Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | FERREIRA GIRÃO | ||
| Descritores: | MATÉRIA DE FACTO GRAVAÇÃO DA PROVA RECURSO DE APELAÇÃO REQUISITOS CULPA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
| Nº do Documento: | SJ200605250010802 | ||
| Data do Acordão: | 05/25/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Sumário : | I - No âmbito do processo civil, prevalece o princípio do dispositivo, incumbindo às partes o impulso processual, através do cumprimento de determinado ónus expressamente determinados na lei, sob pena, muitos deles, de efeitos preclusivos ou de liminar rejeição. II - Deve ter-se por correcta e incontornável a decisão do acórdão recorrido de indeferir a reapreciação da prova gravada com o fundamento de o recorrente não ter cumprido as formalidades exigidas quer nas duas alíneas do n.º 1, quer no n.º 2 do art. 690.º-A, com referência ao n.º 2 do art. 522.º-C, ambos do CPC, pois a lei sanciona expressamente o incumprimento desse ónus com a rejeição do recurso. III - A determinação da culpa integra matéria de facto - insindicável pelo STJ - se estiver em causa a violação dos deveres gerais de prudência e diligência. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: O Condomínio da Rua AA em Coimbra pede a condenação do Banco ..., SA, a pagar-lhe as quantias de 32.220,65euros, os juros vencidos no montante de 1.304,73euros e vincendos à taxa de 7% sobre aquela quantia e ainda os juros de capital vincendos à taxa praticada pelo réu para os depósitos a prazo referente às quantias de 7.280,76euros e 24.939,89euros, alegando, para tanto e em síntese, que: --o condomínio era titular de uma conta à ordem e de três contas a prazo na dependência do Banco..., contas essas que foram movimentadas pela empresa BB, Ldª, sem que para tal estivesse autorizada, conforme a acta nº 52 de 17/5/01, de cujo teor o réu tinha conhecimento; --apesar disso, o réu permitiu o levantamento de todas as quantias depositadas quer à ordem, quer a prazo, sem exigir as respectivas provas de identificação e poderes para os actos das transferências e levantamentos. O réu contestou, alegando, além do que já desinteressa, que: --procedeu de conformidade com os poderes que a assembleia de condóminos conferiu à empresa administradora do condomínio; --estes administradores entregaram no balcão do réu a respectiva ficha de assinaturas, ficando a constar que bastariam duas assinaturas dos sócios da referida empresa para autorização de movimentação das contas, sempre tendo o banco conferido essas assinaturas; --a ficha de assinaturas tem no dito impresso a advertência expressa de que «estas condições são válidas para todas as contas que venham a ser constituídas sob o nº único de cliente (NUC) acima indicado e mantêm-se nos casos de mobilização antecipada de depósitos a prazo», como era o caso do autor; --a acta nº52 foi-lhe remetida, mas não era acompanhada de qualquer advertência adicional. Realizado o julgamento, a acção foi julgada parcialmente procedente e o réu foi condenado a pagar ao autor a quantia de 24.939,89euros de capital, relativo ao depósito das contas a prazo de que o autor era titular no réu, bem como os juros usuais dos depósitos a prazo pagos pelo banco aos seus clientes, vencidos até 7 de Novembro de 2002, relativos àquelas contas a prazo, como se não tivesse existido qualquer levantamento e ainda os juros de mora vincendos a partir daquela data e à taxa legal (Portaria 263/99 e 291/03) até ao efectivo pagamento. O réu apelou desta sentença, mas a Relação de Coimbra, julgando improcedente o recurso, confirmou-a, pelo que, continuando inconformado, vem agora o apelante pedir revista do acórdão da Relação, formulando as seguintes conclusões: 1. Tal como referiu na alegação antecedente, dirigida ao Tribunal da Relação de Coimbra, a sua discordância quanto à sentença proferida em 1ª Instância e confirmada pelo acórdão em crise incide, prima facie, nas respostas que um número considerável de artigos da Base Instrutória (BI) mereceram. 2. Trata-se, em concreto, dos nºs5, 8 a 11, 13, 14, 18, 24 a 27 e 30 dos factos dados como provados naquele, que continua a considerar não terem qualquer correspondência com a prova documental vertida nos autos e, nomeadamente, com a testemunhal produzida em audiência. 3. Já que a menção de «provado», que todos esse números suscitou, ignorou/desprezou, em larga medida, a prova produzida e inserta nos autos. 4. Pelo que se impunha reapreciar, com todo o cuidado, a «prova «gravada» para dela retirar as ilações, inteiramente diversas das levadas à decisão sub judice, que dela correctamente resultam. 