Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3/21.1JELSB.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DE COGNIÇÃO
INCOMPETÊNCIA
Data do Acordão: 03/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECLARAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA
Sumário :
Sempre que no mesmo recurso ou no caso de pluralidade de recursos, esteja em causa o conhecimento de questões de direito conexas com os factos, cuja decisão possa ter repercussão nos mesmos e não possam ser decididas pelo STJ apenas com recurso ao texto da decisão recorrida, não incumbe ao Supremo, mas sim ao tribunal da Relação o julgamento dos mesmos, por força do disposto nos arts. 414.º, n.º 8 e 428.º do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório

1. No processo comum coletivo n.º 3/21.1... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., foram os arguidos,

- AA

- BB

- CC

- DD

condenados, em coautoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo Art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-B anexa, na pena, cada um, de 6 (seis) anos de prisão.

2. Inconformados com tal decisão, os arguidos BB e DD recorreram da referida decisão, o primeiro endereçando a motivação para o Supremo Tribunal de Justiça (recurso interposto em 08 de Outubro de 2024) e o segundo (recurso interposto em 10 de Outubro de 2024) para o Tribunal da Relação de Lisboa.

3. Os recursos foram admitidos, conforme despacho de 21 de Outubro de 2024 (despacho no qual não foi referido qual o Tribunal superior competente para os termos os recursos).

4. Após as respostas do Ministério Público, a Senhora juiz do processo determinou a subida dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa.

5. No Tribunal da Relação de Lisboa após parecer emitido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto e de serem levantadas diversas questões acerca de impedimentos de alguns Senhores Desembargadores e a propósito da distribuição (sanado conflito negativo através de Despacho de 21.01.2025 do Senhor Juiz Presidente do Tribunal da Relação), foram os autos presentes à Senhora juiz Desembargadora Relatora.

6. No Tribunal da Relação de Lisboa a Exma. Desembargadora Relatora proferiu, a 23 de Janeiro de 2025, decisão sumária na qual, em sede de fundamentação, considerou o seguinte: (transcrição)

«Não se conformando com a condenação sofrida de seis anos de prisão vieram os arguidos, BB, e DD recorrer, separadamente, do Acórdão proferido no Juízo Central Criminal de ..., o primeiro dirigindo o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e o segundo para esta Relação

Nos termos do disposto no Artigo 432.º do Código de Processo Penal, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a Relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º.

Prevê, por seu turno, o n. 8. do artigo 414º que havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente pelo tribunal competente para conhecer da matéria de facto.

Cumpre, pois apreciar da competência deste Tribunal.

O objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal definem-se pelas conclusões que o recorrente apresenta, cabendo a este o ónus de sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, págs. 1027 e 1122).

Deste modo para saber se o recurso incide exclusivamente sobre matéria de direito ou de facto importará percorrer as conclusões apresentadas, pois será desta delimitação do objeto de cada um dos recursos, que decorrerá a resposta sobre qual dos Tribunais é competente para o conhecimento de ambos os recursos.

O Arguido BB apresentou no seu recurso as seguintes alegações:

“1. O recorrente considera que a acusação contra si proferida (para a qual remete a pronúncia) é nula por não lhe imputar qualquer atuação concreta, sendo os factos a si respeitantes genéricos e abstratos.

2. A acusação imputa aos arguidos, de forma genérica, que os mesmos “retirariam do interior do tapete de bagagens as malas que continham, no seu interior, cocaína, entregando-as directamente a membros da organização, que aguardariam no exterior do Aeroporto, impedindo, desta forma, que essas malas fossem sujeitas a qualquer tipo de controlo ou fiscalização” (facto 8. da acusação).

3. A acusação concretizava a atuação dos arguidos, por referência ao dia 20 de junho de 2023, passando a descrever a conduta de cada um entre os pontos 9. a 34.

4. Apenas o ponto 29.º o Ministério Público tenta imputar alguma participação ao arguido BB.

5. Da leitura do mesmo não decorre a prática de qualquer ação ou uma omissão por parte do arguido (“De seguida, o arguido DD dirigiu-se para reboque que estava no canto, (...) com a ajuda do arguido BB, colocou-a no tractor”).

