RJAM, embora com referência ao art.3.º, n.ºs 1 e 2, alínea ab), e não à alínea f), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro (RJAM).22


Improcede, nestes termos, a primeira questão objeto do recurso.


15.2. Do não agravamento do crime de homicídio pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no art.86.º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02


Não havendo detenção de arma proibida, entende o recorrente AA que não pode operar o agravamento da pena quanto ao crime de homicídio simples, nos termos do disposto no art.86.º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02.


Não tem razão o arguido/recorrente.


Para defender que o crime de homicídio que praticou não deve ser agravado pelo uso de arma proibida, nos termos do art.86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, parte o arguido do pressuposto de que não praticou um crime de detenção de arma proibida.


Este pressuposto não se verifica, pois mostra-se já decidido que o ora recorrente preencheu, com a sua conduta, todos os elementos do tipo de ilícito objetivo e subjetivo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com referência ao art.3.º, n.ºs 1 e 2, alínea ab), do mesmo diploma.


O art.86.º, n.º3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, ao estabelecer que «As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.», deixa claro que, em regra, as penas são agravadas se o crime for cometido com arma.


A agravação da punição não se destina aqui a sancionar a detenção da arma proibida, mas sim o desvalor da ação que advém da sua utilização no cometimento de um crime.


Esta regra só assim não se aplicará nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada.


O homicídio é de crime de execução livre e o uso da faca pelo arguido não é elemento do crime, nem a lei prevê agravação mais elevada para o crime em função do uso ou porte daquela arma branca.


Deste modo, a pena aplicada ao homicídio não podia deixar de ser agravada, como foi, nos termos previstos no art.86.º, n.º3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.


15.3 Do concurso aparente entre os crimes de detenção de arma proibida e de homicídio.


Subsidiariamente, entende o recorrente que deve ser absolvido do crime de detenção de arma proibida por este se encontrar em concurso aparente com o crime de homicídio pelo qual foi condenado.


Neste sentido defende que apesar de ambos os crimes acautelarem bens jurídicos de diversa natureza, a detenção ilegal de arma foi um crime-meio relativamente ao crime-fim, o homicídio, nele se esgotando.


Consequentemente, deve ser condenado apenas pelo crime de homicídio simples, p. e p. pelo art.131.º do Código Penal.


15.3.1. Apreciando


Como nota prévia, impõe-se consignar que face ao parcial provimento do recurso do assistente, está prejudicada a referência ao homicídio simples por parte do arguido/recorrente. A questão em apreciação não se altera, porém, pelo facto de a conduta do arguido preencher a prática de um crime de homicídio qualificado, p. e . p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 alínea e) do Código Penal.


Vejamos, em termos muito sucintos, o que se entende por concurso aparente.


A problemática do concurso de crimes tem como princípio de solução o art.30.º do Código Penal, ao estabelecer que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.».


Traduzindo o pensamento de Eduardo Correia, o critério determinante do concurso é o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E “efetivamente” violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.


Há concurso real quando o agente pratica vários atos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de ações), e concurso ideal quando através de uma mesma ação se violam várias normas penais, ou a mesma norma, repetidas vezes (unidade de ação).


O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efetivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efetivo (pluralidade de crimes através de uma mesma ação ou de várias ações) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efetivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).


Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma ação pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.


A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.


A generalidade da jurisprudência, perante a redação do art.30.º, n.º1 do Código Penal, entende que o critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de ações ou pluralidade de tipos realizados existe, efetivamente, unidade ou pluralidade de crimes, ou seja, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime.23


Na situação em apreciação, os bens jurídicos tutelados no crime de homicídio e no crime de crime de detenção de arma proibida, são diversos.


No crime de homicídio o bem jurídico protegido é a vida humana.


Consistindo o tipo objetivo de ilícito em matar outra pessoa, o homicídio é definido como um crime de dano, pois a realização do tipo tem como consequência uma lesão efetiva do bem jurídico.