5. Todavia, a Relação a quo entendeu assim não proceder, com base em razões de ordem meramente formal, pondo, clara e abertamente, em causa o princípio da verdade material, que importa preservar e assegurar. 6. Pelo que manteve inalteradas as respostas de «provado» que os números correspondentes da BI haviam merecido em 1ª Instância, não obstante ser claro que não correspondem ao efectivamente sucedido. 7. Ora, não tendo a Relação a quo respeitado a obrigação de reapreciar a prova gravada, como lhe competia, essa omissão provocou nulidade pela sua influência marcante no sentido da decisão do recurso. 8. Competindo, agora, a este Alto Tribunal mandar repetir o julgamento da Relação com esses precisos fundamento e objectivo, por forma a que seja definitivamente fixada, desta vez com o necessário e aguardado rigor, a matéria de facto a atender na decisão de jure. 9. Não consta dos autos o prazo de vencimento dos DP em questão, pelo que a resposta que o nº13 da BI mereceu carece de qualquer suporte, fáctico e ou documental. 10. Em contraste, os gerentes tinham poderes para movimentarem, por si só, as contas do Condomínio, por estes atribuídos e esses poderes foram devidamente verificados pelos serviços do Banco... aquando dos levantamentos em questão, pelo que as respostas, de não provado, que os nºs24 a 26 mereceram são manifestamente erradas. 11. O NUC (número único do cliente) do Condomínio recorrido continha sub-contas, à ordem (1) e a prazo (3), cuja movimentação estava sujeita a regras uniformes. 12. As condições de movimentação desse NUC não foram alteradas após a entrada em funções da Condogest, já que manteve a necessidade de «2 assinaturas» para o obrigar. 13. Todos os levantamentos questionados foram efectuados enquanto os dois administradores do condomínio se encontravam em funções. 14. Na acta em questão não surge mencionado o número identificativo do DP a que, porventura, então se pretendia aludir, nem, tão-pouco, a instituição bancária em que teria sido constituído. 15. Deste modo, não existe, nessa acta, qualquer menção expressa ou, sequer, referência implícita, ao Banco .... 16. Essa acta (cópia) foi entregue ao Banco... para identificar que, doravante, podia, também, movimentar a conta do condomínio, para o que foi acompanhada da matrícula e dos registos relativos à BB, cujos gerentes subscreveram, então, nova ficha de assinaturas. 17. Esta apresentação nada tinha a ver com a alegada deliberação tomada sobre a movimentação do aludido DP, para que o Banco... não foi alertado designadamente por escrito, como se impunha, por razões cautelares e prudenciais evidentes, do interesse do próprio condomínio. 18. Até ao termo do seu mandato, os administradores do condomínio então ainda em funções, nunca controlaram a movimentação da conta, nem tomaram qualquer providência para impedir os levantamentos em questão, não obstante estarem mandatados pelos seus «pares» para esse preciso fim e disporem dos inerentes poderes, que não usaram. 19. Agiram, assim, com patente incúria e indisfarçável inépcia no desempenho dessa missão, não tendo sido dignos e merecedores da confiança que os demais condóminos neles depositaram. 20. Perante o relatado, é manifesto que os condóminos do imóvel em questão agiram com culpa in eligendo ao escolherem para gerir o condomínio empresa que, segundo a sua versão, se terá apropriado de fundos que lhe pertenciam e seriam destinados à sua beneficiação. 21. Ao passo que os seus administradores nomeados incorreram em culpa in vigilando já que não acompanharam a actuação daquela sociedade, como havia sido deliberado, permitindo, através da sua inércia e distanciamento, os levantamentos ora questionados, que, doutro modo, não teriam sido possíveis. 22. O Condomínio AA recorrido violou, claramente, o dever de informação rigorosa e completa, logo correcta, que impende sobre o cliente de entidade bancária como pressuposto deste, por seu turno, lhe (poder) prestar um «bom serviço». 23. Em consequência, o próprio Condomínio AA e esses administradores foram/são os responsáveis, únicos e directos, pelo sucedido. 24. Ao passo que ao Banco... será, no limite e quando muito, assacável uma responsabilidade levíssima, sempre e necessariamente muito inferior à que, seguramente, impende sobre aqueles. 25. Neste contexto, o Banco afastou, de forma incontornável, a presunção de culpa que, em princípio, sobre si impenderia. 26. Perante o quadro traçado, a condenação do Banco... no pedido formulado é inteiramente descabida e injusta. 