6. Ainda que resulte da acusação que o arguido aderiu a um determinado plano tendente à retirada de malas com cocaína do Aeroporto ..., em que é que se consubstanciou essa adesão?

7. A imputação que é feita ao arguido é que o mesmo ajudou o arguido DD a colocar uma mala num tractor.

8. De que forma ajudou? Ou, de que forma participou no referido plano? Por quanto tempo? O que sucedeu ao certo? Como se concretiza essa ajuda? O arguido chegou a tocar na mala? O que é que, afinal, o arguido fez?

9. Ajudar é a conclusão lógica retirada de outro facto – é uma imputação factual é conclusiva, contendo já um juízo valorativo e até jurídico.

10. O arguido não consegue defender-se de algo tão genérico e abstrato.

11. O facto 29.º da acusação, no que ao arguido BB diz respeito, é abstrato, genérico e conclusivo, pois não se concretiza em nenhuma ação específica.

12. A ausência de imputação de ação concreta ou omissão ao arguido acarreta a nulidade da acusação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal.

13. A acusação proferida quanto ao arguido (para a qual a pronúncia remeteu) é nula, atenta a ausência de imputação de ação ou omissão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal.

14. Mal andou o Tribunal ao indeferir a nulidade arguida pelo arguido, devendo ser proferido acórdão que declare nula a acusação/pronúncia proferida contra o arguido e, por conseguinte, decrete a sua absolvição.

15. Normas violadas: artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal e o Artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Se assim não se entender,

16. O arguido considera que o Tribunal a quo violou o disposto no n.º2 do Artigo 40.º e Artigo 71.º, ambos do Código Penal, incorrendo em erro de aplicação ao caso concreto.

17. A pena do arguido também deveria ter sido menor face às dos demais por uma questão de justiça relativa.

18. Discordamos do Tribunal a quo quando quando conclui que não se justifica “medida da pena distinta para os quatro arguidos, visto que inexistem circunstâncias, quer atenuantes, quer agravantes distintivas que justificassem dissometria diferenciada”.

19. O recorrente deveria ter sido antes condenado numa pena máxima de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução.

20. Estamos perante o arguido mais jovem dos quatro que, à data dos factos, tinha completado 25 anos de idade, sem qualquer condenação averbada no seu certificado de registo criminal e com um percurso escolar e profissional investido.

21. Os demais arguidos são substancialmente mais velhos e um deles conta com uma condenação já averbada no seu certificado de registo criminal.

22. Em face da juventude do arguido e prematuridade penal, consideramos que a sua pena deveria ter sido substancialmente menor que a dos demais.

23. O Tribunal a quo, ponderou que os arguidos “removem a etiqueta identificativa, ocultam a mala num outro local, aguardam durante horas, mantendo vigia à mesma, a fim de entrar no período nocturno (...)”.

24. No entanto, o recorrente não teve qualquer intervenção na referida descrição factual, pois aquando da chegada da mala que continha cocaína, o arguido nem sequer se encontrava nas instalações do aeroporto (factos 10. a 14. da matéria de facto dada como provada) e a sua intervenção do arguido surge já numa parte final do plano e concretamente circunscrita ao artigo 26.º.

25. A sua conduta do recorrente é acessória e dependente do prévio manuseamento da mala (momento esse em que não teve qualquer intervenção).

26. Nunca foi visado na investigação.

27. Resulta dos factos dados como provados sob o ponto 54. que o arguido, para além da família que se encontra totalmente disponível para o apoiar em liberdade, dispõe competências académicas e profissionais que certamente o ajudarão a encontrar trabalho – o que atenua as exigências especiais que se fazem sentir, não havendo necessidade de aplicar ao arguido pena tão gravosa como aquela que foi aplicada.

28. O Tribunal encontrava-se dotado de diversos elementos factuais (que até deu como provados) para decidir de forma contrária àquela que fez, na medida em que a factualidade dada como provada evidencia fatores diretamente indicativos de um comportamento futuro do arguido dentro da legalidade.

29. Este é um caso de tráfico de estupefacientes que reclama a redução da pena de prisão aplicada ao arguido deve ser aplicada, na medida em que, face à personalidade do arguido, ao papel desempenhado pelo arguido, inserção social, familiar e perspetiva de trabalho, é de prever que o mesmo não volte a cometer qualquer crime.