Já o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, tutela os valores da ordem, segurança e tranquilidade públicas.24


É pacífico que o crime de detenção de arma proibida está construído como crime de perigo abstrato.


Como crime de perigo, a realização do tipo não pressupõe a lesão, bastando-se com a mera colocação em perigo de bens jurídicos.


Nos crimes de perigo distinguem-se os crimes de perigo concreto, em que o perigo faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efetivamente sido posto em perigo.


Já nos crimes de perigo abstrato, como é o crime de detenção de arma proibida, o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição. Os comportamentos são tipificados em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que esta necessite de ser comprovada no caso concreto, pois como refere Figueiredo Dias “há como que uma presunção inelidível de perigo, e por isso dispensa-se a criação de perigo efetivo para o bem jurídico.”.25


O crime de detenção de arma proibida, como crime de perigo, fica preenchido, autonomamente, logo com a detenção, independentemente do uso da arma que o agente possa ter feito posteriormente.


Perante o critério teleológico supra descrito, dúvidas não existem de que na situação em apreciação, em que estão em causa diferentes bens jurídicos tutelados, ocorre um concurso efetivo de crimes entre o crime de homicídio e o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com referência ao art.3.º, n.ºs 1 e 2, alínea ab), do mesmo diploma.


Figueiredo Dias abandonou, entretanto, os critérios baseados na unidade ou pluralidade de tipos de crimes violados e o da unidade e pluralidade de ações praticadas pelo agente, como critério possível de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, avançando com uma nova perspetiva, do ponto de vista dogmático: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta aceção, de crimes.


Neste sentido, consigna que “…decisiva é, pois, a análise do significado do comportamento global que lhe empresta um sentido material (social) de ilicitude, terá então de reconhecer-se, de um ponto de vista teleológico e de valoração normativa "a partir da consequência", a existência de dois grupos de casos: (a) o caso (“normal”) em que os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis - hipóteses que chamaremos de concurso efectivo (art.30.°-1), próprio ou puro; (b) e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados - hipóteses que chamaremos de concurso aparente, impróprio ou impuro.”.26


Este critério esteve na base da decisão proferido no acórdão de 31 de março de 2011 (proc. n.º 361/10.3GBLLE), deste Supremo Tribunal, onde se decidiu que, no caso, apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais – homicídio e uso de arma proibida –, não deve concluir-se por um concurso efetivo de crimes, mas antes aparente, porquanto a conexão existente entre a conduta do arguido em relação à arma se esgotou com a prática do homicídio do irmão.


Importante para entender a decisão é conhecer a situação concreta em que correram os factos. No caso, o arguido e a vítima, seu irmão, viviam no mesmo imóvel e aquele em determinada altura, após uma discussão entre ambos por causa das partilhas, foi buscar uma espingarda que tinha no anexo onde habitava e com ela efetuou dois tiros na direção da vítima. Depois de a atingir mortalmente, guardou a espingarda no quarto e foi entregar-se à GNR.


A situação descrita neste acórdão é diversa da equacionada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 31 de março de 2011, pois o arguido não se limitou a deter e usar a faca de cozinha (arma proibida) para atingir o resultado que almejou, que foi retirar a vida ao EE, pois ao abandonar o local de imediato, levou consigo a referida faca e escondeu-a (ponto n.º 7 dos factos provados).


Uma vez que o arguido após utilizar a arma proibida para matar o EE, transportou consigo a arma proibida e escondeu-a – ou seja, ao ser a única pessoa com conhecimento sobre o local onde a arma estava escondida, o arguido, autonomamente, prolongou a posse e detenção da arma para além da prática do anterior crime de homicídio. Por isso, entendemos que o sentido de ilícito da “detenção da arma proibida” não se esgotou com o homicídio, pois perdurou para além da sua utilização no homicídio.


Deste modo, entendemos que mesmo para quem siga o critério da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica existente no comportamento global do agente, existirá no caso concreto um concurso de crimes real, efetivo, entre os crimes de homicídio e de detenção de arma proibida.