27. Ao entender de forma diversa, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos342, 483, 487, 490, 506 e 570 do CC e 97, 279, 653 e 659 do CPC. A recorrida contra-alegou no sentido da improcedência do recurso. Corridos os vistos, cumpre decidir. Nas conclusões acabadas de transcrever o recorrente ataca o acórdão recorrido quanto: --à decisão da matéria de facto; --e à culpa que lhe foi exclusivamente assacada pelo incumprimento do contrato de depósito bancário em causa. São estas as duas questões para resolver. 1ª QUESTÃO Insurge-se o recorrente contra a decisão da Relação de ter indeferido a sua impugnação da matéria de facto, recusando a reapreciação da prova gravada, por razões de ordem meramente formal, em prejuízo da verdade material. Esquece, porém, o recorrente que, no âmbito do processo civil, prevalece o principio do dispositivo, incumbindo às partes o impulso processual, através do cumprimento de determinado ónus expressamente determinados na lei, sob pena, muitos deles, de efeitos preclusivos ou, como é o caso, de liminar rejeição. A reapreciação da prova gravada foi indeferida pelo acórdão recorrido com o fundamento de o recorrente não ter cumprido as formalidades exigidas quer nas duas alíneas do nº1, quer no nº2 do artigo 690-A, com referência ao nº2 do artigo 522-C, ambos do Código de Processo Civil (CPC). E o recorrente não nega esse incumprimento; antes o pretende desvalorizar com o referido argumento de o tribunal ter privilegiado o formalismo em detrimento da verdade material. Porém, e como se disse, este argumento não colhe, razão porque, sancionando a lei, como sanciona expressamente, o incumprimento desses ónus com a rejeição do recurso, tem que se considerar incontornavelmente correcta a decisão do acórdão, não havendo lugar à repetição do julgamento da matéria de facto, como pretende o recorrente. Improcede, assim, a 1ª questão e, consequentemente, mantém-se inalterada a matéria de facto, tal como foi fixada pelo acórdão recorrido e para a qual, por isso, se remete, ao abrigo do nº6 do artigo 713 ex vi artigo 726, ambos do CPC. 2ª QUESTÃO Persiste o recorrente na defesa da tese de que os condóminos agiram com culpa in eligendo ao escolherem para gerir o condomínio uma empresa que, na sua opinião, se apropriou de fundos que lhe pertenciam e se destinavam à sua beneficiação e que os administradores nomeados incorreram em culpa in vigilando por não terem acompanhado a actuação da sociedade, como havia sido deliberado, permitindo, através da sua inércia e distanciamento, os levantamentos em causa. Donde conclui que, no limite, só lhe poderá ser assacada um responsabilidade levíssima, necessariamente muito inferior à que impende sobre os condóminos e os seus administradores. O certo, porém, é que esta tese do recorrente não tem qualquer consistência face à factualidade apurada. E – mais do que isso – a sua culpa pelo incumprimento do contrato de depósito bancário, configurado nos autos, já está indiscutivelmente assente. Na verdade, de acordo com o disposto no nº1 do artigo 799 do Código Civil, incumbia ao recorrente provar que o incumprimento do referido contrato não procedia de culpa sua, sendo certo que nos termos do nº2 do mesmo artigo com referência ao nº2 do artigo 487, também do Código Civil, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias. Ora, o acórdão recorrido, sufragando o entendimento da 1ª Instância, concluiu que o recorrente violou as regras gerais, a boa prudência do exercício das suas funções e o exercício correcto das mesmas, ou seja, agiu com culpa (artigo 798), ao permitir a movimentação, pela Condecogest das contas a prazo do recorrido, contra a orientação expressa deste constante da acta nº 52, de 17/5/2001, onde se prescrevia que a movimentação de tais contas só poderia ocorrer após autorização em nova assembleia de condóminos. «…Se o conteúdo de tal documento tivesse sido correctamente percebido pelos funcionários do R. (sendo que era seu dever a exacta apreensão e compreensão desse teor) nunca esses depósitos poderiam ter sido levantados por quem não era titular deles. Isto é, competia ao Banco (através dos seus funcionários) averiguar o sentido exacto do mandato conferido pelo condomínio à dita empresa. Se o tivesse feito de forma acertada, nunca teria permitido que os depósitos fossem levantados nas circunstâncias em que o foram. «A responsabilidade (e culpa) do Banco R., deve ver-se nestes prismas.» -- concluí o acórdão em apreciação. Ora, a determinação da culpa integra matéria de facto – insindicável, portanto, pelo Supremo – se estiver em causa a violação dos deveres gerais de prudência e diligência. É o caso. Esta 2ª questão está, assim e também, irrefragavelmente vocacionada para a improcedência. DECISÃO . Lisboa, 25-05-2006 Ferreira Girão (Relator) Bettencourt de Faria Pereira da Silva |