30. A medida da pena excedeu a medida da culpa e a gravidade das circunstâncias da conduta do arguido.

31. A aplicação de uma pena junto ao limite da moldura penal (em 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução) revela-se suficiente para assegurar as finalidades de punição, para efeitos do disposto no Artigo 71.º do Código Penal, ao contrário do que sucedeu.

32. Atento o teor do relatório social do arguido, a sua postura em audiência de discussão e julgamento e a inexistência de condenações averbadas no seu CRC, cremos ser de se fazer uma prognose favorável ao seu comportamento futuro, sendo de suspender a pena de prisão, nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal.

33. O recorrente entende que o Tribunal a quo não ponderou devidamente as circunstâncias supra referidas e que a pena aplicada excede a medida culpa.

34. Normas violadas: n.º2 do Artigo 40.º e o Artigo 71.º, ambos do Código Penal.

35. O arguido deveria ter sido condenado numa pena de prisão junto ao limite mínimo aplicável ao caso concreto (4 anos e 6 meses de prisão que deverá ser suspensa na sua execução, sujeitando-se o arguido a um regime de prova, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 50.º e 53.º do Código Penal) – o que se pugna.

36. Caso assim não se entenda quanto à suspensão da referida pena, deverá o recorrente ser condenado numa pena de 4 anos e 3 meses de prisão efetiva.»

Por seu turno, o arguido DD, pese embora tenha recorrido para esta Relação, apresentou as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso vem interposto do Acórdão de 5 de setembro de 2024, que condenou o Arguido DD, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-B anexa, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

2. O Acórdão Recorrido enferma de vícios relacionados com as seguintes questões:

i. Da nulidade / proibição de valoração das imagens de videovigilância captadas pelo sistema de CCTV instalado no aeroporto

ii. Da inadmissibilidade legal de depoimento indireto baseado na observação não autorizada de imagens de videovigilância em tempo real ou através de gravação

iii. Da inadmissibilidade de valoração de autos de diligência e de autos de visionamento de registo de imagens

3. As imagens de videovigilância captadas pelo sistema de CCTV instalado no Aeroporto ..., referentes aos dias 22 e 26 de maio de 2023, por um lado, e ao dia 20 de junho de 2023, foram, em ambos os casos, adquiridas no processo no dia 22 de outubro de 2023, conforme termo de juntada e correspondente folha de suporte de fls. 2499 e 2500.

4. A actividade de videovigilância consubstancia uma ingerência nos direitos fundamentais à imagem e à reserva da vida privada, consagrados no artigo 26.º, n.º 1, da CRP.

5. A junção de imagens de videovigilância captadas por um sistema de CCTV instalado no aeroporto no âmbito de um processo penal carece de validação pela autoridade judiciária competente, nos termos do artigo 178.º, n.º 6, do CPP.

6. A autoridade judiciária competente para validar a apreensão das referidas imagens de videovigilância, na fase de inquérito, seria o Juiz de Instrução Criminal, nos termos do artigo 178.º, n.º 6, do CPP, em conjugação com os artigos 32.º, n.º 4, e 202.º, da CRP.

7. Independentemente da autoridade judiciária competente, as imagens de videovigilância em causa nos autos não foram validadas por qualquer autoridade judiciária – nem pelo Ministério Público, nem pelo Juiz de Instrução Criminal – nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 178.º, n.º 6, do CPP.

8. A validação da apreensão pela autoridade judiciária competente um ato legalmente obrigatório, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.

9. A nulidade resultante da falta de cumprimento do disposto no artigo 178.º, n.º 6, do CPP foi tempestivamente invocada pelo arguido em fase de instrução.

10. O arguido não prestou consentimento por qualquer forma juridicamente relevante para a captação da sua imagem através do sistema de videovigilância instalado no aeroporto de ....

11. O funcionamento de sistemas de videovigilância não pressupõe nem implica a prestação de consentimento pelos respetivos visados.