No mesmo sentido, com algumas semelhanças ao presente caso e em que se considerou este novo entendimento do concurso de crimes, decidiu o acórdão de 15-01-2015 deste Supremo Tribunal (proc. n.º 92/14.5YFLSB).27


Por todo o exposto, sendo correta a decisão do Tribunal a quo de condenação do arguido pela prática destes dois crimes em concurso efetivo, improcede também esta questão.


15.4. Da escolha da pena de multa pela prática do crime de detenção de arma proibida


O recorrente sustenta que sendo o crime de detenção de arma proibida estabelecido pelo art.86.º, n.º1, al. d), do RJDAM, punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias, deveria o Tribunal a quo ter dado preferência à pena de multa, por se mostrarem salvaguardadas com esta pena as necessidades de prevenção geral e especial.


Do acórdão ora recorrido não resultam fundamentos para que possamos concluir que a censura do crime de detenção de arma proibida através da pena de multa não fosse o suficiente para afastar a recorrente da prática de futuros crimes e que a execução de prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela pena de multa.


Adiantamos, desde já, que não tem razão o arguido.


O Supremo Tribunal de Justiça sufraga o acórdão recorrido quando decide que apenas a pena de prisão se mostra adequada e suficiente às finalidades da punição no que tange ao crime de detenção de arma proibida, com a seguinte fundamentação (transcrição):


A prática de um crime de detenção de arma proibida previsto no art.86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, é punida com pena de prisão de 1 mês até 4 anos ou com pena de multa de 10 até 480 dias (cfr. arts. 41.º, n.º 1, e 47.º, n.º 1, do Código Penal).


Importa referir que o critério orientador, fixado no art.70.º do Código Penal, nos casos em que se preveja pena de multa em alternativa à pena de prisão é o da prevalência da multa desde que a mesma realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.


Assim, por referência àquele normativo, a opção por uma pena de multa em detrimento de uma pena de prisão deve ser feita em função das exigências de prevenção geral e especial que a situação concreta oferece.


Neste caso, as exigências de prevenção geral revelam-se elevadas, sendo digno de nota o grande número de situações de detenção de arma proibida na área desta comarca e, em circunstâncias semelhantes às verificadas neste processo, a associação entre a detenção de arma proibida, designadamente de faca, e a prática de crime de homicídio, de verificação cada vez mais frequente, o que justifica a correspondente necessidade de afirmação das normas violadas.


As exigências de prevenção especial revelam-se também elevadas, porquanto, embora por crimes de tipos distintos, o arguido já tinha antecedentes criminais registados, tendo praticado os crimes de homicídio e de detenção de arma proibida aqui em apreço apenas cerca de dois meses depois de ter transitado em julgado (em 23.05.2022) a condenação, por sentença proferida em 21.04.2022, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo, por crime de furto qualificado que tinha praticado em 14.04.2022, evidenciando dificuldades na capacidade de controlo pessoal, especialmente na gestão de impulsos em contextos de adversidade, revelando tendência para agir de forma reactiva e de acordo com a sua carga emotiva, sem reflexão sobre os seus comportamentos, revela falta de motivação para a sua reorganização pessoal, especialmente em termos do seu investimento formativo, sobrepondo-se uma conduta pessoal direccionada para o presente, sem grande ponderação no plano futuro, o que está associado a falta de responsabilidade pessoal e social e, pese embora ciente da gravidade das implicações dos factos supra descritos a que se refere este processo, revela reduzido juízo crítico e não manifestou arrependimento quanto aos mesmos.”.


Acrescentamos, apenas, três notas.


A primeira, é que no juízo a fazer sobre a preferência pela aplicação de uma pena de multa, em detrimento da pena privativa da liberdade, não é indiferente saber que face à prática de outro ou outros crimes é certo o cumprimento de uma pena de prisão.


A segunda, é que o crime de detenção de arma proibida se encontra, no caso, em estreita conexão com o crime de homicídio, infração criminal da mais elevada gravidade por atentar contra o bem supremo da pessoa, que é a vida, bem demonstrada na moldura penal abstrata aplicável.