12. Em contexto laboral, o trabalhador não se encontra geralmente em condições de consentir de forma livre na captação ou não da sua imagem, uma vez que o mesmo se encontra numa situação de vulnerabilidade no quadro de uma relação que se caracteriza por um desequilíbrio estrutural de poder entre as partes.

13. As imagens de videovigilância captadas pelo sistema de CCTV instalado no aeroporto são nulas, não podendo as mesmas ser valoradas, por não terem sido validadas pelo Juiz de Instrução Criminal, sendo, por conseguinte, igualmente nulos os fotogramas extraídos no auto de diligência de fls. 1835 a 1837 e nos autos de visionamento de registo de imagens de fls. 2489-2494 e de fls. 2495 a 2498, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 178.º, n.º 6, do CPP, em conjugação com o disposto no artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.

14. Para os devidos efeitos legais, suscita-se a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 178.º, n.º 6, do CPP, isoladamente ou em conjugação com o artigo 125.º do CPP, quando interpretada no sentido de que a junção a um processo penal de imagens de videovigilância captadas por um sistema de CCTV, não carece de validação por um juiz, por violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

15. Os depoimentos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas EE, FF e GG, na parte em que se baseiam na observação de imagens de videovigilância – em tempo real ou através de gravação – consubstanciam depoimentos indiretos, que extravasam o objeto e os limites da prova testemunhal, definidos no artigo 128.º, n.º 1, do CPP.

16. Os depoimentos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas EE, FF e GG, na parte em que se baseiam na observação de imagens de videovigilância – em tempo real ou através de gravação – não versam sobre factos que, enquanto tais, constituam “objeto da prova”, mas sim sobre as respetivas perceções sobre um outro meio de prova, igualmente junto aos autos.

17. Os depoimentos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas EE, FF e GG constituem prova proibida, por violação do objeto e dos limites da prova testemunhal, definidos no artigo 128.º, n.º 1, do CPP.

18. A convicção do Tribunal a quo não se fundou numa apreciação livre e direta das imagens de videovigilância, verificando-se ter o acesso a tais imagens sido “mediado” pela produção/valoração de prova testemunhal, bem como pela valoração dos correspondentes autos de diligência e de autos de visionamento de registo de imagens.

19. O Tribunal de julgamento não procedeu a uma apreciação livre e direta, nem a uma valoração autónoma da prova constituída pelas imagens de videovigilância captadas pelo sistema de CCTV instalado no aeroporto de ....

20. Foram violados o princípio da imediação da prova e as regras relativas à definição do objeto e dos limites da prova testemunhal previstas no artigo 128.º, n.º 1, do CPP.

21. Para os devidos efeitos legais, suscita-se a inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 128.º, n.º 1, do CPP, isoladamente ou em conjugação com o disposto nos artigos 124.º ou artigo 125.º do CPP, na interpretação de que o tribunal de julgamento pode valorar depoimentos produzidos por testemunhas com base em conhecimentos obtidos mediante a observação de imagens de videovigilância sem proceder à apreciação direta dessas mesmas imagens de videovigilância, por violação das garantias de defesa do arguido e da estrutura acusatória do processo, bem como do direito a um processo justo e equitativo, nos termos dos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1 e 5, da CRP.

22. O Tribunal a quo fundou a sua convicção quanto à matéria de facto provada na valoração do auto de diligência de fls. 1835 a 1837 e dos autos de visionamento de registo de imagens de fls. 2489-2494 e de fls. 2495 a 2498.

23. O auto de diligência de fls. 1835 a 1837 e dos autos de visionamento de registo de imagens de fls. 2489-2494 e de fls. 2495 a 2498 não constituem, per se, meios de prova, suscetíveis de fundar a convicção do tribunal quanto à matéria de facto provada.

V. Exas. contudo melhor decidirão, assim fazendo a boa e acostumada JUSTIÇA!”

Deste modo as questões a apreciar, circunscrevem-se a:

- nulidade da acusação.

- medida concreta da pena.

- nulidade / proibição de valoração das imagens de videovigilância captadas pelo sistema de CCTV instalado no aeroporto

- inadmissibilidade legal de depoimento indireto baseado na observação não autorizada de imagens de videovigilância em tempo real ou através de gravação

- inadmissibilidade de valoração de autos de diligência e de autos de visionamento de registo de imagens.

Todas estas questões são questões de Direito, não respeitando nenhuma delas a apreciação de matéria de facto, sem prejuízo das possíveis consequências que da sua procedência possa resultar para a matéria de facto.

As condenações sofridas são superiores a 6 anos de prisão.

Deste modo, de acordo com as normas supra citadas, afigura-se-nos que apenas o Supremo Tribunal de Justiça dispõem de competência material para conhecimento do recurso, pelo que declarando este Tribunal da Relação incompetente para tal, determino a remessa dos autos para o Supremo Tribunal de Justiça.

Notifique e sem aguardar o trânsito, uma vez que se trata de processo respeitante a arguidos presos preventivamente, remeta os autos para o Supremo Tribunal de Justiça.»

(fim de transcrição)

7. Remetidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, para além de se pronunciar sobre a improcedência dos recursos considerou, como questão prévia, a incompetência deste Supremo Tribunal de Justiça, nos seguintes termos:

«Na verdade, se bem que se compreenda o raciocínio da Senhora Desembargadora no despacho atrás referido, quando refere que todas as questões levantadas pelos recorrentes «são questões de Direito, não respeitando nenhum delas a apreciação da matéria de facto, sem prejuízo das possíveis consequências que da sua procedência possa resultar para a matéria de facto», certo é que – como acaba por ser referido nessa mesma frase – a apreciação das matérias pode implicar efetivamente alteração dessa mesma matéria de facto: é, precisamente, o que os recorrentes (concretamente o recorrente DD) pretendem, levando o pedido à total exclusão dessa mesma matéria de facto no que lhes respeita.

Ou seja – no caso não se pode entender – obviamente sempre salvo o devido respeito por opinião contrária – que a matéria de facto não é objeto de contestação: é-o, embora com argumentos de direito.

Como resumido por aquele magistrado, debatem-se vários aspetos, nomeadamente:

- nulidade / proibição de valoração das imagens de videovigilância captadas pelo sistema de CCTV instalado no aeroporto

- inadmissibilidade legal de depoimento indireto baseado na observação não autorizada de imagens de videovigilância em tempo real ou através de gravação

- inadmissibilidade de valoração de autos de diligência e de autos de visionamento de registo de imagens.

Ou seja, tudo conduz a um pedido de alteração da matéria de facto (no caso, de eliminação de tudo quanto provado ficou e que leva à responsabilização criminal dos arguidos, incluindo daqueles outros que, não recorrendo, pediram para que, no que se lhes refere, se desse por transitado em julgado o acórdão).

E mais: podendo dar-se como procedente apenas algum ou alguns daqueles invocados aspetos, poderá isso implicar até coisa diferente da simples alteração da matéria de facto de provada para não provada: pode implicar, nomeadamente, a alteração dessa matéria de facto (por exemplo se se entender que não é admissível a valoração das imagens, mas já se entender pela possibilidade de valoração dos depoimentos baseados na observação dessas imagens), mantendo-se partes provadas e outras não provadas, inclusivamente podendo implicar apreciação diferente da matéria relativamente a cada um dos arguidos.

Ora, assim sendo, estando em causa recurso que versa igualmente matéria de facto e não só matéria de direito, competente para conhecer dos recursos não é este Supremo Tribunal de Justiça, mas o Tribunal da Relação de Lisboa.

- Pelo que é nosso parecer que deverá ser declarada a incompetência hierárquica e funcional deste Supremo Tribunal de Justiça para os termos do recurso interposto pelo arguido DD (que é o recorrente que levanta as questões atrás enunciadas) e, consequentemente, serem os autos devolvidos ao Tribunal da Relação de Lisboa para apreciação daquele e do recurso interporto pelo coarguido BB (tendo em conta a norma contida no artº 414º, nº 8, do CPP).»

8. Notificados os recorrentes, respondeu apenas o DD, o qual se manifestou pela improcedência da questão prévia, reafirmando a procedência do recurso.

9. Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos, cumpre decidir.

II Fundamentação

10. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3

Questão prévia.

Como questão prévia, importa analisar a competência deste Supremo Tribunal de Justiça para apreciar o presente recurso, suscitada pelo Ministério Público no seu douto parecer.