A terceira, é que o arguido não se limitou a deter e possuir uma arma proibida, no caso uma faca de cozinha com 20 cm de comprimento de lâmina, o que não teria quaisquer consequências para terceiros. É que o arguido foi além da posse e detenção da faca de cozinha e utilizou-a, ara desferindo com ela dois golpes na zona anterior do tórax da vítima, um deles no centro e o outro ligeiramente à esquerda, tirando, por este meio, a vida a outra pessoa.


Perante as circunstâncias apontadas na bem fundamentada decisão recorrida, referentes às exigências de prevenção especial e geral, concordamos com a opção tomada pelo Tribunal a quo no sentido de aplicar ao arguido AA, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, uma pena de prisão, em detrimento da pena de multa.


Na verdade, uma pena de multa não se afigurava adequada, nem suficiente, perante as exigências de prevenção geral e especial aqui presentes.


15.5. Do excesso da medida das penas parcelares e única aplicadas.


Por fim, defende o recorrente/arguido AA que a manter-se o crime de detenção de arma proibida a respetiva pena de multa deve ser ajustada em função da sua atuação e resultados obtidos e, não sendo substituída a pena de prisão por multa, então as penas parcelares e única em que foi condenado na decisão recorrida são excessivas e prejudicais à sua ressocialização, pois não devem ultrapassar os limites mínimos legais.


Realça para este efeito, a sua idade, a ausência de antecedentes criminais, a sua modesta condição social, económica e cultural e fracos recursos económicos, sem esquecer a sua confissão e o arrependimento, independentemente do alcance que o acórdão recorrido lhes deu.


15.5.1. Como atrás se consignou ao julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo assistente, a alteração da qualificação jurídica dos factos, de um crime de homicídio simples, para um homicídio qualificado, tem repercussões na medida da pena – o crime de homicídio simples, p. e p. pelo art.131.º do C.P., agravado nos termos do art.86.º, n.º3 do RJAM, pelo qual o arguido foi condenado em 1.ª instância, é punido com pena de prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses, enquanto o homicídio qualificado do art.132.º, n.ºs 1 e 2 , alínea e), do Código Penal, agravado nos termos do art.86.º, n.º3 do RJAM, é punido com pena de prisão de 16 a 25 anos.


Abordaremos, assim, conjuntamente com a decisão da medida da pena objeto do recurso do arguido, a repercussão da alteração da qualificação jurídica dos factos quanto ao crime de homicídio, quer na medida da pena parcelar, quer na pena conjunta.


15.5.2. O Código Penal vigente traça um sistema punitivo que arranca do pensamento fundamental de que na escolha da pena se dar preferência à pena não privativa da liberdade, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art.70.º do Código Penal).


Como critério de determinação da medida da pena, estabelece o art.71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, que ela é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele.


O juízo de culpa é um juízo de desvalor sobre o comportamento do agente, como “expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”28 Este juízo de censura, ou desaprovação, pode revelar-se maior ou menor, sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas.


O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete para a realização in casu das finalidades da pena, que de acordo com o art.40.º, n.º1, do Código Penal, são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.


O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.


Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico-penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.


Por sua vez, a reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.


Os fatores previstos no artigo 71º, do Código Penal, que relevam para a determinação da medida da pena, quer pela via da culpa, quer pela da prevenção, podem dividir-se, na lição do Prof. Figueiredo Dias29, em:


“1. Fatores relativos à execução do facto”, esclarecendo que: Toma-se aqui a “execução do facto” num sentido global e complexo, capaz de abranger “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, “a intensidade do dolo ou da negligência” e ainda “os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins e os motivos que o determinaram(...”.);


“2) Fatores relativos à personalidade do agente”, em que inclui: a) Condições pessoais e económicas do agente; b) Sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado; e c) Qualidades da personalidade manifestadas no facto; e


“3) Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”, esclarecendo que no que respeita à vida anterior ao facto há que averiguar se este surge como um episódio ocasional e isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito, que poderá atenuar a pena ou se existem condenações anteriores, que poderão servir para agravar a medida da pena.