Apesar de a competência dever ser apreciada, normalmente, no despacho preliminar, é jurisprudência deste Supremo Tribunal apreciar a mesma, tal como a admissão do próprio recurso, quando são suscitadas pelos sujeitos processuais ou sejam de conhecimento oficioso, como questão prévia na conferência e no acórdão final para, desta forma, evitar eventuais reclamações para a conferência.

Assim, passaremos a analisar, como questão prévia e ao abrigo do artigo 32º, nº 1 do Código de Processo Penal, a competência do Supremo Tribunal de Justiça para apreciar o presente recurso.

Como resulta dos pontos I. 6 deste acórdão e como a Exma. Desembargadora Relatora reconhece na sua decisão sumária, um dos recorrentes recorre para o Tribunal da Relação de Lisboa e suscita várias questões de direito conexas com a matéria de facto, que, nas suas próprias palavras, “não respeitando nenhum delas a apreciação de matéria de facto, sem prejuízo das possíveis consequências que da sua procedência possa resultar para a matéria de facto.

Tendo as questões suscitadas e a sua decisão, possível repercussão na matéria de facto, pode o Supremo Tribunal de Justiça apreciar as mesmas quando a sua competência, enquanto tribunal de revista, é apenas de matéria de direito?

Perguntado de outra forma, pode o Supremo Tribunal de Justiça apreciar as questões de direito relativas à matéria de facto (validade de meios de prova, inadmissibilidade de depoimentos ou autos de diligência e visionamento de imagens de CCTV), quando a pretensão do recorrente é a alteração da matéria de facto dada por provada?

A resposta a esta pergunta só pode ser uma, não pode.

Vejamos.

O Supremo Tribunal de Justiça apenas pode apreciar a matéria de facto, através do mecanismo dos vícios da decisão previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, como resulta do artigo 432º, nº 1 alínea c), do mesmo código.

A apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da matéria de facto apenas pela via dos vícios intrínsecos à decisão e apenas com recurso ao texto da mesma, impede que possam ser analisadas as questões suscitadas pelos recorrentes, mesmo tratando-se de questões de direito.

Concretizando.

Para aferir da natureza indirecta do depoimento das testemunhas “EE, FF e GG, na parte em que se baseiam na observação de imagens de videovigilância – em tempo real ou através de gravação (…)” e se os “depoimentos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas EE, FF e GG, na parte em que se baseiam na observação de imagens de videovigilância – em tempo real ou através de gravação – não versam sobre factos”, implica ouvir os seus depoimentos, porquanto da fundamentação da motivação em sede da matéria de facto, na sua literalidade, não é possível extrair elementos que nos permitam concluir pelo depoimento directo ou indirecto.

Sobre aqueles depoimentos, em sede de motivação e no que se refere ao depoimento da testemunha EE, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte: “no depoimento prestado pela testemunha EE, inspectora da Polícia Judiciária, de cujo relato resultou a demostração rigorosa, pormenorizada e sustentada dos passos lógicos subjacentes à abordagem dos arguidos, nas acima citadas circunstâncias de tempo e de lugar, revelando deter conhecimento directo e presencial quanto ao dia 20.06.2023, pois, em parte observou os factos que descreveu pela observação das imagens do sistema de videovigilância no aeroporto de ..., nesse mesmo dia, em parte já gravadas, noutros momentos”.

Desta fundamentação facilmente se concluiu que a referida testemunha, tal como as outras a que o recorrente se refere, o seu depoimento em audiência, tem laivos ou partes de conhecimento directo e indirecto dos factos. Impõe-se, pois, ouvir o depoimento na totalidade, tal como o das demais testemunhas, para se poder concluir ou não, pela sua natureza indirecta.