Relativamente à conduta posterior ao facto importa averiguar se o arguido procedeu ou envidou esforços no sentido de reparar as consequências do crime e qual foi o seu comportamento processual.


Como expende Maria João Antunes, podem ser agrupados nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. 30


Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção, pelo que a culpa é o limite inultrapassável de quaisquer considerações preventivas, fornecendo o limite máximo da pena.


Anabela Miranda Rodrigues escreve, em termos de síntese, sobre o exposto modelo de determinação concreta da medida da pena:


«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas31


15.5.3. Retomando o caso concreto.


No que respeita fatores da medida da pena relativos à execução do facto, considerando-se a “execução do facto” num sentido global e complexo, o Supremo Tribunal de Justiça entende que o grau de ilicitude dos factos é acentuado, considerando que o arguido, “sem que nada o fizesse prever”, o arguido, utilizando uma faca de cozinha de grandes dimensões, aproximou-se do EE e desferindo-lhe dois golpes incisos no tórax, assim lhe tirando a vida, que é o bem jurídico supremo. Quanto ao modo de execução dos crimes, passou o mesmo pela utilização de uma faca, com que surpreendeu a vítima. A gravidade das consequências dos seus atos, é elevada, pois por efeito da sua conduta, EE, de 27 anos de idade, perdeu a vida. Os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins e os motivos que determinaram o arguido, mostram-se sopesados na qualificativa do crime de homicídio.


O dolo com que agiu é direto.


No respeitante aos fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior aos factos, não corresponde à verdade a afirmação do recorrente de que não tem antecedentes criminais, pois, como se verifica do ponto n.º 22 dos factos provados, já tinha sido condenado, por sentença proferida em 13-07-2017, pela prática de um crime de furto e de um crime de furto na forma tentada, em penas de multa; por sentença de 25-1-2018, pela prática de um crime tráfico de menor gravidade, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo; e por sentença de 21-4-2022, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 18 meses de prisão, , suspensa na sua execução por igual período de tempo.


Como bem anota o acórdão recorrido, “…embora por crimes de tipos distintos, o arguido já tinha antecedentes criminais registados, tendo praticado os crimes de homicídio e de detenção de arma proibida aqui em apreço apenas cerca de dois meses depois de ter transitado em julgado (em 23.05.2022) a condenação, por sentença proferida em 21.04.2022, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo, por crime de furto qualificado que tinha praticado em 14.04.2022,…”. Deste modo, não existem razões para censurar o Tribunal a quo por não ter indicado entre estes fatores de determinação da pena, a favor do arguido, o seu arrependimento dos factos praticados.


Também não beneficia de arrependimento, como alega o recorrente, uma vez que a verificação desta circunstância atenuante da sua responsabilidade mostra-se expressamente afastada no ponto n.º 40 dos factos provados.


Nem havia razões para o Tribunal a quo relevar a confissão dos factos invocada pelo arguido/recorrente, na medida em que da motivação da matéria de facto do acórdão recorrido, consta que, “Verificou-se, pelas razões supra expostas, a falta de verdade do alegado pelo arguido na parte em que negou os factos que se provaram e apresentou distinta versão do sucedido, tendo evidentemente procurado aligeirar a verificação da sua responsabilidade, referindo-se a um pretenso contexto de reacção sua a agressões por parte de EE, acompanhado do respectivo cão, e à inexistência de intenção de o matar ou da percepção de que desferira as facadas onde se verificou que as desferiu, sustentando que lhas dirigiu para o ombro ou para o braço e que o fez para se defender.”.


Nos fatores relativos à personalidade do agente”, anotamos que o acórdão recorrido ponderou a “relativa juventude do arguido”. Tendo o arguido 29 anos de idade à data da prática dos factos (nasceu a ... de ... de 1993), pouco releva, porém, a sua idade para atenuação da sua responsabilidade penal, pois não é jovem, nem idoso.


Embora tenha chegado a ingressar no 1.º ano de um curso de tecnologia na Universidade, de que veio desistir, e de manter um bom relacionamento com os familiares em casa de quem estava a residir há cerca de 3 meses, aquando dos factos em causa, o arguido AA revela fragilidades em termos pessoais e emocionais.


Assim, apresenta um percurso profissional indiferenciado, não tendo qualquer atividade laboral estruturada à data dos factos. Consome produtos estupefacientes desde os 14 anos de idade, e no período em que ocorreram os factos consumia habitualmente haxixe e ingeria bebidas alcoólicas em excesso. Apresenta falta de responsabilidade pessoal e social e revela reduzido juízo crítico, pelo que se pode concluir que são elevados os fatores de risco de reincidência.


Sufragamos, assim, o acórdão recorrido, quando, além do mais refere, que “As exigências de prevenção especial, como supra referido, revelam-se também elevadas, porquanto, embora por crimes de tipos distintos, o arguido já tinha antecedentes criminais registados, tendo praticado os crimes de homicídio e de detenção de arma proibida aqui em apreço apenas cerca de dois meses depois de ter transitado em julgado (em 23.05.2022) a condenação, por sentença proferida em 21.04.2022, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo, por crime de furto qualificado que tinha praticado em 14.04.2022, evidenciando dificuldades na capacidade de controlo pessoal, especialmente na gestão de impulsos em contextos de adversidade, revelando tendência para agir de forma reactiva e de acordo com a sua carga emotiva, sem reflexão sobre os seus comportamentos, revela falta de motivação para a sua reorganização pessoal, especialmente em termos do seu investimento formativo, sobrepondo-se uma conduta pessoal direccionada para o presente, sem grande ponderação no plano futuro, o que está associado a falta de responsabilidade pessoal e social e, pese embora ciente da gravidade das implicações dos factos supra descritos a que se refere este processo, revela reduzido juízo crítico e não manifestou arrependimento quanto aos mesmos. (…).


Não se vislumbram também razões para dissentir do acórdão recorrido quando, a propósito das exigências de prevenção geral, as considera elevadas, “relativamente a ambos os crimes - considerando o modo e o contexto da sua prática, a assustadora frequência com que os tipos de crime em causa são cometidos na área desta comarca, em que o recurso à violência extrema, em circunstâncias semelhantes às verificadas neste processo, é recorrentemente a resposta encontrada por quem tem tendência para ter atitudes impulsivas ao lidar com situações de frustração, com fraca ponderação sobre as consequências dos seus actos, o que também é cada vez mais frequente em sectores jovens e relativamente jovens da população, e o forte alarme social decorrente da prática destes crimes, para mais em contextos de vizinhança.”.


Perante os elementos objetivos supra referidos, é também elevada a culpa do arguido , como sublinhou o acórdão recorrido.


Não pode, assim, proceder, a pretensão do recorrente de que as penas que lhe foram aplicadas, pelos crimes de detenção de arma proibida e de homicídio, deveriam ter-lhe sido fixadas nos limites mínimos das molduras penais por, alegadamente, as que lhe foram aplicadas serem excessivas e prejudicais à sua ressocialização.


É que, como se demonstrou, são prementes as necessidades de ressocialização do ora recorrente.


Posto isto, face a todo exposto, decide-se manter a pena de 1 ano de prisão, aplicada ao arguido pelo Tribunal a quo, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1, al. d), do RJAM, embora com referência ao art.3.º, n.ºs 1 e 2, alínea ab), e não à alínea f), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro (RJAM).


Repercutindo na pena a fixar a alteração da qualificação jurídica dos factos quanto ao crime de homicídio simples, que se substitui por um crime de homicídio qualificado, este Supremo Tribunal considera adequado fixar em 18 anos e 6 meses de prisão a pena a aplicar ao arguido pelo crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art.132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal.