Este raciocínio de análise em relação à prova testemunhal, é aplicável mutatis mutandis, aos “autos de diligência e de autos de visionamento de registo de imagens”, os quais devem ser analisados no seu conteúdo e forma, porquanto os mesmos serviram para fundamentar a convicção do tribunal recorrido em relação aos factos dados por provados, associados a depoimentos prestados “- fls. 2489 a 2494 verso, auto de visionamento das imagens captadas pelo sistema de videovigilância no aeroporto, com cristalização nos fotogramas aí apostos, cujo teor foi inteiramente sustentado pelo depoimento prestado pela testemunha EE,” (…) “- fls. 2495 a 2498, auto de visionamento referente ao dia 26.05.2023, cujo conteúdo foi igualmente sustentado pelo depoimento prestado pela testemunha EE, e da mera observação dos fotogramas”, o que implica, para decisão da questão de direito suscitada, uma sedimentação dos elementos probatórios constantes do processo e do seu conteúdo.

Esta actividade cognitiva por parte do Tribunal de recurso para decisão das questões de direito suscitadas, está fora dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, os quais estão limitados, do ponto de vista da análise, ao texto da decisão recorrida.

Assim, facilmente se conclui que em todas as questões de direito conexas com os factos, que não possam ser decididas apenas com recurso ao texto da decisão recorrida, devem ser conhecidas pelo Tribunal da Relação pela aplicação do princípio genérico estabelecido no artigo 414º, nº8 e cumprimento do artigo 428º, ambos do Código de Processo Penal.

Se por um lado as questões estão fora dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, por outro, em caso de procedência das questões suscitadas, o reenvio para a 1ª instância, para alteração da matéria de facto ou reapreciação da mesma sem as provas consideradas proibidas, poderia atrasar injustificadamente o processo, o que não aconteceria se a decisão fosse da Relação, em virtude de a mesma conhecer de facto e direito e, nessa medida, poder extrair da decisão tomada sobre as questões suscitadas, as conclusões de facto que entendesse pertinentes.

Pelo contrário, o reenvio por este Supremo Tribunal de Justiça do processo para a 1ª instância, permitiria um novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça ou para a Relação, nada impedindo que, neste caso, voltasse a impugnar-se a matéria de facto, o que faria do processo um verdadeiro quebra cabeças, com um recurso para cada um dos tribunais superiores e sem possibilidade, nesta última situação, de cumprimento do artigo 426º nº 4 do Código de Processo Penal.

Acresce que o princípio consagrado no artigo 414º nº 8 do Código de Processo Penal, em relação à pluralidade de recursos, no qual se estatui que “Havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente pelo tribunal competente para conhecer da matéria de facto”, deve ser, por interpretação extensiva, pois trata-se de uma verdadeira norma sobre competência, aplicado a todas as situações em que estejam em causa questões de direito conexas com os factos, que não possam ser decididas pelo Supremo Tribunal de Justiça apenas com recurso ao texto da decisão recorrida, como acontece no caso sub judice. ,

Este mesmo entendimento pode ser extraído e está subjacente no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Março de 2000, no qual se considerou que a regra “(…) do artigo 414.º, n.º 7 do CPP será aplicável não apenas para o caso de vários recorrentes, mas também para o caso de um recorrente, uma vez que este impugne não apenas matéria de facto como de direito; o tribunal competente para apreciar deve obviamente deter poderes de cognição para as duas vertentes, já que a apreciação será conjunta”.4

Em resumo, sempre que no mesmo recurso ou no caso de pluralidade de recursos, esteja em causa o conhecimento de questões de direito conexas com os factos, que não possam ser decididas pelo Supremo Tribunal de Justiça apenas com recurso ao texto da decisão recorrida, não incumbe ao Supremo, mas sim ao Tribunal da Relação o julgamento dos mesmos por força do disposto nos artigos 414º, nº 8 e 428º do Código de Processo Penal.

Assim, é este Supremo Tribunal de Justiça incompetente funcionalmente para apreciar o presente recurso.

III Decisão

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em declarar a incompetência funcional deste Tribunal, para conhecimento dos recursos dos arguidos BB e DD, determinando-se a remessa dos autos, por ser o competente, ao Tribunal da Relação de Lisboa.

Sem tributação.

Supremo Tribunal de Justiça, 05 de Março de 2025.

Antero Luís (Relator)

António Augusto Manso (1º Adjunto)

José Carreto (2º Adjunto)

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1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.

2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.

3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.

4. Proc. nº 1158/99- 3.ª, in Sumários Acórdãos Supremo Tribunal de Justiça, n.º 39, pág. 58.