15.5.4. Passando agora à medida da pena única.


Considerando as regras da punição do concurso, estabelecidas no art.77.º Código Penal, a pena conjunta é definida dentro de uma moldura cujo limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o limite máximo resulta da soma das penas efetivamente aplicadas, emergindo a medida concreta da pena da imagem global do facto imputado e da personalidade do agente.


O agente é sancionado, não apenas pelos factos individualmente considerados, numa visão atomística, mas especialmente pelo conjunto dos factos, enquanto reveladores da gravidade da ilicitude global da conduta do agente e da sua personalidade.


Na busca da pena do concurso, explicita Figueiredo Dias, que “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”32 No mesmo sentido refere Cristina Líbano Monteiro, que com o sistema da pena conjunta, perfilhado neste preceito penal, deve olhar-se para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.33


As conexões ou ligações fundamentais na avaliação da gravidade da ilicitude global, são as que emergem do tipo e número de crimes, dos bens jurídicos individualmente afetados, da motivação, do modo de execução, das suas consequências e da distância temporal entre os factos.


Condutas muito gravosas para a comunidade, como as integradas no terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade especialmente ou criminalidade altamente organizada, [definidas no art.1.º, alíneas f) a m)] exigem, por respeito do princípio da proporcionalidade e exigências de prevenção, uma menor compressão das penas parcelares, na formação da pena única, do que condutas de agentes inseridas na chamada média ou pequena criminalidade.


Ínsita nos factos ilícitos unificados no âmbito da pena de concurso, a personalidade do agente, é um fator essencial à formação da pena única. A revelação da personalidade global do agente, o seu modo de ser e atuar em sociedade, emerge essencialmente dos factos ilícitos praticados, mas também das suas condições pessoais e económicas e da sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado.


A interiorização das condutas ilícitas e consequentes penas parcelares que lhe foram aplicadas traduzidas na vontade clara de alteração do comportamento antissocial violador de bens jurídico criminais, assente em factos que o demonstrem, relevam assim, particularmente, no apuramento das exigências de prevenção no momento de determinar a pena única.


Sendo as necessidades de prevenção mais exigentes quando o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, do que quando esse ilícito se reconduz a uma situação de pluriocasionalidade, a pena conjunta deverá refletir esta singularidade da personalidade do agente.


Com estes critérios retomemos o caso concreto.


A) Observando o ilícito global, que emerge da análise unificada dos factos, não se pode deixar de qualificar o mesmo como de elevada gravidade. Os crimes em concurso são dois, um de homicídio qualificado e um de detenção de arma proibida, praticados no mesmo contexto temporal.


O crime de homicídio qualificado integra o conceito de “criminalidade especialmente violenta”, o que afasta a conduta do arguido da pequena/média criminalidade.


A culpa global do arguido, expressa na vontade de praticar os factos em concurso, é acentuada.


B) Quanto à personalidade unitária do recorrente, resulta do conjunto dos factos em concurso, que apresenta um percurso de vida desconforme com o direito, tendo praticado crimes de furto, simples e qualificados e tráfico de estupefacientes, nos anos de 2016, 2017 e 2022, encontrando-se à data da prática dos factos em período de suspensão da execução de uma pena de 18 meses de prisão, pelo que vem demonstrando pouca sensibilidade e suscetibilidade de ser influenciado pelas penas criminais.


Neste contexto, em que o limite mínimo da moldura abstrata do concurso é de anos 18 anos e 6 meses de prisão (correspondente à pena de homicídio qualificado) e o limite máximo é 19 anos e 6 meses de prisão (correspondente à soma das penas aplicadas pelo crime de detenção de arma proibida e de homicídio qualificado), consideramos que uma pena conjunta de 18 anos e 9 meses de prisão, é uma pena justa e adequada às finalidades de prevenção e proporcional á culpa e à personalidade do arguido/recorrente.


III – Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:


- Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo assistente BB e revogar o acórdão recorrido, na parte em que condenou o arguido AA na pena de 14 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio simples p. e p. pelo art.131.º do Código


Penal e, em substituição, condenar o mesmo arguido, como autor material de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art.132.º n.ºs 1 e 2 al. e), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) anos e 6 (seis) meses de prisão;


- Reformular o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido AA e condenar o mesmo na pena única de 18 (dezoito) anos e 9 (nove) meses de prisão; e


- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.


Custas apenas pelo arguido, fixando em 6 Ucs a taxa de justiça (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa)


*


(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).


*


Lisboa, 21 de março de 2024


Orlando Gonçalves (Relator)


Agostinho Torres (1.º Adjunto)


Celso Manata (2.º Adjunto)


____________________________________________________

1. Cf. BMJ n.º 458º , pág. 98.↩︎

2. Cf. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.↩︎

3. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.↩︎

4. Publicado no Diário da República n.º 120/2017, Série I de 2017-06-23↩︎

5. - Cf. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág.300.↩︎

6. In “Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, Almedina, 4.ª edição revista, págs. 1327 e 1328.↩︎

7. Cf., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 24/11/2022 (proc. n.º76/20.4T9VLS.L1.S1 e de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496, pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483, pág. 49) e Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado”, vol. 2.º, 2ª ed., páginas 737 a 739.↩︎

8. , 2.º Vol., pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).↩︎

9. Cf. Figueiredo Dias, in C.J., ano XII, 4º , pág. 49 e, entre outros, o acórdão deste STJ de 11/12/1996 (proc. n.º 188/97), in www.dgsi.pt.↩︎

10. Cf. “Homicídio Qualificado”, Almedina , págs. 63 e 64.↩︎

11. Cf. “Código Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 2.ª edição, pág.62.↩︎

12. Cf. “Comentário do Código Penal”, 4.ª ed., atualizada, UCE, pág.557.↩︎

13. Cf. “Código Penal Português, anotado”, 2007, Almedina, pág.515.↩︎

14. Cf. anotação ao art.132º. do “Código Penal”, 2.º Vol., ed. Rei dos Livros.↩︎

15. Relatado pelo Cons. Jorge dos Reis Bravo, que ainda será inédito.↩︎

16. Obra cit., pág. 561.↩︎

17. Obra cit., em anotação ao art.132.º.↩︎

18. In www.dgsi.pt↩︎

19. Cf. entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 20/7/2006 (proc. n.º 06P2316) e de 29/9/2022 (proc. n.º 264/18.3PKLRS.L1.S1), in www.dgsi.pt↩︎

20. Sublinhado nosso.↩︎

21. Sublinhados nossos.↩︎

22. Cumprido que foi o disposto no art.429.º, n.º3 do Código de Processo Penal, nada obsta à alteração da norma jurídica para que remete o art.86.º, n.º 1, al. d), do RJAM.↩︎

23. Cf. acórdãos do Supremo Tribunal, de 29/06/2006 (proc. nº 1942/06-3ª) e de 27-05-2010 (proc. n.º 470/09.4PSLSB.L1.S1).↩︎

24. Cf. Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, e acórdão do S.T.J. de 10-11-2010, (proc. n.º 145/10.9JAPRT.P1.S1), in www.dgsi.pt↩︎

25. Cf. Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª ed., C.E., pág. 309, que aqui se vem seguindo.↩︎

26. Cf. “Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., pág. 990.↩︎

27. In www.dgsi.pt↩︎

28. Cf. Fig. Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230.↩︎

29. Cfr. “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime”, Editorial Notícias, pág. 245 a 255.↩︎

30. Cf. “ Consequências Jurídicas do Crime”, Lições para os alunos da FDC, Coimbra, 2010-2011.↩︎

31. Cf. “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, abril-junho de 2002, págs. 181 e 182.↩︎

32. Cf. “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, págs.290/2.↩︎

33. Cf. “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 16, n.º1, , pág. 155 a 166 e acórdão do STJ, de 09-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1.↩︎